– Não, Joaquim Osório. Definitivamente, não. Com esse “ouviram”, você exclui as pessoas com deficiência auditiva. Vamos mudar para “Aconteceu às do Ipiranga plácidas margens…”
– Acho que a métrica e o ritmo perdem um pouco, Francisco Manoel.
– Cuide da letra, que da música cuido eu. Continue.
– “De um povo heroico o brado retumbante”.
– Você e essa sua obsessão auditiva!
– Mas é que houve um grito do Ipiranga, não um perfume do Ipiranga, um toque do Ipiranga, um gostinho do Ipiranga…
– Não importa. O hino tem que ser inclusivo. Não é só dos que têm ouvido absoluto.
– Mas depois eu falo que “O sol da liberdade, em raios fúlgidos, brilhou no céu da pátr… “
– Aí você exclui, de uma tacada só, as pessoas com deficiência visual e aquelas com transtorno de fluência, que terão dificuldade com tanta proparoxítona.
– Quer dizer que não dá pra usar fúlgido, vívido, límpido, esplêndido, símbolo, flâmula?
– Sem chance. Proparoxítona é instrumento de opressão, é preconceito linguístico e elitismo no úrtimo.
– Mas o Chico Buarque…
– O Chico Buarque nem nasceu, e quando ele escrever uma música cheia de proparoxítonas, os seguidores dele criam uma narrativa e justificam tudo. Tira as proparoxítonas.
– Tá bom. Aí vem “Conseguimos conquistar com braço forte…”
– Que #$%@* é essa, Joaquim Osório? “Braço forte”. Eu, hein!
– Calma, que depois eu compenso com “Em teu seio, ó liberdade…”
– Aí deixa de ser homoafetivo pra ser bissexual. Braço forte também pode soar ofensivo a quem tem distrofia muscular ou não frequenta academia. E o lance do seio vai pegar super mal com quem teve que se submeter a mastectomia ou botou um implante de silicone industrial.
– Não menciono nenhum sentido, nenhuma parte do corpo, então?
– Melhor não. Sem contar que falar em bíceps e seios pode dar uma conotação sexual, e temos que pensar nos atletas de Cristo, nos que escolheram esperar, nas pessoas com disfunção erétil ou do desejo sexual, e nos que não conseguem pegar ninguém.
– Aí vem um trecho bonito, ó: “Em teu formoso céu, risonho e límpido, a imagem do cruzeiro resplandece”.
– Por que valorizar o formoso, depreciando o esteticamente desfavorecido? Para quê enaltecer o risonho, em detrimento dos odontologicamente deficitários? E que bairrismo futebolístico é esse de falar só do Cruzeiro?
– Mais adiante eu falo do “florão d’América”.
– Mas continua discriminando os torcedores do Atlético Mineiro. Tínhamos combinado que não era para misturar hino e futebol, Joaquim. Corta. Essa parte do “Gigante pela própria natureza” discrimina as pessoas verticalmente prejudicadas (ou os não muito bem dotados). Corta. O “és belo” reforça a ditadura da beleza. Corta. Esse “és forte”… Putz, isso aqui é o hino nacional, não uma competição de halterofilismo ou o show dos leopardos! C-o-r-t-a.
– Bom, Francisco Manuel, se as alterações são só essas…
– E a segunda parte?
– Mas Chico…
– Me dá essa letra aqui. Hmmm… “Berço esplêndido” é elitista, e marginaliza os que têm que colocar o filho para dormir na cama do casal por não dispor de verba para adquirir nem um bebê conforto. Corta. Voltou a falar em “Ao som do mar e à luz do céu profundo”, sem consideração pelas pessoas privadas da audição e da visão. Corta. Esse adjetivo “límpido”, não bastasse ser proparoxítona, segrega os de hábitos higiênicos diferenciados. Corta.
– Chico…
– “Amor eterno” é bullying com os que levaram um chute. Corta.
– Deixa pelo menos o refrão, ou vou ter que refazer tudo. Esse não tem nada pra corrigir: “Dos filhos…
– … e filhas.
– “… deste solo…”
– … e desta terra.
– “…és mãe…”
– … biológica ou adotiva.
– “… gentil…”
– … mas podendo expressar democraticamente sua agressividade.
– “…pátria amada…”
– … pátria e mátria, amada, amado e amadx.
– “…Brasil!”
– Ótimo. O “Brasil” ficou bom. Essa parte pode deixar. Mas o resto você conserta, por favor. A gente nunca sabe que revertério pode dar neste país, no futuro, e não quero ninguém criticando o nosso trabalho.
Fonte: Blog do Autor. 26 de abril de 2018
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