quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Antonio Juraci Siqueira (Ela)

Não me pergunte seu nome, quem é, de onde veio nem para onde foi. Não posso precisar nem mesmo a primeira vez que Ela apareceu. Tampouco deixou, ao partir, qualquer coisa que pudesse identificá-la. Chegava sempre sem aviso trazendo a noite nos cabelos negros e o dia na concha dos olhos claros, repletos de mar e sol. Sua visita era inconstante. Às vezes vinha dia após dia para sumir por semanas, meses até. De repente chegava. Chegava sem-mais-porquê e ficava ali, diante de mim. Indiferente a tudo, sem dizer nada. Uma palavra sequer. Ou talvez dissesse tudo através dos olhos enormes e impenetráveis. E eu, então, quedava-me mofino. Sem ação. Mundiado. Impotente. Sem forças para esboçar a menor das atitudes. Apenas ficávamos. Os dois. Um espreitando o outro. Meio de tocaia, feito caça e caçador. Às vezes Ela parecia sorrir. Sorriso de Mona Lisa. Enigmático. Nem mesmo sei se era sorriso. Parecia escárnio, fingimento, mágoa, desprezo ou sei-lá-o-quê.

Depois começou furtivamente a surrupiar pequenas coisas de mim. Um dia pegava uma palavra que eu havia acabado de rabiscar ou um verso inteiro. Outra hora, por qualquer descuido, roubava um gesto, um trejeito, um grão de voz. Eu fazia que não via para não melindrá-la, irritá-la, sei lá. Com o passar do tempo Ela foi tornando-se audaciosa e passou a bulir nos meus sentimentos. A cavoucar minha alma. Mexer no baú das minhas intimidades: das emoções vividas às empoeiradas recordações. Chegou mesmo a apropriar-se de um punhado de sonhos que eu mantinha guardados a sete chaves. E isso à luz do dia e ante meus olhos estarrecidos. E eu ia deixando. Talvez por medo de uma inesperada reação ou porque, apesar de tudo, não quisesse perdê-la. Sem mais, nem menos, amanhecia festiva, radiante, olhos brilhantes e juvenis. Anoitecia assim para alvorecer com cara de inverno. Fechava-se em si mesma como se vida ali não existisse. Estátua banhada de sombra e luz. Tudo isso foi, pouco a pouco, minando minha alma, corroendo meus pensamentos, embaralhando meus sentimentos a ponto de não mais saber ao certo o que sentia por Ela: amor, ódio, pena, temor, mágoa, desejo... É, talvez fosse desejo. Um desejo louco de possuí-la. Desejo desabrochado na manhã que a vi despida através da porta entreaberta do meu delírio. Bela! Indescritivelmente bela! Ela conhecia minhas fraquezas e, maliciadamente, alimentava minhas fantasias com migalhas de concessões. Às vezes chegava aflorando o generoso decote para que eu pudesse devorá-lo com os olhos famintos. Gostava de sentar-se diante de mim cruzando e descruzando, maliciosamente as pernas enquanto corria a língua insinuante entre os lábios carnudos como num convite. Nunca a toquei. Em sua presença ardia em febre e cio mas uma força misteriosa, na mesma proporção da que me prendia a Ela, dela me repelia. Até que um dia, da maneira que chegara, começou a partir. Começou é o termo exato. A primeira coisa a desaparecer foi o seu sorriso. Em seguida seus olhos foram, lentamente, apagando, apagando até desaparecerem por completo. Seus lábios, rosadamente belos, esmaeceram até nada mais restar além da saudosa lembrança. Por último - meu Deus! - seu decote, qual translúcido fantasma também evaporarou ante minhas retinas desgraçadamente exaustas. E foi assim: da mesma maneira que chegou, inexplicavelmente se foi. Mas não se foi sozinha: afundou-se em seus mistérios levando consigo parte de mim.

À época não atinava o porquê de sua presença. Hoje, depois de perder-me no emaranhado matagal dos seus mistérios, talvez saiba mais dEla do que de mim. Ou do pouco que restou de mim. Mas, ao contrário do que você deve estar pensando, não enlouqueci. Nunca estive tão lúcido quanto neste momento em que mal traço estas linhas. Apenas me escondo entre metáforas para que não descubras toda a verdade que permeia estes escritos. É que a verdade nem sempre é agradável aos olhos e ao coração. Mas não duvides de tudo nem te deixes seduzir pelas imagens, por mais belas que sejam. Ou como disse o poeta: “Põe tento nas ardilosas/armadilhas dos caminhos /que há mentiras que são rosas, /verdades que são espinhos” Isso posto, um aviso: não cortes a leitura ao meio pois na esquina da próxima página ou na curva da linha seguinte poderás encontrar a resposta para tuas inquietações. Ou, quem sabe, o caminho por onde Ela fatalmente te encontrará. Num instante preciso, do nada ( ou de tudo) Ela poderá aparecer. Talvez esteja agora mesmo te espreitando por detrás de uma palavra mal dita ou na entrelinha final desta insólita viagem aos confins de mim.

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