segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Daniel Maurício (Poética) 83


O poeta Daniel Mauricio é natural de Jaguariaíva/PR, em 1968, Graduado em Letras - UFPR; Administração de Empresas - FESP; Direito - FARESC; Pós-graduado em Gestão Administrativa e Tributária – PUC/PR; Pós-Graduado em Gestão de Pessoas e Qualidade no Setor Público - SPEI; Pós-Graduado em Gestão Pública de Tecnologia da Informação – PUC/PR; Pós-Graduado em Gestão Pública – FAEL. É Auditor de Tributos Municipais da Secretaria Municipal de Finanças da Prefeitura Municipal de Curitiba. Foi Integrante da Câmara Técnica Permanente da ABRASF – Associação dos Secretários de Finanças das Capitais, atualmente Chefe de Serviços do Setor de Processos Administrativos da PMC, Professor da Rede Municipal de Curitiba; Monitor na área de Linguística na Universidade Federal do Paraná, entre outros.
Pertence ao  Centro de Letras do Paraná; - Academia de Cultura de Curitiba; Confraria Brasileira de Letras; Academia de Artes, Ciências e Letras do Brasil; União Brasileira de Escritores etc.
Publicou livros de poemas: Mosaico de Sentimentos; Cacos e Retalhos; Gotas Poéticas; Origamis de Palavras; Palavras de Cheiro;  Miudezas do Coração; Poemininos; Poesias da Madrugada; Leve-me;  Alma Lírica; Olhares; e Amar É.

Renato Frata (Visita)

A poeira acumulada sobre a lápide saiu com água e vassouradas, na rápida faxina. Fazia algum tempo que não visitava o túmulo de meus pais; por isso, quase findo o expediente, juntei balde e vassoura para me colocar à tarefa. O anseio da chegada do outono já diminuía a robustez do sol, de modo que não me preocupei com seu excesso embora o calor desse o tom de tarde ensolarada com nuvens claras em vadiagem.

No céu de outono se escondem as maiores belezas, já dissera alguém e, naquele dia, quando o sol já projetava um barrado vermelho tingindo o horizonte, um azul acinzentado se alimentava em meio a uma ou outra nuvem de algodão a lhe quebrar a cor, o que significava que a seca se manteria. Absorto e em meio ao mudo silêncio de vozes no recanto, somente esfregares e piares se ouvia. De resto, a solidão com seu manto sóbrio junto ã beleza entristecida dos fachos de luz vazados como flechas fosforescentes entre ramos, esticados e debruçados alisando-se em túmulos impolutos e granitados, decorados com bronzes e cristais a mostrarem posse dos ocupantes e, também, porque não dizer, disseminavam-se a não ver diferença naquelas campas menores de acabamento simples, com pinturas gastas ou até sem elas, adornadas por cruzes de madeira e números enferrujados nas placas indicativas, e o fazia por igual, com a mesma beleza, sem se importar com essa exagerada diferença.

Alguns estavam limpos e asseados, outros, porém, á mercê das travas do tempo, carentes de limpeza e zelo no mais explícito descaso. Para aqueles fachos, porém, sem se aterem à distinção da aparência e pompa, todos mereceram clarões na proporção que os ramos permitiam ao quararem a luz e, convenhamos, poder notar essa beleza num fim de tarde, com lúmens tão nítidos a criarem visões esplêndidas na singela expressão da igualdade, o ignorar das especificidades tumulares direcionando-se a esmo como o sol ordenava, repetia aos meus olhos a certeza de que finda a vida tudo se iguala ao voltar ao pó, embora, pelo nascimento, cada qual devesse ser livre e igual em dignidade, em direito e em disposição. 

E aí me veio uma dúvida que hoje, centrado em mim, ponho-me em comiseração sem encontrar resposta entre muitas que bailam soltas em dança maluca: por que tanta diferença entre os seres, já que a vida reserva para si a busca incessante da sabedoria? Não deveria o homem, de qualquer estágio econômico e social saber sonhar com tudo o que existe e não apenas consigo e, com isso, se permitir àquilo que o sonho em si revela? Por que a vida não mostra a todos o mesmo caminho das oportunidades? Por que somente a morte e não a vida, nos iguala independentemente dos abrigos que nos dão no cemitério?

A luz projetada em leque iluminando pontos dispersos, somada à terra esfarelada em voejo (esvoaçante) pelo vento ao silêncio soturno do vazio na tarde modorrenta, à solidão penumbrosa de melancolia que escorria aos olhos do sol poente e à cor do esquecimento estampada em várias tumbas, criaram esse conjunto de indagações. Bom de observar e ruim de se ruminar, impossível de aceitar. A diferença na vida faz a constância! - é o ditado. Por isso nos acostumamos... e passamos ao largo, longe das cercas necessárias, cegos para a pobreza e particularidades humanas.

Pois, daí a pouco, sem menos esperar, uma aragem impregnada de poeira cheirando à terra saturou o ar e me fez sentir inusitadas sensações a me assomarem sem que desse conta da sua pujança. Se não digo bela, no mínimo era surreal pelo esplendor mostrado.

O sol, como a se despedir findo em encantos na realidade perversa que relegamos, pôs-me cruz no coração. 

Por que nunca notara tais diferenças? Se as notei, por que as releguei? Não saberia dizer. Foi tão instantâneo que a rapidez do tempo não me permitiu decifrar esses sentimentos, e nem sei ainda o porquê de ter juntado os elementos incomuns num momento tão íntimo que é a visita a falecidos.

A quietude ampliada pelo sol sendo absorvido num pré–crepúsculo em meio ao vento morno da boca da noite, como ordem sistemática, calaram-se os pássaros para fazer em mim daquele silêncio o grito da realidade. O tremular das chamas vivas no veleiro a suportar o buliçoso que as soprava, ajudou-me a concluir que o conjunto luz, poeira, silêncio e solidão, a despeito do que possam representar em outras situações, jamais seriam observados se eu estivesse envolvido apenas na tarefa de limpeza, oração e recolhimento a que me havia proposto. Mas esse silêncio morno que ali habita a fazer júbilo ao sol que se esvaía, talvez tenha aberto essa porta de observação para criar sensações nunca experimentadas como compusessem uma sonata muda do recordar para invadir minha alma, criar sinestesias e, com isso, colocar aumentativos nas próprias sensações como bússolas internas a nortearem os movimentos da alma.

De vassoura em punho, enquanto o silêncio de túmulos tristes falava na voz branda do vento e a solidão respondia na diminuição sistemática do lento apagar dos fachos, senti a aliança do sossego da morte com a imensa tristeza no encapelado mar da vida: nada demais em se tratando de um cemitério.

Não tive medo nem receio, mas condoimento pelos meus e por tantos que ali repousam em meio a essa diversidade própria do ser vivo e, parado em mim de compleição austera, notei que além daqueles elementos insistentemente presentes havia outro ao qual reputei interessante: o abandono. Sim, dos túmulos esquecidos. 

Eles representavam a indiferença, o afastamento, o ignorar a quem ali se pôs. Abandono, tenho por mim, é o nome que se dá à estação em que o trem da vida se acomoda para a eternidade ao passar pelas estações sombrias do Desespero, da Saudade, da Lembrança, da Desesperança, advindas dos estágios de deslembrança da perda de alguém.

Coisas do tempo, eu acho, que com suas manobras sobre nós reserva. A chegada desse trem mostra que ao escorrer tudo se vai para não retornar e, nesse chegar definitivo, apaga-se a lousa na qual se registrou a vida deixando, como sinal dessa passagem, apenas borrões incompreensíveis, tantas as razões, as (in)certezas, as dúvidas vivenciadas. Visão que pode ser comparada à lágrima que de tanto doer, seca e, sem se aperceber ao processo de secamento, inunda tanto o coração para fazê-lo transbordar para a alma, a quem se dá o nome tristeza, símbolo cogente (coercitivo), mas natural, do cemitério.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes: 
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas.  Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

José Feldman (Pafúncio na Confraternização dos Jornalistas)


Era uma noite animada quando Pafúncio, o jornalista da revista “Fuxico & Fofocas”, se preparava para a confraternização anual dos jornalistas e editores. O evento seria realizado em um restaurante elegante, e Pafúncio estava decidido a fazer a melhor impressão possível, embora sua ideia de elegância envolvesse uma camisa com estampas de abacaxis e uma gravata que piscava.

Ao chegar ao restaurante, Pafúncio ficou boquiaberto com a decoração sofisticada. As mesas eram adornadas com velas e flores, e o cheiro da comida deliciosa pairava no ar. Ele rapidamente se juntou aos colegas, que já estavam se divertindo e brindando. “Estou pronto para a festa!” ele exclamou, levantando seu copo de suco, enquanto todos sorriam, um tanto apreensivos.

Assim que a comida começou a ser servida, Pafúncio, na ânsia de experimentar tudo de uma vez, decidiu se levantar para pegar mais pratos. No entanto, ao dar o primeiro passo, ele tropeçou no pé da mesa e foi projetado para a frente, caindo de cara sobre uma mesa próxima, que estava cheia de pratos de comida.

O som do impacto foi ensurdecedor, e todos na confraternização pararam para olhar, enquanto Pafúncio se levantava, com um pedaço de lasanha preso em sua camisa. “Desculpem, estava apenas testando o buffet!” ele disse, tentando rir da situação, mas a lasanha escorregou e caiu no chão, fazendo um barulho surdo.

Os colegas de Pafúncio estavam em choque, mas não puderam evitar as risadas. Ele, sem se dar conta do que acontecia, decidiu que precisava se recompor e se aproximou do garçom que passava com uma bandeja cheia de copos de vidro.

“Com licença, posso me servir?” Pafúncio perguntou, mas, ao estender a mão, acabou derrubando a bandeja, que se espatifou no chão, espalhando copos como se fossem confetes. O garçom, com uma expressão de desespero, olhou para Pafúncio, que apenas deu um sorriso nervoso.

“Foi mal! A banda de jazz deve estar ensaiando para uma apresentação!” ele disse, tentando desviar a atenção da cena caótica.

A confraternização continuou, e Pafúncio decidiu que era hora de se divertir com a comida. Ele pegou uma azeitona, mas ao tentar comê-la, a azeitona voou da sua mão e acertou em cheio a cara do editor, que estava sentado ao seu lado. O editor, um homem sério e de poucos sorrisos, parou por um segundo, surpreso, e então começou a rir, o que deixou Pafúncio ainda mais aliviado.

“Desculpe, editor! Era só uma azeitona, não uma proposta de matéria!” Pafúncio comentou, rindo junto com os outros. O clima descontraído estava de volta, mas ele ainda não sabia que a noite guardava mais surpresas.

Quando chegou a hora dos discursos, Pafúncio decidiu que também queria fazer uma participação especial. Ao pegar o microfone da mesa de som, ele puxou com tanta força que o aparelho se soltou, emitindo um ruído ensurdecedor que ecoou por todo o restaurante. Os convidados cobriram os ouvidos, e Pafúncio, sem saber o que fazer, começou a balbuciar palavras desconexas.

“Eu só queria dizer que… que a vida é como um abacaxi! Às vezes você precisa cortar para encontrar o doce!” ele gritou, enquanto o microfone continuava a emitir chiados.

As risadas se misturaram ao caos, e a cena ficou tão absurda que alguns convidados começaram a sair, ainda atordoados pela situação. Pafúncio, percebendo que seu discurso não estava indo como planejado, decidiu encerrar da melhor forma que sabia. “Obrigado, obrigado! E agora, uma salva de palmas para a comida! E para o garçom que ainda está de pé!” ele disse, enquanto aplaudia com entusiasmo.

No final da noite, enquanto todos tentavam se recuperar do que acabaram de presenciar, Pafúncio, com um sorriso radiante, se despediu dos colegas. “Foi uma confraternização incrível! Eu realmente trouxe a festa!” ele exclamou, enquanto os outros jornalistas balançavam a cabeça, ainda atordoados.

Ao sair do restaurante, Pafúncio olhou para o céu noturno e pensou em como a vida era cheia de surpresas. “Hoje eu definitivamente fiz história!” ele murmurou para si mesmo, sem perceber que, apesar de todas as trapalhadas, ele havia conseguido unir os colegas em risadas e diversão — o verdadeiro espírito da confraternização.

Após a noite caótica, alguns colegas sugeriram que Pafúncio deveria ser convidado para todas as confraternizações futuras. “Precisamos dele para manter o clima leve! Quem mais poderia fazer a festa ter tanta vida?” brincou um deles.

Após a confraternização, as reações dos colegas de Pafúncio foram uma mistura de risos, incredulidade e alívio. 

Vários colegas riram tanto que mal conseguiam se controlar. Assim que se afastaram do restaurante, começaram a relembrar os momentos mais hilários da noite. “Lembram da azeitona que acertou o editor? Eu nunca pensei que veria isso!” um deles comentou, enquanto todos riam.

A situação rapidamente se tornou material para memes internos na revista. Um grupo de jornalistas começou a fazer montagens engraçadas com fotos de Pafúncio em sua camisa de abacaxi, destacando momentos da festa. “Pafúncio, o rei das confraternizações!” virou uma piada recorrente.

Enquanto caminhavam para seus carros, alguns jornalistas sussurravam comentários sobre as trapalhadas. “Acho que ele deveria ser nosso correspondente em festas de gala,” disse um. “Pelo menos teríamos boas histórias para contar!”

No dia seguinte, a história da confraternização tomou conta do escritório. Durante o café da manhã, todos estavam comentando sobre os eventos da noite anterior. “Se Pafúncio não tivesse caído na mesa de comida, não teríamos nada para rir hoje!” disse um editor.

Assim, as trapalhadas de Pafúncio se tornaram uma lembrança divertida e uma forma de fortalecer os laços entre os colegas, mostrando que, no fundo, o que contava era a diversão e a camaradagem — mesmo que isso significasse algumas lasanhas e copos quebrados pelo caminho.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

José Feldman nasceu na capital de São Paulo. Formado técnico de patologia clínica, não conseguiu concluir o curso superior de psicologia. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; trovador da UBT São Paulo e membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, Hermoclydes S. Franco, e outros. Casado com a escritora, poetisa e tradutora professora Alba Krishna mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, radicou-se definitivamente em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores de universidades do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras e de trovas, fundador da Confraria Brasileira de Letras e Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, com cerca de 20 mil publicações. Atualmente assina seus escritos por Campo Mourão/PR. Publicou mais de 500 e-books. Em literatura, organizador de concursos de trovas, gestor cultural, poeta, escritor e trovador. Dezenas de premiações em trovas e poesias.

Fontes 
José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Vereda da Poesia = 190


Trova de
LOURDES REGINA F. GUTBROD
Rio de Janeiro/RJ +

Quando, ardoroso, me afagas,
  sem leme e sem direção,
  sou barco à mercê das vagas,
  no intenso mar da paixão!
= = = = = =

Soneto de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Uma vez um anjo apaixonou-se
Manuel Antonio Pina in "Todas as Palavras - Poesia Reunida (1974-2011)", p. 52

Uma vez um lindo anjo apaixonou-se
Ao fim de tantas viagens siderais
Por essa estrela que brilhava mais
E tinha a luz mais forte, quente e doce.

A vida rotineira alvoroçou-se
Começou a sofrer como os mortais
E nas vivas palpitações carnais
A sua alma errou e enredou-se.

Mas no reino sem fim desses espaços
Não se permitem beijos nem abraços
Entre vidas, assim, tão diferentes.

Recusando esse amor sem união
À beira do vazio dão a mão
E no céu fazem dois traços cadentes...
= = = = = = = = =  

Trova de
CÉSAR TORRACA
Rio de Janeiro/RJ

O Anedotário horroroso
que ele repete em torrente,
é do tempo em que o famoso
Mar Morto estava doente!
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Monjolo

A madeira antiga
Dilui-se com a passagem
Do tempo, tempo
Que afaga teus contornos...
A madeira antiga
Resiste e ainda
Insiste, em sobreviver,
Mesmo com a ausência das águas,
Mantém vivo
O som distante
E repetitivo.
Do teu cadenciado toque...
= = = = = = 

Trova de
JOSÉ MOREIRA MONTEIRO
Nova Friburgo/RJ

Trilhando o caminho certo 
numa paixão ressequida
você foi no meu deserto
o oásis da minha vida.
= = = = = = 

Poema de
ELISA ALDERANI
Ribeirão Preto/SP

Rei

Onde está meu rei?
Saiu do palácio…
Ele se foi.
Tudo ficou sem graça…
Mas não levou
Nem se quer uma taça.

Só os sonhos dele.
 
O trono ficou vazio
O resto ficou no mesmo lugar.
O tempo passou, esperei…
O rei não voltou,
Ninguém pegou seu lugar.

No trono agora,
Acredite se quiser,
Senta-se a poesia.

Ela sabe reinar.

Conduzir minha vida,
E, continuar a sonhar!
= = = = = = = = = 

Trova de
HEDER RUBENS SILVEIRA E SOUZA
Natal/RN

É sinal de coerência
ser previsível, constante...
Mas viver é sapiência:
tudo muda a todo instante!
= = = = = = 

Poema de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Sonho

Quantas vezes, em sonho, as asas da saudade
Solto para onde estás, e fico de ti perto!
Como, depois do sonho, é triste a realidade!
Como tudo, sem ti, fica depois deserto!

Sonho... Minha alma voa. O ar gorjeia e soluça.
Noite... A amplidão se estende, iluminada e calma:
De cada estrela de ouro um anjo se debruça,
E abre o olhar espantado, ao ver passar minha alma.

Há por tudo a alegria e o rumor de um noivado.
Em torno a cada ninho anda bailando uma asa.
E, como sobre um leito um alvo cortinado,
Alva, a luz do luar cai sobre a tua casa.

Porém, subitamente, um relâmpago corta
Todo o espaço... O rumor de um salmo se levanta
E, sorrindo, serena, aparecer à porta,
Como numa moldura a imagem de uma Santa...
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Nos poemas que componho, 
de beleza quase extrema, 
eu ponho em verdade um sonho 
dentro de cada poema!
= = = = = = 

Poema de 
JOSÉ FARIA NUNES
Caçu/GO

Oração do educador

Inspirai-me
oh! Mestre dos Mestres
para que o mister a que me proponho
ilumine as mentes a mim confiadas
nessa jornada. Dai-me sabedoria
Oh mestre, para que mais que professor
seja eu educador, condutor de esperanças
para um novo amanhã. Tenha eu
complacência para com aqueles
que de mim mais necessitam. Como orientador
de vidas jamais a intolerância consiga
meu domínio e me force a trilhar
o cômodo caminho do descompromisso.
Esteja eu mais para Apóstolos que para Pilatos
com um assumir constante da Divina
Missão de educar, criar vidas, reinventar mundos.
Possa eu educar para a vida
longe da discriminação sem marginalizar ninguém,
pois todos da luz são herdeiros e merecedores.
Tenha eu sempre na alma a imagem,
a lembrança do Mestre-Amor, Mestre-Perdão
e jamais expulse meu aluno
que merece ser mais gente,
jamais um desviado na marginalidade da vida.
Jamais me deixe esquecer
de que a palavra orienta, mas o amor
e o exemplo constroem, edificam para a vida
para o mundo
e para Deus.
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Na velhice, as incertezas, 
para ocupar os espaços, 
vão empilhando tristezas 
e acumulando cansaços..
= = = = = = 

Soneto de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

Lunar

As casas cerraram seus milhares de pálpebras.
As ruas pouco a pouco deixaram de andar.
Só a lua multiplicou-se em todos os poços e poças.
Tudo está sob a encantação lunar...

E que importa se uns nossos artefatos
lá conseguiram afinal chegar?
Fiquem armando os sábios seus bodoques:
a própria lua tem sua usina de luar...

E mesmo o cão que está ladrando agora
é mais humano do que todas as máquinas.
Sinto-me artificial com esta esferográfica.

Não tanto... Alguém me há de ler com um meio sorriso
cúmplice... Deixo pena e papel... E, num feitiço antigo,
à luz da lua inteiramente me luarizo...
= = = = = = 

Trova do
PROFESSOR GARCIA
Caicó/ RN

Desperto e fico tristonho,
é triste o meu despertar,
ver acabado o meu sonho
antes do sonho acabar!
= = = = = = 

Hino de
SÃO TOMÉ/ RN

I
Entre terras serranas azuis
Um ar Olímpico o sopro vital
De mares Glaucos que embalsamam e conduzem
Em sesmaria a data do Pica-pau.

II
És banhada pelo Potengi amado
Que suas vertentes, fazem brotar
As produções que afluíram
A agricultura familiar.

III
Nesta terra bendita e fecunda
Suas riquezas podemos ressaltar
Entre todas, o algodão, ouro branco
E os minerais não deixemos de lembrar.

IV
Tu és boa terra hospitaleira
Em acolhimento não te podem igualar
Por isso hoje teus filhos jubilosos
Com alegria te querem saudar.

Refrão
São Tomé, terra de gente de fé
Não vejo, contudo creio
Nós teus filhos entre brados e aclamações
Aqui vimos abrigar-nos no teu seio.
= = = = = = = = =  

Trova de
JUSSARA C. GODINHO
Caxias do Sul/RS

A coerência é um laço
de fita bem amarrada.
Ser coerente é dar o passo
seguindo na mesma estrada!
= = = = = = = = =  

Soneto de 
ANIBAL BEÇA
Manaus/ AM (1946 – 2009)

Profissão de fé

Meu verso quero enxuto mas sonoro
levando na cantiga essa alegria
colhida no compasso que decoro
com pés de vento soltos na harmonia.

Na dança das palavras me enamoro
prossigo passional na melodia
amante da metáfora em meus poros
já vou vagando em vasta arritmia .

No voo aliterado sigo o rumo
dos mares mais remotos navegados
e em faias de catraias me consumo.

É meu rito subscrito e bem firmado
sem o temor do velho e seu resumo
num eterno retorno renovado.
= = = = = = = = =  = = = = 

Trova de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/ SP

Não lamento o meu outrora, 
nem choro uma dor vivida, 
lamento sim, a demora 
em por Deus em minha vida.
= = = = = = = = = 

Nilto Maciel (Carlim)

Apesar de muito vivido, Carlim não entendia quase nada do que falavam as pessoas. Nem mesmo porque o chamavam dos mais variados nomes e nunca de Carlim. Aliás, esse nome ele mesmo se deu.

Andava um dia perdido, porém satisfeito, quando parou junto a um muro e sua sombra. Só queria descansar e situar-se. Talvez não estivesse tão longe de casa. Isto é, de seus amigos, da rua onde costumava dormir.

Recostado ao muro, ouviu vozes de crianças. Faziam perguntas a uma mulher. Gritavam, riam, num vozerio babélico. A moça falava do Sacro Império Romano Germânico. De imperadores, reis, príncipes. De Carlos V, Maximiliano, Borgonha, Solimão, etc. Palavreado difícil, nunca antes ouvido.

Curioso, Carlim procurou ver as crianças e a moça. Descobriu uma janela. Primeiro viu a professora. Falava sem parar, explicava, lia. A certa altura, apontando para uma figura do livro, disse: este é Carlos Quinto. Porém, viu Carlim e nele fixou o olhar. Mirou-o profundamente. E havia tanta ternura (ou tanta piedade) em seus olhos, que aquele instante Carlim sentiu como sendo o seu batismo. Sentiu-se filho, sentiu ter tido mãe. Pois os olhos da moça lembravam os de outra...

A mãe de Carlim morreu debaixo de um carro. E ninguém parou para socorrê-la ou remover seu pobre corpo a lugar seguro. Carlim ainda tentou arrastá-la para a calçada. Por um triz, não morreu também.

Sim, Carlim não entendia quase nada do que falavam as pessoas. Nem do que faziam. Mesmo os gestos e as palavras mais repetidas. “Fulano não vale nada. É um cachorro”. Quando se aproximava de alguém, era enxotado. “Sem vergonha, vira-lata, cão-sem-dono”.

Carlim procurou os amigos. Quem sabia o significado de cão-sem-dono? E passaram a conversar mais. Precisavam se unir, lutar por direitos básicos: casa, comida, carinho, etc. Propuseram a criação de uma sociedade. Alguém brincou: Sociedade dos Cães-Sem-Dono.

A reação dos “outros” não tardou. Devem ter visto Carlim na televisão. Nada de casa, comida e carinho para aqueles vagabundos. Nada de nome. Quem vivia na rua era cão-sem-dono. Portanto, sujeito a comer lixo, levar pontapé, morrer debaixo dos carros. Além do mais, não havia casa para todos. Se aqueles sarnentos deixassem as ruas, eles, os “outros”, estariam perdidos. Adeus casa, comida, carinho, nome...

Pobres de tais rebeldes! Pois muitos foram considerados doidos e, por isso, mortos. Passavam dias e noites a latir, protestar. Cachorros doidos!

Em compensação, Carlim e seus amigos continuariam ao léu, perdidos nas ruas. E a toda hora morre um deles debaixo dos carros. Ontem mesmo foi a vez de Carlim.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

Nilto Maciel nasceu em Baturité/CE em 1945. Formou-se na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Em parceria com outros escritores, no ano de 1976 criou a revista Saco. Transferiu-se no ano seguinte para Brasília, trabalhando na Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça do DF. Em 2002 foi para Fortaleza/CE onde residiu até a sua morte em 2014. Venceu inúmeros concursos literários, e escreveu diversos livros, tendo contos e poemas publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. Além de contos e romances publicados, também Panorama do Conto Cearense, Contistas do Ceará, Literatura Fantástica no Brasil. Alguns livros publicados: Contos Reunidos vol. I, são os 66 contos escritos por Nilto em seus livros Itinerário (1974 a 1990), Tempos de Mula Preta (1981 a 2000) e Punhalzinho cravado de ódio (1986). O volume II conta com 122 contos dos livros As Insolentes patas do cão (1991), Babel (1997) e Pescoço de Girafa na Poeira (1999).
Nilto possui esta capacidade de fazer com que nossas almas percorram desde um estado de profunda tristeza ao de êxtase. Não é apenas um escritor, são muitos escritores dentro de um só. A cada conto terminado, aflora o anseio pelo próximo. Aonde Nilto nos conduzirá agora? Cada conto é um conto, que faz com que nossa imaginação nos leve às vezes a adentrar dentro dele e participar, deixando que nos levemos pelo seu encanto, pela sua linguagem simples e deliciosa.” (José Feldman, em Nilto Maciel, o mago das almas, 18/12/2010)

Fontes:
MACIEL, Nilto. Pescoço de girafa na poeira. Brasília: Bárbara Bela, 1999. p.69-70. Enviado pelo autor.

Hans Christian Andersen (As velas)

Era uma vez uma grande vela de cera, que conhecia perfeitamente seu próprio valor.

- Nasci de cera - dizia ela - e fui fundida em um molde. Dou melhor luz mais tempo que as outras velas. Meu lugar é no lustre ou no castiçal de prata.

- Que vida esplêndida! - disse a vela de sebo.- Eu sou de sebo - uma simples vela escorrida, mas tenho um consolo: valho um pouco mais que a vela de tostão, que só foi mergulhada no sebo oito vezes. para ficar de uma grossura conveniente. Ora, isso me basta! Não há dúvida  que pode mesmo escolher o seu lugar neste mundo... As velas de cera vão para o salão, são postas no lustre de cristal enquanto eu fico na cozinha. Mas ora... afinal a cozinha é também um bom lugar: não é de lá que sai toda a alimentação da casa?

- Mas há coisa mais importante do que o alimento? - retrucou a vela de cera. É a vida social! Ver os outros brilharem, enquanto a gente mesmo está resplandecendo! Esta noite vai haver um baile na casa, e daqui a pouco virão buscar-me - a mim e a toda a minha gente.

Mal acabara de dizer essas palavras, vieram mesmo buscar as velas de cera; mas também levaram a de sebo. A própria senhora tomou-a nas mãos delicadas e levou-a para a cozinha. Lá estava um menino com uma cesta, que encheram de batatas; puseram nela também algumas maças. A bondosa dama deu tudo aquilo ao menino pobre:

- Toma também esta vela, meu menino. Tua mãe fica a trabalhar até altas horas; a vela lhe poderá ser útil.

A filhinha da casa, que estava ao pé da mãe, disse, radiante de alegria:

- Eu também vou ficar acordada até altas horas! Temos um baile hoje e eu vou levar no vestido compridas fitas vermelhas.

E que luz lhe iluminava o rosto! Que alegria! Nenhuma vela de cera pode resplandecer como os olhos de uma criança!

E a vela de sebo pensava consigo:

- Que coisa magnifica! Nunca hei de esquecer disto - e nunca mais tornarei a ver coisa semelhante!

Meteram-na na cesta, fecharam a tampa e o menino carregou tudo para casa.

- Quem sabe onde irei agora!... Meu destino é ir para casa de gente pobre. Talvez nem me deem sequer um castiçal de latão - enquanto a vela de cera lá está, rodeadas de prata, e vendo só gente fina... Como há de ser lindo espalhar luz para gente distinta! Mas minha sorte é ser de sebo e não de cera!

E a vela chegou à casa da gente pobre: uma viúva e três filhos, que moravam num quartinho muito baixo, bem defronte ao palacete.

- Deus abençoe a bondosa senhora pelo seu presente! - disse a mãe. - Uma vela esplêndida, que pode ficar acesa até altas horas da noite!

E acendeu a vela.

- Arre! - disse ela. - Que mau cheiro deitou esse fósforo com que ela me acendeu! Lá no palacete ninguém se atreverá certamente  oferecer coisa semelhante a uma vela de cera!

Lá também tinham acendido as velas, que derramavam luz para a rua. Vinham chegando, todas sacolejantes, as carruagens que traziam os convidados, vestidos de gala; e a música retinia.

- Lá começa a festa - pensou a vela de sebo.

E, lembrando-se do rosto radiante da meninazinha, que brilhava ainda mais que todas as velas de cera, repetiu:

- Nunca mais tornarei a ver uma coisa assim!

Naquele instante entrou a filhinha menor da casa pobre. Abraçou os irmãos, dizendo que tinha uma notícia muito importante- tão importante que só podia comunicá-la em segredo. E cochichou:

- Imaginem! Hoje vamos comer batatas assadas!

E o seu rosto irradiava de tanta felicidade. A vela desprendeu mais brilho e viu uma alegria tão grande como a que presenciara no palacete, quando a menina rica disse:

- Hoje há um baile em casa e vou usar um vestido com compridas fitas vermelhas!

- Será então uma felicidade tão extraordinária comer batatas assadas? Porque noto que aqui, pelo menos entre as crianças, reina a mesma alegria que lá...

Nisto deu um espirro - isto é, respingou, pois  a vela de sebo não pode fazer mais que isso.

Puseram a mesa e comeram as batatas. Que saborosas! Foi um verdadeiro festim; depois cada criança recebeu uma maça. E a menor recitou:

" Graças Te dou, Pai do Céu,
Por este alimento,
Que nos deu Tua bondade,
Pra nosso sustento.
Amém!”

 - Mamãe, mamãe! Não recitei bem os versinhos?
 
 - Não é nisso que deves pensar, filhinha: lembra-te somente do bom Deus,  que te deu o que comer.

Depois as crianças foram para a cama, e com um beijo da mãe, adormeceram logo.

A senhora ali ficou sentada , a coser, até altas horas da noite: precisava ganhar com que comprar o sustento para si e para as crianças.

Do palacete, lá do outro lado da rua, vinham os sons da música e o brilho das velas. As estrelas cintilavam acima de todas as casas, das da gente rica e das da gente pobre, luzindo com fulgor igual, com igual simpatia.

- Afinal, a noite foi bem agradável - declarou a vela de sebo. - Acaso as velas de cera, lá no castiçal de prata, terão tido momentos melhores? Gostaria bem de sabê-lo antes de me extinguir...

Pensava nas duas crianças, igualmente felizes, uma - a meninazinha iluminada pelas velas de cera; a outra - radiante à luz da vela de sebo...

E acabou-se a história.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

Hans Christian Andersen foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.

Fontes>
 Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

domingo, 29 de dezembro de 2024

Silmar Bohrer (Gôndola de Versos) 06



Silmar Bohrer nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).

Newton Sampaio (Festa de S. Antônio)

O vilarejo sem história, apertado em todos os flancos pelos grilhões inflexíveis das serras, libertava-se pouco a pouco da dormida plácida sob a colcha enfeitada de estrelas. A alvorada, sem clarins nem tambores, ia espantando, todavia, bem pra lá dos grotões e dos picos, as sombras bracejantes da noite.

E os primeiros fios de luz, deixando descoloridamente em destacado os contornos grotescos das casas, eram vanguardeiros do sol, que não tardaria a chegar com o seu cortejo de luzes. Depois, quando as curvas fidalgas do horizonte emprestavam linhas esculturais às montanhas plebeias, os telhados sem simetria fuzilaram no ar em chapadões borbulhantes.

Já então, as primeiras manifestações da vida começaram a adejar sobre o lugarejo desconhecido. E o rio — um rio largo que vinha lá de longe, e vinha descrevendo arabescos caprichosos entre a deselegância das cordilheiras — arrastou suas águas no coração da vila e levou, diluída nelas, a vibração sem par da manhã cabocla. 

E assim amanheceu o dia de S. Antônio naquela povoação distante.

Lá na última esquina, um comerciante adiposo abre as portas de sua casa de negócio e varre o assoalho cuspido e imundo.

Coçando-se na quina de um poste sem serventia, um pobre cão vagabundo atira ao ar ladridos esparsos, como que antessofrendo, no começo do dia, a melancolia de mais um dia vivido ao léu e sem dono.

No lar do Benedito Olivério desenrola-se a mesma cena de sempre. Ele, sentado na beira do catre, esforça-se por adaptar ao pé o sapatão de couro. A mulher arrasta os chinelos de um lado para outro. E, junto ao fogão, as crianças, esfregando os olhos ainda cheios de sono e de remela, choramingam impertinentes, reclamando um naco de batata assada.

— Mãe, hoje eu queria comer pão.

— Cala a boca, feição do enorme. Onde já se viu esse luxo?

— Pois hoje é o meu dia, mãe...

E Tonico, o filho mais velho, parado na porta que dá para o quintal, contempla com olhos diferentes o azulado longínquo do Pico Agudo.

— Patroa. Faça a vontade do menino. Pelo menos no dia de S. Antônio.

— Qual nada! Extravagância não é pro bico do pobre.

O Benedito Olivério olha a Nida de soslaio. E matutando em silêncio:

— Coitada de minha mulher! Pra ficar “braba” não pede licença. Por um nadinha está subindo a serra. Também, pudera! Uma porção de filhos já quase criados... E ainda por cima uma doença desgraçada no fígado...

E ajeitando a cinta:

— Toma lá, Tonico.

Com gesto displicente, o menino toma a pratinha. E já descendo a rua esburacada, mete as mãos nos bolsos, atirando a esmo assobios discretos. Reflete. A vida... O que era a vida para ele? Uma pasmaceira sem conta... Batera uma crise na casa!... De segunda a sábado, fora os dias santos, atravessar a ponte de manhãzinha, escalar a serra, e lá na primeira baixada ajudar o pai no algodoal. De tarde, um banho no rio. À noite, conversar com a vovó Francelina, e ouvir dela umas histórias sem sabor. Ainda o prendia à velha a gratidão sincera que nutria. Desde pequeno acostumara-se Tonico no conchego da avó. A mãe vivia numa neurastenia sem fim. Até parecia madrasta...

Na volta vê o estrugir de alegria nos outros meninos. E considera a ironia da véspera. Ele, que se chamava Antônio, não tivera uma distração. Nem um busca-pé. Nem uma bomba de parede. E Tonico fica com uma vontade de transformar o mundo numa enorme bomba e atirá-la de encontro ao sol...

Bem de tarde, no quintal da casa, Tonico estende as vistas como que acompanhando um ponto indeterminado a se deslocar no céu que se afogava no delírio do ocaso.

Invade a atmosfera o bimbalhar compassado de um sino. E quebra-se logo ao longe, na fraqueza de ecos sucessivos.

Tonico pensa em assistir à novena de S. Antônio. “Mas pra quê?” E suspende a pergunta na precocidade de seu ceticismo.

No lugarejo, a comemoração do santo continua. Desde a gritaria da criançada até a coparticipação dos grandes. E na algazarra da matula infantil, quando o balão, inflado como fêmea pandorga, inicia livre a ascensão sem destino. E no espoucar intermitente dos traques minúsculos. E no estralejamento vibrante da foguetada.

Noitinha já, entra Tonico na casa. Os irmãos todos de mãos vazias, mas num assanhamento sem conta, foram espiar a festa das outras crianças. A vovó, como sempre, na novena.

— Pai, eu queria arrebentar uma bomba hoje.

— Diabo de guri pedinchão! (E Nida interrompe brutalmente o pedido). Pensa que nós plantamos dinheiro na horta?

— Não se amofine, patroa. É comigo que ele está falando.

Benedito trincoleja no bolso as moedinhas parcas.

— É um esbanjamento nesta casa... Guarda esse dinheiro, Dito. 

— Deixa, mulher, deixa.

Não se conforma a Nida. Aperta as maxilas de raiva. E praguejando: — Tomara que arrebentem não sei onde essas malditas bombas.

O menino sai em silêncio. Que vontade ainda de comprar uma bomba enorme, do tamanho do mundo, e jogá-la de encontro à lua, no crescente!

— Seu Fidélis. Qual é a maior bomba que o senhor tem aí?

— A maior? É esta. Veio como brinde. Mas eu não sei como brincar com isso. Cuidado, menino. O estouro dessa não é estouro de traque, não.

Na esquina próxima, a criançada se agita. A gargalhada dilui-se perdulariamente em todas as gargantas.

— Pessoal! Escute só o estouro desta!

Tonico, de feições contraídas, quer que todos estejam atentos. Não seria melhor que o mundo inteiro olhasse a casa da esquina, naquele momento, como que a válvula única para sua infinita amargura?

O menino, apertando fortemente na mão direita o perigoso embrulho, precisa tomar impulso. Arreda o passo. Volteia o braço para trás. Ao mesmo tempo, imprudentemente, a Piva, uma irmãzinha do Tonico, corre pela calçada. No entanto, não é mais possível tolher o golpe. Projetada com energia contra a parede, reflete-se um pouco a bomba, e estrondeia junto à menina.

No seu aturdido, Tonico não compreende, no primeiro momento, os gritos lancinantes de dor. Em atonia completa, apenas enxerga a irmãzinha nos braços da gente que acorrera. Depois, pela concentração de todas as energias, desliza como uma sombra na rua deserta.

Lá, nos pilares incoercíveis da ponte, o rio continua a música do atrito. E a música da luz, longe, nas estrelas e no crescente, continua a procurar a superfície da água para a multiplicação do concerto supremo. E a sinfonia da semiloucura quer arrebentar os miolos do Tonico...

Sabedora do ocorrido, Francelina sai como doida à procura do neto. Encontra-o na cabeceira da ponte, com o rosto entre as mãos, chorando. Aconchega-o, carinhosa, ao peito. Beija-o com efusão. E sussurra:

— Tonico. Vamos pra casa. Eu sei de uma história bonita que se deu comigo lá em Minas, numa festa de S. Antônio...

Na rua recomeça a alegria. A mesma barulheira esturdia.

— Santo Antônio! Meu bom Santo Antônio!

E o vilarejo sem história, apertado já em todos os flancos pelas cadeias eternas das serras, cobriu-se melhor na colcha enfeitada de estrelas. E imobilizou-se ainda mais nos grilhões inflexíveis da noite…
= = = = = = = = =  
Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 13/06/1933.
= = = = = = = = =  

Newton Sampaio natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing