domingo, 7 de julho de 2024

Laé de Souza (Carnaval, nunca mais)

De uns tempos para cá, vinha me recusando a aceitar o carnaval como festa de gente. Gente de bem, quero dizer.

Se no dia-a-dia já está uma esculhambação, imaginem então se no carnaval a coisa não vai ficar como o diabo gosta, plagiando o discutido anúncio da cerveja. Qual o indivíduo que aguenta tanta insinuação e estímulo ao apetite sexual sem se revoltar? Difícil encontrar um programa de televisão que não tenha uma dançarina quase pelada. Coisa horrível.

Foi por tudo isso e apontando o porquê, que no carnaval do ano passado, falei para a minha mulher que queria isolamento. Claro que ela reclamou. Disse que tinha planejado viajarmos para o litoral, como todos os anos. Que tinha combinado com amigos de irmos para o clube, reservado mesa. Quando expliquei que o isolamento, era isolamento mesmo, isto é, eu iria ficar sozinho, longe de todo mundo e só em orações, ela se assustou. Minha mulher, é assim, só pensa em festa, diversão, Ela me sugeriu que fossemos para a praia e eu ficasse no quarto dos fundos rezando. 

Veja se tem cabimento. Quem consegue se concentrar e pensar em Deus, sabendo que lá fora rola bebida e cantoria. Não ia dar certo. O que eu queria, mesmo, era ficar longe de tudo e todos, sem uma viva alma, só eu e Deus. 

"Comprei mantimentos e, amanhã cedo, vou tomar um ônibus qualquer, descer no meio da estrada e entrar no meio do mato, Andar até achar um lugar adequado para me purificar", falei, querendo encerrar o assunto.

Não é que a mulher veio com conversas, de que era bobagem e exagero? Pois bem, precisei arrastá-la para um canto e abrir o jogo: "Tu lembra daquele meu caso com aquela fulana? Pois é, tu me perdoou, mas eu não. Preciso me penitenciar e vai ser agora." 

Ela chamou a minha sogra, achando que era mais uma recaída de loucura. E sempre assim. Quando a gente quer pensar alto, se dedicar ao espírito, acham que a gente endoideceu.

Minha sogra veio. Vocês devem saber muito bem como são as sogras. Cochichou que eu estava querendo aprontar alguma. Ameaçou me prender no quarto e me obrigar a fazer a oração lá, durante o tempo que quisesse.

Claro que não aguentei e ameacei: "Se alguém tocar a mão em mim, perco a cabeça." Peguei minha Bíblia, coloquei na sacola, me benzi e falei: 'Afasta tentação." 

Viram que estava muito contrito e que não tinha jeito. De manhã cedinho catei minhas coisas e fui embora.

Na quarta, por volta do meio dia, cheguei assonorentado. Minha mulher me serviu um café e perguntou se eu tinha rezado muito. "Demais", respondi.

"Leu a Bíblia?" perguntou interessada. 

"Li e reli", falei. 

Ela retirou a Bíblia da minha sacola, me entregou nas mãos, pedindo que eu lesse um salmo. Tentei abrir e qual nada. Uma folha colada na outra, como se fosse um bloco só. Me veio no pensamento o diabo de um lado e minha sogra do outro, os dois rindo a valer. Só podia ser coisa dos dois. Por mais que eu dissesse que cerca de meia hora atrás eu estava folheando o santo livro, minha mulher não quis acreditar.

Saiba, amigo, que os mais fervorosos são expostos a maiores provações. Se em dias normais o diabo já faz das suas, imagine no carnaval. Portanto, tenho comigo que carnaval é o dia em que ele mais apronta.

Ontem minha sogra perguntou se eu iria me isolar de novo. 

Respondi seco: "No carnaval, nunca mais.

Enquanto entrava no quarto, ouvi-a dando uma risadinha sarcástica,

Fonte: Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000. Enviado pelo autor.

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