Em Valise de Cronópio, Julio Cortázar compara o romance com o cinema e o conto com a fotografia, observando que um filme é uma ‘ordem aberta’, enquanto uma fotografia tem uma limitação prévia. A câmara abrange um campo reduzido, recorta um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites, mas deixando entrever uma realidade muito mais ampla. Numa fotografia ou num conto de grande qualidade, prossegue Cortázar, o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou acontecimento significativo, que atue no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura que projete a inteligência ou a sensibilidade para muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto.
É este o caso dos contos da norte-americana Flannery O’Connor (1925-1964), que nos chegam em primorosa edição pela Cosac Naify. E eles vêm em muito boa companhia, na tradução do poeta Leonardo Fróes, com posfácio de Cristovão Tezza, o escritor brasileiro mais premiado em 2008. A edição traz ainda sugestões de leitura, listando as obras de ficção, ensaios e correspondência de O’Connor, como também uma relação de obras adaptadas para o cinema e as traduções encontradas no Brasil. Além disso, apresenta, uma atualizada bibliografia sobre a autora, incluindo listagem de resenhas publicadas no Brasil.
Flannery O’Connor nasceu no Estado da Geórgia, EUA, em 1925. Seus escritos trazem a alegoria gótica desse ambiente rural sulista. A família da mãe era católica e, sem dúvida, o catolicismo foi central em sua vida e obra. Frequentou a Georgia State College for Women, onde começou sua atividade de escritora e cartunista. Fez mestrado no Writers’ Workshop na Universidade de Iowa. Em 1952, publicou o romance Wise Blood (Sangue Sábio) e, em 1955, uma coletânea de contos, A good man is hard to find and other stories (um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias). Teve problemas de saúde ligados ao lúpus, doença que matara seu pai em 1951. No entanto, continuou a escrever e a viajar fazendo palestras sobre assuntos variados, que iam desde a criação de pavões (que ela adorava) até escrita regional, religião e ensino de literatura.
Ela e a mãe moravam numa fazenda perto de Milledgeville, onde O’Connor criava pavões e galinhas. Essa propriedade abriga hoje a Flannery O’Connor – Andalusia Foundation, que promove o conhecimento da vida e obra da autora, bem como incentiva o estudo de sua obra literária e o intercâmbio de pesquisas (ver www.andalusiafarm.org).
O’Connor publicou o segundo romance, The violent bear it away (O mundo é dos violentos), em 1960. Faleceu aos 39 anos, em 1964. Postumamente, foi publicado um volume de contos: Everything that rises must converge [tudo o que sobe deve convergir] (1965), Mystery and Manners: Occasional Prose [mistérios e maneiras: prosas ocasionais] (1969) e Flannery O’Connor: the Complete Stories [Contos completos] (1971).
A obra de O’Connor gira em torno de dois aspectos principais: o fundamentalismo predominantemente protestante do Sul dos Estados Unidos e o mundo moderno caracterizado pela esterilidade espiritual. A preocupação com a questão do bem e do mal é central em sua obra, muitas vezes trazendo uma visão espiritual baseada no Antigo Testamento.
O nome de Flannery O’Connor vem associado, na literatura norte-americana, ao gótico sulista de William Faulkner, Carson McCullers e Tennessee Williams. Em suas páginas, encontramos personagens grotescas, frequentemente envolvidas em situações de violência, de ausência de piedade e diálogo. O grotesco parece ser usado pela escritora com um propósito de revelação.
O mais interessante é que O’Connor faz isso com uma abordagem não sentimental, num estilo direto e simples, enquanto trabalha a caracterização das personagens de maneira aprofundada, em imagens que acentuam essa incongruência. Com frequência, suas personagens apresentam mutilações, seja no aspecto físico, mental, moral ou espiritual.
Nas páginas de seus contos, fica clara a observação de Cortázar: num conto bem realizado, mais importante do que o tema é o tratamento literário desse tema, a técnica empregada para desenvolvê-lo. Estamos falando de intensidade e de tensão: e isso O’Connor consegue com maestria, pela aplicação de sua inteligência realista, sua abordagem irônica no tratamento das personagens e situações. Ela tem muita habilidade como escritora cômica e o uso da ironia e do humor no retrato da classe média e das mulheres de meia idade é algo muito relevante. E o grotesco mescla-se aí perfeitamente.
Os críticos insistem em associar sua prosa ao regional e ao religioso. No entanto, vemos que seus textos nos dão aberturas para universos mais vastos. Temos aí personagens que se associam em relações pai e filha, mãe e filha, mãe e filho, trazendo à tona a difícil condição humana.
Em “O gerânio”, o velho Dudley vai para Nova York morar com a filha, mas tudo na grande cidade lhe é estranho. Fora de seu lugar, traz lembranças do Sul, especialmente do companheiro Rabie, o negro com quem costumava caçar e pescar. Na nova vida, vem à tona o preconceito racial. No final da narrativa, a grotesca figura do velho fragilizado parece associar-se ao gerânio despedaçado:
“[...] pôde ver o vaso espatifado com seus cacos dispersos entre um punhado de terra esparramada e uma coisinha cor-de-rosa que sobressaía de um laço de papel verde (p. 22).”
Já o conto “A colheita” trata da angústia de uma escritora em busca de um tema para escrever um conto. A tarefa de Miss Willerton é limpar as migalhas da mesa após o café da manhã:
“Limpar a mesa era um alívio. Catar migalhas dava tempo de pensar, e se Miss Willerton fosse escrever um conto era preciso que de início ela pensasse a respeito (p. 49-50).”
Essa vontade, esse desejo já estão no próprio nome da personagem, Willie (“Will”). Essa busca, agora não uma “colheita”, mas uma “caça”, repete-se em “O peru”, conto que trabalha o motivo da iniciação e desilusão. Temos aqui um menino, Ruller, que luta para capturar um peru selvagem e, assim, impressionar as pessoas, sobretudo seus pais. No entanto, ao final, acaba sendo surpreendido por uns “moleques roceiros” (p. 74), que frustram sua tentativa de fazer jus ao nome, que é, então, irônico. “Ruler” significa governante, rei, soberano.
Em “A vida que você salva pode ser a sua”, Mr. Shiftlet consegue trabalho na propriedade onde vivem uma velha e a filha. Ambas têm o mesmo nome: Lucynell Crater. O olhar de Mr. Shiftlet, “muito claro e esperto” (p. 190) observa tudo o que havia no quintal e é atraído pela “traseira, retangular e enferrujada, de um automóvel” (p. 191). Há um diálogo interessante entre Mr. Shiftlet e a velha: ele de olho no carro e ela tentando empurrar-lhe a filha. Curioso é que Mr. Shiftlet ensina a moça Lucynell, “que era totalmente surda e nunca dissera uma palavra na vida, a dizer ‘passarinho’” (p. 194), que ela pronuncia ‘basarin’. Mr. Shiftlet e a velha fazem uma barganha: a velha lhe dá o dinheiro para consertar o carro e também para uma viagem de núpcias e, assim, ele aceita se casar com Lucynell no gabinete do juiz, para satisfazer a lei, segundo a vontade da velha. Quando ele abandona Lucynell numa lanchonete de beira de estrada, perguntamos se não teria sido menos aviltante se tivesse simplesmente furtado o carro. No entanto, a ideia de deslocamento, mudança e trapaça já estava em “shift”, no seu próprio nome.
Em “Gente boa da roça”, também temos uma relação mãe-filha e um relacionamento homem-mulher, assim como a questão da trapaça. No entanto, a filha, Allegra, é muito diferente de Lucynell, principalmente no aspecto intelectual. Allegra (Joy, no original), 32 anos, loura e corpulenta, é filha de Mrs. Hopewell. Tinha uma perna só devido a um acidente de caça quando tinha dez anos, motivo pelo qual usava uma perna de pau. Ao completar 21 anos, Allegra saiu de casa e mudou legalmente seu nome para Hulga. Nesse conto, o tradutor trabalhou a significação dos nomes próprios; optou por traduzir Joy por Allegra e, em relação à Hulga, faz um interessante jogo de palavras na tradução do seguinte trecho:
“When Mrs. Hopewell thought of the name, Hulga, she thought of the broad blank hull of a battleship”. Em português, temos: “Quando Mrs. Hopewell pensava nesse nome, Hulga, o que lhe vinha à cabeça era o casco largo e cor de pulga de um navio de guerra” (p. 349). Na verdade, a “cor de pulga” parece mais apropriada ao som escuro do /u/ de Hulga. Hulga doutorou-se em filosofia, o que deixava a mãe embaraçada:
Qualquer um bem que podia dizer ‘Minha filha é enfermeira’, ou ‘Minha filha é professora do ensino básico’, ou até mesmo ‘Minha filha é engenheira química’. Mas quem diria ‘Minha filha é filósofa’, se isso era coisa morta e acabada desde os romanos e os gregos? Allegra passava os dias lendo, afundada numa poltrona. De vez em quando ela saía para dar uma volta, mas não gostava de cachorros, gatos, passarinhos, flores, nem da natureza nem de rapazes bonitos. Nos rapazes bonitos, se os olhasse, farejava tão-só a ignorância que tinham (p. 351-52). Por isso, quando ela decide “seduzir” o vendedor de bíblias, cuja fala denota sua pouca instrução (“Eu não quis te machucar, ele disse”), o desenlace do conto fará o triunfo do determinismo realista, deixando-a reduzida ao nível do corpo.
Os dois últimos contos que escolhemos para comentar, “Os confortos do lar” e “Tudo que sobe deve convergir”, trazem o relacionamento mãe-filho e, pelo uso da onisciência seletiva, o narrador em terceira pessoa passa ao leitor a visão do filho. Em “Os confortos do lar”, a mãe de Thomas resolve ajudar uma moça a quem ele se refere como “safadinha”: “É uma tarada, isso é tudo que você precisa saber. Nasceu sem a faculdade moral – como alguém nasce sem uma perna ou um rim” (p. 483). A moça é chamada Star: “Dizia se chamar Star Drake. Mas o advogado descobriu que o verdadeiro nome dela era Sarah Ham” (p. 487). Star havia sido presa por passar um cheque sem fundos e a mãe de Thomas, vendo o retrato no jornal, resolve ajudá-la. Thomas não consegue ocupar o lugar do pai e esse é, basicamente, o grande conflito do texto: “Era nessas ocasiões que Thomas realmente lamentava a morte de seu pai, embora em vida nunca o tivesse suportado. O velho não admitiria tais maluquices (p. 486)”.
Thomas acaba agindo seguindo a voz do Pai e cai na armadilha que havia preparado. A situação foge ao seu controle e, tragicamente, acaba matando a própria mãe.
Em “Tudo que sobe deve convergir”, Julian leva a mãe a uma aula de emagrecimento na Associação Cristã de Moços. A mãe se orgulha da passada prosperidade da família. Agora vivem com dificuldades, mas a mãe ostenta a soberba e é racista. A cena no ônibus que evidencia esse racismo chega ao clímax quando a mãe e uma mulher negra ficam frente a frente usando um chapéu idêntico. Julian tenta mudar os valores da mãe: “Aquela mulher era o seu duplo negro”, “o velho mundo mudou” (p. 525), mas tudo é inútil. A mãe se recusa a mudar suas convicções e pode ser vista, alegoricamente, como o declínio do mundo escravocrata sulista.
Os textos de Contos Completos são, assim, aberturas importantes que vão muito além da questão regional; trazem reflexões profundas sobre a esterilidade espiritual que ultrapassa espaços geograficamente demarcados.
Fonte:
Cleide Antonia Rapucci. Aberturas para vastos universos: contos completos de Flannery O´Connor. Disponível no Periódico “Acta Scientiarum Language and Culture”. v. 31, n. 1. Maringá: UEM, 2009. p. 105-107.
Cleide Antonia Rapucci. Aberturas para vastos universos: contos completos de Flannery O´Connor. Disponível no Periódico “Acta Scientiarum Language and Culture”. v. 31, n. 1. Maringá: UEM, 2009. p. 105-107.
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