Para lá da ponte preta, havia só duas casas.
Logo depois da ponte, o casebre da Bruta Béstia. E muito mais longe, no mato cerrado, a choupana do lazarento, sempre fechada.
Quando o bando de crianças ia colher guabirobas, quase sempre encontrava a Bruta Béstia, a caminho da cidade. Era uma italiana grande e feia, de nariz vermelho, cabelos emaranhados fugindo do lenço sujo. Trazia sempre um filho ao colo. Seguiam-na os outros filhos, os menores vestidos apenas com uma camisinha que mal chegava ao umbigo. Era uma tropilha bizarra.
A mais velha, ruiva, de olhos gateados; o segundo, louro; havia um quase mulato. Ranhentos e sarnosos, dava nojo olhá-los.
Ninguém sabia o nome da mulher. Aparecera Deus sabe donde e como exclamasse frequentemente: “bruta béstia!”, pegara-lhe o apelido.
A alegria da criançada era gritar-lhe, pelas costas e prudentemente à distância:
— Bruta béstia!
A mulher virava-se como se alguém a houvesse mordido.
— Bruta béstia é a tua mãe!
E desfiava um rosário de impropérios.
A gurizada guinchava de gosto. Quanto mais feios os palavrões, maiores as gargalhadas.
A raiva da mulher ia amainando. Então, como quem atira ao fogo uma braçada de lenha, tornavam a gritar:
— Bruta Béstia!
Reacendia-se-lhe a cólera.
Afinal, a mulher desistia da luta, arrebanhava os filhos e seguia rumo à cidade, onde ia esmolar. Ir juntar guabirobas era melhor que o melhor dos brinquedos. Meninos e meninas, munidos de cestas, varavam o Matinho — assim o povo chamava o grande terreno desabitado, que ficava para cá da ponte preta.
Os meninos marinhavam pelas enormes guabirobeiras e sacudiam-lhes os galhos. O capim ficava juncado de guabirobas graúdas e amarelas. Começava, então, a disputa pelas melhores.
— Essa “gavirova” é minha.
— Fui eu que vi primeiro.
Às vezes, um pé vingativo esmagava a fruta.
— Ói a tua gavirova!
Mas as cestas se enchiam. Na volta, as crianças vinham a chupar as frutas melhores. Muitas vezes, acontecia de chegarem em casa com umas poucas guabirobas feias e amassadas.
Só quando começavam a escassear as frutas do lado de cá é que passavam, com certo receio, para o outro lado da ponte preta, onde a estrada deserta corria pelo mato cerrado. Mas a tentação era grande. Um informava:
— Eu sei de uma gavirovêra, lá do outro lado... Dá cada gaviróva deste tamanho!
E lá iam todos.
Ao avistarem o casebre do morfético, instintivamente se afastavam. Às vezes, o mais curioso ia espiar pelas frestas.
De longe, gritava-lhe a irmã:
— Espera, Toninho, que vô contá pra mamãe!
O lázaro era o papão da cidade. As mães ameaçavam os filhos. Não vá pra rua, que o lazarento te pega. As crianças iam mesmo, mas tinham um medo do lazarento! Corria a notícia de que os leprosos procuravam passar aos outros a sua moléstia, acreditando que assim ficassem limpos. Mas aquele leproso nunca fizera mal a ninguém. Vinha sempre mendigar na cidade.
Lembro-me bem da primeira vez que o vi. Eu havia chegado do sítio por aqueles dias e fui brincar na praça, com outra menina. Eu nunca tinha visto praça. Aquela era um grande gramado, ensombrado de árvores e cortado em diagonal por uma ruazinha. Era domingo e havia muitas meninas brincando na praça.
Ao chegarmos, uma se destacou e veio ao nosso encontro.
— Quem é essa menina?
— É a neta de D. Jandira.
A outra foi logo convidando:
— Vâmo brincá de pega?
Fez-se o círculo. A menina foi tirando a sorte:
Um, dois, três, quatro,
Quantos pelos tem o galo
Acabado de nascer?
Um, dois, três, quatro.
Aquelas em que terminava a quadrinha, iam saindo.
Afinal, ela anunciou:
— Mãe é a Lila. O “frái” é o coreto. Não vale correr na rua.
Eu fiquei atrapalhada. Baixinho, perguntei à companheira:
— Onde é o coreto?
— Ali, naquela casinha redonda, no meio da praça — disse alto a menina, apontando o coreto.
As outras riram. Senti que fiquei vermelha.
Afinal, começou o brinquedo.
Os gritos das perseguidas pela “mãe” enchiam a praça. A miúdo, soava, em triunfo: mãe! E lá ia um tapa nas costas da alcançada.
Mudavam os papéis e recomeçava a correria. De quando em quando, uma gritava: “frái!” e sentava-se, ofegante, na escadinha do coreto.
Eu estava quase à parte e acabei por ficar apreciando o jogo.
A certa altura, uma avisou:
— Ói o lazarento!
Num fechar de olhos, debandaram todas.
Fiquei ali, apatetada. Lazarento!
Só então, reparei naquele homem que vinha pela rua da praça. Passou bem perto de mim, enorme e vermelho. O rosto era dum rosado vivo, os olhos lacrimejantes, os lábios e o nariz muito inchados, as orelhas crescidas e pendentes. A roupa parecia querer rebentar, de tão justa. Na mão enorme, levava um bastão, com que ajudava os passos. Andava devagarinho, arrastando os pés, embrulhados em trapos ensanguentados e metidos em chinelas. Não olhava para ninguém e parecia não ouvir.
Debalde as meninas, agrupadas no outro extremo da praça, esganiçavam, num coro desatinado:
— Lazarento!
Naquele dia, Toninho fora sozinho ao mato colher guamirim. Fartara-se daquela frutinha de sabor acre, que lhe deixara pretos os dentes, a boca, os dedos. Na volta, passou rente à casa do leproso e não pude deixar de ir olhar pelas frestas.
Estava entretido na sua bisbilhotice, quando se sentiu agarrado. Ao voltar o rosto, deu com a cara vermelha do morfético, que o apertou contra si e esfregou a sua face no rosto do menino.
Toninho estava mudo de horror.
— Dez com este! — disse, em triunfo, a voz rouca do leproso. Solto, o menino largou-se a correr, gritando e limpando o rosto.
E nunca mais se viu o lazarento na cidade, nem se soube do seu paradeiro.
Fonte:
Luís Bueno (org). O tempo visto daqui : 85 cronistas paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura, 2018.
Luís Bueno (org). O tempo visto daqui : 85 cronistas paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura, 2018.
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