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segunda-feira, 14 de abril de 2025

Contos e Lendas do Mundo (Coréia) O cão em sua busca pela luz

Era uma vez, num mundo bem distante, havia um planeta chamado Terra da Escuridão. Como o nome mesmo diz, não havia luz alguma ali, e a noite era perpétua. As pessoas dali eram acostumadas à escuridão e tinham os sentidos da audição e do olfato muito desenvolvidos, também sua percepção espacial era muito aguçada. Mas a verdade era que apesar de conseguirem viver suas vidas sem luz, as pessoas eram muito infelizes e deprimidas. Estavam cansadas daquela escuridão infindável. E eles diziam:


– Como eu gostaria que houvesse luz!

– Ah, se tivéssemos dia e noite, e não só noite!

– A vida seria muito melhor se tivéssemos um pouco de luz!

É claro que o Rei da Terra da Escuridão também desejava a luz e começou a observar a Terra, que tinha seu sol e sua lua, portanto tinha luz de dia e à noite. Pensou que por termos duas fontes de luz, levar uma delas para o seu mundo não nos faria tanta falta assim.

Acontece que na Terra da Escuridão havia uma imensa população de cães. Todos tinham um cão em casa, mas entre todos aqueles cães, havia um que era excepcional. Esse cão era grande, forte, de pelos espessos e de uma inteligência fora do comum. Além de todas essas qualidades, ele também possuía um focinho gigantesco. E seu focinho não só era gigante, como também suportava o contato com extremo frio e extremo calor. 

Aquele cão carregava em seu focinho até mesmo bolas de fogo, e por isso, seu nome era Bola de Fogo. O Bola de Fogo também era dotado das quatro patas mais ágeis de todo o planeta, e corria milhares de milhas num piscar de olhos.

Um certo dia, o Rei teve uma ideia, “Vou mandar o Bola de Fogo à Terra dos Homens para trazer aquele sol para o nosso mundo”. E assim o fez.

O povo já festejava a vitória do Bola de Fogo antes mesmo de ele partir em sua jornada. E assim que os preparativos foram feitos, Bola de Fogo partiu. A jornada era longa e o cão não parou sequer para descansar, e em pouco mais de dois anos, chegou ao sol.

Bola de Fogo abriu seu enorme focinho e cravou seus dentes no sol, tentando arrancá-lo do nosso céu. Mas ele simplesmente não conseguiu suportar tal calor por muito tempo. Humilhado, retornou ao seu mundo.

O Rei pensou, “Se o sol é quente demais para o Bola de Fogo, talvez a lua seja possível. E mandou Bola de Fogo buscar a lua. E Bola de Fogo voltou, confiante de que a lua ele conseguiria trazer, feliz em poder ajudar o povo de seu mundo.

Quando chegou à lua, cravou seus dentes e tentou arrancá-la de nosso céu, mas a lua era fria demais e seu corpo não suportava tamanho frio. Então cuspiu a lua de volta e voltou ao seu mundo, mais uma vez, derrotado.

Quando o Rei viu que ele havia falhado mais uma vez, ficou muito desapontado, mas não desistiu da ideia de que Bola de Fogo seria o único capaz de atingir seu objetivo.

E Bola de Fogo continuou, vez após vez, a voltar ao sol e depois à lua, tentando levá-los ao seu mundo para alegrar seu povo e agradar ao seu Rei, mas todas as tentativas foram em vão. Aliás, até hoje, Bola de Fogo continua viajando os céus e abocanhando a lua e o sol. 

Hoje, ele está velho, já não é tão forte ou veloz como um dia foi, mas ele não desiste. E cada vez que Bola de Fogo crava seus dentes com seu enorme focinho no sol ou na lua, um eclipse acontece. Por poucos instantes, ele sente que sua lealdade será recompensada, mas a dor é tamanha que a preservação de sua própria vida entra em jogo. E ele sabe que sua vida é importante e a preza por saber que um dia ele conseguirá honrar o pedido de seu Rei e levar a luz ao seu tão amado povo – Bola de Fogo é um verdadeiro herói.

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

sábado, 12 de abril de 2025

Bento Serrano (Gratidão de um filho, ingratidão de outro)

Quem reparar um pouco, há de ver muitas vezes que o homem na velhice é tratado por seus filhos exatamente do mesmo modo, como ele havia tratado seus pais, quando eram velhos e já sem forças. E isto compreende-se bem. Os filhos aprendem com os pais; não veem, nem ouvem mais ninguém, e por isso seguem o seu exemplo. Assim se verifica naturalmente o que tantas vezes se diz, e está escrito: “a benção e a maldição dos pais vem cair sobre os filhos.”

Ouçamos agora duas histórias que se contam a propósito disto: a primeira é digna de imitação; a segunda merece ser muito meditada.

Uma vez um certo príncipe foi dar um passeio a cavalo, encontrou-se com um camponês diligente e alegre, que andava a trabalhar em um campo, e pôs-se a conversar com ele.

Dali a alguns dias soube o príncipe que o campo não era propriedade daquele homem, o qual não passava de um jornaleiro que pela módica quantia de três tostões por dia cuidava do seu amanho. 

O príncipe, que para os pesados encargos do governo precisava de enormíssimas somas, não podia compreender como três tostões diários eram meios bastantes para o nosso homem viver, e de mais a mais de rosto tão alegre. 

Este porém respondeu-lhe: “Nada me faltaria, se eu pudesse dispor de todo esse dinheiro: a terça parte chega-me bem; com um terço pago as minhas dívidas e a terça parte restante pertence às minhas economias.” 

O bom do príncipe ficou ainda mais admirado. Mas o camponês continuou: “O que tenho, reparto-o com meus pais, que são velhos e já não podem trabalhar, e com meus filhos, que andam por ora a aprender; àqueles pago-lhes o amor com que me trataram na minha infância, e destes espero que não me abandonarão também na minha cansada velhice.” 

Verdade que tudo isto foi muito bem dito, e ainda melhor pensado, e ainda muito melhor executado? O príncipe recompensou aquele homem de bem, olhou com desvelo pelos filhos, e a benção que os pais lhe lançaram ao morrer, foi-lhe retribuída pelos filhos agradecidos com amor e amparo.

Havia porém outro homem que tratava tão mal seu pai, a quem a idade e as doenças tinham na verdade tornado impertinente, que o velhinho mostrou desejos de entrar em um hospital de pobres, que havia na mesma aldeia. Ali esperava ele, apesar do pouco afeto, pelo menos ver-se livre das repreensões que em casa lhe amarguravam os últimos dias da vida. 

O filho ingrato saltou de contente apenas soube dos desejos do pobre velho, e ainda antes de o sol se esconder por detrás das montanhas vizinhas, já eles estavam satisfeitos. Mas no hospital não encontrou ele tudo quanto desejava, e passado algum tempo pediu ao filho, como último favor, que lhe mandasse dois lençóis, para não ter de dormir toda a noite na palha fria. Procurou este os piores que tinha, e chamando seu filho, criança de dez anos, ordenou-lhe que os levasse ao hospital.

Ficou porém admirado ao ver que o pequeno escondia a um canto um dos lençóis e só levava ao avô o outro; e apenas ele veio, perguntou-lhe porque tinha feito aquilo. O filho respondeu friamente que tinha guardado um dos lençóis para o dar ao pai, quando mais tarde o mandasse para o hospital.

Que lição tiramos daqui?
Honra teu pai e tua mãe, para que sejas feliz.
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BENTO SERRANO nasceu em Portugal, em meados do século XIX e faleceu em 1939. Foi um astrólogo, escritor e ativista republicano. Ferrenho defensor do republicanismo, produzindo diversos periódicos publicados pela Editora Livraria Portuguesa em prol da república e contra a monarquia em seu país. Retirou-se para uma gruta na região de Serra da Estrela em Portugal, onde montou seu improvisado gabinete de estudos astronômicos e astrológicos, dedicando grande parte da sua vida ao estudo dos astros e à recolha da sabedoria tradicional e popular portuguesa. É autor de diversos livros esotéricos e de sabedoria popular, tendo publicado diversos almanaques e outros periódicos a partir de 1883 até o ano de sua morte em 1939. Conhecido por sua habilidade em misturar elementos de mistério e fantasia com uma narrativa envolvente. Oráculo do passado, do presente e do futuro, é uma das mais completas obras sobre "o verdadeiro modo de aprender no passado a prevenir o presente, e a adivinhar o futuro".

Fontes:
Bento Serrano. Oráculo do Passado, Presente e Futuro. vol. VII: O oráculo da mágica. Publicado originalmente em 1883. Disponível em Domínio Público.  
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Sílvio Romero (A onça e o bode)


(Folclore do Sergipe)

UMA VEZ A ONÇA QUIS FAZER UMA CASA; foi a um lugar, roçou o mato para ali fazer a sua casa. O bode, que também andava com vontade de fazer uma casa, foi procurar um lugar, e, chegando no que a onça tinha roçado, disse: “Bravo! Que belo lugar para levantar a minha casa!” 

O bode cortou logo umas forquilhas e fincou naquele lugar, e foi-se embora. 

No dia seguinte a onça lá chegando, e vendo as forquilhas fincadas, disse: “Oh! Quem me está ajudando?! Bravo, é Deus que está me ajudando!”  Botou logo as travessas nas forquilhas, e a cumeeira, e foi-se. 

O bode, quando veio de novo, admirou-se e disse: “Oh! Quem está me ajudando?! É Deus que está me protegendo.” Botou logo os caibros na casa, e foi-se. 

Vindo a onça, ainda mais se espantou, e botou as ripas e os enchimentos e retirou-se. O bode veio, e varou a casa e foi-se. A onça veio e a cobriu. O bode veio e tapou. 

Assim foram, cada um por sua vez, e aprontaram a casa. Acabada ela, veio a onça, fez a sua cama e meteu-se dentro. 

Logo depois chegou o bode, e, vendo a outra, disse: “Não, amiga, esta casa é minha, porque fui eu quem finquei as forquilhas, botei os caibros, varei, e tapei.” 

— “Não, amigo”, respondeu a onça, “a casa é minha, porque fui eu que rocei o lugar, botei as travessas, a cumeeira, as ripas, os enchimentos, e o sapé.”

Depois de alguma questão, a onça, que estava com vontade de comer o bode, disse: “Mas não haja briga, amigo bode, nós dois podemos ficar morando na casa.” 

O bode aceitou, mas com muito medo. O bode armou a sua rede bem longe do jirau da onça. 

No outro dia a onça disse: “Amigo bode, quando você me vir frangir o couro da testa, eu estou com raiva, tome sentido!” 

— “Eu, amiga onça, quando você me vir balançar as minhas barbinhas ali nas goteiras e dar um espirro, você fuja, que eu não estou de caçoada.” 

Depois a onça saiu, dizendo que ia buscar de comer. Lá, por longe de casa, pegou um grande bode e, para fazer medo ao seu companheiro, matou-o, e entrou com ele pela casa adentro. Atirou-o no chão e disse: “Está, amigo bode, esfole e trate para nós comer.” 

O bode, quando viu aquilo, disse lá consigo: “Quando este, que era tão grande, você matou, quanto mais a mim!” 

No outro dia ele disse à onça: “Agora, amiga onça, quem vai buscar de comer sou eu.” 

E largou-se. Chegando longe, avistou uma onça bem grande e gorda, disfarçou e pôs-se a tirar cipós no mato. A onça veio chegando, e, vendo aquilo, disse: “Amigo bode, para que tanto cipó?” 

— “Fum! Para quê?! O negócio é sério, trate de si... O mundo está para acabar, e é com dilúvio...” 

— “O que está dizendo, amigo bode?” 

— “É verdade; e você, se quiser escapar, venha se amarrar, que eu já me vou.” 

A onça foi, e escolheu um pau bem alto e grosso, e pediu ao bode para que a amarrasse. O bode enleou-a perfeitamente, e, quando a viu bem segura, meteu-lhe o cacete como terra, até matá-la. Depois arrastou-a; chegou em casa, largou-a no chão, dizendo: “Está; se quiser esfole e trate.”

A onça ficou espantada e com medo. Ambos dois temiam um ao outro.

Num dia o bode pôs-se junto das biqueiras, tomando fresco; olhou para a onça, e ela estava com o couro da testa frangido. Ele teve receio e abalou as barbas, e largou um espirro. A onça pulou do mundéu e largou na carreira, o bode também abriu o pano. Ainda hoje correm cada um para o seu lado.
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SÍLVIO VASCONCELOS DA SILVEIRA RAMOS ROMERO (1851-1914) foi crítico e historiador da literatura brasileira. Fundador da Academia Brasileira de Letras. Pensador social, folclorista, poeta, jornalista, professor e político. Era sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Nasceu na vila de Lagarto, Sergipe, 1851. Em 1868 mudou-se para o Recife e ingressou na Faculdade de Direito. Polêmico, combativo e contraditório, foi influenciado por seu conterrâneo Tobias Barreto. Juntos, lideravam uma escola que reunia jovens inteligentes e destemidos, que se encarregavam de irradiar as recentes ideias vindas da França. Quando estava no 2. Ano da faculdade, Sílvio Romero colaborou com vários jornais. Em 1873 concluiu o curso de Direito. Em 1876 mudou-se para o Rio de Janeiro onde obteve a cátedra de filosofia. Romero foi também professor da Faculdade Livre de Direito e da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Como poeta, teve uma breve carreira. O primeiro livro de poemas foi Cantos do Fim do Século, lançado em 1878, em uma tentativa de aderir poesia filosófica científica que pregava desde 1870 em artigos, mas que não obteve êxito. Em 1883 publicou Últimos Arpejos, seu segundo e último volume de poesia. Desenvolveu intensa atividade como escritor. Escreveu vários livros que abordavam praticamente tudo que se referia à realidade cultural brasileira como: filosofia, literatura, folclore, educação, política e religião. Publicou assuntos ligados à cultura popular revelando-se um grande folclorista. Escreveu sobre filosofia no Brasil e sobre escolas filosóficas diversas. Em 1878 escreveu Filosofia no Brasil, publicado em Porto Alegre. Sua obra História da Literatura Brasileira (1888), em dois volumes, menos uma história literária do que uma enciclopédia de conhecimentos sobre o Brasil, a origem e evolução de sua cultura, suas raízes sociais e técnicas, foi considerada sua obra mais revolucionária. Deixou uma vasta obra culturalmente valiosa e pioneira em muitos aspectos. Respeitado pela imprensa nacional, conquistou seu lugar como um dos mais importantes críticos e historiadores da literatura brasileira do século XIX. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1914.

Fontes:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1883.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Contos das Mil e Uma Noites (O homem que queria ser califa por um dia)

Conta-se, ó rei afortunado, que havia em Bagdá um jovem solteiro chamado Abu-Hassan. Seus vizinhos nunca o viram convidar alguém por dois dias seguidos ou convidar alguém de sua própria cidade. Todos os que visitavam sua casa eram estrangeiros. Não compreendendo seu comportamento, chamaram-no Abu-Hassan o Excêntrico. 

Todas as tardes, ia esperar na ponte de Bagdá. Quando avistava um estrangeiro, rico ou pobre, jovem ou velho, apresentava-se a ele com um sorriso urbano e rogava-lhe aceitar a hospitalidade na primeira noite de sua permanência em Bagdá. Levava-o para sua casa, tratava-o  com generosidade e distinção e agradava-o com sua conversação viva e espirituosa. Mas na manhã seguinte, dizia-lhe: “Jurei nunca convidar um estrangeiro por dois dias seguidos, fosse o mais encantador dos filhos dos homens. Por isso, vejo-me obrigado a separar-me de ti e até peço-te, se alguma vez nos encontrarmos nas ruas de Bagdá, que finjas que não me conheces.” Com essas palavras, Abu-Hassan conduzia o hóspede a um khan da cidade e despedia-se dele para sempre. 

Durante muito tempo, Abu Hassan procedeu assim, hospedando um estrangeiro diferente cada noite. Uma tarde, estava na ponte de Bagdá quando viu chegar um rico mercador vestido à maneira dos mercadores de Mossul e seguido por um escravo de aspecto imponente. Tratava-se nada menos que do califa Harun Al-Rachid disfarçado. Pois ele gostava de examinar pessoalmente, escondido pelo anonimato, o que se passava em Bagdá.

Abu-Hassan, ignorando quem ele era, convidou-o para sua casa, conforme seu hábito; e o estrangeiro aceitou. Jantaram os excelentes pratos preparados pela mãe de Abu-Hassan, e este escolhia os melhores pedaços e oferecia-os ao hóspede. Beberam vinho e conversaram. Harun Al-Rachid, encantado, disse a Abu-Hassan: “Peço-te como lembrança desta noite memorável, que exprimas um desejo; e comprometo-me, sobre a Kaaba sagrada, a satisfazê-lo. Fala com sinceridade e não receies que teu pedido seja grande demais, pois Alá me cumulou com seus benefícios e não há nada que não possa realizar.” 

Abu-Hassan afirmou que lhe bastava a alegria da presença de seu hóspede. Mas o califa insistiu, dizendo que se sentiria ofendido se seu anfitrião não atendesse a seu desejo. 

Disse Abu-Hassan: “Agradeço tua generosidade, mas como não tenho desejo a satisfazer nem ambição a concretizar, sinto me perplexo... a menos que te dirija um pedido louco que só Harun Al-Rachid poderia atender... Seria que me tornasse califa por um dia.” 

- O que farias, se fosses califa por um dia? perguntou o hóspede. 

– “Deves saber, ó forasteiro, que a cidade de Bagdá é dividida em bairros, sendo cada bairro administrado por um xeique. Desgraçadamente, o xeique de meu bairro é uma criatura tão horrível que deve ter nascido da cópula de uma hiena e de um porco. Emite um cheiro pestilento, e sua boca parece o buraco de uma latrina. Não há doença que não tenha atacado aquele corpo. “É precisamente este ignóbil libertino que lança a desordem em todo o bairro com a ajuda de dois outros devassos, um dos quais é filho de uma prostituta e de um cão que se faz passar por nobre muçulmano, quando não passa de um cristão da mais baixa extração, e o outro é uma espécie de bobo gordo que parece prestes a cada palavra a vomitar as tripas. Se fosse Príncipe dos Crentes por um dia, não procuraria enriquecer ou favorecer parentes e amigos, mas apressar-me-ia a libertar o bairro desses três desprezíveis canalhas.” 

O califa elogiou seu anfitrião por preocupar-se com o interesse geral mais do que com o seu próprio e disse-lhe: “Vou agora encher a tua taça, pois até então tens sido tu que encheste a minha.” 

E o califa misturou uma pitada de benj (anestesiante) com o vinho do anfitrião. Este, antes de perder a consciência, disse ao califa: “Sinto que vou dormir. Por favor, ao sair pela manhã, não esqueças de fechar a porta atrás de ti.” 

E Abu-Hassan adormeceu profundamente. O califa chamou então seu escravo e mandou-o carregar Abu-Hassan nas costas. E foram todos embora, deixando a porta aberta apesar da recomendação. 

Entraram no palácio por uma porta secreta. Harun Al-Rachid mandou tirar a roupa que Abu-Hassan vestia, substituí-la por vestes do próprio califa e deitá-lo na sua própria cama. Depois, reuniu os dignitários do palácio e deu-lhes ordens severas para que, no dia seguinte, tratassem Abu-Hassan como se fosse o califa e executassem todas as suas ordens e satisfizessem todos os seus desejos. 

Na manhã seguinte, Harun Al-Rachid colocou-se por trás de uma cortina no quarto onde dormia Abu-Hassan para tudo ver e observar sem ser visto. Então, entraram os dignitários, as damas de honra, os escravos e escravas, e um eunuco aproximou-se de Abu-Hassan e acordou-o. Abu-Hassan abriu os olhos e achou-se num leito estranho cujas cobertas eram feitas de brocado vermelho e de pérolas. Viu-se numa grande sala com as paredes revestidas de cetim. Rodeavam-no jovens mulheres e escravas de cativante beleza e uma multidão de vizires, emires, dignitários, altos funcionários, todos inclinados respeitosamente diante dele. E ao lado da cama, viu, estendido sobre um tamborete, o inconfundível vestuário do Emir dos Crentes. 

Persuadido de que estava sonhando, voltou a fechar os olhos. Mas o grão-vizir Jafar aproximou-se dele e, depois de beijar o chão três vezes, disse-lhe: “Ó Emir dos Crentes, permiti a vosso escravo acordar-vos, pois é hora das preces matinais.” 

No mesmo instante, a um sinal de Jafar, os tocadores de instrumentos fizeram ouvir um concerto de harpas, alaúdes e violas, e as vozes dos cantores soaram harmoniosamente. 

Abu-Hassan gritou: “Onde estou? E quem sou eu?” 

Masrur respondeu num tom cheio de deferência: “Vós sois nosso amo e senhor o Emir dos Crentes, o califa Harun Al-Rachid, e estais em vosso palácio, rodeado por vossos servidores e escravos. E eu sou Masrur, um deles.” 

Voltando-se então para uma das jovens escravas, Abu-Hassan fez-lhe sinal que se aproximasse. Estendeu um dedo e pediu-lhe: “Morde este dedo! Só assim saberei se estou sonhando ou não.” 

A escrava mordeu o dedo até o osso. Abu-Hassan soltou um grito de dor e disse: “Ai! agora vejo que estou acordado.” E perguntou à rapariga: “E tu, me conheces? Quem sou eu?” 

Respondeu a jovem: “O nome de Alá esteja sobre o califa e à sua volta! Vós sois nosso amo e senhor, o Emir dos Crentes, o califa Harun Al-Rachid, vigário de Alá.” 

Pouco a pouco, Abu-Hassan foi convencendo-se de que algo extraordinário lhe tinha acontecido. E pensava: “Por Alá, não é uma coisa maravilhosa! Ainda ontem, eu era AbuHassan, e hoje sou Harun Al-Rachid!” 

Depois de o terem lavado e perfumado, vestiram-no com as vestes reais, coroaram-no com o diadema, puseram-lhe nas mãos o cetro de ouro e conduziram-no ao trono. E Abu-Hassan pensou: “Califa ou não, vou comportar-me como califa.” 

E conseguiu manifestar toda a autoridade e dignidade do cargo. Na sala do trono, diante da multidão de dignitários, cortesãos e homens do povo, Jafar tirou um rolo de papel e pôs-se a enumerar os assuntos do dia. E embora fossem todos novos para Abu-Hassan, pronunciou-se sobre cada caso com tamanho tato e propriedade que o califa, que estava escondido na sala, ficou maravilhado.

Quando Jafar terminou o relatório, Abu-Hassan mandou vir o chefe da polícia e deu-lhe a seguinte ordem: “Leva dez guardas e vai à casa tal na rua tal no bairro tal. Lá encontrarás um horrível porco que é o xeique daquele bairro, sentado entre dois canalhas não menos ignóbeis que ele. Prende os três e começa por dar a cada um quatrocentas bastonadas nas plantas dos pés. Depois, manda empalar o xeque pela boca e atira seu corpo aos cães. Faze o mesmo com o homem glabro de olhos amarelos. Quanto ao terceiro, sendo ele mais bobo que perverso, manda-o passar a vida sentado na mesma cadeira. Assim estarão punidos os caluniadores, maculadores de mulheres, destruidores da ordem pública que agridem as pessoas honestas e apoderam-se do que não lhes pertence. E volta com as provas de que cumpriste tua missão.” 

Depois, mandou levantar o divã, pensando: “ Agora, não posso mais duvidar. Sou realmente o Emir dos Crentes.” 

Momentos depois, chegou o chefe da polícia e entregou-lhe as provas de que tinha cumprido sua missão. Abu-Hassan ficou tão satisfeito que o apetite lhe voltou e fez com alguns dignitários uma lauta refeição.

Harun Al-Rachid, que tinha assistido a tudo, rejubilava-se por ter o destino posto no seu caminho um homem como aquele. Mas o sonho tinha que acabar. Uma das jovens acompanhantes, obedecendo às ordens, disse a Abu-Hassan: “Ó Emir dos Crentes, suplico-vos que bebais mais esta taça de vinho à saúde de todos.” 

Abu-Hassan bebeu a taça de um trago. Nela, a moça havia instilado o anestesiante benj. Abu-Hassan perdeu imediatamente os sentidos, e caiu no chão.

O califa mandou o escravo que havia retirado Abu-Hassan de sua casa carregá-lo para lá de volta e depositá-lo na sua cama. Quando Abu-Hassan acordou no dia seguinte, achou-se num quarto o menos parecido possível com o palácio onde dava ordens na véspera como se fosse o senhor do mundo. Certo de que estava sonhando, pôs-se a gritar para acordar e a chamar Jafar e Masrur para junto de si. A única pessoa que acorreu foi sua mãe, que procurou acalmá-lo. 

Abu-Hassan quis saber quem o havia destronado. E como ela ficou atônita e não respondeu, insultou-a com tamanha violência, tentando até agredi-la, que a pobre mulher teve que chamar os vizinhos para contê-lo. 

No dia seguinte, suas alucinações aumentaram contra os que o haviam destronado, inclusive sua mãe e os vizinhos, a quem ameaçava de morte. A mãe foi obrigada a apelar para um médico. O médico diagnosticou que Abu-Hassan tinha enlouquecido e devia ser internado num hospício. Lá foi necessário amarrá-lo e submetê-lo a diversos tratamentos.

Somente três semanas depois, começou a voltar à normalidade e a reconhecer que era mesmo Abu Hassan. Sua mãe levou-o então de volta para casa e procurou consolá-lo: “Meu filho, nada do que aconteceu é culpa tua. Todo o mal se deve àquele mercador estrangeiro que convidaste por último e que partiu pela manhã sem sequer fechar a porta atrás de si. Ora, todos sabem que cada vez que a porta de uma casa é deixada aberta antes do nascer do sol, o chaitan (diabo) entra nessa casa e toma conta do espírito de seus habitantes. Agradeçamos a Deus por não ter permitido desgraças maiores”.

Abu-Hassan concordou. O califa, que acompanhara todo o drama por intermédio de informantes, censurou-se por sua conduta e procurou compensar as aflições causadas. Recebeu Abu-Hassan no palácio real. Casou-o com a jovem Cana-de-Açúcar que fazia parte das escravas de Abu-Hassan como califa e que lhe havia particularmente agradado. E para manifestar a retidão e o senso de responsabilidade de seu caráter, estabeleceu uma renda vitalícia a Abu-Hassan e Cana-de-Açúcar, que lhes permitiu viverem felizes e seguros até o último de seus dias.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

quinta-feira, 27 de março de 2025

Hans Christian Andersen (Cinco grãos de uma só vagem)

Eram cinco ervilhas dentro de uma vagem. Eram verdes, e a vagem era verde. Por isso, pensavam que todo o mundo era verde, no que tinham toda a razão: para elas, de fato, o era. 

A vagem foi crescendo, adaptando-se ao espaço de sua moradia. Formavam uma fila perfeita. O Sol brilhava lá fora e aquecia a vagem. A chuva tornava-a transparente, dentro dela era quente e agradável, era claro durante o dia e escuro à noite, como deve ser. As ervilhas foram aumentando de tamanho e pensando cada vez mais, pois alguma coisa tinham de fazer. 

- Teremos de ficar sempre aqui dentro? - conjeturavam - tomara que não nos tornemos duras de tanto ficar aqui. Sentimos que deve existir alguma coisa lá fora... 

Passaram-se as semanas. As ervilhas se tornaram amarelas, e amarela a vagem se tornou. 

- O mundo todo está ficando amarelo - disseram. Que mais haveriam de dizer? 

Um dia, ouviram bulha na vagem. Esta foi arrancada, foi ter a mãos humanas, e depois a um bolso de paletó, em companhia de várias outras vagens cheias. 

- Logo a vagem será aberta... - disseram as ervilhas, e ficaram esperando. 

- Quem me dera saber agora qual de nós irá mais longe na vida - disse a menor delas - logo o veremos. 

- Aconteça o que tem de acontecer! - disse a maior. 

- Crac! - a vagem fendeu-se, e todas as cinco ervilhas saíram rolando, à clara luz do dia. 

Achavam-se na mão de um menino, que declarou serem elas ótimas ervilhas para o seu canhãozinho. Imediatamente uma delas foi para o canhão, e foi atirada. 

- Lá vou eu, voando pelo mundo afora! Pega-me, se puderes! - gritou a Ervilha. 

E desapareceu ao longe. 

- Eu - disse a segunda - voo diretamente ao Sol, que é uma verdadeira vagem de ervilhas e me serve muito bem. 

E sumiu. 

- Nós dormiremos onde chegarmos - disseram as duas outras - mas havemos de rolar para diante. 

E antes de irem para o canhão, saíram rolando pelo solo. Mas, apesar disso, sempre chegaram ao canhão. 

- De todas, nós é que iremos mais longe - garantiram. 

- Que aconteça o que tem de acontecer! - disse a última. 

Foi atirada ao ar, e voou até uma tábua, embaixo da janela de uma água-furtada, indo cair numa fenda onde havia musgo e terra úmida. O musgo tornou a fechar-se, e lá ficou ela, esquecida de todos, mas não por Deus. 

- Que aconteça o que tem que acontecer! - repetiu. 

Na água-furtada morava uma mulher pobre que saia todos os dias para o trabalho. Limpava lareiras, cortava lenha, e fazia outros trabalhos pesados, pois tinha forças e era muito trabalhadora. Mas era pobre, e pobre continuava. Em casa, no quartinho, jazia sua filha única, já mocinha, muito franzina e delicada. Estava de cama, enferma, já havia um ano inteiro, e parecia não poder viver nem morrer. 

- Ela irá ter com a irmãzinha - dizia a mulher - tive duas filhas e bem duro me era cuidar de ambas. Deus dividiu então o trabalho comigo, e tomou uma para si. Agora, eu gostaria de ficar com a única que me resta, mas Deus, com certeza, não as quer ver separadas, e ela irá para junto de sua irmãzinha. 

Mas a menina doente continuava a viver. Ficava deitada o dia inteiro, muito paciente e quieta, enquanto a mãe andava fora, tratando de ganhar alguma coisa. 

Era primavera e um belo dia, pela manhã bem cedo, quando a mãe ia sair para o trabalho e o sol entrava radiante pela janelinha, a menina doente olhou para a vidraça de baixo. 

- Que será aquilo ali, junto à vidraça? Uma coisa verde, que se mexe com o vento... 

A mãe foi até a janela e entreabriu-a. 

- Vejam só! - disse ela - é um pézinho de ervilha que nasceu aqui. Como terá o grão vindo parar nesta fenda? Terás um jardinzinho para olhar. 

A cama da doente foi mudada mais para perto da janela, onde ela podia ver a ervilha que brotava. A mãe foi para o trabalho. 

- Mãe, creio que vou sarar - disse a menina, à noitinha - hoje o sol foi tão bom para mim! O pézinho de ervilha vai bem, e também eu hei de um dia ir bem, podendo sair ao Sol. 

- Tomara que isso aconteça - disse a mãe. 

No fundo, porém, ela não acreditava que tal coisa acontecesse. Todavia, deu à verde plantinha, que infundira na filha nova alegria de viver, uma varinha, como tutor, para que o vento não a partisse. Esticou um barbante, da tábua ao alto do caixilho da janela, para que o ramo da ervilha tivesse onde se apoiar e se agarrar com suas gavinhas, quando soubesse. E a planta foi crescendo, crescendo. Dia a dia via-se a diferença de tamanho. 

- A ervilha já está dando flor! - disse a mulher, um dia, pela manhã. 

Também ela começou a ter fé e esperança em que a menina doente muito em breve se restabelecesse. Ocorreu-lhe que, nos últimos tempos, a filha falara com mais vivacidade, se erguera da cama e ficara sentada, fitando com olhos brilhantes o seu pézinho de ervilha. Na semana seguinte, a doente, pela primeira vez, esteve de pé por mais de uma hora. 

Ficou sentada, tomando Sol. A janela estava aberta, e via-se lá fora, inteiramente desabrochada, uma flor de ervilha, branca e vermelha. A menina inclinou a cabeça e beijou de leve as pétalas. 

Aquele dia foi para ela um dia de festa. 

- Foi Deus que a plantou e a fez crescer, para dar-te esperança e alegria, minha abençoada filha, e a mim também - disse a mãe, feliz, sorrindo para a flor, como um anjo vindo de Deus. 

Mas voltemos às outras Ervilhas. A que saíra voando pelo vasto mundo - "Pega-me se puderes" - caiu numa calha d'água e foi parar no papo de uma pomba, onde ficou, como Jonas na baleia. As duas indolentes não ficaram atrás: foram também comidas pelas pombas, o que é de muita utilidade. Mas a quarta, que queria ir até o Sol, caiu na sarjeta, onde ficou durante dias e semanas, mergulhada nas águas servidas. Com isso, inchou: 

- Estou engordando que é uma beleza - disse a ervilha - vou acabar rachando. Não creio que outra ervilha possa chegar onde já cheguei. Sou a mais notável das cinco que nasceram na Vagem. 

E a sarjeta confirmou. 

Junto à janela da água-furtada, entretanto, a menina, com olhos brilhantes, e já com sinais de saúde nas faces, juntou as mãos sobre a flor de ervilha e agradeceu a Deus por tê-la encontrado. 

A sarjeta, porém, repetia: 

- Fico com a minha Ervilha.

Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público
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domingo, 16 de março de 2025

Zitkala-Ša (O texugo e o urso)

À beira de uma floresta vivia uma grande família de texugos. Na terra sua moradia foi feita. Suas paredes e telhado estavam cobertos de pedras e palha.

O velho pai texugo era um grande caçador. Ele sabia bem como rastrear o cervo e o búfalo. Todos os dias ele voltava para casa carregando nas costas alguma caça selvagem. Isso manteve a mãe texugo muito ocupada e os texugos bebês muito gordinhos. Enquanto as crianças bem alimentadas brincavam, cavando pequenas habitações de faz de conta, sua mãe pendurava carnes finas em fatias em longas prateleiras de salgueiro. Tão rápido quanto as carnes eram secas e temperadas pelo sol e pelo vento, ela as embalava com cuidado em um saco grande e grosso.

Esta bolsa era como um enorme envelope rígido, mas muito mais bonita de se ver, pois estava todo pintado com muitas cores brilhantes. Estes firmemente amarrados em sacos de carne seca foram colocados sobre as rochas nas paredes da habitação. Desta forma, eles eram úteis e decorativos.

Um dia, o pai texugo não saiu para caçar. Ele ficou em casa, fazendo novas flechas. Seus filhos sentaram-se ao seu redor no andar térreo. Seus pequenos olhos negros dançavam de prazer enquanto observavam as cores alegres pintadas em cima as flechas.

De repente, ouviu-se um forte passo perto da entrada. A moldura da porta oval foi empurrada para o lado. Entrou um grande pé preto com grandes garras. Então o outro pé desajeitado veio em seguida. O tempo todo os texugos bebês olharam fixamente para o recém-chegado. Após o segundo pé, surgiu a cabeça de um grande urso preto! Seu nariz preto estava seco e ressequido. Silenciosamente, ele entrou na habitação e sentou-se no chão ao lado de a porta. Seus olhos negros nunca viram as bolsas pintadas nas paredes rochosas. Ele adivinhou o que havia neles. Ele era um urso muito faminto. Vendo as prateleiras de carne vermelha penduradas no quintal, ele veio visitar a família texugo.

Embora ele fosse um estranho e suas patas e mandíbulas fortes assustassem os pequeno texugos, o pai disse: "Caro amigo! Seus lábios e nariz parecem febril e famintos. Você vai comer conosco?"

"Hau, meu amigo", disse o urso. "Estou morrendo de fome. Eu vi suas prateleiras carne fresca vermelha, e sabendo que seu coração é bondoso, eu vim aqui. Dê-me carne para comer, meu amigo."

Em seguida, a mãe texugo deu longos passos pela sala e, enquanto ela teve que passar na frente do estranho visitante, ela disse: "Ah han! Permita-me passar!" que foi um pedido de desculpas.

“Han!” respondeu o urso, aproximando-se da parede e cruzando as canelas.

A mãe texugo escolheu a carne vermelha mais macia e logo sobre uma cama de brasas ela assou a carne de veado.

Naquele dia, o urso tinha tudo o que podia comer. Ao cair da noite, ele se levantou e bateu seus lábios juntos - essa é a maneira barulhenta de dizer "a comida estava muito boa!" - ele deixou a casa do texugo. Os texugos bebês, espiando através da aba da porta atrás do urso peludo, viu-o desaparecer no bosques próximos.

Dia após dia, o crepitar dos galhos na floresta falava de pesados passos. Era o mesmo urso preto. Ele nunca levantou a aba da porta, mas empurrando-a para o lado entrou lentamente. Sempre no mesmo lugar na entrada, ele se sentou com as canelas cruzadas.

Suas visitas diárias eram tão regulares que a mãe texugo colocava um tapete de pele em seu lugar. Ela não queria que um hóspede em sua casa se sentasse no solo duro.

Por fim, uma vez, quando o urso voltou, seu nariz estava brilhante e preto. Seu casaco era brilhante. Ele engordou com a hospitalidade do texugo.

Quando ele entrou na habitação, um par de brilhos perversos disparou de sua desgrenhada cabeça. Surpreso com o comportamento estranho do hóspede que permaneceu de pé sobre o tapete, encostando as costas na parede, o texugo pai perguntou: "Hau, meu amigo! O quê?"

O urso deu um passo à frente e balançou a pata no rosto do texugo. Ele disse: "Eu sou forte, muito forte!"

"Sim, sim, então você é", respondeu o texugo. Do outro lado da sala, a mãe texugo murmurou sobre seu trabalho de contas: "Sim, você ficou forte com nossas tigelas bem cheias."

O urso sorriu, mostrando uma fileira de dentes grandes e afiados.

"Eu não tenho moradia. Não tenho sacos de carne seca. Eu não tenho flechas. Todo estes eu encontrei aqui neste local", disse ele, batendo o pé pesado. "Eu os quero! Ver! Eu sou forte!" repetiu ele, levantando suas terríveis patas.

Baixinho, o pai texugo falou: "Eu te alimentei. Eu te chamei de amigo, no entanto você veio aqui um estranho e um mendigo. Pelo bem dos meus pequeninos deixe-nos em paz."

A mãe texugo, em seu jeito excitado, perfurou com força a pele de gamo e enfiou os dedos repetidamente com seu furador afiado até que ela deixou seu trabalho de lado. Agora, enquanto seu marido conversava com o urso, ela gesticulou com as mãos para as crianças. Na ponta dos pés, eles correram para o lado dela.

Como resposta, veio um rosnado baixo. Ficou mais alto e mais feroz. "Wa-ough!" ele rugiu e, à força, expulsou os texugos. Primeiro o pai texugo; então a mãe. Os pequenos texugos ele jogou aos pares. Ele os jogou com força o chão. De pé na entrada e mostrando seus dentes feios, ele rosnou: "Vá embora!"

O pai e a mãe texugo, tendo se levantado, pegaram seus bebês e, gemendo alto, puxou o ar para dentro de seus pulmões achatados até que pudessem ficar sozinhos em seus pés. Assim que os texugos bebês recuperaram o fôlego, uivaram e gritaram com dor e medo. Ah! Que grito sombrio foi o deles, como a família inteira de texugo saiu chorando de sua própria habitação! Um pouco de distância, longe de sua casa roubada, o pai texugo construiu uma pequena cabana redonda. Ele fez de salgueiros dobrados e cobriu-o com grama seca e galhos.

Este foi o abrigo para a noite; mas, infelizmente! estava vazio de comida e flechas. Durante todo o dia, o pai texugo rondou a floresta, mas sem suas flechas ele não conseguia comida para seus filhos. Ao retornar, o grito do pequeninos pela carne, o silêncio triste da mãe com a cabeça baixa, ferido como uma flecha envenenada.

"Vou implorar carne por você!" disse ele com uma voz instável. Cobrindo a cabeça e todo o corpo em um manto longo e solto ele foi ao lado do grande urso preto. O urso estava cortando carne vermelha para pendurar na prateleira. Ele não parou por uma olhada no canto. Enquanto o texugo estava ali sem ser reconhecido, ele viu que o urso trouxe consigo toda a sua família. Filhotes brincavam sob as novas carnes penduradas. Eles riram e apontaram com seus narizes pequeninos para cima nas carnes finas cortadas sobre os postes.

"Você não tem coração, Urso Negro? Meus filhos estão morrendo de fome. Dê-me um pequeno pedaço de carne para eles", implorou o texugo.

"Wa-ough!" rosnou o urso furioso e atacou o texugo. "Vá embora!" disse ele, e com sua grande pata traseira ele jogou o pai texugo, esparramando no chão.

Todos os pequenos ursos rufiões piaram e gritaram "ha-ha!" para ver o mendigo cair sobre seu rosto. Houve um, no entanto, que nem mesmo sorriu. Ele era o filhote mais novo. Seu casaco de pele não era tão preto e brilhante quanto os que os mais velhos usavam. O cabelo estava seco e sujo. Parecia muito mais uma lã excêntrica. Ele era o filhote feio. Pobre bebê urso! ele sempre foi ridicularizado por seus irmãos mais velhos. Ele não podia deixar de ser ele mesmo. Ele não podia mudar as diferenças entre ele e seus irmãos. Assim mais uma vez, embora o resto tenha rido alto da queda do texugo, ele não viu a piada. Seu rosto era comprido e sério. Em seu coração, ele estava triste ao ver os texugos chorando e morrendo de fome. Em seu peito espalhou-se um desejo ardente de compartilhar sua comida com eles.

"Não vou pedir carne ao meu pai para dar. Ele diria 'Não!' Então Meus irmãos ririam de mim", disse o urso bebê feio para si mesmo.

Em um instante, como se sua boa intenção tivesse passado, ele estava cantando alegremente e pulando em torno de seu pai no trabalho. Cantando em voz baixa e alta e arrastando os pés em longos passos atrás dele, como se um espírito brincalhão escorria de seus calcanhares, ele se desviou pela grama alta. Ele estava caminhando em direção à pequena cabana redonda. Quando diretamente na frente da entrada, ele deu um chute lateral rápido com a pata traseira esquerda. caiu na cabana do texugo um pedaço de carne fresca. Era carne dura, cheio de tendões, mas era a única peça que ele poderia pegar sem avisar o pai.

Assim, tendo dado carne aos texugos famintos, o feio bebê urso correu rapidamente para seu pai novamente.

No dia seguinte, o pai texugo voltou mais uma vez. Ele se levantou observando o grande urso cortando fatias finas de carne.

"Dê" ele começou, quando o urso se virou para ele com um rosnado, empurrou-o cruelmente para o lado. O texugo caiu por suas mãos. Ele caiu onde o a grama estava molhada com o sangue do búfalo recém-esculpido. Seu afiado olhos famintos avistaram um pequeno coágulo vermelho brilhante sobre o verde. Olhando com medo para o urso e vendo sua cabeça estava virada longe, ele pegou o pequeno sangue grosso. Debaixo de seu cobertor cingido ele o escondeu na mão.

Ao voltar para sua família, ele disse consigo mesmo: "Vou rezar para o Grande Espírito para abençoá-lo." Assim, ele construiu uma pequena cabana redonda. Aspergiu água sobre a pilha aquecida de pedras sagradas dentro, ele se preparou para purgar seu corpo. "O sangue de búfalo também deve ser purificado antes que eu peça uma bênção sobre ele", pensou o texugo. 

Ele o carregou para o vapor sagrado. Depois de colocá-lo perto das pedras sagradas, ele se sentou ao lado dele. Depois de um longo silêncio, ele murmurou: "Grande Espírito, abençoe este pequeno sangue de búfalo." Então ele se levantou e, com uma dignidade silenciosa, saiu da cabana. Logo atrás dele, alguém o seguiu. O texugo se virou para olhar por cima de seu ombro e para sua grande alegria, ele viu um Dakota corajoso em camurças bonitas. Na mão, ele carregava uma flecha mágica. Nas costas balançava um aljava com franjas longas. Em resposta à oração do texugo, o vingador surgiu dos glóbulos vermelhos.

"Meu filho!" exclamou o texugo com a mão direita estendida.

"Hau, pai", respondeu o bravo; "Eu sou seu vingador!"

Imediatamente o texugo contou a triste história de seus pequeninos famintos e o urso mesquinho.

Ouvindo atentamente, o jovem ficou olhando fixamente para o chão.

Por fim, o texugo pai se afastou.

"Onde?" perguntou o vingador.

"Meu filho, não temos comida. Vou novamente implorar por carne", respondeu o texugo.

"Então eu vou com você", respondeu o jovem corajoso. Isso fez o velho texugo feliz. Ele estava orgulhoso de seu filho. Ele ficou encantado em ser chamado de "pai" pela primeira criatura humana.

O urso viu o texugo vindo à distância. Ele estreitou os olhos para o estranho alto caminhando ao lado dele. Ele avistou a flecha. Imediatamente ele adivinhou que era o vingador de quem ele tinha ouvido falar há muito, muito tempo. Quando eles aproximaram-se, o urso ficou ereto com a mão na coxa. Ele sorriu para eles.

"Hau, texugo, meu amigo! Aqui está minha faca. Corte suas peças favoritas de o cervo", disse ele, segurando uma lâmina longa e fina.

"Hau!" disse o texugo ansiosamente. Ele se perguntou o que havia inspirado o grande urso a uma ação tão generosa. O jovem vingador esperou até que o texugo levasse o faca longa na mão.

Olhando fixamente para o rosto do urso negro, ele disse: "Venho fazer justiça. Você devolveu apenas uma faca ao meu pobre pai. Agora devolva a ele seu habitação." Sua voz era profunda e poderosa. Em seus olhos negros ardia um fogo constante.

Os dentes longos e fortes do urso chacoalharam um contra o outro, e seu corpo desgrenhado tremia de medo. "Ahow!" gritou ele, como se tivesse sido baleado. Correndo para dentro da habitação, ele engasgou, sem fôlego e tremendo, "Saiam todos vocês! Esta é a morada do texugo. Devemos fugir para a floresta por medo do vingador que carrega a flecha mágica."

Eles correram para fora, e todos os ursos desapareceram na floresta.

Cantando e rindo, os texugos voltaram para sua própria habitação.

Então o vingador os deixou.

"Eu vou", disse ele ao se despedir, "sobre a terra".

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ZITKALA-ŠA (1876-1938), que em Lakota significa 'Pássaro Vermelho', nasceu na Reserva Indígena Yankton em Dakota do Sul, filha de mãe Dakota e pai francês, que a abandonou quando criança. Aos oito anos, foi obrigada a deixar a liberdade e a felicidade da vida entre seu povo – como ela mesma dizia - para ser educada nos costumes e crenças europeus em um internato missionário Quaker. Lá ela recebeu o nome de Gertrude Simmons, seus longos cabelos foram cortados, ela foi forçada a suprimir todos os sinais e costumes de sua cultura e a rezar como uma quaker. As únicas coisas boas que resultaram disso para ela foram aprender a ler, escrever e tocar violino. Três anos depois, ela voltou para a reserva de Yankton apenas para descobrir, para sua consternação, que as pessoas na reserva estavam começando a adotar os costumes e modos de pensar dos europeus e que mesmo ela tinha um pé em cada mundo. Depois de mais três anos na reserva, ela voltou ao mundo dos brancos com a intenção de continuar sua formação musical. Ela aprendeu piano e violino e acabou ensinando música e estudando no Earlham College em Richmond, onde exibia publicamente sua bela oratória. Ao longo dos anos, cruzando repetidamente a ponte entre sua cultura e a cultura europeia, entre a reserva e o mundo branco, Zitkala-Ša acabaria se tornando escritora, editora, tradutora e ativista política, além de musicista e educadora. Ela chegaria a compor uma ópera com o compositor William F. Hanson, intitulada The Sun Dance Opera, baseada na Lakota Sun Dance, que o governo federal havia proibido o povo Ute de realizar em sua reserva. 

Em 1916, aos 30 anos, ela começou seu ativismo nativo americano ao ser nomeada secretária da Society of American Indians, uma associação dedicada à preservação do modo de vida nativo americano. Ela também fez lobby em círculos políticos pelo direito de seu povo à plena cidadania americana. De Washington DC, Zitkala-Ša fez duras críticas ao Bureau of Indian Affairs, chegando a pedir sua dissolução por causa de suas políticas de internato, pelo levantamento da proibição de crianças indígenas usarem sua própria língua e preservar seus costumes culturais. Ela denunciou os abusos que aconteciam nesses internatos sempre que um menino ou uma menina nativa se recusava a rezar de acordo com a maneira cristã.

Também de Washington ela começou a dar palestras em todo os Estados Unidos e, durante a década de 1920, começou a promover a ideia de criar um movimento pan-indígena que unisse todas as tribos da América do Norte para fazer lobby em nome dos povos nativos. Em 1924, graças em parte aos seus esforços, foi aprovada a Lei da Cidadania Indígena, concedendo direitos de cidadania americana à maioria dos povos indígenas que ainda não os possuíam. Em 1926, ela e o marido fundaram o Conselho Nacional dos Índios Americanos (NCAI), com o objetivo de unir as tribos dos Estados Unidos em sua luta pelos direitos dos índios. No entanto, Zitkala-Ša não era apenas um ativista pelos direitos das Primeiras Nações da América do Norte. Ela também esteve envolvida no ativismo pelos direitos das mulheres na década de 1920, quando ingressou na Federação Geral de Clubes Femininos. Zitkala-Ša morreu em 1938, aos 61 anos, e foi enterrada no Cemitério Nacional de Arlington, em Washington. Para homenageá-la, a União Astronômica Internacional nomeou uma cratera em Vênus "Bonnin", seu sobrenome de casada, Gertrude Simmons Bonnin.

Fonte:
Zitkala-Ša. Old Indian Legends. Publicada originalmente em 1901. Disponível em Domínio Público. (tradução do inglês para o português por Jfeldman)
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

sexta-feira, 14 de março de 2025

Monteiro Lobato (A rainha que saiu do mar)

Houve um rei que encasquetou casar-se com a moça mais bonita que houvesse. Seus oficiais já tinham percorrido todas as cidades, e esmiuçado todas as casas, sem que descobrissem a beleza que o contentasse. Só faltava serem apresentadas ao rei as filhas de um lavrador, as únicas que ele não tinha visto. Estavam as coisas nesse pé quando entrou na igreja um rapaz de ar abobalhado, que olhou para a imagem de uma santa e pôs-se a chorar.

Perguntaram-lhe o que era, se estava sentindo alguma dor.

— Não sinto dor nenhuma — respondeu o rapaz — mas é que olhei para aquela imagem ali e senti grandes saudades de minha irmã, que é o retrato da santa.

Todos comentaram aquelas palavras, uns caçoando, outros a sério, e de tanto diz-que-diz o caso chegou aos ouvidos do rei, o qual fez vir o moço à sua presença e lhe perguntou se era verdade o que dissera na igreja.

— É, sim — respondeu o rapaz — tenho uma irmã muito linda, o retrato daquela santa da igreja.

— E onde mora?

— Nas grotas do monte Escarpado, a dez mil léguas daqui, por terra, ou cinco mil por mar.

O rei mandou preparar uma esquadra que levasse os seus mensageiros ao pai da moça, a fim de pedi-la em casamento — e o rapaz que dera a informação seguiu junto.

Quando a esquadra chegou à terra do monte Escarpado, os mensageiros desceram, seguindo para a tal grota. A moça estava à janela. Oh, que maravilha! Todos ficaram tontos diante de sua beleza. Os mensageiros entregaram a carta do rei e o pai concordou em dá-la em casamento. Feitos os preparativos, a linda criatura entrou num dos navios e a esquadra partiu.

Em certo ponto da viagem o mar ficou tão bravo que os emissários resolveram descer com a moça em terra, por algum tempo. Recolheram-se à casa de uma velha que morava por ali. Mas a velha não passava da pior das pestes, pois tendo ouvido a história da moça, convidou-a a um passeio pela horta, e lá zupt! — jogou-a dentro de um poço.

Quando chegou a hora do embarque a velha levou à esquadra uma filha sua, muito feia, com a cara coberta por um véu, de modo que os emissários não perceberam a troca. A esquadra partiu.

Assim que os navios desapareceram ao longe, a peste foi ao poço e pescou a moça, cortou-lhe o cabelo, furou-lhe os olhos e botou-a dentro dum caixão, que lançou ao mar. Esse caixão foi parar no reino do rei antes que os navios chegassem, sendo recolhido por um pescador.

Mas alguém que viu o pescador recolhendo o caixão deu denúncia ao rei, o qual mandou investigar. As autoridades vieram, abriram o caixão e muito se assombraram de ver dentro uma tão linda moça, de olhos furados e cabelos cortados.

Lá levaram a cega para o palácio, mas por esse tempo também os navios já tinham chegado e os emissários iam entrando com a filha da velha. O chefe do grupo, muito desapontado, declarou ao rei:

— Fui alegre, senhor, e volto triste. Muito esperei e pouco alcancei, e se nisto há culpa minha, pronto estou para sofrer o castigo que Vossa Majestade haja por bem impor-me.

O rei, entretanto, era homem de bem. Apenas disse:

— Ninguém tem culpa de nada. Prometi, cumpro. Casar-me-ei com esta moça feia.

E casou-se na maior tristeza, vestido de luto. Só depois disso é que lhe apresentaram a moça de olhos furados. Mas o irmão dela, que estava presente, reconheceu-a de pronto e contou ao rei o desembarque no meio do caminho, a ida à casa da velha, o passeio da velha pela horta e por fim falou da substituição da sua irmã pela filha da velha.

O rei mandou trazer a velha à sua presença. A peste negou tudo e até renegou a própria filha, dizendo que nunca tinha visto semelhante feiura. Mas a semelhança de traços entre a mãe e filha era muito grande para que alguém pudesse ter a menor dúvida, e o rei deu ordem para que cortassem os cabelos e furassem os olhos da velha.

Assim que isso foi feito, os olhos da moça bela ficaram perfeitinhos, e sua cabeleira cresceu num instante. Virou uma criatura ainda mais formosa do que havia sido. Estava tudo salvo. As duas embusteiras foram lançadas ao mar e o rei viu-se, finalmente casado com a criatura mais linda que havia.

Fontes:
Monteiro Lobato. Fábulas. Publicado originalmente em 1922.
Imagem criada por Feldman com Microsoft Bing 

segunda-feira, 10 de março de 2025

Hans Christian Andersen (O Isqueiro)

Ia um soldado andando pela estrada com passo marcial: um dois! um, dois! Levava o sabre ao lado e a mochila às costas. voltava da guerra, e ia a caminho de casa.

Encontrou no caminho uma feiticeira velha, de feiura espantosa! O lábio inferior pendia-lhe até o peito. Ela o cumprimentou:

  - Bom dia, soldado! Que linda espada levas, e que mochila grande! Também, se quiseres, poderás ter tanto dinheiro como te der na imaginação.

- Obrigada, velha feiticeira! - replicou o soldado.

- Vês essa enorme árvore? Pois está toda oca. Sobe até o topo e verás que tem um buraco. Por ele poderás descer até o interior da árvore. Levarás esta corda amarrada ao corpo, e eu te içarei quando me deres o sinal.

- E que terei de fazer lá embaixo? - indagou ele.

- Apanhar dinheiro. Devo dizer-te que lá embaixo, no fundo da árvore, há uma enorme sala muito bem iluminada, pendem do teto mais de cem lâmpadas. Verás três portas, que poderás abrir, porque as chaves estão na fechadura. Abrindo a primeira, verás no meio da sala uma arca de madeira e deitado em cima dela um cão, cujos olhos são do tamanho de um pires. Não tenhas medo: vou dar-te meu avental azul, que estenderás no chão e, sem perder tempo, porás o cão em cima dele. Só então abrirás a arca, e tirarás dela quanto dinheiro quiseres. São só moedas de cobre e se preferes prata, terás de abrir a segunda porta. Lá verás outro cão, de olhos do tamanho de mós de moinho. Não tenhas medo: mete-o no meu avental e junta quanto dinheiro quiseres. Agora, se preferes ouro, poderás também tirar quanto quiseres, mas no terceiro quarto. Ah! Mas lá encontrarás um cão de olhos tão grandes como a torre redonda de Copenhague. Aquele sim, é um senhor cão! Não tenhas medo: pondo-o no meu avental poderás apanhar quanto ouro quiseres, tirando-o do terceiro cofre.

- Tudo isso é muito bom- disse o soldado – mas que queres que eu faça em troca disso? Porque certamente que hás de querer alguma coisa, velha feiticeira.

- Não, não quero nem um vintém, só te peço que me tragas um isqueiro velho, que minha avó esqueceu lá embaixo, da última vez que entrou na árvore.

- Pois bem: ata-me a corda à cintura.

- Pronto! E aqui está também o meu avental.

O soldado subiu à arvore, escorregou pelo tronco oco, e foi ter a uma grande sala, toda iluminada, conforme dissera a feiticeira.

Abriu a primeira porta. Credo! Lá estava o cão, que fixava nele olhos do tamanho de um pires!

- És um belo rapaz! - disse logo o soldado, enquanto pegava no cão e o depositava sobre o avental da bruxa. 

Encheu então os bolsos de moedas de cobre, fechou de novo a arca, pôs de novo o cão em cima dela e dirigiu-se para a segunda porta. Abriu-a, e a primeira coisa que viu foi o cão de olhos enormes, do tamanho de mós de moinho.
 
- Não me olhes assim, tão fixamente - disse ele. - Podes ficar vesgo!

E pôs o cão no avental, mas quando viu quanta prata havia no cofre, deitou fora todas as moedas de cobre e atulhou os bolsos e a mochila de moedas de prata. E dali foi para a terceira porta, que abriu. 

E... que horror! Aquele cão tinha, na verdade, os olhos do tamanho da torre de Copenhague! E ainda por cima, girava nas órbitas, como rodinhas de fogo de artifício.

- Boa tarde! - disse ele, levando a mão ao boné.

Cumprimentava o cão, porque jamais na vida vira animal que inspirasse tanto respeito. Encarou-o um instante, como se lhe pedisse licença, e depois ergueu-o e o depôs no avental e abriu a arca. 

Deus nos acuda! Quanto ouro! Daria para comprar a cidade inteira de Copenhague, com todas as confeitarias, e todos os soldadinhos de chumbo, e chicotinhos, e cavalos de balanço do mundo! Era muito dinheiro! 

O soldado lançou fora toda a prata que recolhera, para levar ouro, só ouro. Encheu os bolsos, a mochila, o boné, até nas botas meteu moedas de ouro - tantas e tantas que quase  nem podia andar. Agora sim, que estava rico!

Pôs o cão outra vez sobre o cofre, fechou a porta e gritou:

- Puxa a corda, velha feiticeira!

- Achaste o isqueiro? - perguntou ela antes de içá-lo.

- E esta! Tinha-se esquecido dele!

Foi em busca do isqueiro, e, quando o achou, deu o sinal. A velha puxou-o para cima, e logo o soldado se viu de novo na estrada, com os bolsos, as botas, a mochila e o boné cheios de ouro.

- Para que queres tu este isqueiro? - perguntou à bruxa.

- Isso agora não é da tua conta, já tens o dinheiro, dá-me o que me pertence.

- Escuta, velha feiticeira, se não me disseres para que queres este isqueiro, corto-te a cabeça com o meu sabre!

- Pois não te digo!

E então o soldado cortou-lhe a cabeça. A velha ficou ali estendida. Ele fez uma trouxa de dinheiro com o avental dela, lançou a trouxa aos ombros, meteu o isqueiro no bolso e marchou para a cidade.

Era uma cidade muito bonita. Ele se dirigiu ao melhor hotel, pediu o melhor apartamento, o melhor jantar, já que era agora rico, havia de aproveitar bem a riqueza.

O criado que o servia estranhou que homem tão opulento tivesse botas tão velhas e acalcanhadas, mas é que ele não tivera tempo de comprar outras. 

No dia seguinte, porém, tratou de se vestir e calçar como lhe convinha. Agora sim, parecia um cavalheiro  elegante, e todos lhe falavam nas grandezas da cidade, e no seu rei, e na amável princesa, sua filha.

- E onde poderei vê-la? - indagou o soldado.

- Ah! quanto a isso, não é possível. Ela mora em um castelo de bronze, cheio de torres, e cercado de altas muralhas. Ninguém lá entra, a não ser o rei, porque uma profecia diz que ela casará com um soldado raso, e o rei quer impedir a todo o custo que a profecia se realize.

- Ah! Se eu pudesse vê-la - pensou o soldado.

Mas era impossível obter licença para entrar no castelo.

Começou então a levar uma vida muito alegre e divertida: ia ao teatro, passeava de carro no Parque Real, e dava muito dinheiro aos pobres - coisa muito digna de louvor. Lembrava-se bem de quanto é triste não ter a gente dinheiro para gastar! Agora que estava tão rico, também tinham muitos amigos, todos o elogiavam, dizendo que era um moço muito distinto - um perfeito cavalheiro - palavras que muito lisonjeavam a sua vaidade.

Mas, como gastava sem medida, e nada ganhava, chegou por fim um dia em que se viu com duas moedas apenas. Acabara o dinheiro e viu-se forçado a deixar os quartos elegantes em que morava, trocando-os por um sótão. Tinha de limpar as botinas e até  remendá-las, com uma agulha de cerzir. E já nenhum amigo ia mais visitá-lo - eram muitos degraus para subir até lá.

Uma noite não tinha já nem um vintém para comprar uma vela, e estava às escuras, quando se lembrou do velho isqueiro que tirara do oco da árvore. Foi buscá-lo. Quando bateu com o fuzil na pederneira, saltou dela uma faísca, abriu-se a porta e apareceu um cão - aquele cão de olhos do tamanho de pires, que vira lá dentro da árvore. E o cão perguntou-lhe:

- Que ordena, meu senhor?

- Mas que é isto! - exclamou o soldado. - Este isqueiro não tem preço, se eu puder obter dele tudo o que desejo!

Dirigindo-se então ao cão, disse-lhe:

- Traze-me dinheiro.

Desapareceu o cão como um relâmpago, e voltou também com a mesma presteza, tendo na boca um saquinho cheio de moedas de cobre.

Via agora o soldado que tesouro possuía naquele isqueiro velho, de poder prodigioso. Se dava uma pancada, aparecia o cão do cofre de cobre, se dava duas, vinha o da arca de prata e se dava três batidas era o da arca de ouro que aparecia.

Pôde assim o soldado voltar à sua vida regalada, vestir-se com a mesma elegância, e morar em quartos de luxo. E de novo seus amigos antigos o conheciam, e testemunhavam-lhe tanta amizade com dantes.

Mas um dia veio-lhe à memória o caso da princesa.

- Afinal é estranho que ninguém a possa ver! Dizem todos que é tão linda - mas de que serve isso, se tem de viver sempre encerrada em um castelo de bronze cheio de torres? Não poderei mesmo vê-la? Onde está meu isqueiro?

Fez fogo e apareceu o cão de olhos do tamanho de pires.

- É tarde da noite - disse o soldado - mas eu estou ansioso por ver a princesa, ainda que seja por um só momento!

Sumiu-se o cão no mesmo instante, e, antes que o soldado tivesse tempo sequer de pensar, já estava de volta com a princesa. Estava adormecida, sobre o lombo do animal, e era de fato tão formosa que logo se via que era uma princesa! O soldado - porque era um verdadeiro soldado - não pode deixar de lhe dar um beijo.

Saiu o cão levando a princesa, mas, à hora do almoço, disse ela aos pais que tinha tido um sonho maravilhoso, em que entravam um cão e um soldado: tinha andado nas costas do cão, e o soldado a beijara.

- É uma história linda - disse a rainha.

E naquela noite ficou uma dama de honra ao pé da cama da princesa para lhe velar o sono e ver se de fato ela sonhara, ou se haveria nisso alguma coisa estranha.

O soldado tinha  um desejo tão grande de rever a princesa, que o cão tornou a ir buscá-la. Mas a velha dama de honra se pôs no encalço do animal, e quando viu que ele desaparecia com a princesa em uma grande casa, fez na porta uma cruz, com um pedaço de giz, para poder reconhecê-la mais tarde. Foi então para casa e deitou-se. 

Dali a um momento tornou o cão a sair com a princesa, e, ao ver a cruz branca na porta, pegou também em um pedaço de giz e fez cruzes em todas as portas da cidade. Era um cão sagaz, pois assim a dama de honra não poderia saber qual a casa marcada por ela, uma vez que todas as portas tinham cruzes de giz. 

De manhã cedo saíram o rei, a rainha, a dama de honra e todos os oficiais da casa real, para ver onde tinha estado a princesa.

- É ali - disse o rei, ao ver a primeira a porta com uma cruz.

- Não, querido, foi aqui - disse a rainha, vendo uma cruz em outra porta.

- Mas...ali está outra, e outra, e mais outra! - gritavam agora todos os da comitiva.

E viram que era inútil continuar a busca - pois que havia uma cruz em cada porta.

Mas a rainha era dama de muito engenho, e sabia mais coisas do que andar de carro pelas ruas. Ela tomou sua tesoura de ouro e cortou e recortou um pedaço de seda, fez dali um saquinho e encheu-o de trigo mourisco. Amarrou-o na cintura da princesa e depois fez um buraquinho na ponta do saco; assim iriam caindo os grãozinhos por onde a princesa andasse.

À noite voltou o cão e levou a princesa de novo para o quarto do soldado, subindo com ela pela parede: estava o rapaz tão enamorado dela, que só desejava ser um príncipe, para poder casar com a linda princesa.

Não notou o animal que a princesa ia semeando trigo por onde passava. No dia seguinte não foi difícil ao rei e à rainha descobrir a casa onde estivera sua filha, e mandaram logo prender o soldado, que foi parar na cadeia. Sentado no calabouço, refletia ele na sua triste situação. Como era escuro e desagradável aquele lugar! E pior ainda foi quando ouviu a sentença:

- Serás enforcado amanhã!

Não era nada alegre a notícia, e ainda por cima verificou que tinha deixado seu isqueiro no hotel.

De manhã viu a multidão de gente que ia correndo para as portas da cidade, para assistir à execução. Através das grades da janelinha viu também passar o pelotão de soldados que marchavam para o lugar da forca. Ouvia o toque dos tambores, via que todos estavam ansiosos para vê-lo enforcado, e entre aquela gente toda avistou um aprendiz de sapateiro, de avental de couro e chinelas. Corria tão açodado que uma das chinelas lhe escapou do pé e foi bater mesmo na grade da janela, onde estava o soldado, que gritou por ele:

– Olá! Não corras tanto! A festa não começará enquanto eu não  chegar. Escuta: se queres ir à minha casa e trazer-me um isqueiro que ficou lá, dar-te-ei quatro xelins. Mas tens que correr com vontade, rapaz!

Ora, a aprendiz ficou muito contente de poder apanhar aquelas moedas, saiu pois a toda a pressa e voltou num instante com a caixinha, e... mas vamos ver o que aconteceu.

Tinham erguido uma forca alta; em torno dela premia-se enorme multidão - centenas de milhares de pessoas. Os soldados mal conseguiam manter toda aquela gente no lugar a ela destinado.  Os reis ocupavam um trono magnífico, em frente dos juízes e do Conselho.

Já o soldado tinha subido ao patíbulo, e iam passar-lhe a corda pelo pescoço, quando pediu que lhe concedessem uma graça insignificante, conforme era costume fazer-se com todos os criminosos antes da execução. Desejava muito tirar algumas fumaçadas do seu cachimbo antes de morrer, pois seria a última vez que fumava neste mundo.

Não quis o rei negar essa graça, e o soldado puxou pelo isqueiro e feriu a pederneira - uma, duas, três vezes! E num relance estavam ali todos os cães -  dos olhos do tamanho de um pires, o dos olhos do tamanho de mós de moinho, e os dos olhos tão grandes como a torre redonda de Copenhague.

– Acudam-me, que não me enforquem! - disse-lhes o soldado.

Caíram os cães imediatamente sobre os juízes e todo o Conselho, apanharam um pelas pernas, outro pelo nariz e atiraram-nos tão alto, que quando caíram em terra estavam em pedaços.

- Não consinto...- gritou o rei, ao ver aquilo.

Mas o maior de todos atirou-se a ele e à rainha, e num instante estavam ambos também rodopiando no ar, como acontecera com os outros.

Então os soldados e o povo, amedrontados, puseram-se a gritar:

- Soldadinho, soldadinho! Serás agora o nosso rei, e casarás com a bela princesa!

Instalaram o soldado na carruagem real, e os três cães iam à frente, bradando:

- Viva! Viva!

Os moleques assobiavam nos dedos, e os soldados apresentavam armas. A princesa saiu enfim do seu castelo de bronze, e foi proclamada rainha, o que muito lhe agradou, na verdade!

As festas do noivado duraram uma semana; os três cães também se sentaram à mesa do festim, arregalando mais que nunca os enorme olhos para tudo quanto viam. 
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HANS CHRISTIAN ANDERSEN foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.

Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público
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