— Trim... Trim... Trim...
Por mais que ele insistisse, a porta do 604 não se abria. E há muito tempo que ele ali estava a apertar a campainha que, estranhamente, ainda não se tinha quebrado.
— Trim... Trimmmm...
Fazia uma pausa, tentando adivinhar, com o ouvido colado à porta, algum movimento lá por dentro e, após perceber que mais este toque tinha sido em vão, voltava a calcar o dedo na campainha, com crescente violência.
— Trimmmmm... Trimmmmm... Trimmmmmmmni...
Tinha a barba por fazer, os cabelos despenteados. A maleta ao lado mostrava que voltava de uma viagem. Isto igualmente insinuava a gravata afrouxada no colarinho, deixando aparecer, junto ao pescoço, os fios longos do cabelo do peito.
— Trim... trim...
Abriam-se, vez por outra, as portas de serviço do 601 e do 602, de onde surgiam caras de empregadas e patroas, incomodadas pelo irritante grito da campainha que, realmente, passava demais da conta.
E, ao toque inútil, não poucas vezes juntou socos — inicialmente discretos, na porta, além de pancadas com o pé. Primeiro de bico, depois com o calcanhar, por comodismo e dor nos dedos.
O elevador parou no sexto andar, e a porta abriu-se. O homem voltou-se na esperança de que do elevador saísse... Não era. Era Normandes, roupa de praia, esteira enrolada sob o braço, óculos escuros no alto da cabeça, sandálias japonesas.
O homem esqueceu Normandes e voltou à campainha.
— Trimmm… — era só o que a campainha dizia ao ser acionada.
— Acho que ela não está. — disse Normandes ao passar pelo homem, enquanto seguia e entrava no 603, seu apartamento.
O homem da campainha acompanhou Normandes com o olhar até o momento em que a porta do 603 fechou-se, tirando Normandes da sua vista. Então, ele abandonou a campainha do 604 e tocou a do 603. O próprio Normandes abriu.
— Pois não.
— Eu sou... — e apontou a porta do 604, identificando-se como o cara a quem Normandes acabara de falar.
— Sim, eu sei.
— O senhor, quando passou, disse que ela saiu.
— Não! — corrigiu Normandes. — Eu disse "acho" que ela saiu.
Era patente que Normandes queria tirar o corpo de qualquer mal-entendido, razão pela qual frisara o acho.
— Ah! — fez o homem, num desalento muito grande, enquanto lançava um olhar triste em direção à porta fechada do 604.
Normandes o observou, enquanto ele observava a porta. Na sala, o cuco saiu, avisando que passava meia hora de uma hora.
— Imagino é que esteja em casa e não queira abrir a porta. — aventou o desconhecido.
— Não acredito. Ela deve estar fora mesmo.
— É... Deve ter saído.
— Pois é. — pensou finalizar Normandes.
— Posso esperar por ela aqui?
— Bem...
Normandes morava só e, por ter que tomar banho e sair para almoçar (aos domingos não tinha empregada), não achou lá muito indicado que concordasse com a presença daquele desconhecido no seu apartamento, durante o tempo em que estivesse no chuveiro. O homem da campainha percebeu-lhe o pensamento.
— Eu sou o marido dela. — explicou, num esclarecimento que provocou certo espanto a Normandes.
— Marido? E o senhor esqueceu a chave?
— Não, é que… — o homem atrapalhou-se — é que o certo seria dizer "noivo".
— Entendo. — disse Normandes sem nada entender. — O senhor é noivo com direitos de marido, é isso?
— Mais ou menos. Eu, por mim, me considero mais noivo do que marido, apesar da verdade ser o oposto. É que nós dois, eu e ela, já há algum tempo...
Normandes não quis detalhes. Preferiu deixá-lo entrar. Mesmo porque as madames do 601 e 602 já fingiam esperar o elevador com os ouvidos estendidos à conversa dos dois. Normandes, por maldade, preferiu ouvir os detalhes sozinho.
O homem entrou, depositou a maleta junto ao sofá e estendeu a mão, apresentando-se.
— Ubaldino, muito prazer.
— Meu nome é Normandes. Sente-se, por favor.
Ele fez.
Normandes abriu a janela, e a luz entrou com força. Morava do lado do sol. O homem da campainha mudou de lugar no sofá. O sol o encandeava. Era preciso achar um modo de reatar a conversa, e isso era o que Normandes procurava. Ubaldino notou esta ansiedade e lhe ofereceu o prato pedido.
— Somos noivos oficialmente. Mas já... já... — procurou as palavras que pudessem explicar o que Normandes já sabia desde a soleira da porta.
— E está de chegada...? — instigou Normandes, enquanto servia Old Eight em dois copos onde se liam os nomes das doses (for ladies, for men, for horses. Serviu for horses).
Ubaldino misturou o gelo com o indicador e lá o deixou um pouco, tentando, assim adormecê-lo. Doía-lhe muito o dedo.
— Estou trabalhando em Vitória, — começou a explicar — e tenho recebido muitas cartas contando certas coisinhas da minha... minha… — hesitou mais do que o lógico — minha noiva.
— Diga "sua senhora" que eu entendo. — Normandes foi gentil.
— Obrigado. Sabe como é. Cartas contando fatos que são incontestáveis. Detalhes, horários. Até fotografias me mandam, o senhor acredita?
— Pode me chamar de você, Ubaldino.
— Você vai ver. — disse Ubaldino aceitando o oferecimento.
Tirou do bolso do paletó uma carteira e dela apanhou as fotos onde a noiva aparecia com um homem ao lado. As fotos não eram nítidas. Amadoristicamente colhidas. De longe, algumas delas. Mas o suficientemente claras para que Normandes reconhecesse sua vizinha do 604. Dava até para perceber algo mais.
— Estou notando, Ubaldino, é que o homem...
— Não é o mesmo. — reconheceu o noivo. — Percebe?
— Percebo. — murmurou Normandes muito atento no exame das fotos.
— É sempre um homem diferente — completou Ubaldino, chupando o dedo gelado e colocando o outro indicador no gelo. — Isso é muito pior, não acha? Se ela me tivesse trocado por outro, eu entenderia. Bolas! Deixou de gostar de mim, está gostando de Fulano ou de Sicrano, certo. Mas a variedade é insuportável.
— É. Pelas fotos, ela está gostando de Fulano, Sicrano, Beltrano, Zé, João... — Normandes foi perverso.
— Por isso é que eu digo. A variedade é constrangedora; é sem-vergonhice. Ou você não acha?
— Acho — concordou Normandes, enquanto devolvia as fotos ao homem, muito feliz por não se ter visto em nenhuma delas. — E o senhor, desculpe, e você veio ao Rio...
— Vim matá-la.
Normandes entendeu, mas quis que tivesse ouvido errado.
— Você disse... — pediu bis.
— Vim matá-la. Matá-la! — e fez um gesto com o indicador inchado, imitando o puxar de um gatilho e afastando o paletó para que Normandes visse o Taurus que trazia ao cinto.
Normandes nunca se imaginara nesta situação. Reabasteceu o copo do calculista criminoso, enquanto buscava um modo de contornar aquela situação.
— Mas qual a vantagem de matar?
— Nenhuma. Eu mato e depois vou preso. — falou o homem.
— E qual é o seu lucro? Que vantagem você leva nessa transa? Mata a moça e pega uma cadeia por dez ou doze anos, sei lá. Tem graça, isso?
— Você acha, então, que eu devo perdoar uma mulher que me faz isso?
Ao dizer isso, mostrava, abertas em leque, as várias fotografias.
— Não digo perdoar porque, no seu caso, eu não sei se perdoaria, mas, sei lá... esquecer. Deixa pra lá.
— Você, no meu lugar, deixaria pra lá?
— Acho que sim.
— Questão de temperamento. Eu admito que haja homens que perdoem, em situação igual. Há os homens como você que simplesmente deixam pra lá e não se fala mais nisso. Mas eu, Ubaldino Fragoso Batista, tenho outro temperamento — e arrumou o Taurus melhor.
— Tem razão! — concordou Normandes. -— Ninguém deve forçar a barra. Só que...
Escutaram nitidamente que era batida a porta do apartamento ao lado — o 604, o dela. Calaram-se automaticamente.
— É ela! — disse o homem, afastando o copo de uísque e segurando a maleta.
Normandes, lívido, não conseguiu articular uma frase. Ubaldino estendeu a mão numa despedida silenciosa. Normandes apertou-lhe a mão, com força de emoção. Ubaldino agradeceu o uísque, a hospitalidade e saiu.
À noite, quando passou de braços com ela, Ubaldino fingiu não ver Normandes que, na portaria, conversava com o zelador. Mas levava as orelhas muito vermelhas, o homem da campainha.
Por mais que ele insistisse, a porta do 604 não se abria. E há muito tempo que ele ali estava a apertar a campainha que, estranhamente, ainda não se tinha quebrado.
— Trim... Trimmmm...
Fazia uma pausa, tentando adivinhar, com o ouvido colado à porta, algum movimento lá por dentro e, após perceber que mais este toque tinha sido em vão, voltava a calcar o dedo na campainha, com crescente violência.
— Trimmmmm... Trimmmmm... Trimmmmmmmni...
Tinha a barba por fazer, os cabelos despenteados. A maleta ao lado mostrava que voltava de uma viagem. Isto igualmente insinuava a gravata afrouxada no colarinho, deixando aparecer, junto ao pescoço, os fios longos do cabelo do peito.
— Trim... trim...
Abriam-se, vez por outra, as portas de serviço do 601 e do 602, de onde surgiam caras de empregadas e patroas, incomodadas pelo irritante grito da campainha que, realmente, passava demais da conta.
E, ao toque inútil, não poucas vezes juntou socos — inicialmente discretos, na porta, além de pancadas com o pé. Primeiro de bico, depois com o calcanhar, por comodismo e dor nos dedos.
O elevador parou no sexto andar, e a porta abriu-se. O homem voltou-se na esperança de que do elevador saísse... Não era. Era Normandes, roupa de praia, esteira enrolada sob o braço, óculos escuros no alto da cabeça, sandálias japonesas.
O homem esqueceu Normandes e voltou à campainha.
— Trimmm… — era só o que a campainha dizia ao ser acionada.
— Acho que ela não está. — disse Normandes ao passar pelo homem, enquanto seguia e entrava no 603, seu apartamento.
O homem da campainha acompanhou Normandes com o olhar até o momento em que a porta do 603 fechou-se, tirando Normandes da sua vista. Então, ele abandonou a campainha do 604 e tocou a do 603. O próprio Normandes abriu.
— Pois não.
— Eu sou... — e apontou a porta do 604, identificando-se como o cara a quem Normandes acabara de falar.
— Sim, eu sei.
— O senhor, quando passou, disse que ela saiu.
— Não! — corrigiu Normandes. — Eu disse "acho" que ela saiu.
Era patente que Normandes queria tirar o corpo de qualquer mal-entendido, razão pela qual frisara o acho.
— Ah! — fez o homem, num desalento muito grande, enquanto lançava um olhar triste em direção à porta fechada do 604.
Normandes o observou, enquanto ele observava a porta. Na sala, o cuco saiu, avisando que passava meia hora de uma hora.
— Imagino é que esteja em casa e não queira abrir a porta. — aventou o desconhecido.
— Não acredito. Ela deve estar fora mesmo.
— É... Deve ter saído.
— Pois é. — pensou finalizar Normandes.
— Posso esperar por ela aqui?
— Bem...
Normandes morava só e, por ter que tomar banho e sair para almoçar (aos domingos não tinha empregada), não achou lá muito indicado que concordasse com a presença daquele desconhecido no seu apartamento, durante o tempo em que estivesse no chuveiro. O homem da campainha percebeu-lhe o pensamento.
— Eu sou o marido dela. — explicou, num esclarecimento que provocou certo espanto a Normandes.
— Marido? E o senhor esqueceu a chave?
— Não, é que… — o homem atrapalhou-se — é que o certo seria dizer "noivo".
— Entendo. — disse Normandes sem nada entender. — O senhor é noivo com direitos de marido, é isso?
— Mais ou menos. Eu, por mim, me considero mais noivo do que marido, apesar da verdade ser o oposto. É que nós dois, eu e ela, já há algum tempo...
Normandes não quis detalhes. Preferiu deixá-lo entrar. Mesmo porque as madames do 601 e 602 já fingiam esperar o elevador com os ouvidos estendidos à conversa dos dois. Normandes, por maldade, preferiu ouvir os detalhes sozinho.
O homem entrou, depositou a maleta junto ao sofá e estendeu a mão, apresentando-se.
— Ubaldino, muito prazer.
— Meu nome é Normandes. Sente-se, por favor.
Ele fez.
Normandes abriu a janela, e a luz entrou com força. Morava do lado do sol. O homem da campainha mudou de lugar no sofá. O sol o encandeava. Era preciso achar um modo de reatar a conversa, e isso era o que Normandes procurava. Ubaldino notou esta ansiedade e lhe ofereceu o prato pedido.
— Somos noivos oficialmente. Mas já... já... — procurou as palavras que pudessem explicar o que Normandes já sabia desde a soleira da porta.
— E está de chegada...? — instigou Normandes, enquanto servia Old Eight em dois copos onde se liam os nomes das doses (for ladies, for men, for horses. Serviu for horses).
Ubaldino misturou o gelo com o indicador e lá o deixou um pouco, tentando, assim adormecê-lo. Doía-lhe muito o dedo.
— Estou trabalhando em Vitória, — começou a explicar — e tenho recebido muitas cartas contando certas coisinhas da minha... minha… — hesitou mais do que o lógico — minha noiva.
— Diga "sua senhora" que eu entendo. — Normandes foi gentil.
— Obrigado. Sabe como é. Cartas contando fatos que são incontestáveis. Detalhes, horários. Até fotografias me mandam, o senhor acredita?
— Pode me chamar de você, Ubaldino.
— Você vai ver. — disse Ubaldino aceitando o oferecimento.
Tirou do bolso do paletó uma carteira e dela apanhou as fotos onde a noiva aparecia com um homem ao lado. As fotos não eram nítidas. Amadoristicamente colhidas. De longe, algumas delas. Mas o suficientemente claras para que Normandes reconhecesse sua vizinha do 604. Dava até para perceber algo mais.
— Estou notando, Ubaldino, é que o homem...
— Não é o mesmo. — reconheceu o noivo. — Percebe?
— Percebo. — murmurou Normandes muito atento no exame das fotos.
— É sempre um homem diferente — completou Ubaldino, chupando o dedo gelado e colocando o outro indicador no gelo. — Isso é muito pior, não acha? Se ela me tivesse trocado por outro, eu entenderia. Bolas! Deixou de gostar de mim, está gostando de Fulano ou de Sicrano, certo. Mas a variedade é insuportável.
— É. Pelas fotos, ela está gostando de Fulano, Sicrano, Beltrano, Zé, João... — Normandes foi perverso.
— Por isso é que eu digo. A variedade é constrangedora; é sem-vergonhice. Ou você não acha?
— Acho — concordou Normandes, enquanto devolvia as fotos ao homem, muito feliz por não se ter visto em nenhuma delas. — E o senhor, desculpe, e você veio ao Rio...
— Vim matá-la.
Normandes entendeu, mas quis que tivesse ouvido errado.
— Você disse... — pediu bis.
— Vim matá-la. Matá-la! — e fez um gesto com o indicador inchado, imitando o puxar de um gatilho e afastando o paletó para que Normandes visse o Taurus que trazia ao cinto.
Normandes nunca se imaginara nesta situação. Reabasteceu o copo do calculista criminoso, enquanto buscava um modo de contornar aquela situação.
— Mas qual a vantagem de matar?
— Nenhuma. Eu mato e depois vou preso. — falou o homem.
— E qual é o seu lucro? Que vantagem você leva nessa transa? Mata a moça e pega uma cadeia por dez ou doze anos, sei lá. Tem graça, isso?
— Você acha, então, que eu devo perdoar uma mulher que me faz isso?
Ao dizer isso, mostrava, abertas em leque, as várias fotografias.
— Não digo perdoar porque, no seu caso, eu não sei se perdoaria, mas, sei lá... esquecer. Deixa pra lá.
— Você, no meu lugar, deixaria pra lá?
— Acho que sim.
— Questão de temperamento. Eu admito que haja homens que perdoem, em situação igual. Há os homens como você que simplesmente deixam pra lá e não se fala mais nisso. Mas eu, Ubaldino Fragoso Batista, tenho outro temperamento — e arrumou o Taurus melhor.
— Tem razão! — concordou Normandes. -— Ninguém deve forçar a barra. Só que...
Escutaram nitidamente que era batida a porta do apartamento ao lado — o 604, o dela. Calaram-se automaticamente.
— É ela! — disse o homem, afastando o copo de uísque e segurando a maleta.
Normandes, lívido, não conseguiu articular uma frase. Ubaldino estendeu a mão numa despedida silenciosa. Normandes apertou-lhe a mão, com força de emoção. Ubaldino agradeceu o uísque, a hospitalidade e saiu.
À noite, quando passou de braços com ela, Ubaldino fingiu não ver Normandes que, na portaria, conversava com o zelador. Mas levava as orelhas muito vermelhas, o homem da campainha.
Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.
Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.
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Levo a prosa e a poesia,
através de um boletim,
e também toda a magia
que elas trazem para mim.