Era o barqueiro responsável por pilotar uma embarcação que levava pessoas para o lado de lá. Diferente do que imaginavam, não se tratava de um santo ou um enviado dos deuses. Em volta do barco, estava escrito em letras garrafais: “Lá, você encontrará o inesperado, o imponderável e o inescrutável”.
Simultaneamente, era emitido um aviso sonoro, com a voz dos pais ou de pessoas mais velhas que haviam advertido essa criatura a não ir até o lado de lá.
No início de sua carreira, o gentil barqueiro tentara também persuadir os passageiros a não embarcar, mas com o passar do tempo, percebendo a inutilidade de tais conselhos, calou-se, mesmo se sentindo contrariado com isso, limitando-se a remar e remar, tentando entender o que levava essas pessoas a aventurar-se nessa vã tentativa.
Seres que deixavam para trás estáveis situações sociais, econômicas e amorosas para lançarem-se com poucas ou nenhuma ficha em um difícil jogo, em que o próprio futuro estava em risco.
Eram indivíduos heterogêneos que possuíam em comum somente a obstinação em chegar à margem de lá. Casais apaixonados, outros já nem tanto, adolescentes guiados apenas por falsos apelos nas redes sociais, mulheres e homens solitários e iludidos com o que acreditavam encontrar no outro lado.
Atletas em fim de carreira em busca de um time que os fizesse ouvir novamente os aplausos de torcedores, artistas em decadência à procura de um palco qualquer que lhes devolvesse o assédio antigo de fãs. Idosos inconformados, almejando retornar à mocidade, e jovens querendo uma precoce maturidade.
Tinham ainda velhas raposas políticas, sonhando com a vitória na próxima eleição, para apagar a última e desastrosa derrota nas urnas. Incompreendidos, querendo reconhecimento, e desajustados, tentando retomar o rumo perdido.
Mesmo sendo um rio caudaloso, cheio de correntezas e bancos de areia, o barqueiro dominava inteiramente a rota a seguir. Mas, às vezes, uma inesperada onda derrubava algum passageiro e o desespero deste em chegar ao outro lado era tanto, que o fazia nadar em direção à distante margem, sem pensar em retornar à embarcação, causando-lhe a morte.
Ao chegar e desembarcar os passageiros, o barqueiro aguardava pacientemente por horas o retorno de alguns deles.
Infrutífera espera, nenhum jamais voltou.
Esta rotina ocorreu por décadas (cerca de três gerações de barqueiros), até que certo dia, a embarcação rompeu-se na colisão com um recém-formado banco de areia.
Nesse naufrágio, mais do que as vidas, perdeu-se também a inútil esperança dos desesperados mortais transformarem-se em algo superior aos seus limites, dádiva reservada somente aos deuses.
Por ironia do destino, o Olimpo situava-se do lado de lá, muito perto, mas invisível e inexpugnável.
Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor
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Breve Análise do conto “Travessia”,
por José Feldman
O conto de Arthur Thomaz, "Travessia", utiliza a figura do barqueiro como uma metáfora poderosa para a transição e a busca humana por significado.
O barqueiro, que deveria ser um guia, acaba se tornando um mero transportador, simbolizando a frustração das expectativas humanas. As promessas de um "lado de lá" repleto de esperanças contrastam com a dura realidade da travessia, evidenciando a futilidade de muitas aspirações.
A obstinação dos passageiros em buscar algo melhor, apesar dos avisos, revela a ironia da condição humana. A determinação em buscar o desconhecido, mesmo com a consciência do risco, reflete a natureza muitas vezes irracional das decisões humanas.
O barqueiro aguarda o retorno dos passageiros, mas nunca os vê voltar, simbolizando a ironia da esperança. A busca por algo maior muitas vezes resulta em desilusão, mostrando como as aspirações podem levar à perda.
A proximidade do Olimpo, invisível e inalcançável, intensifica a ironia. O que se busca está tão perto, mas é inatingível, destacando a tragédia da condição humana em sua incessante busca por um ideal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A narrativa reflete aspectos da cultura brasileira, como a busca contínua por melhores condições de vida e a esperança de transformação, mesmo em face de adversidades. A ironia serve como uma crítica sutil às promessas não cumpridas da sociedade, que frequentemente leva indivíduos a arriscarem tudo por um futuro incerto.
No fundo, "Travessia" é um convite à reflexão sobre as motivações humanas e as ironias da vida. Através da figura do barqueiro e de seus passageiros, Thomaz explora temas universais que ressoam profundamente na experiência humana, especialmente em um contexto cultural rico e complexo como o brasileiro.
Fonte: José Feldman. Dissecando a magia dos contos. Maringá/PR. IA Open.
Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.
Este é um texto maravilhoso de uma mente que não para de evoluir. Sou super fã do Arthur Thomaz.
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