Soldado velho deu baixa do Serviço do Exército por não servir mais para o trabalho. O soldo que recebia em recompensa de muitos anos de serviço foi um cruzado. Ora, o que faz ele? Comprou um pato e saiu a revendê-lo.
Chegando perto de uma casa, sai-lhe uma criada a comprar o pato. Ele disse que o custo era de dois cruzados; ela vai falar à patroa, que manda vir o pato e também mandou pagá-lo.
O soldado, porém, não saiu mais do portão. Dentro de certo espaço de tempo chega um frade para jantar na casa e pergunta o que estava aí fazendo. O soldado velho que fisgou alguma coisa, disse que estava à “espera” do pagamento de um pato que tinha vendido naquela casa.
O frade perguntou quanto era; ele disse o custo de dois cruzados. O religioso puxa do bolso da batina o dinheiro e paga.
Dispõe-se depois a entrar na casa; o soldado acompanha, juntos entram. Chegando na sala o frade, que parecia muito íntimo da casa, puxou, e sentou-se numa cadeira; o militar também faz o mesmo.
A dona da casa vendo o frade entrar acompanhado com aquele homem desconhecido ficou curiosa, sem saber o que devia fazer e sem coragem de perguntar ao frade que homem era aquele. O eclesiástico não lhe dizia nada e assim vão, até chegar a hora do jantar a que não faltaria o pato de cabidela.
O frade tinha lugar na mesa; o soldado velho também faz o mesmo. A dona da casa estava curiosa, mas aceitava a situação fazendo das tripas coração.
Já estava a terminar o jantar, quando bateram à porta. Era o dono da casa.
Estava tudo perdido. O que faz a mulher: tranca o frade e o soldado em uma alcova.
O marido não saiu mais e a mulher cada vez mais ficava amedrontada.
Chega a noite. O frade não tinha dado até ali uma palavra; o soldado velho também; mas quando foi ali pelas dez horas da noite, o soldado velho, vendo que todos estavam já agasalhados, principiou uma conversação com o frade.
Pediu-lhe este que não falasse ali, mas o militar continuou a falar.
O frade gratificou-lhe com um conto de réis para que ele não mais falasse.
Recebeu o dinheiro o soldado velho, mas logo de novo começou a dizer que no dia que comia pato não podia ficar calado. Deu-lhe o frade um outro conto de réis ficando sem mais um vintém.
O soldado velho, pois, continuou a falar. O companheiro, para ver se ele se calava, deu-lhe da batina de sede.
O soldado velho teimava em continuar a dizer que no dia que comia pato não podia estar calado. O frade já lhe pedia pelo amor de Deus que não falasse mais, pois se tal o não fizesse, ficariam desgraçados. O dono da casa certamente acordaria e era capaz de matá-los.
O soldado velho não queria saber de nada, o seu desejo era só de falar. O frade vendo que não tinha mais o que dar despiu-se de toda roupa e entregou-a ao soldado velho para que ele não falasse mais.
Já sendo meia-noite na cadeia o sentinela solta o brado de alerta, o soldado velho ouviu e produziu um outro formidável brado.
O frade, com medo, meteu as mãos na porta e saiu nu.
Soldado velho que ainda não estava vestido com batina acompanhou o frade que pulou uma janela.
O dono da casa pula atrás do frade e dá-lhe um tiro.
O soldado velho pula atrás do dono da casa e o prende.
O homem que era um homem de grande reputação não quis sujeitar-se à prisão, mas o soldado velho não queria saber de nada. Estava preso e bem preso, pois ele era o mandante e tinha que cumprir o serviço, tanto mais que o dono da casa tinha dado um tiro num homem. Não podia de maneira alguma soltá-lo.
O dono da casa, vendo a resolução do soldado velho, e que tinha de ir mesmo à presença das autoridades, ele que era muito conhecido e respeitado por todos, propôs ao militar, se ele o soltasse, dar-lhe doze contos de réis.
Soldado velho aceitou, mas com as condições do dono da casa mandar a sua mulher contar e trazer ali, onde estavam.
O homem chamou a mulher e mandou que contasse doze contos de réis com toda pressa e trouxesse.
Assim foi feito. Soldado velho, que só vencia um cruzado por mês, saiu da aventura com catorze contos e quatro cruzados e a batina do frade e todos os paramentos do frade.
Quem pagou o pato?
Fonte: Lima Barreto. Marginália. Publicado originalmente em 1919. Disponível em Domínio Público.
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