Vai a noite 
Não sei de que tenho pena, 
Nem se é pena isto que tenho... 
Pobres dos que vão sentindo 
Sem saber do coração! 
Ao longe, cantando e rindo, 
Um grupo vai sem razão... 
E a noite e aquela alegria 
E o que medito a sonhar 
Formam uma alma vazia 
Que paira na orla do ar...  
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Pois cai um grande e calmo efeito
De nada ter razão de ser
Do céu, nulo como um direito,
Na terra vil como um dever.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Porque esqueci quem fui quando criança?
Porque deslembra quem então era eu?
Porque não há nenhuma semelhança
Entre quem sou e fui?
A criança que fui vive ou morreu?
Sou outro? Veio um outro em mim viver?
A vida, que em mim flui, em que é que flui?
Houve em mim várias almas sucessivas
Ou sou um só inconsciente ser?
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Por quem foi que me trocaram
Quando estava a olhar pra ti?
Pousa a tua mão na minha
E, sem me olhares, sorri.
Sorri do teu pensamento
Porque eu só quero pensar
Que é de mim que ele esta feito
É que tens para me dar.
Depois aperta-me a mão
E vira os olhos a mim...
Por quem foi que me trocaram 
Quando estás a olhar-me assim?
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Pousa um momento,
Um só momento em mim,
Não só o olhar, também o pensamento.
Que a vida tenha fim
Nesse momento!
No olhar a alma também
Olhando-me, e eu a ver
Tudo quanto de ti teu olhar tem.
A ver até esquecer
Que tu és tu também.
Só tua alma sem tu
Só o teu pensamento
E eu onde, alma sem eu. Tudo o que sou
Ficou com o momento
E o momento parou.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Pudesse eu como o luar
Sem consciência encher
A noite e as almas e inundar
A vida de não pertencer!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Qual é a tarde por achar  
Em que teremos todos razão  
E respiraremos o bom ar  
Da alameda sendo verão,  
Ou, sendo inverno, baste 'star  
Ao pé do sossego ou do fogão?  
Qual é a tarde por voltar?  
Essa tarde houve, e agora não.  
Qual é a mão cariciosa  
Que há de ser enfermeira minha — 
Sem doenças minha vida ousa —  
Oh, essa mão é morta e osso...  
Só a lembrança me acarinha  
O coração com que não posso. 
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Quando era jovem, eu a mim dizia:
Como passam os dias, dia a dia,
E nada conseguido ou intentado!
Mais velho, digo, com igual enfado:
Como, dia após dia, os dias vão,
Sem nada feito e nada na intenção!
Assim, naturalmente, envelhecido,
Direi, e com igual voz e sentido:
Um dia virá o dia em que já não
Direi mais nada.
Quem nada foi nem é não dirá nada.
Fonte:
Poesias em Domínio Público
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).

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