segunda-feira, 13 de maio de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (O labirinto de espelhos e o reencantamento do cotidiano)

 
EM UMA CIDADEZINHA nos cafundós do interior de São Paulo, cujas paredes se faziam altas, tipo as de um presídio de segurança máxima, uma centena de casas antigas se estendia por várias ruas de terra batida que começavam na pracinha em frente à estação de trem da antiga “Estrada de Ferro Sorocabana” e terminavam nas margens do Rio Iperozinho, importante afluente do Rio Sorocaba. Cada uma dessas casas, ostentava uma janela estreita sinalizando que no interior daquelas moradias se acumulava ao sabor do tempo inexorável várias doenças consideradas incuráveis. Na casa de número cinquenta e oito, por exemplo, abrigava uma jovem simpática, mas que todos consideravam uma “mala”. Não outra, senão a jovem e linda Loucura. Além de doente, “essa beldade” se diferenciava das outras moradoras das alvenarias próximas. A casa de número um, por exemplo, abrigava a insuportável Tristeza. A casa de número dez, se via às voltas com a ignominiosa (aterrorizante) Solidão. Na casa treze, a proprietária se fazia conhecida pela senhora Desgraça.  E assim, sucessivamente. 

A casa de número cinquenta e oito, a sua inquilina, a esfuziante Loucura, não tinha ouvidos, nem rosto, tampouco voz. No geral, seu quadro esquizofrênico se formava por conta de uma sombra negra que vagava à esmo, todas às noites. A famigerada saía a caminhar sozinha e se arrastava pelas vielas e becos, produzindo um sussurro estapafúrdico entre os lábios cerrados o que fazia crescer, e muito, o medo tétrico dos demais convizinhos. Diziam, à língua solta, que a criatura além de se chamar Loucura, cometia no decorrer do dia a dia, as piores barbaridades. Por conta, todos comungavam que essa “cidadã” se consubstanciava num mal incurável e pior, difícil de ser contido. No geral, uma enfermidade ingrata e impossível de ser arrochada. Para completar seu quadro tempestuoso, a sirigaita carregava um segredo escondido. Todos que paravam para dialogarem com ela, acabavam alienados e paranoicos. No coração da cidade, colada à igreja matriz, havia um casarão enorme do “tempo em que Judas ainda não havia perdido as botas.” 

Dentro dele, um grandioso labirinto de espelhos se fazia coerente e verossímil. Exatamente nele, a bendita Loucura, numa de suas caminhadas, para tranquilidade dos demais, ou melhor, de todos os radicados, a estrangeira se viu, por puro azar, encarcerada. Foi descuido. Com isso, o tal entrave dos espelhos que até então se mostrava austero aos menos desavisados, e claro, aos não curiosos, em face de se fazer alheio e indiferente à população aparentando um lugar de portas trancadas e venezianas intransponíveis, atapetados de grades circunspectas e cadeados de rostos solenes, passou a ser, de repente, uma válvula de escape —, ou melhor dito —, um remédio de bula benfazeja. O heteróclito, a bem da verdade, literalmente, não ia além de um lugar tranquilo e propício às reflexões. Quem entrava ali, diziam à boca miúda, jamais encontrava a saída. Pelo menos por algum tempo se fazia atarantado entre as versões distorcidas de si mesmo. 

Foi o caso da senhorita Loucura. É bom que se diga, nessa combinação intrincada, havia um homem. O nome dele, Emanuel.  Esse mancebo, ao contrário dos demais que não se aventuraram a entrar, se deu conta, que o tal emaranhado de espelhos dava a impressão de um cárcere. Negativo! Para ele, os cristais mostravam não o que todos pensavam ser o fim do mundo, ou o inferno encapetado, mas, seguramente, a liberdade verdadeira. Aquela que toda a cidade, por algum motivo injustificável se recusava a enxergar. Emanuel, por sua bisbilhotice, também se viu meio fora de foco e sem chão. Caminhava pelos vários corredores tomados por uma cadeia de substâncias inorgânicas falando com as imagens que replicavam seus trejeitos e caretas, contudo, nunca assinalavam a sua alma. Insatisfeito, ele sempre indagava, numa espécie de fobia incurável:

— Por que vocês não me apontam o umbral da serventia dessa droga para eu dar o fora?

Os espelhos seguiam silenciosos e não respondiam. No fundo, Emanuel, tinha plena consciência que a Loucura (a jovem recém-chegada e alguns passos atrás dele), não representava um monstro a ser trancafiado e, sim, uma parte da humanidade que clamava por compreensão. Ele via nos bugalhos duplicados da novata, a dor atribulada da rejeição flagelada, o peso desinquietante do receio suplicante  e a ansiedade desolada e apertada. Por outro prisma, descerrava também o alívio envolvente da beleza, e o encanto terno da diferença. Com o tempo, Emanuel se tornou parte integrante do dédalo (labirinto), tipo um guardião de todos os espelhos. Ele acolhia aqueles que a sociedade excluía mostrando que a Loucura, que chegara alguns dias depois dele, não se consubstanciava numa prisão. Ela se abria inteira num caminho novo. Se fundia numa estrada propícia para a liberdade. Em sua presença, todos que ingressavam no labirinto, encontraram não o fim, mas o início de uma jornada nova para aceitar a si mesmos. 

Com o passar do tempo, a cidade toda (lenta e gradativamente), aprendeu que o encarceramento da pobre e dócil Loucura não estava sustentado pelo atravanco (estorvo) da janela da sua casa de número cinquenta e oito. Menos ainda nos espelhos do labirinto. Tampouco nas barreiras que se erguiam dentro dele. A raia miúda, em sólido compacto, com o decorrer de um certo tempo, descobriu que a verdadeira liberdade, ou a genuína e real Felicidade, vinha não de se curar ou se esconder. Simplesmente a magia se agigantava e se expandia no cândido e bucólico “entender e aceitar.”  Muitos e muitos janeiros se passaram até que os espelhos se tornaram um símbolo de altivez e da esperança. Hoje é um lembrete brando de que a moça Loucura, quando abraçada, acarinhada, e amada, pode ser (e de fato é) a chave para desvendar os mistérios mais profundos da alma humana. Nesse tom de cores, as mais diversificadas, a cidadezinha nos cafundós do interior de São Paulo, outrora muda e monocromática, se tornou um mosaico de vozes e visões, onde a doce e amada senhorita Loucura não é mais uma prisioneira. Ao invés disso, uma excelente e exímia pintora das coisas boas da vida.
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Fonte> Texto enviado pelo autor

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