Vilipendiou-me a crença da infância ao descobrir, entre soluços, que ele não existia. Mais que isso; descobri que os meus pais usaram o dinheiro da compra para pagarem o aluguel atrasado. O porquê disso, confesso, nunca vou compreender. Ou aceitar.
O aprendizado doeu mais que surra injusta, o que fez com que Papai Noel morresse no meu coração da pior maneira naqueles meus oito anos.
Ficou sendo um ser que jamais devia ter nascido. Ou sido inventado.
Não existe dor maior que a de decepção.
Enquanto eu chorava maldizendo o papelão deles por terem me deixado acreditar que ganharia a bicicleta, meu amigo Marco chegou com sua novinha, para brincarmos.
Ele confiava que eu ganharia uma e, ao saber da história do dinheiro, chorou com meus soluços um choro irmanado de amigos, com a mesma dor e cor de sentimento.
Um choro partilhado na proporção da alegria quando ríamos.
O Marco, que havia pedido ao Papai Noel só um pião de corda com música das naves espaciais do Flash Gordon, ganhara, além dele, também a bicicleta.
Era igualzinha a que eu escolhera, de pneus largos e na cor verde. Monark! Supimpa!
- Se o Papai Noel não existe - indagou encabulado por que não disseram a verdade antes do Natal? Mas — complementou - liga não, a minha dará para nós dois. Veja, ela é grande e tem garupa... Um pouco eu guio, outro pouco você...
- Mas a sua é sua, não é minha - resmunguei na extrema desilusão. - Eu queria uma que fosse minha! Uma que pudesse lavar e enxugar. Encher seus pneus...
- Então vamos fazer assim - retrucou; - Dou a você metade dela e ficamos com partes iguais. Pode escolher, a parte do guidão ou a do selim? Só que minha mãe não pode saber, trato feito?
Olhei para seus olhos azuis molhados de sinceras lágrimas. Abracei-o agradecido sabendo que a bicicleta continuaria dele por inteira, mas, no momento em que mil hienas dilaceravam meu coração de menino, que solução haveria?
O Papai Noel que fosse para o diabo e que lá ficasse na quentura do inferno!
Montamos e saímos pelas ruas a gozar a alegria que a bicicleta oferece e voltei a rir, é claro.
Quem não ri sobre uma bicicleta e do prazer de cortar o vento com a cara?
No fundo, porém, lá no oco da alma, o amargo sabor da mentira continuou a latejar, porque não há doce capaz de amenizá-la.
Sempre haverá, por mais que passem os anos, aquele rastro áspero da decepção.
Talvez o gesto de desprendimento do Marco com a oferta da metade do brinquedo frente à situação de gravidade íntima-financeira que estava a conhecer, terá sido a prova de que uma amizade não tem preço.
Nem mil bicicletas pagariam o que ele fez por espontaneidade, o que me dá a certeza de que não há verdade maior que a amizade, na inteireza que o termo encerra.
Fonte: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor
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