sábado, 16 de dezembro de 2023

Monsenhor Orivaldo Robles (A travessia)

A historieta é antiga e já foi narrada de várias maneiras. Alternam-se os personagens, muda o contexto, mas com quaisquer pormenores a lição é idêntica. E um corolário de profunda sabedoria. A mais recente versão a que tive acesso transmitiu-a, segundo consta, o educador Paulo Freire. Diz assim:

À margem de largo rio, de travessia penosa e arriscada, trabalhava um barqueiro. Sua profissão era atravessar as pessoas de um para outro lado cruzando as águas nem sempre mansas. Numa dessas viagens, ele conduzia na canoa um advogado e uma professora. Muito falante e, quem sabe, para afastar o medo, o advogado perguntou: "Barqueiro, você tem algum conhecimento sobre leis"? "Não, senhor", respondeu ele educadamente. O advogado, compadecido e com ar de superioridade: "É pena, amigo. Você perdeu metade de sua vida".

Interveio então a professora. Simpática, preocupada em socorrer o pobre homem, quis saber: "Mas você sabe ler e escrever, não é"? "Também não, dona. Fui criado na beira deste rio, longe de escola. O que sei aprendi aqui mesmo". "Que pena", tornou ela. "Você perdeu metade da vida".

Nisso, uma onda forte virou o barco lançando os três na água. Apreensivo, enquanto dava a primeira braçada, o barqueiro perguntou: "Vocês sabem nadar"? À resposta negativa dos outros, concluiu com tristeza: "É uma pena, porque já, já, vocês vão perder a vida inteira".

Conclui brilhantemente o educador: Não há saber maior ou menor. O que existe são saberes diferentes.

Numa sociedade escrava do aprendizado formal livresco, é importante afirmar que o conhecimento humano não se restringe a um formato único. Existem muitas formas de saber. Mesmo distintas, são igualmente válidas, indispensáveis até. Já ouvimos que ninguém é tão pobre que nada possa dar, nem tão rico que nada precise receber. Igualmente, ninguém é tão ignorante que nada possa ensinar, nem tão sábio que nada tenha que aprender.

Por endeusar o (certamente) válido conhecimento técnico-científico, o homem moderno tende a fechar os olhos a tudo que não procede das ciências exatas ou humanas. Diz o brocardo que o saber não ocupa lugar. Acrescente-se: também não procede de fonte única. Há saberes distintos, porém consistentes e respeitáveis, portanto dignos de reconhecimento. Ninguém espera que um caboclo do Amazonas interprete os dados de uma lâmina em análise num microscópio. Da mesma forma, não pode exigir de um bioquímico a habilidade de pescar tambaqui com uma azagaia, no Rio Negro, dentro da escuridão da noite. Se pretendem, porém, prestar serviço eficiente, tanto um como outro devem dominar o saber próprio exigido por sua área de atuação. Precisam, além disso, conjugar as distintas competências para o fim comum, que é o bem de toda a sociedade. Um não tem o direito de desprezar o outro. Ofícios diferentes não significam superioridade nem inferioridade. Não revelam dignidade maior ou menor deste ou daquele.

Não é, infelizmente, o que vemos com frequência. Nem o que muitos formadores de opinião transmitem ao público. Convencionou-se que só é importante aquilo que rende dinheiro ou ostenta posição social. Por ignorância ou orgulho se desprezam valores que fariam bem mais feliz a vida de todos. Fazer o quê? Valores do espírito não causam frisson numa sociedade que vive de aparências.

Fonte: Recanto das Letras do autor.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/3483105

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