segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Helena Kolody (Mendigos)


Para lá da ponte preta, havia só duas casas.

Logo depois da ponte, o casebre da Bruta Béstia. E muito mais longe, no mato cerrado, a choupana do lazarento, sempre fechada.

Quando o bando de crianças ia colher guabirobas, quase sempre encontrava a Bruta Béstia, a caminho da cidade. Era uma italiana grande e feia, de nariz vermelho, cabelos emaranhados fugindo do lenço sujo. Trazia sempre um filho ao colo. Seguiam-na os outros filhos, os menores vestidos apenas com uma camisinha que mal chegava ao umbigo. Era uma tropilha bizarra.

A mais velha, ruiva, de olhos gateados; o segundo, louro; havia um quase mulato. Ranhentos e sarnosos, dava nojo olhá-los.

Ninguém sabia o nome da mulher. Aparecera Deus sabe donde e como exclamasse frequentemente: “bruta béstia!”, pegara-lhe o apelido.

A alegria da criançada era gritar-lhe, pelas costas e prudentemente à distância:

— Bruta béstia!

A mulher virava-se como se alguém a houvesse mordido.

— Bruta béstia é a tua mãe!

E desfiava um rosário de impropérios.

A gurizada guinchava de gosto. Quanto mais feios os palavrões, maiores as gargalhadas.

A raiva da mulher ia amainando. Então, como quem atira ao fogo uma braçada de lenha, tornavam a gritar:

— Bruta Béstia!

Reacendia-se-lhe a cólera.

Afinal, a mulher desistia da luta, arrebanhava os filhos e seguia rumo à cidade, onde ia esmolar. Ir juntar guabirobas era melhor que o melhor dos brinquedos. Meninos e meninas, munidos de cestas, varavam o Matinho — assim o povo chamava o grande terreno desabitado, que ficava para cá da ponte preta.

Os meninos marinhavam pelas enormes guabirobeiras e sacudiam-lhes os galhos. O capim ficava juncado de guabirobas graúdas e amarelas. Começava, então, a disputa pelas melhores.

— Essa “gavirova” é minha.

— Fui eu que vi primeiro.

Às vezes, um pé vingativo esmagava a fruta.

— Ói a tua gavirova!

Mas as cestas se enchiam. Na volta, as crianças vinham a chupar as frutas melhores. Muitas vezes, acontecia de chegarem em casa com umas poucas guabirobas feias e amassadas.

Só quando começavam a escassear as frutas do lado de cá é que passavam, com certo receio, para o outro lado da ponte preta, onde a estrada deserta corria pelo mato cerrado. Mas a tentação era grande. Um informava:

— Eu sei de uma gavirovêra, lá do outro lado... Dá cada gaviróva deste tamanho!

E lá iam todos.

Ao avistarem o casebre do morfético, instintivamente se afastavam. Às vezes, o mais curioso ia espiar pelas frestas.

De longe, gritava-lhe a irmã:

— Espera, Toninho, que vô contá pra mamãe!

O lázaro era o papão da cidade. As mães ameaçavam os filhos. Não vá pra rua, que o lazarento te pega. As crianças iam mesmo, mas tinham um medo do lazarento! Corria a notícia de que os leprosos procuravam passar aos outros a sua moléstia, acreditando que assim ficassem limpos. Mas aquele leproso nunca fizera mal a ninguém. Vinha sempre mendigar na cidade.

Lembro-me bem da primeira vez que o vi. Eu havia chegado do sítio por aqueles dias e fui brincar na praça, com outra menina. Eu nunca tinha visto praça. Aquela era um grande gramado, ensombrado de árvores e cortado em diagonal por uma ruazinha. Era domingo e havia muitas meninas brincando na praça.

Ao chegarmos, uma se destacou e veio ao nosso encontro.

— Quem é essa menina?

— É a neta de D. Jandira.

A outra foi logo convidando:

— Vâmo brincá de pega?

Fez-se o círculo. A menina foi tirando a sorte:

Um, dois, três, quatro,
Quantos pelos tem o galo
Acabado de nascer?
Um, dois, três, quatro.

Aquelas em que terminava a quadrinha, iam saindo.

Afinal, ela anunciou:

— Mãe é a Lila. O “frái” é o coreto. Não vale correr na rua.

Eu fiquei atrapalhada. Baixinho, perguntei à companheira:

— Onde é o coreto?

— Ali, naquela casinha redonda, no meio da praça — disse alto a menina, apontando o coreto.

As outras riram. Senti que fiquei vermelha.

Afinal, começou o brinquedo.

Os gritos das perseguidas pela “mãe” enchiam a praça. A miúdo, soava, em triunfo: mãe! E lá ia um tapa nas costas da alcançada.

Mudavam os papéis e recomeçava a correria. De quando em quando, uma gritava: “frái!” e sentava-se, ofegante, na escadinha do coreto.

Eu estava quase à parte e acabei por ficar apreciando o jogo.

A certa altura, uma avisou:

— Ói o lazarento!

Num fechar de olhos, debandaram todas.

Fiquei ali, apatetada. Lazarento!

Só então, reparei naquele homem que vinha pela rua da praça. Passou bem perto de mim, enorme e vermelho. O rosto era dum rosado vivo, os olhos lacrimejantes, os lábios e o nariz muito inchados, as orelhas crescidas e pendentes. A roupa parecia querer rebentar, de tão justa. Na mão enorme, levava um bastão, com que ajudava os passos. Andava devagarinho, arrastando os pés, embrulhados em trapos ensanguentados e metidos em chinelas. Não olhava para ninguém e parecia não ouvir.

Debalde as meninas, agrupadas no outro extremo da praça, esganiçavam, num coro desatinado:

— Lazarento!

Naquele dia, Toninho fora sozinho ao mato colher guamirim. Fartara-se daquela frutinha de sabor acre, que lhe deixara pretos os dentes, a boca, os dedos. Na volta, passou rente à casa do leproso e não pude deixar de ir olhar pelas frestas.

Estava entretido na sua bisbilhotice, quando se sentiu agarrado. Ao voltar o rosto, deu com a cara vermelha do morfético, que o apertou contra si e esfregou a sua face no rosto do menino.

Toninho estava mudo de horror.

— Dez com este! — disse, em triunfo, a voz rouca do leproso. Solto, o menino largou-se a correr, gritando e limpando o rosto.

E nunca mais se viu o lazarento na cidade, nem se soube do seu paradeiro.

Fonte:
Luís Bueno (org). O tempo visto daqui : 85 cronistas paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura, 2018.

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