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domingo, 14 de dezembro de 2025

Autor Anônimo ( Fábula do Rei e suas 4 Esposas)


Era uma vez... um rei que tinha 4 esposas.

Ele amava a 4ª esposa demais, e vivia dando-lhe lindos presentes, joias e roupas caras.

Ele dava-lhe de tudo e sempre do melhor.

Ele também amava muito sua 3ª esposa e gostava de exibi-la aos reinados vizinhos.

Contudo, ele tinha medo que um dia, ela o deixasse por outro rei.

Ele também amava sua 2ª esposa. Ela era sua confidente e estava sempre pronta para ele, com amabilidade e paciência. Sempre que o rei tinha que enfrentar um problema, ele confiava nela para atravessar esses tempos de dificuldade.

A 1ª esposa era uma parceira muito leal e fazia tudo que estava ao seu alcance para manter o rei muito rico e poderoso, ele e o reino. Mas, ele não amava a 1ª esposa, e apesar dela o amar profundamente, ele mal tomava conhecimento dela.

Um dia, o rei caiu doente e percebeu que seu fim estava próximo.

Ele pensou em toda a luxúria da sua vida e ponderou:
- É, agora eu tenho 4 esposas comigo, mas quando eu morrer, com quantas poderei contar?

Então, ele perguntou à 4ª esposa:
- Eu te amei tanto, querida, te cobri das mais finas roupas e joias. Mostrei o quanto eu te amava cuidando bem de você. Agora que eu estou morrendo, você é capaz de morrer comigo, para não me deixar sozinho?

- De jeito nenhum! – respondeu a 4ª esposa, e saiu do quarto sem sequer olhar para trás.

A resposta que ela deu cortou o coração do rei como se fosse uma faca afiada.

Tristemente, o rei então perguntou para a 3ª esposa:
- Eu também te amei tanto a vida inteira. Agora que eu estou morrendo, você é capaz de morrer comigo, para não me deixar sozinho?

- Não!!! - respondeu a 3ª esposa.– - A vida é boa demais!!! Quando você morrer, eu vou é casar de novo.

O coração do rei sangrou e gelou de tanta dor. Ele perguntou então à 2ª esposa:
- Eu sempre recorri a você quando precisei de ajuda, e você sempre esteve ao meu lado. Quando eu morrer, você será capaz de morrer comigo, para me fazer companhia?

- Sinto muito, mas desta vez eu não posso fazer o que você me pede! – respondeu a 2ª esposa. – O máximo que eu posso fazer é enterrar você!

Essa resposta veio como um trovão na cabeça do rei, e mais uma vez ele ficou arrasado.

Daí, então, uma voz se fez ouvir:
- Eu partirei com você e o seguirei por onde você for...

O rei levantou os olhos e lá estava a sua 1ª esposa, tão magrinha, tão mal nutrida, tão sofrida... 

Com o coração partido, o rei falou:
- Eu deveria ter cuidado muito melhor de você enquanto eu ainda podia... 

Na verdade, nós todos temos 4 esposas nas nossas vidas...

Nossa 4ª esposa é o nosso corpo. Apesar de todos os esforços que fazemos para mantê-lo saudável e bonito, ele nos deixará quando morrermos... 

Nossa 3ª esposa são as nossas posses, as nossas propriedades, as nossas riquezas. Quando morremos, tudo isso vai para os outros.

Nossa 2ª esposa são nossa família e nossos amigos. Apesar de nos amarem muito e estarem sempre nos apoiando, o máximo que eles podem fazer é nos enterrar...

E nossa 1ª esposa é a nossa ALMA, muitas vezes deixada de lado por perseguirmos, durante a vida toda, a Riqueza, o Poder e os Prazeres do nosso Ego... Apesar de tudo, nossa Alma é a única coisa que sempre irá conosco, não importa aonde formos...

Então... Cultive... Fortaleça... Bendiga... Enobreça... sua Alma agora!!! É o maior presente que você pode dar ao mundo... e a si mesmo. Deixe-a brilhar!!!

Fonte:
Vários autores. Lendas para reflexão.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Contos e Lendas do Mundo (Índia) O Pote Rachado


Um carregador de água levava dois potes grandes, pendurados em cada ponta de uma vara, sobre os ombros. Um dos potes tinha uma rachadura, enquanto o outro era perfeito e sempre chegava cheio de água no fim da longa jornada entre o poço e a casa do Mestre; o pote rachado chegava sempre pela metade.

Assim foi durante dois anos. Diariamente, o carregador entregava um pote e meio de água na casa de seu Mestre. 

O pote perfeito estava orgulhoso de suas realizações. Porém, o pote rachado estava envergonhado de sua imperfeição, e sentia-se miserável por ser capaz de realizar apenas a metade do trabalho que deveria fazer. 

Um dia decidiu e falou para o homem, à beira do poço:

"Estou envergonhado, e quero pedir-te desculpas."

"Por quê?" – perguntou o homem. - "De que estás envergonhado?"

"Nesses dois anos eu fui capaz de entregar apenas a metade da minha carga, porque essa rachadura no meu lado faz com que a água vaze por todo o caminho até a casa de teu senhor. Por causa do meu defeito, tens que fazer todo esse trabalho, e não ganhas o salário completo dos teus esforços."

O homem ficou triste pelo sentimento do velho pote, e disse-lhe amorosamente:

"Quando retornarmos para a casa de meu senhor, quero que admires as flores ao longo do caminho."

De fato, à medida que eles subiam a montanha, o velho pote rachado notou flores selvagens ao longo de todo o caminho, e isto alegrou-o. Mas, ao fim da estrada, o pote ainda se sentia mal porque tinha vazado a metade, e de novo pediu desculpas ao homem por sua falha.

Disse o homem ao pote:

"Notaste que pelo caminho só havia flores no teu lado? Eu, ao conhecer teu defeito, transformei-o em vantagem. Lancei sementes de flores no teu lado do caminho, e cada dia, enquanto voltamos do poço, tu as regas. Por dois anos eu pude colher flores para ornamentar a mesa de meu senhor. Se não fosses do jeito que és, meu Mestre não teria essa beleza em sua casa."

Cada um de nós temos nossos próprios e únicos defeitos. Todos nós somos potes rachados. Se permitirmos, o Senhor vai usar estes nossos defeitos para embelezar a mesa de Seu Pai.

Na grandiosa economia de Deus, nada se perde.

Nunca deveríamos ter medo dos nossos defeitos; se o reconhecermos, eles poderão proporcionar beleza. Das nossas fraquezas, podemos tirar forças.

Fontes:
Vários autores. Lendas para reflexão.
Imagem criada por JFeldman com Microsoft Bing

sábado, 29 de novembro de 2025

Leonardo Da Vinci (A Aranha e o Buraco da Fechadura)

Após ter explorado a casa toda, por dentro e por fora, uma aranha resolveu esconder-se no buraco da fechadura.

Que esconderijo ideal! Pensou ela. Quem jamais havia de imaginar que ela estava ali? E além disso podia espiar para fora e ver tudo o que acontecia.

Ali em cima, disse ela para si mesma, olhando para o alto da porta:

- Vou fazer uma teia para moscas - ali em baixo, acrescentou, observando a soleira - farei outra para besourinhos. Aqui, ao lado da porta, vou armar uma teiazinha para os mosquitos.

A aranha estava exultante. O buraco da fechadura proporcionava-lhe uma nova e maravilhosa sensação de segurança. Era tão estreito, escuro, e era revestido de ferro. Parecia-lhe mais inexpugnável que uma fortaleza, mais garantido que qualquer armadura.

Imersa nesses deliciosos pensamentos, a aranha ouviu o som de passos que se aproximavam. Correu de volta para o fundo de seu refúgio.

Porém a aranha esquecera-se de que o buraco da fechadura não havia sido feita para ela. Sua legítima proprietária, a chave, foi colocada na fechadura e expulsou a aranha.
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Leonardo de Ser Piero da Vinci nasceu em 1452 na Itália e morreu em 1519, na França, era para seus contemporâneos um personagem discutido e controvertido. Como pintor era mal visto, porque jamais terminava as obras iniciadas; como escultor despertou suspeitas por não ter forjado em bronze o monumento equestre a Francisco Sforza; como arquiteto era perigosamente ousado; como cientista era de fato um louco. Sobre um ponto, no entanto, seus contemporâneos viam-se obrigados a concordar: Leonardo era um argumentador fascinante, um polido conversador, um contador de histórias “mágico” e fantástico, um gênio da palavra acompanhada da mímica. Falando da ciência, fazia calar os cientistas; argumentando sobre filosofia, convencia os filósofos; inventando fábulas e lendas, conquistava os favores e a admiração das cortes. Sempre, e em qualquer lugar, Leonardo era o centro das atenções. E jamais decepcionava seu auditório porque tinha sempre, alguma história nova para contar. As fábulas e lendas de Leonardo têm um objetivo e finalidade moral, algumas foram traduzidas por Bruno Nardini e publicadas no Brasil em 1972. O único personagem constante dessas fábulas e lendas é a natureza: a água, o ar, o fogo, a pedra, as plantas e os animais têm vida, pensamento e palavras. O homem, pelo contrário, aparece como instrumento inconsciente do destino, e sua ação, cega e implacável, destrói vencidos e vencedores.
“O homem é o destruidor de todas as coisas criadas”, escreveu Leonardo no “Livro das Profecias”; e nunca, como hoje em dia, na longa história de nosso planeta, uma asserção foi mais verdadeira e tão tragicamente atual..

Fontes:
Blog Era uma vez…  – 04.01.2015
https://byblosfera.blogspot.com/2015/01/a-aranha-e-o-buraco-da-fechadura.html
Biografia = Coisinha Literária. 14.08.2020
https://coisinhaliteraria.wordpress.com/2020/08/14/fabulas-e-lendas/

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Irmãos Grimm (Verdurinha*)

* O termo "verdurinha" provavelmente se refere à Rapunzel. No conto dos Irmãos Grimm, a história começa porque a mãe da menina sente um desejo incontrolável por uma hortaliça específica, uma espécie de alface-do-campo (conhecida como Feldsalat em alemão e, em algumas regiões, como "alface Rapunzel") que crescia no jardim de uma bruxa.
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Era uma vez um homem e uma mulher que viviam sós e tristes por não terem filhos. Um dia, a mulher teve a esperança que o bom Deus iria afinal satisfazer o seu maior desejo. A casa onde viviam tinha, na parede dos fundos, uma pequena janela de onde se avistava um jardim maravilhoso, cheio de lindas flores e plantas. Era cercado por um alto muro e ninguém se atrevia a entrar, pois pertencia a uma feiticeira muito poderosa, de quem todos tinham medo.

Certa ocasião a mulher, parada à janela, olhando o jardim, avistou um canteiro com as mais belas hortaliças, tão frescas e verdes que teve um grande desejo de as comer.                          

À medida que os dias iam passando, seu desejo aumentava e, como ela sabia ser impossível consegui-las, foi empalidecendo e definhando a olhos vistos. O marido, notando aquilo, assustou-se e perguntou:

- Querida, o que se passa contigo?

- Ah! - respondeu ela - se eu não comer daquelas verduras que crescem no jardim, atrás da nossa casa, na certa morrerei.

O homem, que amava sua mulher, pensou: "Em vez de deixar que ela morra, hei de conseguir as verduras, custe o que custar."

Quando anoiteceu, saltou o muro do jardim da feiticeira, arrancou depressa um punhado de verduras e as levou à esposa. Esta logo preparou uma salada e comeu-a com verdadeiro gosto; e tanto lhe agradou o prato que no dia seguinte sentiu um desejo três vezes maior. Para que ela ficasse em paz, o marido deveria ir mais uma vez ao jardim. Ao anoitecer, o homem repetiu a façanha; mal, porém, desceu do muro, levou um susto enorme, pois de súbito a bruxa surgiu à sua frente.

- Como te atreves  - disse ela, com olhar furioso - a entrar como um ladrão no meu jardim e roubar as minhas verduras? Hás de pagar bem caro!

- Ai! Tenha dó de mim! - implorou o homem.- Só fiz isso por necessidade; Minha mulher avistou da janela as suas verduras e tanto as desejou que morreria se não as comesse.

A feiticeira deixou-se abrandar e assim lhe falou:

- Se é como dizes, permitirei que leves tanto quanto quiseres; só imponho uma condição: terás de me dar a criança que tua mulher trouxer ao mundo. Será bem tratada e cuidarei dela como se fosse a sua mãe.

Amedrontado, o homem concordou com tudo e, quando nasceu a criança, uma menina, a feiticeira logo se apresentou. Deu-lhe o nome de Verdurinha e levou-a consigo.

Verdurinha era a criança mais linda que o sol já vira. Ao completar doze anos, a feiticeira a encerrou em uma torre no meio de um bosque, a qual não tinha porta nem escada, mas apenas uma janelinha bem ao alto.

Quando a feiticeira queria entrar, postava-se ao pé da torre e gritava:

- Verdurinha, Verdurinha!
- Solta essa tua trancinha!

"Trancinha" era um modo de dizer, pois a moça tinha os cabelos longos, finos e louros como se fossem tecidos de ouro. Quando ouvia a voz  da feiticeira, soltava as tranças, prendia-as em volta de um gancho da janela e os cabelos, do comprimento de cem palmos, iam tocar no solo. Por elas a bruxa subia ao alto da torre.

E aconteceu que um dia o filho do rei, andando a cavalo pelo bosque, passou junto à torre. Dali partia uma canção tão maravilhosa que ele parou  a escutá-la. Era verdurinha que, em sua solidão, se entretinha cantando. O príncipe quis subir até onde ela estava e procurou uma porta na torre; como, no entanto, não achou nenhuma, voltou ao palácio. Mas o canto lhe tocara de tal maneira o coração que todos os dias ele ia ao bosque e se punha a escutar. Certa vez, estando assim parado atrás de uma árvore, viu que uma feiticeira se aproximava e a ouviu chamar:

- Verdurinha, Verdurinha!
- Solta essa tua trancinha!

Verdurinha soltou suas tranças e a bruxa subiu até o alto da torre.

  "Se é esta a escada por onde se sobe, - pensou o príncipe - também eu tentarei a minha sorte." 

E no dia seguinte, quando começou a escurecer, dirigiu-se à torre e chamou:

- Verdurinha, Verdurinha!
- Solta essa tua trancinha!

Em seguida as tranças foram jogadas para baixo e o príncipe subiu por elas.

No primeiro momento, Verdurinha assustou-se ao ver um homem à sua frente, pois ela nunca tinha visto um homem em toda a sua vida. Mas o príncipe começou a falar-lhe amavelmente, dizendo que suas canções haviam impressionado de tal modo o seu coração que não descansara enquanto não a tinha visto em pessoa. Verdurinha então perdeu o medo e, quando o príncipe perguntou se o aceitaria como esposo e ela viu que era moço e bonito, pensou: "Este há de gostar mais de mim do que a velha" e, pondo sua mão na dele, respondeu:

- Com muito prazer irei contigo, mas não sei como sair daqui. Sempre que vieres, traze uma meada de seda e eu irei tecendo uma escada. Quando estiver pronta, descerei por ela e me levarás contigo no teu cavalo.

Combinaram que até lá ele a visitaria todas as noites, porque de dia a velha era quem ia à torre. A feiticeira nada havia percebido até o dia em que Verdurinha lhe perguntou:

- Diga-me, D. Gothel, por que será que faço um esforço muito  maior para puxar a senhora do que o jovem príncipe?

- Ah, desgraçada! - exclamou a bruxa. - Que acabo de ouvir? Pensei que te havia isolado do mundo inteiro e mesmo assim me enganaste!

Furiosa, pegou as lindas tranças de Verdurinha, enrolou-as na mão esquerda, apanhou uma tesoura com a direita e, num zás, cortou-as, atirando os lindos cabelos ao chão. E foi tão maldosa que conduziu a pobre Verdurinha a um deserto, onde teve de viver na maior tristeza e miséria.

No mesmo dia em que expulsara a jovem, a feiticeira, de noite, prendeu no gancho da janela as tranças cortadas. Quando o príncipe apareceu e chamou:

- Verdurinha, Verdurinha!
Solta essa tua trancinha!

A bruxa soltou os cabelos e o filho de rei subiu por eles. Mas, em vez de encontrar Verdurinha, encontrou a feiticeira, que o recebeu com uns olhos fuzilando de ódio e maldade.

- Ah! gritou ela - vieste buscar tua amada, mas o belo pássaro não está mais na gaiola, nem tornará a cantar. O gato o comeu, e a ti te arrancará os olhos. Verdurinha não será tua, nunca tornarás a vê-la.

O príncipe, fora de si, de dor e desespero, atirou-se da torre. Salvou a vida, mas os espinhos, entre os quais caiu, lhe arranharam as vistas. Daí em diante passou a vagar, cego, pelo bosque; só comia raízes e frutos silvestres e não fazia outra coisa senão lamentar a perda da sua amada esposa. 

Vagou assim, alguns anos, até que um dia foi dar no deserto onde vivia Verdurinha, miseravelmente, com seus dois filhos gêmeos, um menino e uma menina. Ouvindo uma voz que lhe pareceu familiar, ele se aproximou; Verdurinha o reconheceu e logo se jogou, chorando, a seus braços. 

Duas de suas lágrimas foram umedecer os olhos do marido e no mesmo instante ele recuperou a visão, passando a enxergar como antes. O príncipe os conduziu ao seu reino, onde foi recebido com grande alegria e todos viveram, ainda por muito tempo, felizes e satisfeitos.
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Folcloristas e escritores de contos infantis, Jacob Ludwing Carl Grimm (1785-1863) e Wilhelm Carl Grimm (1786-1859) nasceram em Hanau, no Grão-ducado de Hesse, na Alemanha. Receberam formação religiosa na Igreja Calvinista Reformada. Das nove crianças da família só seis chegaram à idade adulta. Os Irmãos Grimm passaram a infância na aldeia de Steinau, onde o pai era funcionário de justiça e Administração do conde de Hessen. Em 1796, com a morte repentina do pai, a família passou por dificuldades financeiras. Em 1798, Jacob e Wilhelm, os filhos mais velhos, foram levados para a casa de uma tia materna na cidade de Hassel, onde foram matriculados numa escola. Depois de concluído o ensino médio, os irmãos ingressaram na Universidade de Marburg. Estudiosos e interessados nas pesquisas de manuscritos e documentos históricos, receberam o apoio de um professor, que colocou sua biblioteca particular à disposição dos irmãos, onde tiveram acesso às obras do Romantismo e às cantigas de amor medievais. Depois de formados, os Irmãos Grimm se fixaram em Kassel e ambos ocuparam o cargo de bibliotecário. Em 1807, com o avanço do exército francês pelos territórios alemães, a cidade de Kassel passou a ser governada por Jérome Bonaparte, irmão mais novo de Napoleão, que a tornou capital do reino recém-instalado, Reino da Vestfália. Essa situação despertou o espírito nacionalista do romantismo alemão. A busca das raízes populares da germanidade estava em voga. Os irmãos reivindicaram a origem alemã para histórias conhecidas também em outros países europeus – como Chapeuzinho Vermelho, registrada pelo francês Charles Perrault bem antes do século XVII. No final de 1812, os irmãos apresentaram 86 contos coletados da tradição oral da região alemã do Hesse em um volume intitulado “Kinder-und Hausmärchen”, Contos de Fadas para o Lar e as Crianças. Em 1815 lançaram o segundo volume, Lendas Alemãs, no qual reuniram mais de setenta contos. Em 1840 os irmãos mudaram-se para Berlim onde iniciaram seu trabalho mais ambicioso: Dicionário Alemão. A obra, cujo primeiro fascículo apareceu em 1852, mas não pode ser terminada por eles. Faleceram em Berlim Wilhelm em 1859 e Jacob em 1863.

Fontes:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.
Nota = https://www.thespruceeats.com/
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quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Contos das Mil e Uma Noites (Embustes de uma mulher)


Conta-se, ó afortunado rei, que havia uma jovem senhora da nobreza cujo marido estava sempre viajando para perto e para longe. Com o tempo, a tentação da carne tornou-se irresistível, e um jovem de lindas proporções estava lá para tornar a tentação ainda mais poderosa. Amaram-se com intensidade e satisfizeram-se mutuamente com alegria, levantando-se para comer, comendo para deitar, deitando para fornicar. 

Um dia, o jovem entrou numa briga, e o uáli mandou encarcerá-lo. Ao saber disto, a mulher se enfureceu e concebeu um plano audacioso para libertá-lo. Vestiu-se e enfeitou-se com o máximo requinte, e solicitou e obteve uma audiência com o uáli (governador de província). 

Após saudá-lo, disse: “Ó meu senhor uáli, amo de todos nós, o tal jovem que mandaste encarcerar é meu irmão e o único sustento da família. Seu acusador é um patife, e as testemunhas prestaram falso testemunho. Vim solicitar-te a sua libertação. Se recusares meu pedido, a nossa casa cairá em ruínas e eu morrerei de fome.” 

O uáli sentiu seu coração e seu corpo violentamente agitados pela beleza da mulher. Respondeu: “Estou disposto a libertar teu irmão em certas condições. Vai agora para minha casa. Quando as audiências terminarem, irei conversar contigo sobre o assunto”.

Compreendendo o que o uáli queria, a moça disse consigo mesma: “Juro por Alá, ó barba suja, que jamais tocarás em mim nem mesmo na eternidade”.

Mas em voz alta disse: “Ó meu senhor uáli, não seria melhor que viesses à minha casa onde poderemos conversar mais à vontade? Pois ir para tua casa me constrangeria demais”. 

- E onde fica a tua casa? perguntou o uáli. 

- Na rua tal e tal. Esperar-te-ei esta tarde ao pôr-do-sol. E saiu, deixando o uáli numa deliciosa expectativa. 

Foi então ao cádi (juiz), que era um velho caduco, e disse-lhe: “Ó meu senhor cádi, rogo-te baixar os olhos da justiça sobre minha causa.” 

“Quem te oprimiu?” perguntou o cádi. 

- Um malvado, um velhaco que levou meu irmão, único sustento de minha família, para a cadeia com falsas testemunhas. Rogo-te interceder por mim para que meu irmão seja libertado. 

Ao ver e ouvir a mulher, o cádi sentiu despertarem nele desejos que pareciam mortos. Respondeu: “Cuidarei pessoalmente do caso de teu irmão. Vai agora para o harém de minha casa. Irei procurar-te assim que sair daqui, e conversaremos. Tudo farei para atender a teu pedido.” 

“Canalha!” disse a mulher consigo mesma. “Nem no Dia do Julgamento deixarei um caduco como tu possuir-me.” 

E acrescentou em alta voz: “Ó amado mestre, não será melhor esperar-te na minha casa onde ninguém nos perturbará?” 

- E onde fica a tua casa? 

A moça indicou-lhe o endereço e acrescentou: “Esperar-te-ei hoje momentos depois do pôr-do-sol.” 

De lá, foi ao ministro do rei e repetiu as mesmas alegações. 

- A coisa é fácil, disse o ministro. No entanto, vai agora até o harém de minha casa. Irei procurar-te, e conversaremos a respeito.  

- Pela vida de tua cabeça, ó meu amo, respondeu a moça. Sou uma mulher tímida e não teria a coragem de ir até teu harém. Minha casa é mais apropriada para nossa conversa. Esperar-te-ei hoje mesmo uma hora após o pôr-do-sol. 

Deu-lhe o endereço e foi ao palácio do rei. Mal a viu, o rei maravilhou-se com sua beleza e disse consigo mesmo: “Por Alá , este é um prato a ser devorado quente.” 

Depois, perguntou-lhe: “Que queres de mim? Alguém te oprimiu?” 

- Não pode haver opressão enquanto viver nosso amo o rei. 

- Em que posso ajudar-te? 

- Dando-me uma ordem para a libertação de meu irmão. Foi encarcerado pela iniquidade de um malandro e de umas falsas testemunhas. 

- A coisa é fácil, disse o rei. Vai espera-me no meu harém, minha filha. A justiça seguirá seu curso. 

- Neste caso, aventurou-se a responder, não será preferível esperar Vossa Majestade na minha casa? Vossa Majestade sabe que tal conversação requer diversos preparativos: banho, perfumes e tudo mais. Poderei tomar essas providências mais facilmente em minha casa, que passará a ser, a partir desta noite, um verdadeiro palácio digno de receber Vossa Majestade tantas vezes quantas quiser. 

- Seja, disse o rei. 

Após entenderem-se sobre o lugar e a hora, a mulher foi procurar um carpinteiro e disse-lhe: “Quero que me mandes hoje mesmo no fim da tarde um armário com quatro compartimentos, um acima do outro. Cada um deve ter porta independente e boa fechadura.” 

- Por Alá, respondeu o carpinteiro, não conseguirei encarregá-lo hoje mesmo. 

- E se te pagar o que quiseres? 

- Neste caso, o armário estará pronto. E não quero por ele nem prata nem ouro, mas um certo favor que podes adivinhar. 

- Aceito, disse a moça. Mas neste caso, manda pôr cinco compartimentos no armário. E vem à minha casa esta noite após mandar entregar o armário, e conversaremos até a madrugada. 

Deu seu endereço ao carpinteiro e foi para casa. Arrumou cinco roupões de cores e cortes diferentes, preparou comidas e bebidas, encheu a casa de flores, banhou-se e perfumou-se e sentou-se à espera de seus convidados. 

No fim da tarde, o carregador do marceneiro entregou o armário, e ela mandou colocá-lo na sala de visitas. Logo em seguida, bateram à porta. Era o uáli. Sua anfitriã levantou-se em sua honra, beijou a terra entre suas mãos, convidou-o a sentar-se e ofereceu-lhe refrescos. Ele quis abraçá-la imediatamente, mas ela se afastou com jeito, dizendo: “Vamos fazer a coisa com refinamento, meu amo. Não gostarias de tirar a roupa, primeiro, para ficar mais livre em teus movimentos?” 

O uáli concordou, encantado, e pôs um dos roupões, que a moça lhe apresentou. Logo, porém, ouviu-se bater à porta. 

– Estás esperando alguém? perguntou o uáli de mau humor. 

Ela respondeu, fingindo terror: “Por Alá, não. Mas havia esquecido que meu marido vinha para casa esta noite. É com certeza ele que está batendo à porta.” 

– Que iremos fazer? Perguntou o uáli, perturbado. Que será de mim? 

- Não te preocupes. Ele não demorará a sair de novo. Deixa-me esconder-te neste armário. Abriu o compartimento mais baixo e obrigou o uáli a se acomodar nele, acocorado. Trancou o compartimento e foi abrir a porta. Era o cádi. Recebeu-o da mesma forma, convidando-o a se libertar da roupa e colocar um roupão. Assim que ele quis lançar-se sobre ela, deteve-o e perguntou: 

“Meu amo, escreveste a ordem para a libertação de meu irmão?” O cádi escreveu a ordem lá mesmo. A moça guardou a ordem e quis oferecer refrescos. Mas logo bateram à porta. 

- O que será? perguntou o cádi. Estás esperando visitas? 

- Por Alá, não. Deve ser meu marido, disse a mulher, fingindo estar aterrorizada, e obrigou o cádi a ocupar o segundo compartimento do armário. 

Trancou o compartimento e foi abrir a porta. Era o ministro. Foi tratado da mesma forma. O rei chegou por sua vez e teve que acomodar-se num compartimento onde, sendo gordo, quase quebrou os ossos e foi tomado de uma raiva surda. 

Enfim, chegou o carpinteiro e foi encarcerado no último compartimento de seu próprio armário. A moça levou então a ordem do juiz aos guardas da prisão, os quais libertaram-lhe o amante sem nada perguntar. 

Os dois voltaram para a casa da moça, e, para celebrar tantos eventos, se amaram lá mesmo, longa e demoradamente, e com bastante agitação e ruídos. 

Os cinco prisioneiros do armário tudo ouviam, mas nenhum deles ousou levantar a voz. Por fim, os dois amantes juntaram tudo que tinha valor na casa, inclusive as roupas magníficas dos altos dignitários. Venderam o restante e foram embora viver num outro reino. 

Dois dias depois, os cinco infelizes do armário foram tomados simultaneamente da necessidade de urinar. A urina do carpinteiro caiu sobre a cabeça do rei, a do rei sobre a cabeça do ministro, a do ministro sobre a cabeça do cádi e a do cádi sobre a cabeça do uáli. Todos, menos o rei e o carpinteiro, gritaram: “Que nojo!” 

O cádi reconheceu a voz do ministro, e o ministro, a voz do cádi. Disseram: “Felizmente, o rei escapou desta sujeira de aventura.” 

Mas o rei interveio: “Ficai quietos, eu também estou no armário.” 

Neste momento, o marido da mulher chegou da viagem. Entrou na casa e achou-a vazia. Ouvindo vozes humanas saindo do armário, supôs que eram Afarit (demônios). Chamou os vizinhos, e todos concordaram em pôr fogo no armário para acabar com os gênios. 

Ouvindo isso, o cádi chamou do interior do armário: “Boa gente, não somos nem Afarit nem assaltantes. Somos Fulano, Sicrano e Beltrano.” 

E contou como a mulher os tinha enganado. Os vizinhos quebraram as fechaduras do armário e encontraram cinco homens pálidos, acanhados e disfarçados em roupões esquisitos. Todos consolaram-se de sua desgraça, rindo e improvisando versos que falavam mal das mulheres. 

Disse o cádi: As mulheres são demônios que a vida nos impõe. Proteja-nos Alá das perfídias dos demônios. São elas as causas de todas as desgraças, tanto na vida mundana como na religiosa. 

O uáli fez-lhe eco: As mulheres, embora simulem a virtude, são como presas que as águias revolvem. Hoje dão-te seu corpo e suas juras. Mas amanhã, outro terá suas pernas e o resto, como o khan onde passas a noite, substituindo-te depois quem não conheces. 

O rei disse ao desolado marido: “Não te aflijas, pois nomeio-te meu segundo vizir.” 

Depois, mandaram buscar roupa decente e foram embora.
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As Mil e Uma Noites é uma coleção de histórias e contos populares originárias do Médio Oriente e do sul da Ásia e compiladas em língua árabe a partir do século IX. As histórias que compõem as Mil e uma noites têm várias origens, incluindo o folclore indiano, persa e árabe. Não existe versão definitiva da obra, uma vez que os antigos manuscritos árabes diferem no número e no conjunto de contos. O Imperador brasileiro Dom Pedro II foi o primeiro a traduzir diretamente do árabe para o português partes da obra mais conhecida da literatura árabe, e o fez com um rigor raro para a época. Já em idade avançada, aos 62 anos, ele começou o processo, o último registro de texto traduzido é de novembro de 1891, um mês antes de sua morte.

O que é invariável nas distintas versões é que os contos estão organizados como série de histórias em cadeia narrados por Xerazade, esposa do rei Xariar. Este rei, louco por haver sido traído por sua primeira esposa, desposa uma noiva diferente todas as noites, mandando matá-las na manhã seguinte. Xerazade consegue escapar a esse destino contando histórias maravilhosas sobre diversos temas que captam a curiosidade do rei. Ao amanhecer, Xerazade interrompe cada conto para continuá-lo na noite seguinte, o que a mantém viva ao longo de várias noites - as mil e uma do título - ao fim das quais o rei já se arrependeu de seu comportamento e desistiu de executá-la.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
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quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Hans Christian Andersen (A menina que pisou no pão)

Era uma vez uma menina pobre, mas de natureza rebelde, que revelou más inclinações desde muito cedo. Quando pequenina, seu maior prazer era apanhar moscas e arrancar-lhes as asas, para vê-las depois andar se arrastando. Apanhava besouros e grilos e espetava-os em um alfinete; punha depois uma folha de livro, ou qualquer pedaço de papel bem próximo dele, para que pudessem segurá-lo com as patinhas - só pelo prazer de vê-los agitarem-se e torcerem-se, na ânsia de se libertar do alfinete.

   - O besouro está lendo - dizia a pequena Inger. - Vejam como ele vira a página!

   E, ao passo que ia crescendo, tornava-se cada vez pior. Era muito bonita, mas foi isso a sua infelicidade, sem dúvida.

   - Será preciso um rude golpe para te fazer curvar a cabeça. - dizia a mãe. - Quando eras menor, muitas vezes pisoteaste meu avental; receio muito que, quando fores grande, me pisoteies o coração!

    E assim aconteceu.

   Inger teve de ir para o campo, para servir em casa de uma família rica. Tratavam-na como se fosse filha e vestiam-na muito bem. Ia ficando cada vez mais bonita, mas o seu caráter não melhorava.

   Um ano após estar lá, disseram-lhe os patrões:

   - Deves ir visitar teus pais, Inger!

    Ela foi, mas apenas com a intenção de se mostrar, para que vissem como andava bem vestida. Ao chegar aos portões da cidade, viu alguns moços e moças que conversavam à beira do lago, e, sentada entre eles, sua mãe, com um feixe de lenha ao ombro.

   Inger deu a volta. Sentiu-se envergonhada de ter por mãe - ela, tão fina! - aquela velha esfarrapada, que juntava lenha no mato. Não ficou nem de leve compadecida; ao contrário, sentia-se irritada com aquilo.

   Passou-se mais meio ano, e sua ama disse-lhe:

  - Inger, é preciso que vás visitar teus pais. Leva-lhes este pão de trigo. Hão de ficar bem contentes de te ver.

  Inger vestiu suas melhores roupas e calçou os sapatos mais finos que tinha. Ergueu as saias e caminhava com muito cuidado para não sujar os sapatos. Certamente não merece censura por isso; mas quando chegou àquele ponto em que o caminho atravessa o brejo, e viu que estava todo cheio de lama, atirou no barro o pão que trazia, para passar por cima dele sem sujar os sapatos. Quando estava assim, com um pé sobre o pão e o outro erguido para dar mais um passo, o pão afundou-se e foi se enterrando cada vez mais, até que desapareceu, levando-a consigo. E nada mais se viu ali a não ser o charco negro e cheio de bolhas.

   Mas a menina? Que foi feito dela?  Inger foi dar onde estava a mulher do Brejo, que tem uma cervejaria lá embaixo. A mulher do Brejo é irmã do rei dos Duendes e tia das Bruxas, que são muito conhecidas. Muita gente tem escrito versos a respeito delas; outros pintaram os seus retratos; mas só o que sabemos a respeito da mulher do Brejo é que, quando o nevoeiro se ergue nos campos, no verão, é que ela está fabricando sua cerveja. E foi nessa cervejaria que Inger caiu; mas lá ninguém pode permanecer muito tempo. Um carro de lixeiro é coisa suave, comparado com a cervejaria da mulher do Brejo. O cheiro dos barris é o quanto basta para deixar uma pessoa doente, e estão tão juntos que não se pode passar entre eles; além disso, onde há por acaso alguma frestinha, está cheia de sapos asquerosos e cobras viscosas. E foi entre todas estas horrendas imundícies vivas que caiu a pequena Inger. O frio era tão intenso que ela tremia e já sentia os membros rígidos. O pão aderiu firmemente aos seus pés e levou-a para baixo.

   A mulher do brejo estava em casa. O velho Trasgo e seu bisavô encontravam-se lá de visita. A bisavó é uma mulher venenosa e nunca está ociosa. Nunca sai sem levar o seu trabalho, e tinha-o à mão naquele dia. Estava ocupada em fabricar couro andejo para pôr nos sapatos das pessoas, de modo que quem os usasse não podia ter descanso. Bordava mentiras e juntava todas as palavras inúteis que caíam no chão, para fazer dano com elas. Sim! A velha bisavó pode fazer tricôs e bordados muito finos!

   Assim que avistou Inger, pôs os óculos e olhou-a de alto a baixo, dizendo logo:

  - Esta menina me interessa! Gostaria de levá-la como lembrança da minha visita. Daria uma boa estátua para o corredor exterior da casa do meu bisneto.

Desse modo, Inger foi à Terra dos Trasgos. Nem sempre as pessoas vão lá por esse caminho direto, visto que é fácil ir por caminhos mais extensos.

      Era um corredor que nunca se acabava: dava vertigem olhar para diante ou para trás. Lá estava uma multidão ignominiosa, à espera de que se abrisse a porta da misericórdia; mas muito tinham que esperar! Grandes e gordas aranhas agitavam-se, tecendo teias de mil anos ao redor de seus pés: e aquelas teias pareciam parafusos, que a prendiam fortemente, como se estivessem amarradas com correntes de cobre. Além disso, todas as almas padeciam um eterno desassossego; um tormento perpétuo. O infeliz que tinha esquecido a chave do seu cofre sabia que a deixara na fechadura. Mas seria um nunca acabar, se eu quisesse enumerar todas as torturas daquele lugar. Inger sofria o tormento de parar em pé como uma estátua, com um pão colado aos pés.

  - Foi o que ganhei, por querer conservar os sapatos limpos! - dizia ela consigo. - Vejam como eles olham para mim!

   Era verdade que todos olhavam para ela, e todas as suas más paixões brotavam dos olhos, falando sem que os lábios se abrissem em palavras. Era uma visão terrível!

    - Deve dar grande prazer olhar para mim! - pensava Inger. - Tenho um rosto lindo e belas roupas.

    Voltou então os olhos para se ver; o pescoço também estava rígido. Mas, oh! Como se sujasse na cervejaria da esposa do Brejo! Nunca se lembrará de semelhante coisa... A roupa estava coberta de lama viscosa; uma cobra se lhe enroscara no cabelo e caía-lhe pelas costas. De cada prega do vestido espiava um sapo, coaxando sem parar. Era horrível! Mas sentia consolo, pensando:

    - Todos os outros que se encontraram aqui embaixo estão tão medonhos como eu!

     Mas o pior era a fome devoradora que sentia; e não podia abaixar-se para tirar um pedaço do pão que tinha nos pés. Não; não podia; mãos e braços haviam endurecido, e todo o seu corpo era como um pilar de pedra. Só podia mover os olhos, mas isso, sim! Podia movê-los em redor e olhar para trás. E que medonha visão aquela! Vieram as moscas, que lhe andavam por cima dos olhos, e por mais que ela pestanejasse, não iam embora; não, as moscas não podiam sair, porque ela lhes tinha arrancado as asas, virando-as em insetos rastejantes.

Era um grande suplício da fome que a devorara por dentro; parecia-lhe que já estava completamente vazia.

   - Se isto durar muito, eu não poderei suportar - pensou Inger.

   Mas aquilo continuou, ela teve de suportar.

   Foi então que uma lágrima escaldante lhe caiu sobre a fronte, e foi escorrendo pela face e pelo peito abaixo, até cair sobre o pão; e depois outra, e mais outra, e aquilo já parecia uma chuva.

   Mas quem estaria chorando pela pequena Inger? Pois ela não tinha uma mãe na terra? As lágrimas de tristeza que uma mãe chora pelo seu filho sempre o alcançam; contudo, não lhe trazem alívio; elas queimam e tornam o tormento cinquenta vezes pior. E a fome terrível de novo a assaltou, e ela sem poder apanhar o pão que tinha nos pés! Afinal, experimentou uma sensação estranha: parecia-lhe que estava a se comer a si própria, e que já nada mais era senão um caniço oco, que conduz todos os sons. Ouvia distintamente tudo o que se dizia na terra a seu respeito, e tudo o que ouvia eram palavras duras.

   Sua mãe, é certo, chorava triste e amargurada, mas dizia:

   - O orgulho sempre precede a queda! Foi a tua infelicidade, Inger! Como magoaste tua mãe!

   Não só sua mãe, mas todos na terra sabiam o que ela havia feito; sabiam que tinha pisado no pão e que submergira no paul. Souberam pelo pastor, que tinha visto tudo de cima do montículo onde se achava.

  - Como afligiste tua mãe, Inger! - dizia a pobre mulher. - Mas eu bem te avisava!

   - Antes eu nunca tivesse nascido! - pensava Inger. - Seria muito melhor para mim. As lágrimas de minha mãe não me servem de nada agora!

Ouviu também seus antigos patrões, pessoas tão boas, que tinham sido para ela o mesmo que pais, falando a seu respeito:

   - Era uma menina pecadora. Não dava valor aos dons de Deus e pisava-os aos pés. Será difícil para ela abrir a porta da misericórdia!

   Mas Inger pensava lá embaixo;

  - Deviam ter-me educado melhor! Deviam ter dominado a minha soberba, se eu a tinha.

   Ouviu também uma canção que escreveram, que era cantada por toda parte:
                 
" Menina tão arrogante.
Que caminhou sobre um pão
Para não sujar os sapatos!"

- E terei de ouvir sempre esta velha história, e sofrer com isso! - pensava ela. - Mas os outros também deviam ser punidos pelos seus pecados. Haveria muito o que castigar! Oh! Como sofro!

E seu coração se endurecia ainda mais que a casca de fora.

Ninguém poderá melhorar nada nesta companhia em que estou!  E eu não quero mesmo ficar melhor... Oh! Agora estão todos olhando para mim!

E Inge tinha o coração cheio de ódio e má vontade para com todos.

- Agora terão assunto para conversar lá em cima! Que tortura!

Ouvia as pessoas contarem sua história às crianças; e estas diziam sempre:

- Malvada Inger! Era tão perversa que teve de sofrer tormentos!

E só ouvia da boca das crianças palavras duras.

Mas um dia, quando sentia o ódio e a fome a lhe roerem a casca vazia, ouviu o seu nome; alguém contava a sua história a uma criancinha inocente, uma meninazinha, e a criança rompeu a chorar, ouvindo a história da orgulhosa e vaidosa Inger. E perguntou:

- Ela nunca subirá para a terra outra vez?

- Ela nunca tornará a subir para a terra. - disse a outra voz.

- Mas e se ela pedir perdão e prometer não tornar a fazer isso? - perguntou a criança.

- Ela não pedirá perdão. - disseram-lhe.

- Mas eu queria que ela pedisse! - insistiu a criancinha, que não aceitava explicações. - Eu dou a casa da minha boneca para ela subir outra vez... É horrível o que aconteceu com a pobre da Inger!

Aquelas palavras chegaram ao coração de Inger, e parece que lhe fizeram bem. Era a primeira vez que alguém dizia: " Pobre da Inger!" sem acrescentar alguma coisa a respeito das suas más ações. Uma criancinha inocente chorava e orava por ela, e aquilo lhe causava uma sensação estranha: desejaria chorar também, mas seus olhos não podiam derramar uma só lágrima, e isso ainda lhe aumentava o tormento.

Assim como os anos iam passando em cima, foram também correndo lá embaixo, sem que coisa alguma se modificasse: Inger já não ouvia falar tanto de si. Mas um dia percebeu um suspiro:

- Inger, Inger, quanto desgosto me causaste! Eu bem sabia que havia de ser assim!

Era sua mãe que estava moribunda.

Ouviu também o seu nome repetido pelos seus antigos patrões, e as palavras menos cruéis que sua ama disse foram estas:

- Chegarei a ver-te outra vez, Inger? A gente nunca sabe para onde irá!

Mas Inger sabia bem que sua ama, tão boa, tão virtuosa, jamais iria ter o lugar onde ela estava.

Passou-se um novo e longo período cheio de amargura. Inger tornou a ouvir o seu nome e viu acima da sua cabeça duas coisas que pareciam duas estrelas cintilantes; eram de fato dois olhos que se fechavam na terra, tantos anos se passaram depois que aquela criança tinha chorado tão sentidamente ao ouvir a história da "pobre Inger", que ela era agora uma anciã, a quem o senhor chamava para ao Seu lado. No último momento, quando a vida inteira da criatura lhe volta à memória, ela se lembrou das lágrimas que derramara por causa de Inger. E a impressão era tão clara na hora da morte, que a velhinha exclamou em voz alta:

- Senhor! Oxalá eu não tenha jamais, como Inger, calçados aos pés, sem o saber, teus dons abençoados. Oxalá também eu não tenha jamais nutrido orgulho no coração. Não me abandones agora na minha última hora!

Fecharam-se os olhos da velha dama, e os olhos de sua alma se abriram para ver as coisas ocultas; e como Inger tinha estado tão nitidamente presente nos seus últimos pensamentos, via agora quão profunda fora a queda da menina. E, àquela vista, desatou a chorar. E ficou, feito uma criança, chorando pela pobre Inger, no reino dos Céus. Suas lágrimas e suas preces ecoaram na casca oca e vazia que encerrava a alma prisioneira e torturada, agora completamente vencida por todo aquele amor vindo de cima. 

Um anjo de Deus, chorando por ela! Por que lhe era feita esta concessão? A alma torturada lembrava-se de cada ação terrena que praticara, e afinal desatou a chorar, e Inger chorou, como jamais fizera. Sentia-se agora cheia de tristeza pelos seus atos; chorou como se a grande porta de misericórdia nunca pudesse abrir-se para ela. Mas quando reconheceu isso em humildade e contrição, um raio de luz brilhou no abismo em que caíra. 

O poder daquele raio de luz era muito maior do que o da luz do sol que derrete o homem de neve feito pelos meninos no jardim; e mais depressa, muito mais depressa do que se derrete um floco de neve dos lábios quentes de uma criança, dissolveu-se diante dele a forma petrificada de Inger, e um passarinho voou com a rapidez do relâmpago para o mundo de cima. Estava muito assustado e tinha medo de tudo. Sentia-se vexado; receava encontrar o olhar de qualquer ser vivente; e procurou mais que depressa abrigar-se em uma fenda da parede. Naquele esconderijo, encolheu-se todo, tremendo da cabeça aos pés; não podia articular som algum, porque não tinha voz. E ali ficou muito tempo, antes que pudesse olhar com calma as coisas admiráveis que o cercavam. 

Sim, eram na verdade admiráveis! O ar era tão suave e tão fresco, a lua brilhava com tanto fulgor, as árvores e arbustos exalavam tanto perfume! E, além de tudo isso, já tão agradável, ainda suas penas estavam limpas, tão brilhantes! Como toda a criação falava de amor e de beleza! O passarinho bem desejaria cantar alegremente, exprimindo todos os sentimentos que lhe brotavam no peito; entretanto, não lhe era possível cantar. Teria gorjeado com a maior alegria, como os cucos e os rouxinóis fazem no verão. 

O bom Deus, que ouve até os mudos hinos de louvor de um verme, compreendia também aquele cântico de gratidão que tremia no peito do passarinho, da mesma maneira que os salmos de David ecoavam no seu coração antes que tomassem forma em palavras e melodia. Aqueles pensamentos e aqueles cânticos sem voz foram crescendo e foram aumentando durante semanas; deviam expandir-se, e à primeira tentativa para praticar uma boa ação, achariam a saída.

Era o tempo da Festa de Natal. Os camponeses ergueram um mastro contra um muro e amarraram um feixe de aveia na ponta, para que os passarinhos pudessem ter um bom repasto naquele dia feliz.

O sol surgiu brilhante e iluminou o molho de aveia, e os passarinhos cercaram o mastro, pipilando. Foi então que daquela fresta da parede veio um pio fraquinho; os sentimentos sempre em aumento do passarinho tinham achado uma voz, e aquele débil pipilar era o seu hino de louvor. Tinha despertado nele o pensamento de uma boa ação, e o passarinho voou, abandonando seu esconderijo; no Reino dos Céus, era ele bem conhecido.

O inverno corria áspero e toda a água estava coberta por uma camada de gelo. Era com grande dificuldade que as aves e os outros animais encontravam alimento. O passarinho voava à beira da estrada, encontrava de vez em quando um grão de trigo nos sulcos dos trenós. Achava também alguns farelos de pão perto das hospedarias, mas comia apenas uma migalha, pois queria deixar bastante alimento para os outros passarinhos que ali aparecessem. Voou então para as cidades e espiava nas cercanias. Onde quer que alguma mão carinhosa tivesse espalhado migalhas de pão para os passarinhos, ele comia apenas uma só e deixava o restante.

No decorrer do inverno, o passarinho tinha assim renunciado, em favor dos outros, tantas migalhas de pão que elas já igualavam em peso aquele pão inteiro que a pequena Inger calçara aos pés, para não sujar os sapatos. Então as asas cinzentas do passarinho ficaram brancas e foram se distendendo, e as crianças que viram aquela ave branca disseram:

- Lá anda uma gaivota, voando sobre o mar.

A ave ora mergulhava nas águas, ora voava e remontava muito alto. E, contra a intensa luz que brilhava no espaço, não foi possível ver que fim levou.

As crianças afirmaram que ela entrou no sol.
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Hans Christian Andersen foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.
Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente em 1859. Disponível em Domínio Público
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segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Zitkala-Ša (O Grande Espírito)

Quando o espírito me incha o peito, adoro vagar tranquilamente entre as colinas verdes; ou, às vezes, sentado à beira do murmurante Missouri, maravilho-me com o imenso azul acima. Com os olhos semicerrados, observo as enormes sombras das nuvens em seu jogo silencioso sobre os altos penhascos à minha frente, enquanto em meus ouvidos ondulam as cadências doces e suaves da canção do rio. Mãos postas repousam em meu colo, por um tempo esquecido. Meu coração e eu jazemos pequenos sobre a terra como um grão de areia pulsante.

Nuvens flutuantes e águas tilintantes, juntamente com o calor de um agradável dia de verão, revelam com eloquência o amoroso mistério que nos cerca. Durante o tempo em que fiquei sentado à beira ensolarada do rio, cresci um pouco, embora minha resposta não fosse tão claramente manifesta quanto na grama verde que margeia a borda do penhasco alto atrás de mim.

Por fim, refazendo a trilha incerta que sobe o barranco íngreme, procuro as terras planas onde crescem as flores selvagens da pradaria. E elas, as pequenas e adoráveis pessoas, acalmam minha alma com seu hálito perfumado.

Seus rostos redondos e pitorescos, de tonalidade variada, convencem o coração, que salta de alegre surpresa, de que eles também são símbolos vivos do pensamento onipotente. Com o olhar ávido de uma criança, absorvo as miríades de formas estelares moldadas em cores exuberantes sobre o verde. Bela é a essência espiritual que elas personificam.

Deixo-os balançando ao vento, mas levo comigo a marca deles em meu coração. Paro para descansar sobre uma rocha incrustada na encosta de uma colina, de frente para o leito baixo do rio. Ali, o Menino-da-Pedra, de quem o aborígene americano fala, brinca, atirando suas flechas de bebê e gritando de alegria para os minúsculos raios que saem dos bicos das flechas voadoras. Que guerreiro ideal ele se tornou, frustrando o cerco das pragas de toda a terra até triunfar sobre seu ataque unido. E ali jazia ele — Inyan, nosso tataravô, mais velho que a colina em que descansou, mais velho que a raça dos homens que amam contar sobre sua maravilhosa carreira.

Entrelaçado com o fio desta lenda indígena da rocha, eu gostaria de traçar um conhecimento sutil do povo nativo que os permitisse reconhecer um parentesco com toda e qualquer parte deste vasto universo. Seguindo uma trilha antiga, sigo em direção à aldeia indígena.

Com a forte e feliz sensação de que tanto o grande quanto o pequeno estão tão seguramente envolvidos em sua magnitude que, sem perder, cada um tem seu campo individual de oportunidades, estou flutuando com boa natureza.

Peito Amarelo, balançando no caule esguio de um girassol selvagem, gorjeia uma doce certeza disso enquanto passo por perto. Interrompendo a canção cristalina e clara, ele vira sua cabecinha de um lado para o outro, observando-me sabiamente enquanto eu lentamente ando com os pés calçados com mocassins. Então, novamente, ele se entrega à sua canção de alegria. Voa, voa de um lado para o outro, ele preenche o céu de verão com sua melodia rápida e doce. E realmente parece que sua vigorosa liberdade reside mais em seu pequeno espírito do que em suas asas.

Com esses pensamentos, chego à cabana de madeira, para onde sou fortemente atraído pelo laço de uma criança com uma mãe idosa. Meu amigo de quatro patas sai ao meu encontro, saltitando pelo meu caminho com inconfundível deleite. Chän é uma cadela preta e peluda, "uma vira-lata puro-sangue" de quem gosto muito. Chän parece entender muitas palavras em Sioux e vai para o tapete mesmo quando sussurro a palavra, embora geralmente eu ache que ela se guia pelo tom de voz.

Muitas vezes, ela tenta imitar a inflexão deslizante e a voz arrastada para o divertimento dos nossos convidados, mas sua articulação está além do meu ouvido. Com as duas mãos, seguro sua cabeça peluda e olho em seus grandes olhos castanhos. Imediatamente, as pupilas dilatadas se contraem em minúsculos pontos pretos, como se o espírito travesso interior escapasse do meu questionamento.

Finalmente, ao retomar a cadeira à minha escrivaninha, sinto uma profunda simpatia por meus semelhantes, pois pareço ver claramente novamente que todos são semelhantes. As linhas raciais, que antes eram amargamente reais, agora não servem mais do que delinear um mosaico vivo de seres humanos. E mesmo aqui, homens da mesma cor são como as teclas de marfim de um instrumento onde cada uma se assemelha a todas as outras, mas difere delas em tom e qualidade de voz. E aquelas criaturas que são por um tempo meros ecos da nota de outra não são diferentes da fábula do homem magro e doente cuja sombra distorcida, vestida como uma criatura real, veio até o velho mestre para fazê-lo seguir como uma sombra. Assim, com compaixão por todos os ecos em forma humana, saúdo o "pregador nativo" de rosto solene que encontro à minha espera. Escuto com respeito pela criatura de Deus, embora ele pronuncie de forma estranha as frases estridente de um credo intolerante.

Como nossa tribo é uma grande família, onde cada pessoa é parente de todas as outras, ele se dirigiu a mim:

"Prima, vim do culto matinal para conversar com você."

"Sim?", perguntei, interrogativamente, enquanto ele parava para me dizer alguma coisa.

Mexendo-se inquieto na cadeira de encosto reto em que estava sentado, ele começou: "Todos os dias santos (domingo), olho ao redor da casa do nosso pequeno Deus e, não o vendo lá, fico decepcionado. É por isso que venho hoje.

Prima, observando-o de longe, não vejo comportamento impróprio e ouço apenas bons relatos a seu respeito, o que me faz desejar ainda mais que você fosse membro da igreja. Prima, fui ensinado há muitos anos por missionários gentis a ler o livro sagrado. Esses homens piedosos também me ensinaram a loucura de nossas antigas crenças.

"Há um Deus que recompensa ou castiga a raça dos mortos. Na região superior, os mortos cristãos reúnem-se em cânticos e orações incessantes. No poço profundo abaixo, os pecadores dançam em chamas torturantes.

"Pense nessas coisas, prima, e escolha agora evitar a condenação do fogo do inferno!" Seguiu-se um longo silêncio no qual ele apertou e desfez os dedos entrelaçados com mais força.

Como relâmpagos instantâneos, surgiram imagens criadas por minha própria mãe, pois ela também agora é seguidora da nova superstição.

"Apagando a fresta da nossa cabana de madeira, uma mão maligna enfiou uma vela acesa feita de capim seco trançado, mas não conseguiu, pois o fogo se apagou e o tição meio queimado caiu no chão. Bem acima dele, em uma prateleira, estava o livro sagrado. Foi isso que encontramos após nosso retorno de uma visita de vários dias. Certamente, algum grande poder está oculto no livro sagrado!"

Afastando dos meus olhos muitas imagens semelhantes, ofereci o almoço ao índio convertido, sentado sem dizer nada e com o rosto abatido. Assim que ele se levantou da mesa com "Prima, eu o saboreei", o sino da igreja tocou.

Para lá, ele saiu apressado com seu sermão da tarde. Observei-o enquanto ele se apressava, com os olhos fixos na estrada empoeirada, até desaparecer ao final de um quarto de milha.

O pequeno incidente me fez lembrar do exemplar de um artigo missionário que me foi trazido à mente há alguns dias, no qual um pugilista "cristão" comentou um artigo meu recente, pervertendo grosseiramente o espírito da minha pena. Ainda assim, não me esqueceria de que o missionário de rosto pálido e o aborígene encapuzado são ambos criaturas de Deus, embora suas próprias concepções de Amor Infinito sejam realmente pequenas. Uma criança pequena engatinhando em um mundo maravilhoso, prefiro aos seus dogmas minhas excursões aos jardins naturais, onde a voz do Grande Espírito é ouvida no chilrear dos pássaros, no ondular das águas caudalosas e no doce sopro das flores.

Aqui, em um silêncio fugaz, sou despertado pelo manto esvoaçante do Grande Espírito. Para minha consciência mais íntima, o universo fenomenal é um manto real, vibrando com Seu sopro divino. Presos em suas franjas esvoaçantes estão as lantejoulas e os brilhantes oscilantes do sol, da lua e das estrelas. 
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ZITKALA-ŠA (1876-1938), que em Lakota significa 'Pássaro Vermelho', nasceu na Reserva Indígena Yankton em Dakota do Sul, filha de mãe Dakota e pai francês, que a abandonou quando criança. Aos oito anos, foi obrigada a deixar a liberdade e a felicidade da vida entre seu povo – como ela mesma dizia - para ser educada nos costumes e crenças europeus em um internato missionário Quaker. Lá ela recebeu o nome de Gertrude Simmons, seus longos cabelos foram cortados, ela foi forçada a suprimir todos os sinais e costumes de sua cultura e a rezar como uma quaker. As únicas coisas boas que resultaram disso para ela foram aprender a ler, escrever e tocar violino. Três anos depois, ela voltou para a reserva de Yankton apenas para descobrir, para sua consternação, que as pessoas na reserva estavam começando a adotar os costumes e modos de pensar dos europeus e que mesmo ela tinha um pé em cada mundo. Depois de mais três anos na reserva, ela voltou ao mundo dos brancos com a intenção de continuar sua formação musical. Ela aprendeu piano e violino e acabou ensinando música e estudando no Earlham College em Richmond, onde exibia publicamente sua bela oratória. Ao longo dos anos, cruzando repetidamente a ponte entre sua cultura e a cultura europeia, entre a reserva e o mundo branco, Zitkala-Ša acabaria se tornando escritora, editora, tradutora e ativista política, além de musicista e educadora. Ela chegaria a compor uma ópera com o compositor William F. Hanson, intitulada The Sun Dance Opera, baseada na Lakota Sun Dance, que o governo federal havia proibido o povo Ute de realizar em sua reserva. 

Em 1916, aos 30 anos, ela começou seu ativismo nativo americano ao ser nomeada secretária da Society of American Indians, uma associação dedicada à preservação do modo de vida nativo americano. Ela também fez lobby em círculos políticos pelo direito de seu povo à plena cidadania americana. De Washington DC, Zitkala-Ša fez duras críticas ao Bureau of Indian Affairs, chegando a pedir sua dissolução por causa de suas políticas de internato, pelo levantamento da proibição de crianças indígenas usarem sua própria língua e preservar seus costumes culturais. Ela denunciou os abusos que aconteciam nesses internatos sempre que um menino ou uma menina nativa se recusava a rezar de acordo com a maneira cristã.

Também de Washington ela começou a dar palestras em todo os Estados Unidos e, durante a década de 1920, começou a promover a ideia de criar um movimento pan-indígena que unisse todas as tribos da América do Norte para fazer lobby em nome dos povos nativos. Em 1924, graças em parte aos seus esforços, foi aprovada a Lei da Cidadania Indígena, concedendo direitos de cidadania americana à maioria dos povos indígenas que ainda não os possuíam. Em 1926, ela e o marido fundaram o Conselho Nacional dos Índios Americanos (NCAI), com o objetivo de unir as tribos dos Estados Unidos em sua luta pelos direitos dos índios. No entanto, Zitkala-Ša não era apenas um ativista pelos direitos das Primeiras Nações da América do Norte. Ela também esteve envolvida no ativismo pelos direitos das mulheres na década de 1920, quando ingressou na Federação Geral de Clubes Femininos. Zitkala-Ša morreu em 1938, aos 61 anos, e foi enterrada no Cemitério Nacional de Arlington, em Washington. Para homenageá-la, a União Astronômica Internacional nomeou uma cratera em Vênus "Bonnin", seu sobrenome de casada, Gertrude Simmons Bonnin.

Fontes:
Zitkala-Ša. American indian stories. Publicada originalmente em 1921. 
(tradução do inglês por Jfeldman)
Disponível em Domínio Público. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing