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segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Contos e Lendas de Portugal (Lenda do Bálsamo na Mão)


 Na freguesia de Chapim, concelho de Macedo de Cavaleiros, existiu outrora um rei mouro que exercia o seu domínio sobre aquela região. Este rei tinha muito mau feitio e aproveitava todas as oportunidades para humilhar os seus súditos.

Um dia, decidiu instituir um novo tributo, diferente de todos aqueles que tinha mandado executar antes: todos os homens que se casassem eram obrigados a entregar-lhe a noiva logo após a cerimônia do casamento. Este tributo tornou-se um hábito que gerou ódios e vergonha. Mas quem se atrevesse a contestar as ordens do rei seria severamente castigado.

Um dia o cristão Joaquim resolveu casar-se com Marianinha, a moça mais bela de toda a região. Marianinha nem queria pensar em pagar o infame tributo, mas Joaquim disse-lhe que não se preocupasse porque tinha um plano e, com a ajuda de Nossa Senhora, Marianinha não cairia nas mãos do cruel rei mouro.

Casaram-se numa pequena igreja e, logo à saída, estavam os soldados à espera de Marianinha. Joaquim convenceu-os a juntarem-se a ele e a alguns amigos com o propósito de levarem ofertas ao senhor mouro daquelas terras.

O rei mouro já tinha ouvido falar da beleza de Marianinha e mal podia esperar para tê-la nos seus braços. Porém, quando lhe retirou o véu, verificou que não era ela mas Joaquim que apertava nos braços.

Desembaraçando-se das suas roupas de mulher, Joaquim retirou um punhal que tinha escondido e cravou-o no peito do rei mouro antes de fugir. Agonizante, o rei pediu as cabeças de Joaquim e de Marianinha para as pisar antes de morrer.

Os guerreiros mouros lançaram-se na caça ao homem. Joaquim e os seus amigos ainda lhes fizeram resistência mas a desproporção era grande e foram quase todos dizimados.

Marianinha prometia fervorosamente um novo templo à Virgem enquanto Joaquim caía no chão ferido de morte. Então, por milagre, Joaquim reparou que nas suas mãos nascia um bálsamo que curava as feridas e começou a gritar aos seus companheiros moribundos que esfregassem as mãos com aquela substância.

Os guerreiros mouros, aterrorizados, viram os mortos e os moribundos a erguerem-se do chão, a pegarem nas armas e entregarem-se à luta com uma paixão desmedida. Apesar da desvantagem numérica, os cristãos conseguiram fazer com que os mouros partissem em debandada.

Desde então, aquela terra conquistada aos mouros ficou a ser conhecida como Terra de Nossa Senhora de Bálsamo na Mão e, mais tarde, Lugar de Balsemão onde ainda hoje existe uma ermida em honra de Nossa Senhora de Balsemão, no alto do Monte Carrascal.

Fontes:
Porto Editora. in Infopédia
https://www.infopedia.pt/recursos/lendas-portuguesas/$lenda-do-balsamo-na-mao
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Beatrix Potter (O conto dos coelhinhos Flopsy)

Dizem que o efeito de comer muita alface é "soporífero".

Nunca senti sono depois de comer alface; mas eu não sou um coelho.

Elas certamente tiveram um efeito muito soporífero sobre os Coelhinhos Flopsy!

Quando Benjamin Bunny cresceu, casou-se com sua prima Flopsy. Eles tinham uma família grande e eram muito previdentes e alegres.

Não me lembro dos nomes separados de seus filhos; eles eram geralmente chamados de "Coelhinhos Flopsy".

Como nem sempre havia o suficiente para comer, Benjamin costumava pegar repolhos emprestados do irmão de Flopsy, Pedro Coelho, que cuidava de uma horta.

Às vezes, Pedro Coelho não tinha repolhos sobrando.

Quando isso aconteceu, os Coelhinhos Flopsy atravessaram o campo até um monte de lixo, na vala em frente ao jardim do Sr. McGregor.

O monte de lixo do Sr. McGregor era uma mistura. Havia potes de geleia e sacos de papel, montanhas de grama cortada da máquina de cortar grama (que sempre tinha gosto de óleo), algumas abobrinhas podres e uma ou duas botas velhas.

Um dia — que alegria! — havia uma quantidade enorme de alfaces que tinham "brotado" em flor.

Os Coelhinhos Flopsy simplesmente encheram as alfaces. Aos poucos, um após o outro, foram tomados pelo sono e se deitaram na grama cortada.

Benjamin não estava tão tomado quanto seus filhos. Antes de dormir, ele estava suficientemente acordado para colocar um saco de papel sobre a cabeça e se proteger das moscas.

Os Coelhinhos Flopsy dormiam deliciosamente sob o sol quente. Do gramado além do jardim, vinha o som distante e metálico da máquina de cortar grama. As varejeiras-azuis zumbiam perto do muro, e um ratinho velho catava o lixo entre os potes de geleia.

(Posso dizer o nome dela: chamava-se Thomasina Tittlemouse, uma ratazana com uma cauda longa.)

Ela farfalhou sobre o saco de papel e acordou Benjamin Bunny.

O rato se desculpou profusamente e disse que conhecia Peter Rabbit.

Enquanto ela e Benjamin conversavam, perto do muro, ouviram passos pesados acima de suas cabeças; e de repente o Sr. McGregor esvaziou um saco cheio de grama cortada bem em cima dos Coelhinhos Flopsy adormecidos! Benjamin se encolheu sob seu saco de papel. O rato se escondeu em um pote de geleia.

Os coelhinhos sorriram docemente durante o sono sob a chuva de grama; eles não acordaram porque as alfaces estavam muito sonolentas.

Eles sonharam que sua mãe Flopsy os estava aconchegando em uma cama de feno.

O Sr. McGregor olhou para baixo depois de esvaziar seu saco. Ele viu algumas pequenas pontas marrons engraçadas de orelhas se projetando através da grama cortada. Ele as encarou por algum tempo.

Nesse momento, uma mosca pousou em uma delas e ela se moveu.

O Sr. McGregor desceu para o monte de lixo.

"Um, dois, três, quatro! Cinco! Seis coelhinhos!", disse ele enquanto os jogava no saco. Os Coelhinhos Flopsy sonharam que a mãe os estava virando na cama. Eles se mexeram um pouco durante o sono, mas ainda assim não acordaram.

O Sr. McGregor amarrou o saco e o deixou na parede.

Ele foi guardar a máquina de cortar grama.

Enquanto ele estava fora, a Sra. Flopsy Bunny (que havia permanecido em casa) cruzou o campo.

Ela olhou desconfiada para o saco e se perguntou onde estavam todos?

Então o rato saiu do pote de geleia, Benjamin tirou o saco de papel da cabeça e eles contaram a triste história.

Benjamin e Flopsy estavam desesperados, não conseguiam desfazer o barbante.

Mas a Sra. Tittlemouse era uma pessoa engenhosa. Ela mordiscou um buraco no canto inferior do saco.

Os coelhinhos foram puxados para fora e beliscados para acordá-los.

Seus pais encheram o saco vazio com três abobrinhas podres, um velho pincel de graxa e dois nabos podres.

Então todos se esconderam debaixo de um arbusto e ficaram à espera do Sr. McGregor.

O Sr. McGregor voltou, pegou o saco e o levou embora.

Ele o carregou pendurado, como se fosse bastante pesado.

Os Coelhinhos Flopsy o seguiram a uma distância segura.

Eles o observaram entrar em casa.

E então se aproximaram sorrateiramente da janela para ouvir.

O Sr. McGregor jogou o saco no chão de pedra de uma forma que teria sido extremamente dolorosa para os Coelhinhos Flopsy, se por acaso estivessem lá dentro.

Eles o ouviam arrastar a cadeira nas lajes e dar risadinhas...

"Um, dois, três, quatro, cinco, seis coelhinhos!" disse o Sr. McGregor.

"Hã? O que é isso? O que eles estavam estragando agora?" perguntou a Sra. McGregor.

"Um, dois, três, quatro, cinco, seis coelhinhos gordos!" repetiu o Sr. McGregor, contando nos dedos - "um, dois, três..."

"Não seja bobo; o que você quer dizer, seu velho bobo?"

"No saco! Um, dois, três, quatro, cinco, seis!" respondeu o Sr. McGregor.

(O Coelhinho Flopsy mais novo subiu no parapeito da janela.)

A Sra. McGregor pegou o saco e o apalpou. Disse que conseguia sentir seis, mas deviam ser coelhos  velhos, porque eram muito duros e tinham formatos diferentes.

"Não servem para comer; mas as peles servem para forrar minha velha capa."

"Forrar sua velha capa?" gritou o Sr. McGregor. "Vou vendê-las e comprar tabaco para mim!"

"Tubo de coelho! Vou esfolá-las e cortar suas cabeças."

A Sra. McGregor desamarrou o saco e colocou a mão dentro.

Quando apalpou os vegetais, ficou muito, muito brava. Disse que o Sr. McGregor tinha "feito aquilo de propósito".

E o Sr. McGregor também ficou muito bravo. Uma das abóboras podres entrou voando pela janela da cozinha e atingiu o mais novo Coelhinho Flopsy.

Ficou bastante magoado.

Benjamin e Flopsy acharam que era hora de ir para casa.

Então o Sr. McGregor não recebeu seu tabaco, e a Sra. McGregor não recebeu suas peles de coelho.

Mas no Natal seguinte, Thomasina Tittlemouse ganhou de presente lã de coelho suficiente para fazer uma capa e um capuz, um lindo regalo e um par de luvas quentinhas.
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HELEN BEATRIX POTTER (Londres, 1866 — Lakeland/Inglaterra, 1943) foi uma escritora, ilustradora, micologista e conservacionista inglesa, célebre por seus livros infantis de grande originalidade e valor intemporal. Sua obra mais famosa é A História do Pedro Coelho. Ela estudou em casa e recebeu das governantas uma educação vitoriana.  O Coelho Benjamim foi uma das primeiras personagens que Beatrix Potter vendeu a uma editora. Beatrix começou por ilustrar contos tradicionais como "Cinderela", "A Bela Adormecida", "Ali Babá e os Quarenta Ladrões", "O Gato das Botas" etc, mas muitas das suas ilustrações incluíam os seus animais de estimação. Beatrix Potter teve bastantes dificuldades em encontrar uma editora que publicasse as suas histórias. Depois de receber várias cartas de rejeição, ela decidiu tratar do assunto sozinha e criou um livro pequeno a preto e branco com a histórias dos quatro coelhinhos e publicou 250 cópias do mesmo que pagou com o seu próprio dinheiro. Frederick Warne & Co, que já tinha rejeitado as histórias de Beatrix, decidiu publicar o que apelidou de "livro dos coelhinhos". A mudança de posição deveu-se ao fato de a editora querer entrar no mercado dos livros infantis de formato pequeno. A História do Pedro Coelho foi publicado em 1902 e foi um enorme sucesso, vendendo 20 000 cópias até ao Natal desse ano. No ano seguinte, foram publicados A História do Esquilo Trinca-Nozes e O Alfaiate de Gloucester. Nos anos seguintes, Beatrix trabalhou com o editor Norman Warne e publicou entre dois e três livros de formato pequeno todos anos, atingindo um total de 23 obras publicadas na sua carreira. Em 1905, Beatrix e Norman Warne, o seu editor, ficaram noivos. O noivado foi mantido em segredo pois a família de Beatrix desaprovava um noivo que vivia de sua profissão de editor, por considerá-lo de classe inferior. Tragicamente, em 25 de agosto de 1905, um mês depois do pedido, Norman morreu de leucemia, quando tinha 37 anos. Isso deixou Beatrix devastada, mas ela fez o máximo para superar esse momento difícil, trabalhando ainda mais do que o costume. Em 1913, aos quarenta e sete anos, Beatrix casou-se com William Heelis, um procurador local, e foi morar em Sawrey. Ela passou a desenhar e a escrever menos, dedicando-se às atividades da fazenda, à criação de carneiros e a comprar muitas terras em Lakeland, para preservá-las. Quando Beatrix Potter morreu, em 1943, deixou mais de 4 000 acres e 15 fazendas para o National Trust, uma organização destinada a preservar lugares de interesse histórico ou de grande beleza cênica, na Inglaterra. Beatrix e William tiveram um casamento feliz que durou trinta anos. Apesar de não terem filhos, Beatrix era um elemento importante da família de William e teve uma relação muito próxima com as suas sobrinhas, que ajudou a educar. Beatrix faleceu em 1943, devido a uma pneumonia e complicações cardíacas em sua residência, chamada Castle Cottage, localizada em Lake District. Os seus restos mortais foram cremados. O seu marido continuou cuidando das propriedades e do trabalho literário e artístico da esposa até à sua morte, em agosto de 1945. Em 2006, a vida de Beatrix Potter foi transformada em um filme, Miss Potter, com Renée Zellweger e Ewan McGregor como protagonistas. 

Fontes:
Beatrix Potter. The Tale of the Flopsy Bunnie. Publicado originalmente em 1909. 
Disponível em Domínio Público.  
Biografia =https://pt.wikipedia.org/wiki/Beatrix_Potter
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quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Contos e Lendas de Portugal (Lenda da Praga de Fogo)

Há muitos, muitos anos, vivia em Mourilhe, na região de Montalegre, Aben Ahmid, filho do chefe dessa aldeia moura. A sua tribo estava proscrita em relação aos outros muçulmanos, que a abandonaram quando do avanço cristão.

Um dia, Aben decidiu sair do reduto mouro de Mourilhe e cavalgou até ao Minho. Aí, conheceu uma bela jovem cristã chamada Leonor. Foi amor à primeira vista e, como a jovem também o amava, Aben pediu-lhe que partisse com ele para Mourilhe.

Depois de recusas e hesitações, pois era cristã, Leonor cedeu aos impulsos do coração e foi com Aben. Contudo, a aldeia e o pai de Aben não receberam bem os jovens apaixonados, e em especial Leonor, que por isso logo quis regressar à sua terra.

Expulsos da casa do chefe, foram recolhidos por Almina, a mulher que criara Aben desde pequeno, pois era órfão de mãe. Almina acolheu muito bem Leonor, o que irritou Mohamed, pai de Aben.

Como gostava muito de Aben, Almina foi falar com Mohamed e pediu-lhe para se reconciliar com o filho e aceitar Leonor. Mohamed lembrou-lhe, então, que Aben estava prometido a Zoleima, uma moura da aldeia.

Foi então que a ama lhe recordou que, na sua juventude, também ele se apaixonara por Anália, uma jovem cristã, abandonando Zuraida em vésperas de ser mãe de Aben. Só voltara porque Anália caíra doente e morrera pouco tempo depois.

Zuraida recebeu-o e perdoou-lhe, mas foi maltratada por Mohamed e acabou por morrer também, deixando o pequeno Aben sem mãe.

Perante estas lembranças, era cada vez maior a ira do chefe mouro que, intransigente, correu com Almina. Aben decidiu então abandonar a aldeia, com a ama e Leonor.

Ainda na aldeia, e em conversa com Leonor, Almina lembrou-se de um último estratagema para alterar a situação: tinha de falar com Zoleida, que amava Aben desde criança, ainda que este nunca tivesse correspondido a tal paixão.

Zoleida, contudo, não se encontrava em casa quando Almina a procurou.

Ao saber da vinda de Aben para a aldeia com uma cristã, louca de dor e raiva, tinha corrido para a casa do jovem. Silenciosa e esquiva, Zoleida acercou-se de Leonor pelas costas e apunhalou-a, fugindo de imediato.

Pouco depois, surgiram Aben e Almina, que depararam já com a pobre Leonor morta. Aben e Almina ficaram aterrados e inconsoláveis.

Aben decidiu então cobrir com um manto o corpo sem vida de Leonor e levá-lo consigo para bem longe dali. Almina ainda o tentou demover, mas nada conseguia vencer o desespero de Aben.

Almina, chamando insistentemente por Aben, voltou-se para a aldeia atrás de si e rogou-lhe uma praga de fogo: para que Mourilhe se purificasse teria de ser destruída pelo fogo três vezes.

E Mourilhe foi, de fato, três vezes devastada pelo fogo - na Reconquista Cristã, em 1854 e em 1875.

Fontes:
Porto Editora. in Infopédia https://www.infopedia.pt/recursos/lendas-portuguesas/$lenda-da-praga-de-fogo
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quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Contos das Mil e Uma Noites (As-Sámet: O barbeiro calado)

Numa cidade da China, numa residência de gente fina, prepara-se uma festa em homenagem aos principais membros das corporações: alfaiates, sapateiros, comerciantes, barbeiros, carpinteiros e outros. Quando tudo está pronto para o início da festa, entra o dono da casa acompanhado de um adolescente estrangeiro, trajado à moda de Bagdá, bem constituído e belo, mas coxo. 

Mal esse jovem senta e olha em volta, algo perturba-o visivelmente. Levanta-se com a disposição de partir. O dono da casa pede-lhe que pelo menos explique este comportamento estranho. 

Responde: “Há entre vós alguém cuja presença me obriga a sair. Se insistirdes em saber quem é, é aquele barbeiro ali.”

O dono da casa comenta: “Como pode alguém que acaba de chegar de Bagdá ser incomodado pela presença de um barbeiro desta cidade?” 

Todos pedem uma explicação, e o jovem acaba cedendo: “Este barbeiro, que tem um aspecto de alcatrão e alma de betume, foi a causa de uma tragédia que nunca deveria ter ocorrido e que acabou por danificar uma das minhas pernas, como vedes. Jurei nunca mais viver na mesma cidade que ele, nunca me sentar onde ele estiver. Deixei Bagdá, minha cidade natal, por causa dele, e viajei até este país remoto. E eis que o encontro à minha frente na primeira reunião social de que participo. Sairei logo desta cidade, e espero estar bem longe deste parvo abominável antes do fim do dia.”  

O barbeiro ouve essas imprecações de olhos baixos e sem adiantar uma palavra. Os outros convencem o coxo a contar sua história. 

Diz: “Meus senhores, eu era filho único de um dos mais ricos mercadores de Bagdá. Apesar das solicitações de meu pai, não constituí família porque Alá havia plantado em mim uma aversão invencível pelas mulheres. Um dia, porém, uma jovem, vista à janela de um palácio, inverteu essa aversão numa paixão irresistível. Fiquei doente por não saber quem era e por não encontrar alguém que me pusesse em contato com ela. Mas Alá teve pena de mim e, um dia, uma velha conhecida me disse: “Meu filho, aquela jovem é a filha do cádi de Bagdá. Conheço pessoas capazes de te arrumar um encontro com ela. Prepara-te.” 

“Curei-me na hora e readquiri as cores e o vigor da juventude. Antes de ir ao hammam, quis cortar o cabelo. Mandei um de meus escravos trazer um barbeiro, recomendando-lhe: “Escolhe alguém que tenha a mão ágil, mas sobretudo que seja discreto, educado, de poucas palavras e sem curiosidade para que não me venha atormentar com a loquacidade e a impertinência próprias à gente daquela profissão. 

“Meu escravo trouxe-me um barbeiro que não era outro, senhores, que este sinistro velho que vedes sentado entre vós. Cumprimentou-me e disse: “Trago-te boas notícias, meu mestre, muito boas notícias. Aliás, não são boas notícias, mas bons votos para que recuperes a saúde e a força. Todavia, negócio é negócio. Que queres exatamente que faça? Que te corte o cabelo ou te submeta à sangria? Não podes ignorar que o grande Ibn Abbas disse: “Quem mandar cortar o cabelo às sextas-feiras concilia-se com a graça de Alá, que afastará dele setenta tipos de pragas.” Por outro lado, não podes esquecer que o mesmo Ibn Abbas disse numa outra oportunidade: “Quem ousar sangrar-se ou fazer aplicações de ventosas as sextas-feiras, correrá o risco de tornar-se cego e sujeito a todas as doenças.”

“- Meu velho, respondi, peço-te que pares com esta conversa e me cortes o cabelo tão rapidamente quanto puderes, porque estou ainda fraco em consequência da doença e cansa-me tanto falar como ouvir.

“O barbeiro levantou-se, pegou um embrulho similar aos que os homens de sua profissão carregam, abriu-o e tirou dele, não os utensílios de seu trabalho como navalhas, tesouras, mas um astrolábio de sete facetas. Carregou-o até o centro do pátio, olhou o sol de frente e voltou para dizer-me: “Deves saber que esta sexta-feira é o décimo dia do mês de Safar do ano 763 da Hégira de nosso santo profeta, que as bênçãos do céu estejam sobre ele! Coincide assim, segundo a ciência dos números, com o momento preciso em que o planeta Marrikh se encontra com o planeta Mercúrio, à altura de sete graus. Isso significa que hoje é um dia auspicioso para cortar o cabelo. Os mesmos cálculos revelam-me que tens a intenção de visitar hoje uma jovem senhora, e que essa visita pode trazer-te ou bem ou mal. Não digo que preciso de minha ciência para profetizar o que se passará exatamente quando tu e a jovem senhora estiverem juntos, mas isso pouco importa. Pois há coisas que é melhor calar. 

“- Por Alá, explodi, sufocas-me com tua verbosidade. Acabarás por me matar. Trouxe-te para que me cortes o cabelo. Corta-o já sem mais uma palavra.” 

“ – Farei exatamente como desejas, replicou, embora não possa deixar de pensar que, se conhecesses a verdade, pedirias que te dê mais informações e conselhos. Pois, deves saber que, embora barbeiro - o mais célebre desta cidade - não sou apenas barbeiro. Possuo na ponta dos dedos as ciências da medicina, das plantas, da química, da geometria, da álgebra. Além delas, conheço a astronomia, a astrologia, a filosofia, a literatura, a história, o folclore de todos os povos e muito mais.

“E o barbeiro prosseguiu assim, falando e falando e falando, até que o interrompi violentamente, gritando: “Irá me enlouquecer e me matar com este transbordamento interminável de palavras, velho assassino!” 

“ – Aí está o ponto em que te enganas, mestre, replicou. Todo mundo me conhece como As-Sámet, o homem calado, pela parcimônia com que uso as palavras.” 

Essa afirmação pôs-me completamente fora de mim mesmo. Senti meu fel prestes a romper-se. Gritei a um de meus criados:

“Dá um quarto de dinar a este homem e manda-o embora. De qualquer forma, nunca me cortará o cabelo.”

“Ao ouvir a ordem dada, disse o barbeiro: “Eu poderia chamar essas palavras, palavras rudes, meu mestre. Sim, acho que qualquer um teria o direito de chamá-las palavras rudes. Permite-me dizer que não te dás conta de que desejo ter a honra de atender-te sem pensar em dinheiro. E já que me ofereço para cortar-te o cabelo sem retribuição, como podes imaginar que aceitaria dinheiro sem te ter prestado um serviço correspondente? Não, não, nunca poderia conceber uma coisa dessas. Considerar-me-ia desonrado por toda a vida se aceitasse a menor retribuição. Vejo claramente que não fazes justiça a meu valor. Isso não me impede de ter uma ideia exata de teu próprio valor. Asseguro-te que te considero digno em tudo de teu grande e lamentado pai, para quem peço a compaixão de Alá. Ele era mesmo um fidalgo. Sim, teu querido velho pai era um fidalgo. Tenho para com ele uma dívida. Por algum motivo, ele sempre me cumulou com favores. Nunca houve homem mais generoso, nunca houve homem igual na sua grandeza se me permites falar assim; e por algum motivo, ele me estimava muito. Lembro-me, como se fosse ontem, do dia em que teu bondoso pai me fez chamar. Achei-o cercado por visitantes ilustres; mas deixou-os assim que cheguei e veio até mim e cumprimentou-me, dizendo: “Meu bom amigo, peço-te que me sangres hoje.” Aí abri meu astrolábio, medi a altura do sol e descobri que, naquela hora exata, a sangria não era aconselhada, mas que o seria momentos depois. Comuniquei minhas conclusões a teu pai - que pena que tal patrão tenha ido para a eternidade! Acreditou em mim sem fazer uma pergunta, e ficou batendo papo comigo como se fosse meu amigo e não meu amo, até que soou a hora certa para a operação. Sangrei-o então. Ele sangrou bem, pois era sempre um bom paciente, e agradeceu-me calorosamente. E não apenas ele. Seus amigos se juntaram a ele e me agradeceram também. Agora, estou me lembrando de um fato que esquecia quando comecei esta história: teu honroso pai, satisfeito com a sangria, deu-me cem dinares de ouro.” 

O adolescente interrompeu sua narração e, olhando para todos os presentes, disse: 

“Estaria assassinando-vos como este malvado barbeiro me assassinou se continuasse a repetir aquela enxurrada de palavras enfadonhas, ocas, irritantes com que este patife me torturou. Não havia meio de livrar-me dele, nem de levá-lo a me cortar o cabelo, nem de obrigá-lo a calar-se. A certa altura, fez um grande descobrimento: descobriu que era um chato! Disse-me: “Receio estar irritando-te, ó jovem.” Mas logo acrescentou uma frase que o retratava definitivamente. Disse: “Contudo, sou sábio demais para me importar com detalhes como este.” E recomeçou a falar, falar, falar.

“Por fim, começou a cortar-me o cabelo. Mas parava a cada movimento para falar, falar, falar. Eu estava desesperado para livrar-me dele e de sua horrível presença, pois a hora de meu encontro com a filha do cádi se aproximava. Em desespero de causa, disse-lhe: “Estou com pressa porque vou a uma festa na casa de um amigo.” “Mal ouviu a palavra festa, quis acompanhar-me. Para fazê-lo desistir, dei-lhe todas as provisões de minha casa para que fosse festejar com seus amigos. Mas nem isso me libertou dele. Mandou um escravo levar as provisões para sua casa e seguiu-me secretamente na rua para me espionar. Quando entrei na casa do cádi para ver a filha antes da chegada do pai, este canalha postou-se em frente à casa e quando viu o cádi chegar, armou um escândalo desastroso. Tentando passar de um esconderijo a outro na casa do cádi, caí e quebrei a perna, e tornei-me coxo pela vida toda. 

“Lavrei então meu testamento, legando meus bens a minha família e deixei Bagdá, minha cidade natal, decidido a ir viver em qualquer lugar onde não pudesse encontrar-me face a face com este parasita calamitoso. Percorri as sete partes do mundo e estabeleci-me nesta terra longínqua, pensando estar aqui a salvo deste mastim.

“Mas eis que, ao atender ao primeiro convite social que recebo, encontro o mesmo horrendo barbeiro sentado num lugar de honra entre os convidados. Todos os gastos que fiz, a vida errante que me impus, a desgraça de ser coxo são devidos a este demônio de cabelo branco, a esta relíquia perversa e assassina. Possa Alá amaldiçoá-lo, a ele e à sua posteridade até o fim do tempo. E agora, não terei paz até que abandone este país como abandonei o meu.” 

Tendo falado assim, o jovem levantou-se e partiu. Ficamos olhando para o barbeiro que se conservava calado e cabisbaixo. 

“O jovem tem razão ou não?” perguntou-lhe um de nós.

“Por Alá, eu sabia o que fazia ao proceder como fiz. Pois assim evitei-lhe desgraças maiores. Que agradeça a Alá e a mim por ter ficado estropiado de uma perna só quando podia ter perdido as duas. Eu não sou nenhum indiscreto ou linguarudo. Ao contrário, sou um homem útil, cauteloso e, sobretudo, calado, como vereis ao ouvir minha história. Por isso, meus amigos me chamam As-Sámet, o homem calado.” 

(Na sua história, esse homem calado fala ao longo de vinte e três páginas da edição original árabe para passar em revista o comportamento de seus seis irmãos, cada um dos quais mais horrendo que o outro.)
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As Mil e Uma Noites é uma coleção de histórias e contos populares originárias do Médio Oriente e do sul da Ásia e compiladas em língua árabe a partir do século IX. As histórias que compõem as Mil e uma noites têm várias origens, incluindo o folclore indiano, persa e árabe. Não existe versão definitiva da obra, uma vez que os antigos manuscritos árabes diferem no número e no conjunto de contos. O Imperador brasileiro Dom Pedro II foi o primeiro a traduzir diretamente do árabe para o português partes da obra mais conhecida da literatura árabe, e o fez com um rigor raro para a época. Já em idade avançada, aos 62 anos, ele começou o processo, o último registro de texto traduzido é de novembro de 1891, um mês antes de sua morte.

O que é invariável nas distintas versões é que os contos estão organizados como série de histórias em cadeia narrados por Xerazade, esposa do rei Xariar. Este rei, louco por haver sido traído por sua primeira esposa, desposa uma noiva diferente todas as noites, mandando matá-las na manhã seguinte. Xerazade consegue escapar a esse destino contando histórias maravilhosas sobre diversos temas que captam a curiosidade do rei. Ao amanhecer, Xerazade interrompe cada conto para continuá-lo na noite seguinte, o que a mantém viva ao longo de várias noites - as mil e uma do título - ao fim das quais o rei já se arrependeu de seu comportamento e desistiu de executá-la.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Irmãos Grimm (A cotovia)

Era uma vez um homem que ia fazer uma viagem muito grande. Ao despedir-se de suas três filhas, perguntou o que desejavam que lhes trouxesse. A mais velha pediu pérolas; a segunda diamantes; a terceira disse:

- Pai querido, desejo que me tragas uma cotovia que saiba cantar e saltar.

- Se eu a encontrar, será tua! - E, beijando as três filhas, partiu.

Quando  chegou a época de regressar, tinha já comprado os diamantes e as pérolas para as duas filhas mais velhas, mas quanto à cotovia que lhe pedira a mais moça, não havia podido encontrá-la em lugar algum e isso lhe fazia pesar a consciência, pois aquela filha era a sua preferida.

Aconteceu que seu caminho passava por uma floresta, no meio da qual havia um palácio maravilhoso. Perto dele se erguia uma árvore. E eis que no alto dessa árvore o homem descobriu uma cotovia que lá estava cantando e saltitando.

- Vens muito  a propósito! - exclamou alegremente. 

Chamou o criado e mandou que subisse à copa da árvore para apanhar o passarinho. No entanto, ao acercar-se, um leão que estava deitado à sua sombra, saltou, feroz, sacudindo a juba e rugindo de tal maneira que a folhagem das árvores em redor chegou a tremer.

- Devorarei quem tentar roubar minha cotovia.

O homem, então, desculpou-se, dizendo:

- Ignorava que o pássaro fosse teu; repararei minha falta e te pagarei bom preço em dinheiro. Peço, apenas, que me poupes a vida.

Respondeu-lhe o leão:

- Nada poderá salvar-te, exceto a promessa de me entregares o que primeiro venha a teu encontro quando chegares à tua casa. Se te serve esta condição, eu te pouparei a vida e ainda darei o pássaro para tua filha.

Mas o homem negou-se, argumentado:

- Poderia ser minha filha mais moça, que é a que mais estimo. Ela sai sempre ao meu encontro quando volto para casa.

O criado, louco de medo, interferiu:

- Não há de ser, precisamente, sua filha que irá ao seu encontro; talvez seja um gato ou um cachorro.

O   homem acabou se convencendo e, apanhando a cotovia, prometeu dar ao leão quem primeiro lhe viesse ao encontro quando chegasse em casa.

De regresso ao seu país e chegando à sua moradia, quem primeiro saiu a recebê-lo? Precisamente a sua filha querida! Correu, logo, a beijá-lo e, vendo a cotovia, não cabia em si de contente. O pai, no entanto, em vez de alegrar-se, começou a chorar, dizendo:

- Filhinha querida, pagarei bem caro por esta pequena ave, pois devo entregar-te a um leão feroz que irá te estraçalhar e comer. 

Depois contou o que sucedera, pedindo-lhe que não fosse, acontecesse o que acontecesse. A jovem, porém, consolou-o.

- Paizinho querido, deves cumprir tua palavra. Irei e estou certa de que vou conseguir amansar o leão e regressar sã e salva.

Na manhã seguinte, pediu que lhe indicassem o caminho e, depois de despedir-se de todos, entrou, confiante, na floresta. Acontecia, porém, que o leão era  um príncipe encantado, o qual durante o dia  tinha a forma daquele animal, bem como os seus criados, mas à noite todos eles recobravam suas figuras humanas. Quando a moça chegou, foi acolhida amavelmente e conduzida ao palácio, e ao anoitecer, viu à sua frente um belíssimo jovem, com quem se casou em meio de grande pompa. Viviam, assim, muito felizes, acordados durante a noite e dormindo de dia. 

Certa ocasião, quando voltava ao palácio, lhe disse o príncipe:

- Amanhã tua irmã mais velha casa-se e haverá festa no teu lar; se quiseres tomar parte , meus leões te acompanharão.

Ela respondeu que sim, que muito lhe agradaria tornar a ver seu pai, e logo seguiu caminho, escoltada pelos leões. Em sua casa todos a receberam com imensa alegria, pois acreditavam que o leão a houvesse  estraçalhado e, portanto, que ela estava morta há muito tempo. Mas a moça lhes contou que belo marido tinha e como viviam felizes. Ficou com os  seus até o fim da festa e depois retornou ao bosque. 

Quando a segunda filha ia também casar-se, naturalmente a princesa foi convidada e disse ao leão:

- Não quero ir só. Desta vez deves acompanhar-me.

Mas o marido lhe explicou que seria extremamente perigoso. pois logo que o tocasse um raio de luz procedente de um fogo qualquer, ele se transformaria em pomba sendo, então, obrigado a voar durante sete anos como aves.

- Nada temas! - exclamou a moça.- Vem comigo que eu te resguardarei de qualquer raio de luz.

Partiram os dois, levando seu filhinho. A princesa, ao chegar em casa, ordenou logo que construíssem um muro ao redor de uma das salas, tão forte e espesso que nenhum raio de luz fosse capaz de atravessá-lo. seu esposo permaneceria ali enquanto estivessem acesas as luzes da festa. 

Mas aconteceu que a porta, que era de madeira verde, rachou, abrindo-se uma  pequeníssima fresta da qual ninguém se deu conta. A cerimônia foi realizada com grande esplendor e quando a comitiva, de regresso, passava diante da sala com suas tochas e velas acesas, um raio luminoso, fino como um cabelo, atingiu o príncipe. No mesmo instante o jovem transformou-se e sua esposa, ao entrar na sala, não viu senão uma pomba branca, que lhe falou:

- Durante sete anos terei de voar, errante pelo mundo . Entretanto, de quando em quando, deixarei cair uma gota vermelha de sangue e uma pena branca que te mostrarão o caminho. Se seguires essa pista, poderás libertar-me.

A pomba saiu voando pela porta e a princesa a seguiu. A cada sete passos que ela dava, caíam uma gotinha de sangue vermelho e uma peninha branca, indicando-lhe o caminho. A moça continuou a andar pelo vasto mundo, sem olhar para trás nem cansar-se nunca. Assim o tempo foi passando e quando já quase haviam passado os sete anos, a princesa pensou, alegremente, que em breve estariam libertados do encanto. A pobrezinha nem supunha como ainda estava longe de alcançar o seu propósito. 

Certa vez, já pronta para prosseguir sua caminhada, notou, de repente, que as gotinhas de sangue não caíam mais, nem as peninhas brancas. E, quando ergueu os olhos, não viu nem sinal da pomba. A princesa, chegando à conclusão de que os humanos não poderiam ajudar, subiu ao encontro do Sol e lhe disse:

- Tu, que iluminas todas as  frinchas e todos os recantos, não terás visto uma pomba branca?

- Não - respondeu-lhe o Sol - não vi nenhuma, mas faço-te presente de um cofre que deverás abrir quando te achares em grande dificuldades.

A princesa agradeceu ao Sol e seguiu caminhando até cair da noite. Quando saiu a Lua, dirigiu-se a ela, perguntando:

- Tu, que brilhas toda noite e iluminas campos e florestas, não terás visto uma pomba branca?

- Não - retrucou a lua - não vi; mas faço-te presente de um ovo. Quebra-o quando te encontrares em grandes dificuldade.

A jovem agradeceu à lua e continuou sua jornada até que a brisa noturna começou a soprar. Dirigiu-se, também, a ela, indagando:

-  Tu, que sopras sobre todas as árvores e sobre todas as folhas, não viste uma pomba branca?

- Não - respondeu-lhe a brisa- não vi nenhuma, mas perguntarei aos outros três ventos; talvez eles a tenham visto.

Veio o vento leste e o vento oeste, mas nenhum deles tinha visto nada; depois surgiu o vento sul, que disse:

- Vi a pomba branca; voou até o Mar Vermelho e lá voltou a transformar-se em leão, pois os sete anos já passaram . Ali ele está em combate feroz com um dragão, porém é uma princesa encantada.

A brisa noturna, então, falou:

- Vou dar-te o meu conselho. Vai até o Mar Vermelho. Em sua margem direita há umas varas muito grandes. Conta-as e corta a décima-primeira; com ela golpeia o dragão. Em seguida o leão o vencerá e ambos retomarão a forma humana. Logo depois, olha ao redor e verás a ave chamada grifo, que habita as paragens do Mar Vermelho. Tu e teu amado deverão montar nela e o animal os levará de volta para casa, voando por cima do mar. Aqui dou-te uma noz. Quando te encontrares sobre o mar, solta-a e brotará logo e da água surgirá uma nogueira grande, onde a ave poderá descansar. Se não puder fazê-lo, não terá força suficiente para transportá-los até a margem oposta. Caso te esqueças de soltar a noz, o grifo os lançará no mar.

Partiu a jovem princesa e tudo se sucedeu tal como dissera a brisa noturna. contou as varas da beira do mar, cortou a décima-primeira e com ela golpeou o dragão. Em seguida o leão venceu o combate e, no mesmo instante, ambos recuperaram suas respectivas figuras humana. Mas, logo que a outra princesa - a que estivera encantada em forma de dragão - ficou livre do feitiço, tomou o jovem pelo braço, montou com ele no grifo e levantou voo, abandonando a desventurada esposa, que ficou a chorar, amargamente. 

Por fim, criando coragem, pensou:- "Enquanto o vento soprar e o galo cantar, continuarei andando, até encontrá-los."

Percorreu longos, longos caminhos, e chegou finalmente, ao palácio onde os dois moravam . Ali ficou sabendo que iria ser celebrada a festa de seu casamento. 

Disse ela:" Deus me ajudará" e, abrindo o cofre que lhe dera o Sol, viu que havia dentro um vestido brilhante como o próprio astro-rei. Vestiu-o e entrou no palácio, onde todos os presentes, inclusive a própria noiva, ficaram olhando para ela, assombrados. O vestido agradou tanto à noiva que pensou em comprá-lo para seu casamento. Assim, perguntou  à forasteira se não o queria vender.    

- Por dinheiro não, - respondeu ela - mas troco-o por carne e sangue.

A  noiva perguntou o que queria dizer com aquelas palavras e ela lhe respondeu:

- Deixa-me dormir uma noite no mesmo quarto em que dorme o noivo.

De início a princesa negou-se. No entanto, como desejava muito o vestido, acabou concordando. Mas mandou a camareira dar secretamente ao príncipe alguma coisa que o fizesse adormecer. Chegada a noite, quando ele já dormia profundamente, introduziram a jovem no aposento. esta sentou à beira do leito e falou:

- Eu te segui durante sete anos; fui ao Sol, à Lua e aos quatro ventos perguntar por ti e ainda te ajudei contra o dragão. E, agora, vais esquecer-me?

Mas o príncipe, em sono profundo, só percebeu um ligeiro rumor como o do vento passando entre os pinheiros.

Pela manhã, a  jovem foi despedida e entregou o vestido. Ao ver que tudo aquilo de nada servira, dirigiu-se para o campo, onde triste e amargurada, sentou-se a chorar. Nisto se lembrou do ovo que a Lua lhe havia dado. Quebrou-o e apareceram uma galinha e doze pintinhos, todos de ouro, que corriam, ligeiros, piando e voltavam a refugiar-se embaixo das asas da mãe. Era um espetáculo sem igual no mundo. Levantou-se e deixou-os correr pelo campo, até que a noiva os viu de sua janela e, agradando-se dos pintinhos, desceu para  perguntar se ela queria vendê-los.

- Por dinheiro não - respondeu a jovem - Só os darei em troca de carne e sangue. Permite que eu passe outra noite no quarto do noivo?

A princesa consentiu, pensando em enganá-lo como da vez passada. Mas o príncipe, ao ir deitar-se, perguntou a seu camareiro que rumores eram aqueles  que haviam agitado seu sono na outra noite. O criado, então, contou tudo o que aconteceu: que lhe haviam mandado dar-lhe uma bebida para dormir porque uma moça queria passar a noite em seu quarto e que agora estava incumbido de administrar-lhe nova dose. 

Disse-lhe o príncipe:

- Derrama o narcótico ao lado da cama.

E, novamente, sua esposa foi introduzida no aposento. Quando começou a contar sua triste sorte, ele  a reconheceu pela voz e, erguendo-se de um salto, exclamou:

- Agora estou livre de todo o feitiço. Tudo isso foi um como um sonho para mim, pois a princesa estranha me encantou e  obrigou a esquecer-te. Deus, porém, veio libertar-me, em tempo, da perda de minha memória.

E os dois esposos partiram, em segredo, do palácio, auxiliados pela escuridão da noite, pois temiam o pai da princesa, que era bruxo. Montaram no grifo, que os levou através do Mar Vermelho e , quando chegaram na metade, a princesa soltou a noz. Em seguida surgiu das águas uma nogueira muito grande onde a  ave pôde descansar, levando-os depois à sua casa. Lá encontraram seu filhinho, já crescido e lindo, e viveram felizes até o fim de seus dias.
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Folcloristas e escritores de contos infantis, Jacob Ludwing Carl Grimm (1785-1863) e Wilhelm Carl Grimm (1786-1859) nasceram em Hanau, no Grão-ducado de Hesse, na Alemanha. Receberam formação religiosa na Igreja Calvinista Reformada. Das nove crianças da família só seis chegaram à idade adulta. Os Irmãos Grimm passaram a infância na aldeia de Steinau, onde o pai era funcionário de justiça e Administração do conde de Hessen. Em 1796, com a morte repentina do pai, a família passou por dificuldades financeiras. Em 1798, Jacob e Wilhelm, os filhos mais velhos, foram levados para a casa de uma tia materna na cidade de Hassel, onde foram matriculados numa escola. Depois de concluído o ensino médio, os irmãos ingressaram na Universidade de Marburg. Estudiosos e interessados nas pesquisas de manuscritos e documentos históricos, receberam o apoio de um professor, que colocou sua biblioteca particular à disposição dos irmãos, onde tiveram acesso às obras do Romantismo e às cantigas de amor medievais. Depois de formados, os Irmãos Grimm se fixaram em Kassel e ambos ocuparam o cargo de bibliotecário. Em 1807, com o avanço do exército francês pelos territórios alemães, a cidade de Kassel passou a ser governada por Jérome Bonaparte, irmão mais novo de Napoleão, que a tornou capital do reino recém-instalado, Reino da Vestfália. Essa situação despertou o espírito nacionalista do romantismo alemão. A busca das raízes populares da germanidade estava em voga. Os irmãos reivindicaram a origem alemã para histórias conhecidas também em outros países europeus – como Chapeuzinho Vermelho, registrada pelo francês Charles Perrault bem antes do século XVII. No final de 1812, os irmãos apresentaram 86 contos coletados da tradição oral da região alemã do Hesse em um volume intitulado “Kinder-und Hausmärchen”, Contos de Fadas para o Lar e as Crianças. Em 1815 lançaram o segundo volume, Lendas Alemãs, no qual reuniram mais de setenta contos. Em 1840 os irmãos mudaram-se para Berlim onde iniciaram seu trabalho mais ambicioso: Dicionário Alemão. A obra, cujo primeiro fascículo apareceu em 1852, mas não pode ser terminada por eles. Faleceram em Berlim Wilhelm em 1859 e Jacob em 1863.
Fontes:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.
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segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Cailin Dragomir (Histórias de Moșneagul*) A Árvore e o Riacho

Em uma aldeia cercada por montanhas e florestas, havia uma grande árvore que se erguia majestosa no centro de um vale. Seus galhos se estendiam como braços acolhedores, e suas folhas verdes eram um abrigo para muitos pássaros. A árvore era antiga e sabia de muitos segredos, observando as estações passarem e as vidas das pessoas que ali viviam.

Um dia, um riacho começou a correr em direção à árvore. Ele era pequeno e tímido, mas tinha um sonho: queria ser grande e forte, como o rio que fluía na montanha. 

Ao se aproximar da árvore, o riacho parou e a saudou.

- Olá, grande árvore! - disse ele. - Você é tão forte e imponente. Eu gostaria de ser como você, mas sou apenas um pequeno riacho.

A árvore sorriu e respondeu:

- Meu querido riacho, cada um tem seu próprio caminho. A força não está apenas em ser grande, mas em saber quando fluir e quando parar. Você tem um papel importante a desempenhar. Sem você, a vida ao seu redor não poderia prosperar.

Intrigado, o riacho perguntou:

- Como assim, grande árvore?

A árvore explicou:

- Você dá vida à terra ao seu redor. Suas águas ajudam as flores a crescer, os animais a beber e as árvores a se fortalecerem. Sua importância é imensa, mesmo que você não a veja.

O riacho refletiu sobre as palavras da árvore e, a partir daquele dia, começou a ver o mundo de outra forma. Ele não apenas fluiu, mas também se deteve para criar pequenas poças onde os pássaros podiam beber e onde as crianças da aldeia podiam brincar.

Com o tempo, o riacho cresceu e se tornou um rio. E quanto mais ele crescia, mais ele lembrava das palavras da árvore. Ele nunca esqueceu que sua verdadeira força estava em servir aos outros.

Anos depois, durante uma grande tempestade, o rio ficou agitado e ameaçador. As águas subiram e uma enchente começou a levar tudo em seu caminho. Mas o riacho, agora um rio sábio, lembrou-se da árvore. Ele se deteve, dividindo suas águas em duas direções, evitando que a enchente causasse mais destruição.

Quando a tempestade passou, a aldeia estava em segurança, e todos celebraram a coragem do rio. A árvore, observando de sua posição elevada, sorriu, sabendo que o riacho, que um dia se sentiu pequeno, havia se tornado um guardião.

Moșneagul concluiu a história com um sorriso sereno:

- Meus amigos, lembrem-se: mesmo os menores de nós têm um papel a desempenhar. A verdadeira força não está em tamanho, mas em como usamos nossos dons para ajudar os outros e a natureza. Cada um de nós pode ser uma árvore ou um riacho, desde que façamos o bem.
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* Nota do autor:
Moșneagul, que significa "o velho" em romeno, é uma figura arquetípica nas tradições folclóricas da Romênia. Ele representa a sabedoria acumulada ao longo dos anos e a conexão profunda com a cultura e as tradições locais. É frequentemente retratado como um sábio que possui um vasto conhecimento sobre a vida, a natureza e as relações humanas. Ele serve como mentor para jovens e adultos, oferecendo conselhos valiosos e orientações que muitas vezes são baseadas em experiências pessoais e sabedoria popular. As histórias contadas por ele são uma parte essencial da cultura romena. Elas geralmente abordam temas universais, como amor, amizade, coragem, e a luta entre o bem e o mal. Suas narrativas muitas vezes incluem elementos do folclore, como criaturas míticas, heróis e lições morais. Ele frequentemente menciona plantas, animais e fenômenos naturais em suas histórias, usando-os como metáforas para ensinar lições sobre a vida e a convivência harmoniosa com o meio ambiente. 

Uma das principais funções de Moșneagul é transmitir a sabedoria das gerações passadas. Suas histórias são uma forma de preservar a memória cultural, passando adiante tradições, costumes e valores que poderiam se perder com o tempo. Moșneagul é muitas vezes visto como a personificação da tradição e da cultura romena. Ele representa a voz do povo, refletindo suas esperanças, medos e aspirações. Suas histórias ajudam a manter a identidade cultural viva, especialmente em tempos de mudança. Apesar da profundidade de suas lições, as histórias de Moșneagul frequentemente contêm humor e ironia. Ele utiliza o riso como uma forma de ensinar, fazendo com que as pessoas reflitam sobre suas próprias vidas de maneira leve e acessível.

As histórias de dele não apenas educam, mas também fortalecem a coesão social na aldeia. Elas criam um senso de pertencimento e identidade, unindo as pessoas em torno de valores compartilhados. Ele é mais do que um simples contador de histórias; ele é um símbolo da sabedoria coletiva, uma ponte entre o passado e o presente, e um farol de esperança e inspiração para todos que o ouvem.
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Cailin Dragomir nasceu em 1949, na vibrante cidade de Timișoara, na Romênia. Desde cedo, demonstrou uma paixão inata pela literatura e pela arte das palavras. Ele cresceu em um ambiente que refletia a rica herança cultural da sua cidade, onde a música e a poesia se entrelaçavam nas conversas cotidianas. Após concluir o ensino médio, ingressou na Universidade, onde se destacou em seus estudos de literatura. Sua dedicação e talento o levaram a continuar sua formação acadêmica, culminando em um pós-doutorado. Durante esse período, ele mergulhou na obra de grandes poetas romenos e internacionais, desenvolvendo um estilo próprio que misturava o lirismo clássico com uma abordagem contemporânea. Em 1992, tomou a decisão de se mudar para o Brasil, em busca de novas oportunidades e experiências. Ao chegar ao país, ele se estabeleceu em São Paulo, onde rapidamente se destacou como professor de literatura. Suas aulas eram conhecidas pela abordagem criativa e envolvente, inspirando os estudantes a apreciar a literatura de maneira profunda e significativa. Além de sua carreira acadêmica, cultivava uma paixão pelo xadrez. Ele se tornou um jogador forte e respeitado, participando de torneios e promovendo o jogo entre seus alunos. Dragomir acreditava que o xadrez, assim como a literatura, era uma forma de arte que desenvolvia o pensamento crítico e a estratégia, habilidades essenciais tanto na vida quanto na escrita. Ao longo de sua vida, Cailin Dragomir se estabeleceu como uma figura influente na cena literária e educacional, deixando um legado duradouro tanto na Romênia quanto no Brasil. A influência da cultura romena em sua poesia se manifesta em diversos aspectos de sua obra. A rica tradição literária da Romênia, que inclui poetas como Mihai Eminescu e George Coșbuc, moldou a sensibilidade estética dele. Ele usa uma linguagem lírica e metafórica, incorporando elementos do folclore e da mitologia romena, que são essenciais na poesia romena clássica. A natureza é um tema recorrente na poesia romena, e Dragomir não é exceção. Suas descrições vívidas de paisagens romenas, como as montanhas dos Cárpatos e os campos de flores, refletem uma profunda conexão com o ambiente natural, transmitem uma sensação de integração e nostalgia.
       A riqueza do folclore romeno permeia sua poesia, com referências a mitos, lendas e tradições populares. Utiliza esses elementos para criar uma ponte entre a modernidade e as raízes culturais, trazendo à tona a sabedoria ancestral que ainda ressoa na vida contemporânea. A poesia romena é conhecida por sua profundidade emocional e introspecção. Seguindo essa tradição, explora sentimentos complexos como amor, perda e saudade, utilizando uma abordagem que reflete tanto a sensibilidade individual quanto a experiência compartilhada do povo romeno. Ele muitas vezes incorpora ritmos e cadências que evocam a sonoridade da música popular romena, criando uma harmonia entre palavra e som que enriquece a experiência do leitor.
       Após sua mudança para o Brasil, passou a incorporar a experiência da diáspora em sua poesia. Essa nova perspectiva enriqueceu sua obra, permitindo uma fusão de influências culturais que resultou em uma poesia mais ampla, reflexiva e acessível a diferentes públicos. 
       Em suas obras faz referências a figuras mitológicas romenas, como "Zmeu", um dragão que frequentemente aparece em contos populares. Ele utiliza essa figura para simbolizar desafios e superações, inserindo a luta contra o Zmeu como uma metáfora para as dificuldades da vida. Também é comum encontrar menções a "nossas montanhas", como os "Cárpatos", que não apenas servem como cenário, mas também como símbolo de resistência e força. Cailin pode descrever a beleza dessas montanhas em relação à história do povo romeno, evocando sentimentos de pertencimento. Ele inclui personagens folclóricos como "Moșneagul" (o velho sábio) e "Zână" (a fada), representando a sabedoria ancestral e a proteção, respectivamente. Esses personagens são frequentemente utilizados para transmitir lições de vida e a importância das tradições. Além disso, faz alusão a festivais tradicionais, como "Mărțișor", que celebra a chegada da primavera. Em seus versos, ele descreve a troca de fitas brancas e vermelhas como um símbolo de renovação e esperança, refletindo a alegria da vida. Histórias de amores impossíveis, como a lenda de "Făt-Frumos" e "Ilena Cosânzeana", podem ser exploradas em sua poesia. Ele usa essas narrativas para abordar temas de amor e sacrifício, conectando a experiência pessoal com a tradição. Há a presença de criaturas míticas, como o "Chimera" ou o "Roc", descrevendo esses seres como guardiões de segredos e mistérios, simbolizando os desafios que todos enfrentamos em busca de conhecimento. Esses elementos folclóricos não apenas enriquecem a poesia de Cailin Dragomir, mas também criam uma ponte entre o passado e o presente, permitindo que ele dialogue com suas raízes culturais enquanto se adapta a novas influências. Essa fusão é uma das marcas distintivas de sua obra.
          Como poeta, Dragomir publicou três livros : 1. "Ecos da Alma" - Uma coletânea de poemas introspectivos que exploram a complexidade das emoções humanas; 2. "Sussurros da Memória" - Uma obra que reflete sobre o passado, a nostalgia e a busca pela identidade; 3. "Caminhos de Luz" - Uma série de poemas que celebram a beleza da natureza e a conexão entre o ser humano e o mundo ao seu redor.
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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quarta-feira, 17 de setembro de 2025

J. E. Hanauer (Sátira) 1


Havia certa vez em Jerusalém um jovem padre que, além de saber de cor a liturgia do dia-a-dia, aprendera a ler um capítulo da Bíblia em árabe que adorava recitar diante da sua congregação. Ele sempre começava:”Então Deus disse a Moisés...”.

A primeira vez que leu isto, os fiéis se deleitaram e se surpreenderam com a sua erudição; mas logo cansaram deste sermão, que era repetido domingo após domingo. 

Então uma manhã, antes do serviço, um dos fiéis entrou na igreja e retirou a marcação da bíblia do padre. Quando, durante o serviço religioso, chegou o momento daquela leitura, o padre abriu a bíblia e começou, confiante: “Então Deus disse a Moisés...”. Mas ao olhar para a página diante dele, não a reconheceu; só aí percebeu que a sua marcação fora removida. 

Perturbado, começou a virar as páginas freneticamente, esperando encontrar o seu capítulo. Mais de uma vez imaginara tê-lo encontrado, e então recomeçava: “Então Deus disse a Moisés...”, mas não sabia como continuar. 

Finalmente um ancião da congregação, intrigado com a repetição daquela frase, perguntou: “Padre, o que Deus disse a Moisés?”

E o padre respondeu furiosamente: 

“Ele disse: Que Deus destrua a casa do desgraçado que retirou a marcação do meu livro!”.
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James (John) Edward Hanauer (Damasco/Síria, 1850–1938, Jerusalém) foi autor, fotógrafo e cônego de São. Catedral de Jorge em Jerusalém. Hanauer nasceu de pais judeus e suíços bávaros em Damasco e batizado em Jaffa (então Síria otomana); ele se mudou para Jerusalém ainda jovem. Seu pai, Christian Wilhelm Hanauer, nasceu na Baviera, em 1810, mas foi para Jerusalém e converteu-se do judaísmo ao cristianismo em 1843. J.E. Hanauer foi contratado para Expedição Arqueológica de Carlos Warren na Transjordânia, como tradutor e fotógrafo assistente, o início de seu interesse em pesquisas sobre as antiguidades e folclore da região o levaram ao seu envolvimento com o Fundo de Exploração da Palestina. Seus artigos e correspondência foram publicados no Declaração Trimestral da sociedade britânica depois de 1881, que também publicou seu livreto Tabela das Eras Cristã e Maometana em 1904; ele recebeu equipamentos fotográficos de alta qualidade para complementar suas produções. Algumas de suas coleções de fotografias foram reproduzidas em sua obra de 1910, Caminhadas sobre Jerusalém; seu irmão e o filho também atuavam neste campo. Em 1907 lança o Folclore da Terra Santa: muçulmano, cristão e judeu, publicado em Londres. Hanauer morreu em sua casa em Jerusalém em 1938. Foi posteriormente enterrado no Cemitério Protestante de Jerusalém, Cemitério Monte Sião.

Fontes:
J.E. Hanauer. Mitos, lendas e fábulas da Terra Santa. SP: Landy, 2005. Disponível em Domínio Público.  
Biografia = https://en.wikipedia.org/wiki/J._E._Hanauer
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segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Zitkala-Ša (Manstin, o coelho)

(tradução do inglês por José Feldman)
MANSTIN era um aventureiro valente, mas muito bondoso. Batendo o pé com um mocassim enquanto calçava suas perneiras de pele de veado, disse:

“Vovó, cuidado com Iktomi! Não deixe que ele a atraia para alguma armadilha astuta. Estou indo para o norte em uma longa caçada.”

Com essas palavras de cautela para a avó coelha curvada com quem vivia desde pequeno, Manstin partiu em direção ao norte. Mal havia atravessado as grandes colinas altas quando ouviu o grito de uma criança humana.

"Wan!", exclamou, apontando suas longas orelhas na direção do som; "Wan! Isso é obra do cruel Duas-Caras. Covarde sem-vergonha! Ele se deleita em torturar criaturas indefesas!"

Murmurando palavras indistintas, Manstin subiu correndo a última colina e eis que na ravina além estava o terrível monstro com um rosto na frente e outro atrás da cabeça!

Este gigante marrom estava sem roupas, exceto por uma pele de gato selvagem em volta dos lombos. Com um olhar perverso e brilhante, ele observava o pequeno bebê de cabelos negros que segurava em seu braço forte. Com uma voz risonha, cantarolou uma canção de ninar de uma mãe indígena: "A-bu! Abu!" e, ao mesmo tempo, trocou o bebê nu com uma roseira brava espinhosa.

Rapidamente, Manstin pulou para trás de um grande arbusto de sálvia no topo da colina. Dobrou o arco e a corda vigorosa vibrou. Uma flecha se cravou acima da orelha de Duas-Caras. Era uma flecha envenenada, e o gigante caiu morto. 

Então, Manstin pegou o pequeno bebê marrom e correu para longe da ravina. Logo chegou a uma tenda de onde vinham altas vozes de lamento. Era a tenda do bebê roubado e os enlutados eram seus pais de coração partido.

Quando o galante Manstin devolveu a criança aos braços ávidos da mãe, um terror repentino surgiu nos olhos de ambos os Dakotas. Eles temiam que fosse Cara-Dupla vindo com uma nova roupagem para torturá-los.

O coelho compreendeu o medo deles e disse: "Eu sou Manstin, o bondoso, — Manstin, o famoso caçador. Eu sou seu amigo. Não tenha medo.”

Naquela noite, algo estranho aconteceu. Enquanto o pai e a mãe dormiam, Manstin pegou o bebezinho. Com os pés colocados gentilmente, porém com firmeza, sobre os dedinhos da criança, ele puxou para cima, com cada mãozinha, a criança adormecida até que se tornasse um homem adulto. Com o indicador, traçou uma fenda no lábio superior; e quando, no dia seguinte, o homem e a mulher acordaram não conseguiam distinguir o filho de Manstin, tão parecidos eram os bravos.

“De agora em diante, somos amigos, para nos ajudarmos”, disse Manstin, apertando a mão direita em despedida. “A terra é o nosso ouvido comum, para carregar de seus extremos o menor desejo de um pelo outro!”

“Oh! Que assim seja!” respondeu o homem recém-criado.

Ao deixar o amigo, Manstin correu em direção à região do Norte para onde se dirigia para uma longa caçada. 

De repente, chegou à beira de um largo riacho. Seu olhar atento avistou uma corda de couro cru presa à beira da água, que levava a uma pequena cabana redonda ao longe. O chão estava pisado em um sulco profundo sob a corda de couro cru, que estava frouxa.

"Hun-he!" exclamou Manstin, curvando-se sobre as pegadas recém-feitas na margem úmida do riacho. "Pegadas de um homem!", disse para si mesmo.

"Um cego mora naquela cabana! Esta corda é o guia que ele usa para buscar água todos os dias!", supôs Manstin, que conhecia todos os costumes peculiares das pessoas. Imediatamente, seus olhos se fixaram na morada solitária e para lá seguiu sua curiosidade — uma verdadeira corda de um cego.

Silenciosamente, levantou a portinhola e entrou. Um velho avô desdentado, cego e trêmulo pela idade, estava sentado no chão. Ele não era surdo, porém. Ouviu a entrada e sentiu a presença de um estranho.

"Hau, neto", murmurou, pois tinha idade suficiente para ser avô de todos os seres vivos, "Hau! Não consigo te ver. Por favor, diga seu nome!"

"Vovô, eu sou Manstin", respondeu o coelho, olhando o tempo todo com olhos curiosos ao redor da tenda. "Vovô, o que é isso tão apertado em todos esses sacos de pele de veado colocados contra os postes da tenda?".

“Meu neto, essas são carne de búfalo e veado secas. São sacos mágicos que nunca se esvaziam. Sou cego e não posso caçar. Por isso, um Criador bondoso me deu estes sacos mágicos com os melhores alimentos.”

Então, o velho curvado puxou uma corda que estava em sua mão direita.

“Isso me leva ao riacho onde bebo! E isso”, disse ele, virando-se para o que estava à sua esquerda, “me leva para a floresta, onde procuro gravetos secos para o meu fogo.”

“Avô, eu queria viver com tanto luxo! Eu me encostaria em um mastro de tenda e, com os pés cruzados, fumaria casca de salgueiro-doce pelo resto dos meus dias”, suspirou Manstin.

“Meu neto, seus olhos são o seu luxo! Você seria infeliz sem eles!”, respondeu o velho.

“Avô, eu lhe daria meus dois olhos pelo seu lugar!”, exclamou Manstin.

“Hau! Você disse isso. Levante-se. Arranque seus olhos e me dê. De agora em diante, você estará em casa aqui, em meu lugar.”

Imediatamente, Manstin arrancou os dois olhos e o velho os colocou! Alegrando-se, o velho avô se afastou com seus olhos jovens enquanto o coelho cego enchia seu cachimbo dos sonhos, encostado preguiçosamente no mastro da tenda. Por um breve período, foi um passatempo muito agradável fumar casca de salgueiro e comer dos sacos mágicos.

Manstin sentiu sede, mas não havia água na pequena casa. Pegando uma das cordas de couro cru, ele se dirigiu ao riacho para matar a sede. Ele era jovem e não estava disposto a caminhar lentamente pela trilha do velho. Estava cheio de alegria, pois fazia muitas luas desde que comera uma comida tão boa. Assim, ele saltou confiantemente, sacudindo o couro cru velho e desgastado pelo tempo espasmodicamente até que, de repente, ele cedeu e Manstin caiu de cabeça na água.

"En! En!", grunhiu ele, chutando freneticamente em meio à correnteza. Ao longo da ribanceira escorregadia, ele tentou em vão escalar, até que finalmente encontrou a velha estaca e a trilha profundamente desgastada. Exausto e interiormente enojado com seus percalços, rastejou com mais cautela, de quatro, até a porta de sua tenda. Pingando água do mergulho recente, sentou-se com os dentes batendo dentro de sua tenda sem fogo.

O sol havia se posto e o ar da noite estava frio, mas não havia lenha na casa. "Hin!" murmurou Manstin e corajosamente tentou a outra corda. "Vou buscar lenha!" disse ele, seguindo a corda de couro cru que levava para a floresta. Logo tropeçou em gravetos secos de salgueiro densamente espalhados. Ansiosamente, com as duas mãos, juntou a lenha em seu cobertor estendido. Manstin era um sujeito naturalmente enérgico.

Quando tinha uma grande pilha, amarrou duas pontas opostas do cobertor e levantou o feixe de lenha sobre as costas, mas, ai de mim! Inconscientemente, havia deixado cair a ponta da corda e agora estava perdido na floresta!

"Hin! hin!" gemeu ele. 

Então, parando por um momento, aguçou as orelhas em forma de leque para captar qualquer som de passos se aproximando. Não havia nenhum. Nem mesmo um pássaro noturno piou para ajudá-lo a sair daquele apuro.

Com uma expressão ousada, ele se assustou ao acaso.

Ele caiu em um emaranhado de madeira, onde estava preso. Manstin largou seu fardo e começou a lamentar ter doado seus dois olhos.

“Amigo, meu amigo, preciso de você! O velho avô carvalho foi com meus olhos e estou perdido na floresta!”, gritou ele com os lábios próximos à terra.

Mal havia falado, o som de vozes se tornou audível na orla da floresta. As vozes se aproximavam e se tornavam mais altas — uma era o som claro da flauta de um jovem guerreiro e a outra os guinchos trêmulos de um velho avô.

Era o amigo de Manstin com a Orelha da Terra e o velho avô.

"Aqui, Manstin, tome os olhos", disse o velho, "Eu sabia que você não ficaria contente em meu lugar, mas queria que aprendesse a lição. Eu tive prazer em ver com seus olhos e experimentar seu arco e flechas, mas como estou velho e fraco, prefiro muito mais minha própria tenda e minhas bolsas mágicas!"

Assim falando, os três retornaram à cabana. O velho avô se esgueirou para dentro de sua tenda, que muitas vezes é confundida com um mero carvalho por meninas e meninos indígenas.

Manstin, com seus próprios olhos brilhantes novamente encaixados na cabeça, partiu alegremente para caçar nas terras do Norte.
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ZITKALA-ŠA (1876-1938), que em Lakota significa 'Pássaro Vermelho', nasceu na Reserva Indígena Yankton em Dakota do Sul, filha de mãe Dakota e pai francês, que a abandonou quando criança. Aos oito anos, foi obrigada a deixar a liberdade e a felicidade da vida entre seu povo – como ela mesma dizia - para ser educada nos costumes e crenças europeus em um internato missionário Quaker. Lá ela recebeu o nome de Gertrude Simmons, seus longos cabelos foram cortados, ela foi forçada a suprimir todos os sinais e costumes de sua cultura e a rezar como uma quaker. As únicas coisas boas que resultaram disso para ela foram aprender a ler, escrever e tocar violino. Três anos depois, ela voltou para a reserva de Yankton apenas para descobrir, para sua consternação, que as pessoas na reserva estavam começando a adotar os costumes e modos de pensar dos europeus e que mesmo ela tinha um pé em cada mundo. Depois de mais três anos na reserva, ela voltou ao mundo dos brancos com a intenção de continuar sua formação musical. Ela aprendeu piano e violino e acabou ensinando música e estudando no Earlham College em Richmond, onde exibia publicamente sua bela oratória. Ao longo dos anos, cruzando repetidamente a ponte entre sua cultura e a cultura europeia, entre a reserva e o mundo branco, Zitkala-Ša acabaria se tornando escritora, editora, tradutora e ativista política, além de musicista e educadora. Ela chegaria a compor uma ópera com o compositor William F. Hanson, intitulada The Sun Dance Opera, baseada na Lakota Sun Dance, que o governo federal havia proibido o povo Ute de realizar em sua reserva. 

Em 1916, aos 30 anos, ela começou seu ativismo nativo americano ao ser nomeada secretária da Society of American Indians, uma associação dedicada à preservação do modo de vida nativo americano. Ela também fez lobby em círculos políticos pelo direito de seu povo à plena cidadania americana. De Washington DC, Zitkala-Ša fez duras críticas ao Bureau of Indian Affairs, chegando a pedir sua dissolução por causa de suas políticas de internato, pelo levantamento da proibição de crianças indígenas usarem sua própria língua e preservar seus costumes culturais. Ela denunciou os abusos que aconteciam nesses internatos sempre que um menino ou uma menina nativa se recusava a rezar de acordo com a maneira cristã.

Também de Washington ela começou a dar palestras em todo os Estados Unidos e, durante a década de 1920, começou a promover a ideia de criar um movimento pan-indígena que unisse todas as tribos da América do Norte para fazer lobby em nome dos povos nativos. Em 1924, graças em parte aos seus esforços, foi aprovada a Lei da Cidadania Indígena, concedendo direitos de cidadania americana à maioria dos povos indígenas que ainda não os possuíam. Em 1926, ela e o marido fundaram o Conselho Nacional dos Índios Americanos (NCAI), com o objetivo de unir as tribos dos Estados Unidos em sua luta pelos direitos dos índios. No entanto, Zitkala-Ša não era apenas um ativista pelos direitos das Primeiras Nações da América do Norte. Ela também esteve envolvida no ativismo pelos direitos das mulheres na década de 1920, quando ingressou na Federação Geral de Clubes Femininos. Zitkala-Ša morreu em 1938, aos 61 anos, e foi enterrada no Cemitério Nacional de Arlington, em Washington. Para homenageá-la, a União Astronômica Internacional nomeou uma cratera em Vênus "Bonnin", seu sobrenome de casada, Gertrude Simmons Bonnin.

Fontes:
Zitkala-Ša. Old Indian Legends. Publicada originalmente em 1901. 
Disponível em Domínio Público. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing