sábado, 27 de abril de 2024

Varal de Trovas n. 599

 

Mensagem na Garrafa = 114 =

Clarice Lispector
Chechelnyk/Ucrânia, 1920 – 1977, Rio de Janeiro/RJ

SOBRE ESCREVER

Às vezes tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que, ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes não sabia que sabia.

Fala-se da dificuldade entre a forma e o conteúdo, em matéria de escrever; até se diz: o conteúdo é bom, mas a forma não, etc. Mas, por Deus, o problema é que não há de um lado um conteúdo, e de outro, a forma. Assim seria fácil: seria como relatar através de uma forma o que já existisse livre, o conteúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está no próprio pensamento: o conteúdo luta para se formar. Para falar a verdade, não se pode pensar num conteúdo sem sua forma. Só a intuição toca na verdade sem precisar nem de conteúdo nem de forma. A intuição é a funda reflexão inconsciente que prescinde de forma enquanto ela própria, antes de subir à tona, se trabalha. Parece-me que a forma já aparece quando o ser todo está com conteúdo maduro, já que se quer dividir o pensar ou escrever em duas fases. A dificuldade de forma está no próprio constituir-se do conteúdo, no próprio pensar ou sentir, que não saberiam existir sem sua forma adequada e às vezes única.

(Clarice Lispector. A Descoberta do Mundo. Publicado originalmente em 1967)

Recordando Velhas Canções (Pra não dizer que não falei das flores)


Compositor: Geraldo Vandré

Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não

Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Caminhando e cantando
E seguindo a canção

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Pelos campos, há fome
Em grandes plantações
Pelas ruas, marchando
Indecisos cordões

Ainda fazem da flor
Seu mais forte refrão
E acreditam nas flores
Vencendo o canhão

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão

Nos quartéis lhes ensinam
Uma antiga lição
De morrer pela pátria
E viver sem razão

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Somos todos soldados
Armados ou não

Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não

Os amores na mente
As flores no chão
A certeza na frente
A história na mão

Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Aprendendo e ensinando
Uma nova lição

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
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A Voz da Resistência em 'Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores'
A música 'Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores', também conhecida como 'Caminhando', é uma das mais emblemáticas composições de Geraldo Vandré e um símbolo da resistência contra a ditadura militar no Brasil (1964-1985). Lançada em 1968, em pleno auge do regime autoritário, a canção se tornou um hino de protesto e esperança para uma geração que clamava por liberdade e democracia.

A letra da música é um convite à ação e à união. 'Caminhando e cantando e seguindo a canção' sugere um movimento coletivo de marcha, onde a música é o elo que une as pessoas na luta por um objetivo comum. A frase 'Quem sabe faz a hora, não espera acontecer' é um chamado à proatividade, incentivando os ouvintes a serem agentes de mudança em vez de meros espectadores da história. A referência às 'flores vencendo o canhão' é uma metáfora poderosa da não-violência e da força simbólica da resistência pacífica em contraste com a brutalidade das armas.

A canção também aborda a alienação dos soldados ('Há soldados armados, amados ou não, quase todos perdidos, de armas na mão'), que são ensinados a morrer pela pátria sem questionar o porquê, refletindo a crítica ao nacionalismo exacerbado e à manipulação dos militares. 'Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores' é, portanto, um marco da música de protesto brasileira, que transcendeu seu tempo e continua a ser um lembrete da importância da luta por direitos e liberdades fundamentais.

Carolina Ramos (Página Aberta)

Fruto de terna conversa, nasceu este conto não alheio à temática, porque envolve, como veículo de abertura, um casal de cães. A tal conversa aconteceu entre mãe e filha. A primeira redige estas linhas e, a segunda, na história por ela relatada, aparece, simplesmente, como: - "a moça dos cachorrinhos".

Mais realidade do que ficção, o conto leva o nome de "Página Aberta", que outra coisa não é, uma vez que, à mercê do imprevisível, as reticências substituem com maior propriedade o que deveria ser um ponto final.

PÁGINA ABERTA
(inspirado na narrativa da "moça dos cachorrinhos")

O céu, encapotado de cinza, ranzinzava um trovão, com cara de poucos amigos.

Juvenal desviou os olhos do mar e fixou-os nas nuvens carrancudas, a pressentir ser hora de voltar para casa. Não tinha relógio, mas vários indícios à sua volta mediam o tempo com precisão. Deveriam ser quase seis da tarde, afirmava o rabo-de-cavalo a pendular de lá para cá, ao ritmo dos passos da moça que "pastoreava" os dois cãezinhos sortudos, resgatados da rua pelo bom coração da futura dona. Dois cãezinhos bastante simpáticos – brancos, com manchas negras espalhadas pelo corpo – incontestável RG de "viralatice" explícita. Pedigree de ambos: - cão vaquinha ou paulistinha. Origem: - uma rua qualquer.

Ela: - Teca, a cadelinha - Olhos expressivos, baixinha, gordinha, meiguinha, merecedora de todos os inhas possíveis, de fato e de direito

Ele: - Nino, mais alto, mais magro, sempre tenso, sempre alerta, resmunguento, pouco afeito a carinhos - dentes pontiagudos, prontos a demonstrar a preferência pelas canelas de alguém surpreendido em descuido.

- Vale a digressão, porque Juvenal já conversara com a "moça dos cachorrinhos", por várias vezes, chegando mesmo a confidenciar-lhe algumas passagens de sua vida, tendo, também, oportunidade de conhecer de perto a história do festejado casal canino.

Naquela tarde, embora conhecendo o mau humor do Nino, Juvenal sentia, mais do que nunca, a necessidade de trocar ideias com alguém sensível. Precisava partilhar com a outrem a festa interior que o envolvia. A moça era receptiva. Aproximou-se dela.

" 0i! O Nino, hoje, ainda não atacou nenhum calcanhar? - A "moça dos cachorrinhos" sorriu: - Hoje ele está em paz com o mundo! A briga é com ele mesmo. Tomou banho com shampoo perfumado e perdeu as referências. Estranha o próprio cheiro! Por isso, está quieto, confuso... indiferente a quem passa.

Só então a moça prestou mais atenção no homem que, naquele dia, demonstrava apuro incomum - cabelos penteados, barba feita... e um brilho especial no olhar.

- E o senhor... como vai?

- Menina... amanhã vou ter um encontro muito importante! O mais importante encontro de toda minha vida!

- Soraya?!

- Isso mesmo, Soraya... a mulher da minha vida!

Nos encontros anteriores o nome Soraya já se fizera familiar. Para a "moça dos cachorrinhos", era nome bastante significativo. Sabia bem o que ele representava para aquele homem tenso, de emoções à flor da pele e de consciência pesada. Alguém que já lhe dera acesso espontâneo ao "site" de sua vida, onde estavam inclusos o casamento com Soraya, a felicidade curtida por algum tempo e, aquela separação absurda, que já se prolongava por, nada mais nada menos, que trinta e cinco longos anos!

Naquela infeliz tarde, distante e inexplicável, depois de uma rusga banal, tão comum entre pessoas que se querem bem, ele, homem impulsivo, num rompante, passara a mão nos pertences e deixara tudo para atrás! E, nesse tudo, incluía-se "a mulher da sua vida".

Juvenal fora cruel com Soraya e, mais ainda, consigo mesmo. Tão logo chegado o arrependimento, chegaram também o pudor e o medo do retorno. Como seria recebido? Teria direito ao perdão? Como reagiria a esposa, a sua "moleca", agora talvez de cabelos brancos? E os familiares?! Seria aceito?!

- Retorno abortado! - O que, sem mais palavras, explicam os trinta e cinco anos de separação.

Nesse meio tempo, muitas mulheres haviam tentado ocupar o lugar de Soraya no coração daquele homem arrependido, sem o conseguirem. Celeste até que chegou perto, mas, logo fora chamada à pátria que o próprio nome insinuava.

Uma vez mais, Juvenal resvalara para o abismo. Aos poucos, seus parcos valores se diluíram. Deu de beber. Bebeu muito! Degradou-se. Para quem se entrega a qualquer vício, o caminho da descida é por demais conhecido e bastante escorregadio. Desceu degrau por degrau. Perdeu o emprego, perdeu os documentos, perdeu os amigos e a própria identidade.

Chegara à mendicância! Só não conseguira ser desonesto! Seu anjo da guarda não estava de todo adormecido, salvara-o dessa fase terrível, por meio de uma bondosa assistente social, que não só lhe pôs os papéis em dia como lhe conseguiu até uma aposentadoria - modesta, mas suficiente para que recuperasse a dignidade. E ele - que em sua mocidade colecionara troféus conquistados no esporte em algumas maratonas - voltara, afinal, a acertar o passo.

Foi quando Soraya, a esposa abandonada, na impossibilidade de vender a casa, sem a assinatura do marido fujão, acabara por descobri-lo, após tantos anos de tenaz procura.

O primeiro encontro estava para acontecer no dia imediato.

A "moça dos cachorrinhos" entendeu, num relance, o tamanho da emoção e do conflito interior daquele homem inseguro, temente do que estava por vir e que ele era incapaz de adivinhar.

Uma semana depois, viriam à tona os pormenores daquele encontro.

Juvenal chegara ao endereço que o aguardava, mal contendo o nervosismo.

Ao toque da campainha, a porta fora aberta por uma mulher de mela idade, bonita ainda, cabelos tintos, ligeiramente aloirados e com aqueles olhos, meigos e tristes, que Juvenal tão bem conhecia.

Olhos tristes, sim... contudo, não acusadores. No instante em que os dois se fitaram, a ternura do olhar daquela mulher casou-se com a ansiedade do olhar recém-chegado.

- Jú! - murmurou ela, quase num sussurro.

- Soraya... Soraya, minha moleca!

Apesar da mútua ternura, Soraya evitou o beijo. Fugiu a contatos mais íntimos e deixou Juvenal cheio de grilos, sentindo-se rejeitado, apesar do bom acolhimento por parte da família.

Ao final do dia, após muita insistência e rejeição, a verdade veio à tona sob a forma de tristíssima revelação: - foi-lhe apresentado o resultado de um exame de laboratório. Em resumo; Soraya contraíra Aids mercê de um curto relacionamento. O parceiro unira-se a ela sem saber do mal que portava. Falecera há dois anos. Fato consumado!

Soraya botou para fora o drama do qual era protagonista, como um vulcão que vomitasse as próprias entranhas. Sentia a felicidade escapar-lhe novamente das mãos, como água a fugir-lhe por entre os dedos.

E as cinzas e lavas candentes, desse vulcão reativado, desabaram com violência sobre a alma aturdida daquele homem sacudido pelos soluços.

Juvenal acovardou-se. Não sabia o que dizer, nem tampouco o que pensar. Uniu suas lágrimas às de Soraya e, como bom desportista, acabou por pedir tempo. Precisava pensar! Pensar profundamente, longe de tudo e de todos... Antes de qualquer resolução!

Quinze dias bastaram para que aquele homem se decidisse:

- Por motivo algum, renunciaria ao amor de Soraya pela segunda vez! A ciência, evoluindo a cada dia... Os recursos multiplicando-se com ela... Deveria haver uma solução! A curto ou a longo prazo... deveria, sim! Mas... que espera duvidosa e cruel!

- Para aquele homem, contudo, uma coisa era absolutamente certa; - Sem dúvida alguma, queria a sua "moleca" de volta! A qualquer preço! Fosse como fosse! Para o que desse e viesse... e até que a morte os separasse! Igual ao que haviam prometido, num certo dia, à frente ao altar!

Mal ou bem, Juvenal escrevera a história de sua vida. Chegava, agora, ao capítulo decisivo!

As últimas e definitivas linhas deste relato ficam em branco... a serem completadas pelo próprio destino.

Deus pingará o ponto final na derradeira página. E a Sua misericórdia, então, a assinará…

Fonte> Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Olavo Bilac (Poesias para crianças) - 3


AS FORMIGAS

Cautelosas e prudentes,
O caminho atravessando,
As formigas diligentes
Vão andando, vão andando...

Marcham em filas cerradas;
Não se separam; espiam
De um lado e de outro, assustadas,
E das pedras se desviam.

Entre os calhaus vão abrindo
Caminho estreito e seguro,
Aqui, ladeiras subindo,
Acolá, galgando um muro.

Esta carrega a migalha;
Outra, com passo discreto,
Leva um pedaço de palha;
Outra, uma pata de inseto.

Carrega cada formiga
Aquilo que achou na estrada;
E nenhuma se fatiga,
Nenhuma para cansada.

Vede! enquanto negligentes
Estão as cigarras cantando,
Vão as formigas prudentes
Trabalhando e armazenando.

Também quando chega o frio,
E todo o fruto consome,
A formiga, que no estio
Trabalha, não sofre fome...

Recorde-vos todo o dia
Das lições da Natureza:
O trabalho e a economia
São as bases da riqueza.
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JUSTIÇA

Chega a casa, chorando, o Oscar. Abraça
Em prantos a Mamãe.
“Que foi, meu filho?”
—“Sucedeu-me, Mamãe, uma desgraça!
Outros, no meu colégio, com mais brilho,
Tiveram prêmios, livros e medalhas...
Só eu não tive nada!”

—“Mas porque não trabalhas?
Por que é que, a uma existência dedicada
Ao trabalho e ao estudo,
Preferes os passeios ociosos?
Os outros, filho, mais estudiosos,
Pelas suas lições desprezam tudo...
Pois querias então que, vadiando,
Os outros humilhasses,
E que, os melhores prêmios conquistando,
Mais que os outros brilhasses?
Para outra vez, ao teu prazer prefere
O estudo! e o prêmio alcançarás sem custo:
E aprende: mesmo quando isso te fere,
É preciso ser justo!”
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MEIA-NOITE

O filho:
Ó Mamãe! quando adormecem
Todos, num sono profundo,
Há mesmo almas do outro mundo,
Que aos meninos aparecem?

A mãe:
Não creias nisso! É tolice!
Fantasmas são invenções
Para dar medo aos poltrões:
Não houve ninguém que os visse.

Não há gigantes nem fadas,
Nem gênios perseguidores,
Nem monstros aterradores,
Nem princesas encantadas!

As almas dos que morreram
Não voltam à terra mais!
Pois vão descansar em paz
Do que na terra sofreram.

Dorme com tranquilidade!
— Nada receia, meu filho,
Quem não se afasta do trilho
Da Justiça e da Bondade.
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MEIO-DIA

Meio-dia. Sol a pino.
Corre de manso o regato.
Na igreja repica o sino;
Cheiram as ervas do mato.

Na árvore canta a cigarra;
Há recreio nas escolas:
Tira-se, numa algazarra,
A merenda das sacolas.

O lavrador pousa a enxada
No chão, descansa um momento,
E enxuga a fronte suada,
Contemplando o firmamento.

Nas casas ferve a panela
Sobre o fogão, nas cozinhas;
A mulher chega à janela,
Atira milho às galinhas.

Meio-dia! O sol escalda,
E brilha, em toda a pureza,
Nos campos cor de esmeralda,
E no céu cor de turquesa...

E a voz do sino, ecoando
Longe, de atalho em atalho,
Vai pelos campos, cantando
A Vida, a Luz, o Trabalho.
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O OUTONO

Coro das quatro estações:
Há tantos frutos nos ramos,
De tantas formas e cores!
Irmãs! enquanto dançamos,
Saíram frutos das flores!

O Outono:
Sou a estação mais rica:
A árvore frutifica
Durante esta estação;
No tempo da colheita,
A gente satisfeita
Saúda a Criação,

Concede a Natureza
O premio da riqueza
Ao bom trabalhador,
E enche, contente e ufana,
De júbilo a choupana
De cada lavrador.

Vede como o galho,
Molhado inda de orvalho,
Maduro o fruto cai...
Interrompendo as danças,
Aproveitai, crianças!
Os frutos apanhai!

Coro das quatro estações:
Há tantos frutos nos ramos,
De tantas formas e cores!
Irmãs! enquanto dançamos,
Saíram frutos das flores!
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O REMÉDIO

A Amelinha está doente,
Chora, tem febre, delira;
Em casa, está toda gente
Aflita, e geme, e suspira.

Chega o médico e a examina.
Tocando a fronte abrasada,
E o pulso da pequenina,
Diz alegre: “Não é nada!

Vou lhe dar uma receita.
Amanhã, o mais tardar,
Já de saúde perfeita
Há de sorrir e brincar.”

Vem o remédio. Amelinha
grita, faz manha, esperneia:
O pai se avizinha,
Mostrando-lhe a colher cheia:

“Toma o remédio, querida!
Dar-te-ei como recompensa,
uma boneca vestida
De seda e rendas, imensa...”

“— Não quero!”
Chega a titia:
“Amélia é boa, não é?
Se fosse boa, teria
Toda uma arca de Noé...”

“— Não quero!”
Prometem tudo:
Livros de figuras cheios,
Um vestido de veludo,
Brinquedos, joias, passeios...

Teima Amelinha, faz manha.
E diz o pai, já com tédio:
“— Menina! você apanha,
Se não toma este remédio!”

E nada! a menina grita,
Sem querer obedecer.
Mas nisto, a mamãe aflita,
Põe-se a gemer e a chorar.

Logo Amelinha, calada,
Mansa, a colher segurando,
Sem já se queixar de nada,
Vai o remédio tomando.

“—Então? mau gosto sentiste?”
Diz o pai... E ela, apressada:
“— Para não ver mamãe triste,
Não sinto mau gosto em nada!”
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Fonte> Olavo Bilac. Poesias Infantis. RJ: Francisco Alves. 1929. Disponível em Domínio Público 

Geraldo Pereira (Um Pierrô Apaixonado)

Onde estão os antigos pierrôs apaixonados, que nas ruas estreitas deste Recife de todos os amores cantavam e decantavam os sentimentos e os desejos pelas colombinas de seus devaneios? Ou que protagonizaram: “Histórias de amor assim/Assim!/...”. Encantaram-se, certamente, desapareceram nas brumas do tempo, nas nuvens de todas as folias, levando na face, sem a máscara já, a lágrima pendente das saudades e das lembranças! Indefinido semblante daqueles que amam e que não merecem mais, da idolatrada musa da paixão desesperada, um olhar sequer, capaz de aplacar os sonhos nunca oníricos. Não há remédio pra essa cura, não há unguento suficiente para sarar a ferida das frustrações do amor, aberta sempre com o aflorar das lembranças. Basta um acorde que seja, uma nota de Nelson, reavendo “Felinto/Pedro Salgado/Guilherme/Fenelon/...” para fazer aflorar na memória imagens ainda guardadas a sete chaves, momentos de intensidade rara, minutos, às vezes, de muitos afetos. Afagos rarefeitos nas nuvens do ontem, declarações paridas em rompantes do coração em fogo, incêndio das paixões.

“Agora chora pierrô/É tua sina/A sina de pierrô é chorar por colombina/...” E por certo os fantasmas desses apaixonados, nostálgicos sofredores em perpetuidades das lembranças, vagam ainda nas noites de Carnaval, perseguindo roteiros de antigos corsos em automóveis de fumaça, buscando aqui e ali, como alhures, ósculos perdidos da amada no éter das ilusões! Levantam as mãos, fluidas quase, para captar mensagens assim, de beijos jogados, roubados também, lançados no estirar lúdico das serpentinas que se desfazem, estirando-se em longos vínculos das fragilidades dos amores. Ou baixam a cabeça, esperando confetes coloridos das esperanças de todos os reatamentos, impossíveis já! 

Nada mais resta, nem pode restar, senão as asas do imaginário que refazem convívios! Vivências e convivências da fantasia, felicidades do efêmero! E nos sulcos que marcam as faces dos fantasmas, caminhos dos desesperos, rolam silentes solitárias lágrimas, lentamente.

E os palhaços, vestidos de branco ou de amarelo, com as bolas da negritude, que simbolizavam por certo o luto das irreparáveis perdas, dançavam nas ruas o passo das ilusões, fazendo a coreografia das alegrias, quando estavam de coração dilacerado, escondendo nas máscaras o semblante das angústias e a fisionomia das ansiedades! Aquele rítmico tocar das castanholas, pungente como a despedida dos amantes, era o pranto derradeiro do estabelecido adeus! Faziam de conta que gostavam do alvoroço das crianças, dos meninos e das meninas fazendo o coro da alegria, mas por dentro sofriam loucamente, como os largados pela vida e pelos amores. 

Quando a quarta-feira das ingratidões chegava, tiravam a máscara de pano, como se estivessem fechando a grande cortina do palco e voltavam para as coxias, condenados a mais um ano de realidades, nuas e cruas, como tem sido a vida de tantos! E a colombina encantou-se, também, desapareceu da roda, dos amores e das alegrias.

Fonte: Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público

Hinos de Cidades Brasileiras (Sumaré/SP)

Compositor: Oswaldo Urban


Contemplando o passado distante,
Estendido no chão da memória,
Encontramos o passo imigrante
Iniciando um caminho de glória

Sobre o solo fecundo o labor
Semeou a sementes de fé
Das sementes nasceu uma flor
E esta flor se chamou Sumaré

Esse tempo escreveu a saudade
A esperança no sonho floriu
Hoje, bela, fulgura a cidade
Que a paisagem do amor coloriu

Nas escolas as crianças aprendem,
Soletrando o abc do amanhã
São luzes que risos acendem
São os sóis de uma nova manhã

Do passado fechada cortina
Hoje olhando o progresso fulgir
Nossa vista, feliz, descortina
O horizonte dum grande porvir

No ideal a colmeia formou-se
Sob o lema de paz e união
E o trabalho febril transformou-se
Numa doce e formosa canção

Sílvio Romero (O cágado e a fruta)

Diz que foi um dia, havia no mato uma fruta que todos os bichos tinham vontade de comer, mas era proibido comer a tal fruta sem primeiro saber o nome dela. Todos os animais iam à casa de uma mulher que morava nas paragens onde estava o pé de fruta, perguntavam a ela o nome, e voltavam para comer, mas quando chegavam lá não se lembravam mais do nome. Assim aconteceu com todos os bichos que iam e voltavam, e nada de acertar com o nome. Faltava somente o amigo cágado. Os outros foram chama-lo para ir por sua vez. Alguns caçoavam muito, dizendo:

 — Quando os outros não acertaram, quanto mais ele!

O amigo cágado partiu munido de uma violinha, e quando chegou na casa da mulher perguntou o nome da fruta. Ela disse:

 — Boyoyô-boyoyôquizamaquizu, boyoyô-boyoyôquizamaquizu.

Mas a mulher, depois que cada bicho ia-se retirando já em alguma distância, punha-se de lá a bradar:

 — Ó amigo tal, o nome não é esse, não!

E dizia outros nomes; o bicho se atrapalhava, e quando chegava ao pé de fruta não sabia mais o nome. 

Com o cágado não foi assim, porque ele deu de mão à sua violinha, e pôs-se a cantar o nome até ao lugar da árvore, e venceu a todos. Mas a amiga onça, que já lá estava à sua espera, disse-lhe:

 — Amigo cágado, você como não pode trepar, deixe que eu trepe para tirar as frutas, e você em paga me dá algumas.

O cágado consentiu, ela encheu o seu saco e largou-se sem lhe dar nenhuma. O cágado, muito zangado, largou-se atrás. Chegando os dois a um rio, ele disse à onça:

 — Amiga onça, aqui você me dê o saco para eu passar, que sou melhor nadador, e você passa depois.

A onça concordou, mas o sabido, quando se viu no outro lado, sumiu, ficando a onça lograda. 

Esta formou um plano de o matar. Ele soube e meteu-se debaixo de uma raiz grande de árvore onde ela costumava descansar. Aí chegada, pôs-se ela a gritar:

 — Amigo cágado, amigo cágado!

O sabido respondia ali de pertinho:

 — Oi.

A onça olhava de um lado e de outro e não via ninguém. Ficou muito espantada, e pensou que era o seu traseiro que respondia. Pôs-se de novo a gritar, e sempre o cágado respondendo:

 — Oi!

E ela:

 — Cala a boca, traseiro! — e sempre a coisa ia para diante.

O amigo macaco veio passando, e a onça lhe contou o caso da desobediência de seu traseiro e lhe pediu que o açoitasse. 

O macaco tanto executou a obra que a matou. Deu-se então o cágado por satisfeito.

Fonte> Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado em 1883. Disponível em Domínio Público 

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 27

 

Mensagem na Garrafa = 113 =

Antero Jerónimo
Lisboa/Portugal

Se um dia, sem opção, precisares fechar a porta
certifica-te que deixas um sorriso sereno nesse libertar.
Um cantinho na casa que ficará por ocupar
mas que de tão preenchido com o teu vazio, 
jamais caberá em um outro lugar.
Não terás habitado o espaço em vão
ocupas espaço em um outro coração 
almas gémeas bafejadas pela vida em feliz benção.
Certifica-te que fechas a porta devagar, de mansinho
antes de continuares a fazer o teu caminho. 
Sê apenas em essência, não menos que isso
sentirás esse momento em grato deslumbramento
mesmo que role uma furtiva lágrima de emoção. 
Não te diminui, só te vai acrescentar
sê apenas verdadeiro quando outra alma conseguires tocar.

Fonte> Facebook do poeta

Antonio Brás Constante (Sozinho em casa...[Liberdade ou prisão?])

Ficar sozinho em casa nem sempre é muito fácil para quem já constituiu uma família. A esposa e os filhos vão para praia e você fica inteiramente sozinho em sua morada, já que a temporada de praias é maior que suas férias. Muitos dizem que este é um momento de liberdade. Mas às vezes, os fatos dizem outra coisa.

A pior parte de se ficar sozinho é o nosso “eu” interior, que teima em querer ter conosco os tais “papos cabeça”, justamente quando sentamos na frente da televisão com nosso copo de cerveja. Você tenta convencê-lo a esperar a hora dos comerciais, mas ele conhece-o muito bem, afinal está dentro de você. E não lhe deixa em paz até pararem para conversar. Uma auto-reflexão indesejada sobre sua vida. Fazendo-o pensar que morar sozinho consigo mesmo, é uma tortura.

Além de ter que dividir o espaço com sua “consciência”, ainda tem as tarefas do lar para executar. Por exemplo: Todo dia passa várias vezes pela pia, e a encontra cada vez mais cheia de louça suja. Você faz uma carranca para aquele amontoado de copos, pratos, panelas e talheres. Na esperança de intimidá-los e persuadi-los a se lavarem sozinhos, e depois irem se alojar em suas devidas gavetas. Com seus filhos esse procedimento quase sempre funciona. Uma olhada séria é o suficiente para eles irem tomar banho e se deitar. Mas a louça não parece muito incomodada com suas rugas de preocupação e fica ali como se o assunto não fosse com ela.

Outro problema é a TV. Não consegue ficar mais do que dez segundos olhando um mesmo programa. Nestas horas sua esposa funcionava como um moderador, que após a terceira mudança de canal lhe xingava e mandava por na novela. Agora sozinho você fica resmungando para si mesmo, mas não adianta. Viaja por todos os canais umas dez vezes e desiste da televisão.

Resolve procurar seus chinelos, mas as coisas ao seu redor parecem se esconder de você. Não encontra nada. Só achou o controle remoto porque sua esposa conseguiu convencê-lo a deixa-lo sempre em um mesmo lugar. Tal ideia lhe faz pensar se isto não seria o mesmo processo de adestramento utilizado em cães, mas acha melhor esquecer essa linha de pensamento.

No caso da comida a situação é bem mais tranquila, já que inventaram as tele-entregas. Sua dieta alimentar passa a ser à base de pizza, xis e cachorro-quente. O vestuário também é escolhido de forma casual. Você vai passando pelas roupas jogadas pelo chão, e as que ficarem presas aos seus pés acabam sendo escolhidas para vestir.

E assim as noites vão passando (já que os dias são propriedade de sua empresa). Fica a perambular pela casa feito uma alma penada, procurando imaginar que espécie de liberdade é esta que lhe torna escravo da solidão. Por fim sua família volta, ou suas férias chegam, e você parte alegre e feliz ao encontro de sua prisão.

Vasco Mousinho de Quebedo (Poesia sem fronteiras) = 2


SONETO X

Quais no soberbo mar à nau, que cansa
Lidando c'os assaltos da onda e vento,
Os Bálios* irmãos do Etéreo assento
Lhe confirmam do porto a esperança,

Tal vossa vista ao tempo, que se alcança
Desta, que não tem mor contentamento,
No mar de meu cuidado e meu tormento
Mil esperanças cria de bonança.

Comparação, conforme a causa, ufana,
Pois quando um me aparece, outro se esconde,
Como no Céu faz u'a, e outra estrela.

Iguais também no Amor, que em vós responde
Também no desamor da Irmã Troiana,
Que ambos vos conjurais em ódio dela.
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Bálios = Na mitologia grega, Xantos e Bálios eram dois cavalos sendo imortais, filhos do deus-vento Zéfiro e da harpia Podarge. Xantos e Bálios foram presenteados a Peleu, pai de Aquiles, por Poseidon, em seu casamento. 
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SONETO XI

Lá nua estranha e solitária terra,
De gente e nação bárbara habitada,
O metal nobre não se estima em nada
Que embalde seu valor e preço encerra.

Ouro, com que se arreia e move guerra
A corações, a Dama delicada,
Serve lá de grilhão, que em apertada
Corrente a malfeitores fecha e cerra.

Nasce esta confusão e diferença
Do muito que uns o seu valor alcançam,
E do pouco que de outros se conhece.

Julguem do Sol, e sua glória imensa
Os olhos d'Águia, já que todos cansam,
Que só para tais olhos resplandece.
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SONETO XV

Triste do que em tristeza passa o dia,
Feliz porém, se a passa, e enfim lhe passa,
Mas quem ventura teve tão escassa
Que em nada ache prazer nem alegria.

Nos ais, alívio tem quem n'alma os cria,
A quem em trevas vive, a luz dá graça,
Há quem do fogo e Sol se satisfaça,
E quem se satisfaça d'água fria.

Restaura o ar, na calma, o fraco alento,
Conforta o cheiro de u'a flor suave,
Convida a sombra, a erva a grato assento,

Suspende da Ave o canto a pena grave;
Ai que não aliviam meu tormento
Ais, luz, Sol, fogo, água, ar, flor, sombra, erva, Ave.
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SONETO XVI

Já tramontado o Sol do assento puro,
Debuxadas se veem no claro rio
As seis filhas de Atlante pelo estio,
Cobre-se Electra, só, de um manto escuro.

Já que com tanto risco me aventuro,
E sou tachado por escuro e frio,
Mostrem-se todos, que eu num só desvio
De vergonha escondido estar procuro.

Mas bem sabeis, engenho ilustre e nobre,
Que inda que o lavrador bárbaro veja
Que não são mais que seis estas estrelas,

O Astrólogo sábio, que descobre
Mais avante e co'a vista além peleja,
Diz que são sete, esconde-se u'a delas.
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SONETO XVIII

Quem quiser que seus ais o vento leve,
Quem quiser levantar nas águas torre,
Quem semear nas praias onde morre
E onde jamais ser o trigo teve.

Morra por vós, que na constância breve
Sois como folha, que c'o vento corre
Só constante em meu mal, porque me forre
De cuidar que sereis 'té nisto leve.

Suspiros de minha alma a quem vos dei,
Dei-vos suspiros meus ao leve vento?
Que foi de vós ó lágrimas cansadas?

Assaz pago fiquei com meu tormento,
Já que outro bem por vós não alcancei,
O bem me fica de vos ter choradas.
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SONETO XIX

Qual mísera Calisto, quando atenta
Que abrindo o dia vão ao largo estanho
As mais estrelas a seu doce banho,
Só com seu Plaustro só ficar lamenta,

Tal, quando me a memória representa
Banharem-se outros nesse mar estranho,
De graças mil gozando bem tamanho,
A falta dessa glória me atormenta.

E como inda que irada Juno a tolha
Descer ao mar, não deixa em noite clara
Ferir nele seus raios do alto assento,

Assim, por mais que a sorte em tudo avara
Para si deste corpo a parte escolha,
Livre, porém, me fica o pensamento.

Fonte> http://www.sonetos.com/biografia.php-a=39.htm (site desativado). Acesso em 15.01.2016