Marcadores

Mostrando postagens com marcador Contos e Lendas do Mundo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Contos e Lendas do Mundo. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Contos e Lendas do Japão (O gato assombrado de Nabeshima)


As folhas de momiji (acer), que da cor verde passaram para o amarelo e depois para o laranja, agora ganhavam uma cor vermelho vivo. Não só as árvores como o chão, forrado de folhas caídas, davam a impressão de que todo o jardim do castelo de Nabeshima havia pegado fogo. Era final de outono no Japão.

O príncipe de Hizen, um membro da família honrada de Nabeshima, tinha como sua concubina favorita uma mulher charmosa, cujo nome era Otoyo. Certa ocasião, os amantes passeavam no jardim do castelo e permaneceram apreciando as flores até o pôr-do-sol. No retorno, sem que eles percebessem, foram seguidos por um enorme gato negro.

Otoyo dirigiu-se para o seu quarto e sentiu uma inesperada indisposição. Tentou manter-se acordada, mas logo dormiu. À meia-noite, foi despertada por uma estranha sensação e viu dois olhos enormes que a fixavam brilhando na escuridão. Prestando bastante atenção, percebeu que se tratava de um enorme gato negro. Porém, antes que ela pudesse gritar pedindo ajuda, o animal saltou em sua garganta e mordeu-a profundamente, estraçalhando seu pescoço até a morte. O gato, então, foi lambendo o sangue da moça e adquirindo forma humana, ficando igual a sua vítima. Então, arrastou Otoyo para baixo do assoalho e enterrou o corpo sob a varanda.

O príncipe, que de nada sabia, não desconfiou nem um pouco da bela mulher que naquela noite o procurou para fazer amor. Assim, nos dias seguintes, como um ritual, ela o procurava no meio da noite e ia sugando seu sangue sem que a vítima percebesse. Em poucos dias, o príncipe de Hizen perdeu toda a força e seu rosto estava mais pálido que uma vela. Permanecia o dia todo deitado, pois já não tinha força para se levantar.

Os médicos do palácio prescreveram vários medicamentos, mas nenhum fez o efeito desejado. Suspeitaram então que alguém estava envenenando o príncipe.

Vários samurais montaram guarda ao redor de seu quarto. Porém, quando chegou o meio da noite, todos pegaram no sono e só acordaram na manhã seguinte. Nas noites que se seguiram, as mesmas coisas aconteceram. Nenhum soldado conseguia ficar acordado.

Os conselheiros concluíram que alguma força estranha, de poder sobrenatural, estava agindo naquela alcova. Chamaram monges budistas e sacerdotes xintoístas para fazer exorcismo no quarto, já que a saúde do príncipe ia piorando dia a dia. Foram semanas de orações e rituais diversos, mas de nada adiantou, a saúde do príncipe de Hizen ia de mal a pior.

Naquela ocasião, um samurai de nome Ito Soda, que serviu na infantaria de Nabeshima, atravessou o jardim de inverno e invadiu as proximidades do quarto do príncipe. Ele solicitou aos conselheiros que permitissem a ele permanecer escondido no quarto do enfermo, para desvendar como agia o espírito maligno que estava prejudicando seu senhor.

Seu pedido foi prontamente aceito, já que todas as tentativas tinham se mostrado infrutíferas. Ito ficou firme em seu posto, no entanto, como aconteceu com os guardas que o antecederam, a partir das dez horas, começou a sentir um sono irresistível. Para espantar seu sono, espetou sua faca profundamente em sua coxa, de modo que a dor aguda o mantivesse acordado.

De repente, as portas deslizantes do quarto do príncipe abriram-se, e uma linda mulher entrou e dirigiu-se ao leito. Ela agachou na cabeceira do príncipe e esticou o pescoço como quem vai beijar o adormecido. Porém, a mulher, pressentindo a presença de mais alguém no quarto, virou a cabeça e, com olhos brilhantes, disse:

– Tem alguém aí?

Ito permaneceu escondido e em silêncio, espiando pela fresta da porta do quarto ao lado. Percebendo que alguém a observava, ela levantou e saiu do quarto às pressas.

Na noite seguinte, a cena se repetiu. Assim, por não ter sido subjugado por duas noites seguidas enquanto dormia, a saúde do príncipe melhorou consideravelmente. Para Ito Soda, ficou claro que Otoyo era alguma entidade maligna tentando acabar com a vida do príncipe de Hizen. Diante disso, traçou um plano para acabar com ela.

Fingindo ser um mensageiro do príncipe, foi até o quarto dela, para entregar um bilhete que sua alteza lhe enviara. Ao aproximar-se da falsa Otoyo para entregar o suposto bilhete, Ito sacou da espada e desferiu um golpe na direção dela. Porém, com percepção felina, ela esquivou-se da lâmina pulando para trás. Na sequência, assumiu a forma de um gato preto e saltou pela janela. Ganhou o telhado do castelo e, segundos depois, fugia em direção à montanha.

Esse gato que gostava de lamber sangue humano passou a incomodar os habitantes da montanha. Tempos depois, o príncipe de Hizen, completamente recuperado, organizou uma caçada ao gato maldito de Nabeshima. Um exército com milhares de samurais vasculhou a montanha. Somente no oitavo dia, finalmente, o gato maldito foi liquidado e a paz voltou à região.
============================================================

Comentário:
Os primeiros gatos foram introduzidos no Japão por Fujiwara-no-Sanesuke, um nobre da corte do imperador Ichijo (987–1011). Trazidos da China, esses animais de estimação eram vistos com reserva pelos japoneses. Além de não serem obedientes como os cachorros, eram considerados destrutivos por natureza, por rasgarem tatami de palhas (tablado que servia de assoalho) e fazerem furos no shoji (parede de papel) para apanhar insetos que vinham as casas atraídos pelas lamparinas. Na época, a iluminação das casas era à base de lamparina a óleo, e os gatos gostavam de lamber esse óleo combustível, muitas vezes causando incêndio. Assim como a raposa, o texugo e a serpente, o gato era considerado um animal assombrado no antigo Japão.

Fonte: 
http://www.nippobrasil.com.br/

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Contos e Lendas do Japão (O cavalo das cores e as sete berinjelas)


No Japão, existe um dito que diz: “Se ama seu filho, permita que ele viaje”. O imigrante japonês no Brasil conhece bem o sentido dessa frase.

Há muitos e muitos anos, numa aldeia rural do Japão, viviam dois inseparáveis amigos. Eisuke era filho do chefe da aldeia, uma família abastada, dona das terras daquela região. Goro era filho de pobres lavradores, que trabalhavam nas terras do pai de Eisuke. Apesar da diferença social econômica das famílias de ambos, eles viviam sempre juntos, desde quando pequeninos.

Certa ocasião, os dois, cansados de viverem dentro dos limites da aldeia, resolveram conhecer outras paragens e ganharam a estrada.

Caminhavam alegremente, ora cantando, ora tirando músicas assoprando folhas de bambu esticadas nos lábios. Prosseguiam a viagem despreocupados.

Dias depois, na travessia de uma montanha, perderam-se no meio da mata. A noite caiu, e a floresta transformou-se em completa escuridão. Apesar do medo, continuaram caminhando, pois permanecer ali parecia por demais perigoso. De repente, avistaram uma luz no meio da mata. Os dois rumaram apressados em direção à luz, pois devia, com certeza, ser uma casa. Por sorte, era uma hospedaria. Os meninos ficaram animados e pediram uma pousada para uma velha dona da pensão. Cansados que estavam, logo Eisuke adormeceu. Goro, que nunca tinha dormido numa hospedaria, apesar de exausto, não conseguia pegar no sono.

De repente, percebeu que uma pessoa estava atrás de um shoji (parede móvel de papel), então fechou os olhos e fingiu que estava dormindo. De olhos semi-cerrados, viu que a dona da pensão olhou para dentro do quarto e, vendo que os dois estavam dormindo, deu uma risada horripilante e se afastou do corredor. Goro ficou arrepiado de medo, aquela não era uma situação normal.

Da porta corrediça que a velha deixou semi-aberta, Goro podia vê-la na sala no fim do corredor. A velha sentou-se perto do irori (fogareiro), mexeu as cinzas com dois palitos de ferro e acendeu o fogo assoprando as brasas no centro do irori. Em seguida, depositou algumas sementes nas cinzas. Goro não estava entendendo nada do que estava acompanhando.

Para a surpresa do menino, como sementes plantadas começaram a brotar e a crescer em segundos. Como folhas finas e compridas denunciavam que eram pés de arroz, que incrivelmente vieram a soltar cachos, que  carregados, fizeram como hastes curvarem. Segundos depois, os cachos pendentes ficaram amarelos e prontos para ser colhidos.

A velha colheu o arroz, tirou a casca esfregando-o em uma peneira de bambu e cozinhou-o no fogareiro. Depois, amassou-o num pequeno pilão e fez quatro motis (bolinhos de arroz glutinoso). Goro, que assistiu a tudo, pensou em contar para o amigo, mas vendo Eisuke roncando, resolveu deixar para o dia seguinte. Cansado, Goro também acabou pegando no sono.

No dia seguinte, quando Goro despertou, o sol já estava alto. Olhou para o leito ao lado e viu que Eisuke já havia se levantado. Então, levantou-se depressa e correu para a sala. A dona da hospedaria estava oferecendo os bolinhos para Eisuke. Goro gritou para que ele não comesse aquele moti, porém, era tarde. Eisike havia posto o bolinho na boca e degustou-o com satisfação.

– Nossa, que bolinho gostoso. Quero mais.

– Sim, coma! – disse a dona da pensão.

– Não coma! – gritou Goro.

Mas era tarde. Eisuke botou as mãos sobre a barriga, começou a se contorcer e, por mais incrível que possa parecer, transformou-se num cavalo. Um cavalo bonito, mas diferente de todos os cavalos que o homem tinha visto até então. Um cavalo todo colorido, como se fosse um cavalo de circo. Goro ficou paralisado de susto. Compreendeu que era a velha dona da pensão, na verdade, uma Yamanbá (bruxa da montanha), que transforma todos os viajantes que se hospedam. Já havia ouvido qualquer coisa a respeito, mas não acreditou que pudesse ser verdade. No entanto, seu amigo Eisuke era agora um cavalo de sons, com colorido impressionantemente belo e maluco.

– É sua vez. Coma os motis, garoto – disse a velha, esticando o prato com dois bolinhos ao garoto.

Goro estava paralisado de medo, mas numa reação desesperada, derrubou o prato dos bolinhos com um mão e saiu correndo da casa. Correu desesperado, sem rumo, até que avistou uma casa de lavrador no vale.

Quando Goro abriu os olhos, estava estirado sobre um tatame (esteira de palha) na casa do vale. Um velho com barba e cabelos compridos, que observava seu desespero, sorriu e disse:

– Vejo que está melhor. Você bateu na minha porta e desmaiou de canseira.

– Estou com sede. Muita sede – disse Goro, percebendo que estava diante de um Sennin (sábio imortal), e que só ele poderia ajudá-lo a salvar seu amigo.

Depois que tomou várias tigelas de água, Goro contou o ocorrido ao bom velhinho e pediu ajuda para salvar seu amigo. O ancião ensinou, então, que o único modo de salvar seria fazer Eisuke comer sete berinjelas de um mesmo pé.

– Só assim seu amigo voltará a ser humano. 

Em seguida, o velho fez um mapa ensinando o homem onde poderia encontrar uma grande plantação de berinjelas e como chegar de volta à casa da Yamanbá. 

Assim, Goro, agradecendo ao velhinho, seguiu o que indicava o mapa. Uma plantação de berinjela era enorme. Goro saiu contando pé por pé quantas berinjelas tinha cada um. Depois de muitas horas, finalmente achou um pé com as sete berinjelas. Então, arrancou o arbusto e foi em direção à casa da Yamanbá.

O cavalo estava amarrado em uma árvore ao lado da “hospedaria”. Goro aproximou-se sorrateiramente, desamarrou a corda e disse:

– Eisuke, escute, sou eu, Goro.

O cavalo olhou-o como se reconhecesse o amigo e balançou a cabeça no sentido vertical.

– Olha, você tem que comer estas sete berinjelas. Assim que comer, o encanto se quebrará, e você voltará a ser gente – o cavalo fez movimento horizontal com a cabeça, como quem desaprova uma ideia.

– Puxa, agora lembrei que você não gosta de berinjelas. Sua mãe vive dizendo para você comer berinjelas, mas você detesta. Só que, desta vez, você vai ter de comer estas sete, se não quiser ser cavalo para o resto da vida. Essas berinjelas foram sugeridas por um Sennin, não tem erro.

Assim, fazendo cara de poucos amigos, o cavalo começou a comer as berinjelas. Depois, ao digerir a última, como num passe de mágica, voltou a ser Eisuke. Os dois se abraçaram de alegria e trataram de fugir do local o mais rápido possível. 

De volta à aldeia, cada um foi para sua casa e, durante bom tempo, tiveram histórias para contar. Anos depois, tornaram-se sócios em uma plantação de berinjelas e continuaram bons amigos para sempre.

Fontes: 
http://www.nippobrasil.com.br
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Contos e Lendas do Japão (As origens de Maneki-Neko)


Conhecido em todo o mundo como talismã da sorte e, particularmente, como talismã que atrai freguesias para casas comerciais, o Maneki-neko, o gatinho enviado que tem uma patinha levantada, tem diferentes versões a respeito de sua origem, conforme a região do Japão. 

Esta é uma das versões do lado leste do Lago Biwa, na região central do Japão.

Conta a lenda que quando o senhor guerreiro Ii Naotaka (1590~1659) voltava do cerco e tomada do Castelo de Osaka, após ter comandante 3,2 mil homens e se destacado na Batalha de Tennoji, em março de 1615, surpreendido por uma chuva repentina, abrigou-se embaixo de uma árvore próxima do Templo Gotokuji, em Setagaya.

Gotokuji, na época, era um templo decadente, com pouca frequência de fiéis e, portanto, muito pobre. No templo, vivia um monge budista e uma gata de nome Tama. Solitário, o monge conversava com a gatinha lamentando quase uma situação de penúria do templo.

– A situação está cada vez pior. Hoje, nem temos arroz para comer. Bem que você pode dar uma ajuda para melhor nossa situação, em vez de ficar dormindo o dia inteiro.

Esperando a chuva passar sob a árvore, Ii Naotaka olhou para o velho templo e viu o gato sentado sobre suas patas traseiras e acenando com uma pata dianteira levantada. O samurai ficou encantado pela habilidade do bichinho e foi em direção do templo para ver de perto.

Quando Naotaka chegou junto ao templo, um raio fulminante atingiu a árvore exatamente no local em que ele estava encostado. O guerreiro então percebeu que aquele gesto do gato salvou sua vida. Então, entrou no templo para rezar em agradecimento à graça recebida.

No salão principal, havia várias goteiras, e todo o templo estava em condição lamentável. Naotaka fez oferenda de todo o dinheiro que carregava ao altar, comendo com o monge que com a sabedoria de Buda ia usar aquele dinheiro para reformar o templo. Após esse episódio, Naotaka passou a frequentar o Gotokuji, e o local tornou-se, então, o templo oficial da família de Ii Naotaka. Consequentemente, tornou-se um próspero local e visitado por todas pessoas do feudo.

Para homenagear o gesto de Tama, que tanta sorte trouxe ao templo e salvou a vida de Naotaka, foi esculpido e colocado no local uma estátua da gata com uma pata levantada. Como réplicas em miniaturas da estátua, foram distribuídas no Templo Gotokuji como lembrança, tornaram-se, mais tarde, amuleto da sorte, com o nome de Maneki-Neko.

Outra versão

História também bastante conhecida, surgida nos meados da Era Edo (1615~1868), conta que existiu, no bairro de Imado, em Edo (hoje Tóquio), uma velha senhora que tinha um gato de estimação. A velhinha estava em péssimas condições financeiras, porque, devido à idade avançada, não conseguia arranjar um trabalho para garantir seu sustento.

Numa determinada ocasião, a situação ficou tão crítica, que ela não tinha mais como alimentar seu gatinho. Então, conversando com o bichinho, disse:

– É com o coração partido que terei de abandonar você. Devido à minha condição de extrema pobreza, não tenho como continuar a te alimentar.

Depois, com lágrimas nos olhos e barriga roncando, a velhinha foi dormir. Em seu filho, o gato apareceu e disse:

– Molde minha imagem em barro, que trará muita sorte.

No dia seguinte, ela resolveu fazer uma estatueta do gato, conforme o filho havia sugerido. Enquanto ela moldava o barro, o gato estava “lavando a cara” com gestos exagerados e, a velhinha resolveu moldar o bichinho com uma pata levantada. Nisso, passou uma pessoa em frente de sua casa e, achando interessante, quis comprar a estatueta. 

Como estava dias sem comer, a velhinha vendeu a estatueta e comprou comida para ela e o gato. Assim, de barriga cheia, resolveu fazer outra estatueta para deixar como talismã da sorte. Porém, apareceu outra pessoa e comprou a segunda estatueta

Quanto mais a velhinha fazia estatuetas, mais aparecia gente para comprá-las. Com isso, ela mudou de vida e nunca mais passou necessidades. E a estatueta da sorte passou a ser conhecida como Maneki-Neko.

Fonte: 
http://www.nippobrasil.com.br/

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Hans Christian Andersen (Bons Vizinhos)


    Quem visse aquilo havia de supor que alguma coisa muito importante se passava em frente ao tanque dos patos.

     Todos os patos que estavam descansando na superfície da água, e os que se apoiavam sobre a cabeça - porque eles podem ficar de cabeça para baixo - nadavam agora em tumulto para terra e iam deixando impresso o rasto no chão úmido, enquanto o alarido das grasnadas repercutia, perto e longe. A água, um momento antes tão clara e lisa como um espelho, estava garota agitada. Ainda há pouco todas as árvores, todos os arbustos que ficavam perto do velho chalé de teto esburacado, cheio de ninhos de andorinhas - e principalmente a grande roseira literalmente coberta de rosas - tudo se espelhava distintamente na superfície da água - A roseira cobria a parede e ficava suspensa sobre a água, onde se via toda a paisagem como um quadro - mas de pernas para o ar. Quando, porém, a água se encrespou, tudo aquilo pareceu ir nadando,  e a paisagem desapareceu. Duas penas, que tinham caído dos patos que nadavam, embalavam-se ao sabor das ondas; de súbito moveram-se rapidamente, como se tivessem sido impelidas, enquanto a água ia alisando e serenando de novo. Já as rosas podiam espelhar-se. Eram muito lindas, ainda que não os soubessem, porque ninguém jamais lhes tinha dito isso. O sol espiava por entre as folhas tenras, vagava no ar uma aroma suave, e todas as coisas sentiam o que nós mesmos sentimos, quando nos vem alegrar a ideia da nossa felicidade.

   - Como é bela a vida! - dizia cada uma daquelas rosas. - O único desejo que tenho é de beijar o sol, tão quente e tão brilhante. Gostaria muito de beijar também as rosas que estão lá embaixo na água, e os passarinhos que metem a cabeça fora do ninho, e piam:  " Tuiii!" com uma vozinha fraca, e não tem penas, como as dos pais. São bons vizinhos, tanto os de cima como os de baixo. Que bela é a vida!

   Os filhotes de baixo e de cima - os de baixo eram apenas o reflexo na água - eram pardais; os pais também eram  pardais, que tinham tomado posse de um ninho vazio de andorinha, do ano anterior, e agora moravam nele como se fosse seu.

   - São os filhos dos patinhos que vão nadando lá? - Perguntaram os filhotes de pardal, olhando para as penas de pato que vogavam na água.

   - Se querem fazer perguntas, façam - disse a mãe - mas ao menos que sejam perguntas sensatas. Pois vocês não veem que aquilo são penas, matéria-prima para vestuário, com as que nós usamos- e vocês hão de usar também? A única diferença é que as nossas são mais bonitas. Ainda assim... bem quisera eu tê-las aqui no ninho, porque conservam muito o calor! Estou curiosa por saber o que foi que tanto assustou os patos... Certamente não seria de nós que se espantaram - apesar de ter eu dito "Tuiii!" bem alto para vocês. É claro que essas rosas não sabem nada, e nada mais fazem senão olhar para si próprias e cheirar... Estou farta de semelhante vizinhança!

    - Escutem os lindos passarinhos de cima! - diziam as rosas. -Também eles começam a cantar; mas ainda não conseguem grande coisa. Tudo virá a seu tempo! Que prazer teremos então! É muito agradável ter vizinhos tão alegres!

    Subitamente apareceu uma parelha de cavalos, cabriolando; iam tomar banho. Montado em um deles vinha um rapaz um camponês, que tirou toda a roupa, ficando somente com o chapéu preto, de aba larga. Assobiava como um passarinho; entrou, a cavalo, até o ponto mais fundo do açude, e ao passar pela roseira colheu uma rosa. Espetou-a no chapéu e continuou a cavalgar, achando-se muito elegante. Às outras rosas ficaram olhando para aquela irmã, e perguntavam consigo:

   - Onde irá ela?

   Mas ninguém  o sabia.

   - Eu gostaria de ir por esse mundo - disse uma - apesar de ser tão lindo o nosso lar verdejante. De dia o sol brilha e nos dá calor, e à noite o céu brilha ainda com maior encanto, com a gente vê pelos buraquinhos!

   Elas queriam dizer -  as estrelas, mas não sabiam que eram estrelas.

   - Nós tornamos a casa muito agradável - dizia a mãe pardal; - e como as pessoas dizem que ninho de andorinha traz sorte, elas estão contentes conosco. Agora quanto aos nossos vizinho, uma roseira como aquela só traz umidade. Provavelmente ela será retirada dali, e tomara que plantem em seu lugar nem que seja uma espiga de trigo. As rosas não prestam  para nada, a não ser para serem vistas e cheiradas, ou, quando muito, para serem postas no chapéu. Ouvi minha mãe dizer que elas caem todos os anos. A mulher do lavrador conserva-as então em sal, e depois elas recebem um nome francês, que eu nem posso nem quero pronunciar; polvilham com elas o fogo, para sentirem um cheiro agradável. E esta é a sua  carreira no mundo: são destinadas apenas a alegrar  os olhos e o nariz. E agora já vocês sabem em que consiste a vida das rosas.

   Quando anoiteceu, e os mosquitos andavam brincando no ar tépido e entre as nuvens rosadas, veio o rouxinol e cantou para as rosas: que beleza se assemelha o sol neste mundo, e que a beleza vive para sempre. Mas as rosas pensavam que o rouxinol cantava seu próprio louvor- o que não é de admirar; porque se há coisa que jamais sonharam é que aquele canto se referisse a elas. Ficaram  deliciadas com a canção, ainda assim, e perguntavam lá consigo se todos os filhotes de pardal viriam a ser também rouxinóis. E os filhotes diziam:

   - Eu compreendo perfeitamente o canto deste passarinho. Há só uma palavra que não sei o que significa...Que é " beleza"?

   - Ora! Não é nada importante, não - replicou a mãe pardoca (fêmea do pardal). - Refere-se apenas ao exterior. Lá em cima, na casa grande, onde os pombos são alimentados diariamente com ervilhas e trigo – já tenho tomado parte em suas refeições algumas vezes, e vocês hão de também participar delas, quando for tempo, porque minha máxima é esta: "Dizem-me com quem andas, dir-te-ei quem és" – pois bem: lá em cima, na casa grande, como tu ia dizendo, há duas aves de pescoço verde, que tem topete, e podem abrir a cauda como uma enorme roda. As cores são tão brilhantes, que ofuscam os olhos da gente, quando nelas bate o sol. Essas aves chamam-se pavões, e representam  a beleza; mas se lhes arrancassem alguma daquelas penas, não ficariam diferente de nós. E eu teria certamente arrancado, se não fossem aves tão grandes!

   - Pois eu vou arrancá-las! - guinchou o menorzinho dos filhotes, que ainda não tinha penas.

   No chalé morava um casal novo; os esposos amavam-se ternamente, e eram diligentes e ativos - por isso tudo quanto os cercava estava em ordem e bem cuidado. Todos os domingos, de manhã cedo, a moça colhia algumas rosas, que arranjava em um copo d'água, sobre a cômoda.

   - Agora estou vendo que é domingo – dizia o marido, beijando-a,

   Sentavam-se então, de mãos dadas, e liam o livro de orações; e os sol iluminava com seus brilhantes raios as rosas e o jovem par.

   - Que vista monótona, está! – disse um dia a mãe pardal, que lá do seu ninho via o que se passava na sala. - Sempre a mesma coisa!

    E ela voou do ninho.

   No domingo seguinte repetiu-se a mesma coisa –  novas rosas foram colhidas e postas no copo; e apesar disso a roseira continuava cheia de flores e de beleza. Os filhotes de pardal já estavam emplumados, e gostariam bem de voar com a mãe, mas a pardoca não lhes deu licença; e eles tiveram de ficar em casa. Ela saiu voando; mas de repente viu que estava presa em uma rede de sedenho (tranças) que uns meninos tinham amarrado a um galho de árvore. O sedenho apertou-lhe tanto as pernas, que parecia cortá-las. Que susto, e que angústia! Os meninos vieram correndo, subiram à árvore, e seguraram o passarinho sem nenhum cuidado.

  - Ora! É um pardal! - disseram eles desapontados.

   Contudo, não a soltaram: levaram-na para casa; e cada vez que ela piava, batiam-lhe no bico.

   Os meninos conheciam um velho, em uma granja próxima, que sabia preparar sabão, para lavar roupa e para barbear também. Era um velhote alegre, que vivia andejando pela região. Ouviu os meninos se queixarem de que aquele passarinho não servia para nada, e disse-lhes:

   - Querem ver com ele vai ficar bonito?

    A pardoca sentiu pelo corpo todo ao ouvir estas palavras.

   O velho tirou então da sua caixa, cheia de tintas de várias cores, uma porção de folhas douradas, e pediu aos meninos que lhe trouxessem uma clara de ovo; untou com ela todo o corpo da avezinha, assentou por cima as folhas, e a mãe pardoca ficou toda dourada, da cabeça às patinhas. E ela, porém, pouco se lhe dava aquele esplendor, e tremia de susto. O saboeiro tirou então um pedaço do forro vermelho do seu casaco velho, cortou-o em bicos, fingindo uma crista de galo, e amarrou-o na cabeça da pardoca.

   - Agora vocês vão ver o casaco-de-ouro voar! - disse o velho, libertando o animalzinho.

   E a pardoca saiu voando, meio morta de medo, à luz do sol ardente. E como brilhava!

   Não foi só aos pardais que ela assustou, não: um corvo velho, apesar de toda a sua experiência, ficou espantado diante daquela estranha visão. E foram todos voando atrás da mãe pardoca, na esperança de descobrir quem poderia se aquele pássaro estrangeiro.

   Desesperada de aflição e de medo, a pardoca voou para casa; mas ia quase caindo, por não ter forças para sustentar o corpo. O bando de pássaros que a perseguia aumentava cada vez mais; alguns tentaram mesmo dar-lhe bicada. E gritavam:

   - Olhem o bicho! Olhem o bicho!

   - Olhem o bicho! Olhem o bicho! - repetiam os filhotes no ninho, quando viram que a ave se aproximava. Isto há de ser um pavãozinho novo, porque tem todas as cores, e elas ofuscam os olhos da gente, como disse a mamãe! Tuiii! Tuiii! Isto é a beleza!

  E davam bicadas na mãe, com os biquinhos ainda tão pequenos; e ela não podia chegar ao ninho. Estava tão fraca que não se animava a dizer sequer "Tuiii! quanto mais explicar que " era mamãe"! E as outras aves caíram em cima da pardoca, e arrancam-lhe as penas, até ela cair, toda ensanguentada, sobre a roseira.

     - Coitadinha! - disseram as rosas. - Fica tranquila; nós te escondemos. Deita a cabecinha no nosso peito.

    A pardoca abriu ainda uma vez as asas, depois cingiu-as ao corpo e caiu morta no meio de suas vizinhas, as frescas e lindas rosas.

   - Tuiii! Tuiii! - pipilavam lá do ninho. - Mas que poderá reter nossa mãe tanto tempo? É inconcebível! Será um ardil dela, para mostrar que devemos cuidar de nossa vida? Ela nos deixou a casa de herança; mas a qual de nós pertencerá, quando tivermos nossas famílias?

     - Não me agrada que fiquem aqui comigo, quando eu aumentar minha família: quando tiver mulher e filhos! - disse o mais novo.

   - Mas eu hei de ter mais mulheres e mais filhos do que tu, certamente- disse o segundo.

   - Mas e eu, eu sou o mais velho! - bradou outro.

   Estavam todos, davam bicadas, e de repente - Bum! - foram caindo, uma um, para fora do ninho. Lá ficaram, furiosos, com a cabecinha inclinada para um lado, e piscando e revirando os olhos. Era  a  sua maneira de mostrar zanga.

   Podiam apenas dar voos muito curtos, mas com exercício constante, conseguiram mais destreza. Concordaram em combinar uma senha, para se reconhecerem mutuamente, caso se encontrassem ainda algum dia no mundo. Consistia ela em uma espécie de "tuiii! " particular, ao mesmo tempo que arranhavam o chão três vezes com o pé.

   O mais novo, que ficou de posse do ninho, espichou-se o mais que pode, pois que era agora o dono da casa. Mas o seu regozijo não durou muito: nessa mesma noite rebentaram das janelas do chalé labaredas vermelhas, e toda casa desmoronou em chamas; e o pardalzinho pereceu, enquanto o casal novo escapava com vida, felizmente!

   Ergueu-se o sol mais uma vez, e a natureza inteira parecia renovada, como se saísse de um sono tranquilo; do chalé nada mais restava, senão alguns barrotes carbonizados, que se apoiavam na chaminé, agora solitária. Subiam ainda das ruínas rolos de fumaça; mas cá fora a roseira, intata, continuava a florescer, sempre fresca, e todas as flores, e  todos os brotinhos espelhavam-se ainda na água límpida.

  Um homem que passava exclamou:

   - Que lindas estão aquelas rosas, assim em frente do chalé queimando! Não se pode imaginar mais belo quadro! Vou esboça-lo.

    E o estranho tirou do bolso um livrinho de folhas em branco, pois era pintor, e desenhou um esboço das ruínas fumegantes, dos barrotes carbonizados, e da chaminé, que dominava o quadro, e parecia cada vez mais vacilantes; e no fundo aparecia a grande roseira florida, que fazia um belo efeito. na verdade, a roseira sugerira ideia do quadro.

   No mesmo dia dois do pardais que tinham nascido ali, voltaram.

  - Mas ...onde está a casa? - perguntavam eles. - Onde está o ninho? Tuiii! ...Tudo pegou fogo, e com a casa lá se foi o nosso valente irmão! Aí está o que ele ganhou, em ficar com o ninho! As rosas é que se livraram lindamente! E ainda conservam as faces rosadas...Não se importam nada com a infelicidade dos vizinhos! Por isso mesmo nem vou falar com elas! Além de tudo, este lugar aqui é muito feio, para meu gosto.

   E os pardais foram embora.

  No outono, num dia claro e luminoso, que mais parecia de pleno verão, um bando de pombas, brancas, cinzentas e manchadas, andavam passeando  em frente da larga escada, no pátio da casa grande. Sua plumagem luzia ao sol. E a velha mãe pomba dizia aos filhotes:

   - Vamos! Formem grupos! Formem grupos! Fica melhor assim!

   - Que é aquilo? Aquelas criaturinhas cinzentas, que andam saracoteando ao redor de nós? - perguntou uma pomba velha, de olhos verdes e vermelhos.

    E pôs-se a gritar.

   - Casaquinhos pardos! Casaquinhos pardos!

   - São pardais - muito boas criaturas, por sinal; e como nós temos sido sempre reconhecidos como gente bondosa, vamos deixá-los  comer alguns grãos conosco, porque não interrompem a nossa conversa, e espicham a perna com tanta graça...

     Era certo, sim, que estavam espichando uma perna - por sinal que a esquerda! - e dizendo: "Tuiii!" Reconheceram-se, pois: eram os pardais que em tempos tinham morado no ninho do chalé que o incêndio destruiu.

   - Há aqui comida boa, e abundante - disseram os pardais.

   As pombas empertigavam-se, pavoneando-se, aferrando-se cada uma aos seus próprios pensamentos e opiniões.

    - Estás vendo aquele pombo " papo de vento"? - disse uma delas, falando de outra. - Vês como ele engole ervilhas? Come tanto - e o que há de melhor, além disso! Cou!...Cou!...Como aquela criatura suja, feiosa e perversa ergue a crista! Cou...Cou!...

   E, com os olhos luzentes de maldade:

   - Formem grupos! Formem grupos! Casaquinhos pardos! Casaquinhos pardos! Cou!...Cou!...

  Os pardais comiam sofregamente, escutando com atenção, e chegaram a formar fila com os outros; mas como não estava habituados, não deu resultado. Assim, depois de fartos, deixaram as pombas, trocaram opiniões a respeito delas, e depois meteram-se por baixo dos sarrafos que cercavam o jardim; e um deles, achando aberta a porta da sala. arrojado agora, depois da boa refeição, saltou para o limiar, dizendo:

   - Tuiii! Eu voarei bem longe!

   - Tuiii! - disse outro. - Eu voarei também, e mais longe ainda! - E saltou para dentro da sala.  Lá não havia ninguém, e, vendo isso, o terceiro voou ainda mais longe, para o fundo da sala, dizendo:

  - Agora ou nunca! Isto é um velho ninho humano, não há dúvida, e... mas... que é que puseram ali? Que pode ser aquilo?

   Bem na frente dos pardais estavam as rosas, em plena floração, refletidas na água; e os barrotes chamuscados inclinavam-se contra a chaminé, que torreava acima das ruínas. Mas  que acontecera? Que seria aquilo? Como viera tudo aquilo parar dentro de uma sala, na casa grande?

   E os três pardais quiseram voar para a chaminé; mas bateram contra uma superfície plana, porque era um quadro - um grande e belo quadro - que o artista pintara daquele pequenino esboço.

   - Tuiii! - disseram os pardais. - Isto não é nada! Isto só parece alguma coisa. Não, não é nada! Tuiii! Isto é a beleza! Vocês acham que isto tem sentido! Eu, não!

   E, como naquele momento entrava alguém na sala, saíram voando.

Passaram-se um ano e um dia. As pombas tinham muitas vezes arrulhado, para não dizer brigado - criaturinhas perversas, aquelas! Os pardais tinham tremido de frio no inverno, e vivido na fartura durante o verão; todos se haviam acasalado, ou casado; todos tinham filhotes, e, é claro, cada um achava que o seu era o mais bonito e inteligente. Um voou para um lado, outro para outro; e quando se encontravam, reconheciam-se pelo outro; e quando se encontravam, reconheciam-se pelo "Tuiii!” e porque estendiam três vezes a perna esquerda. A pardoca mais velha ficou solteira, e nunca teve ninho nem filhotes; seu maior desejo era ver uma cidade grande, e voou para Copenhague.

   Junto do castelo e do canal, onde flutuavam navios carregados de maças e de cascos de vinho, via-se uma grande casa, pintada de várias cores. As janelas eram mais largas embaixo do que em cima, e os pardais, espiando pelas vidraças, viram uma sala que parecia uma tulipa, pintada com as cores mais alegres do mundo. No centro da tulipa viam-se criaturas humanas, umas feitas de mármore, outras de gesso - o que, para os pardais, é a mesma coisa. No teto via-se um carrinho de metal, com cavalos de metal, guiado por uma Deusa da Vitória, também de metal. Era o Museu Thorwaldsen.

   - Mas que coisa brilhante! Que coisa brilhante! - disse a pardoca solteirona - Aquilo deve ser a beleza! Tuiii! Mas é maior que o pavão...

  Lembrava-se ainda do tempo da infância, em que ouvira sua mãe proclamar o pavão como o mais perfeito exemplo do belo. Baixou o voo e entrou no pátio, cujos muros eram pintados com muito gosto, representando palmeiras e folhagens; no centro do pátio florescia uma grande e bela roseira, que espalhava os ramos frescos e suaves sobre um túmulo. E a pardoca, avistando gente da sua espécie, voou para lá, dizendo: "Tuiii!" e espichando o pé - maneira de cumprimentar que muitas vezes tinha experimentado durante todo o ano, sem receber a devida resposta, porque os que se dispersam não se encontram todos os dias! Mas é aquela forma de saudação já se fizera hábito nela.

   Mas agora dois pardais velhos e um novo replicaram; "Tuiii!" esticando três vezes a perna esquerda.

   - Ah! Bom dia! Então, como passas?

   Eram dois pardais velho, daqueles que primitivamente moravam no ninho, e um novo, da mesma família. E continuaram:

   - Quem havia de imaginar, hem? Encontrarmo-nos aqui! Isto é um lugar muito aristocrático, mas falta o que comer; isto é a beleza! Tuiii!

   Saíam agora muitas pessoas, que vinham das salas cheias de esplêndidas estátuas de mármore, e aproximavam-se do túmulo, onde jazem os restos mortais do célebre mestre, cujo gênio formara aquelas estátuas. E todas, com expressões de admiração ardente, paravam ao pé do túmulo do Thorwaldsen; algumas juntavam as pétala de rosas que estavam espalhadas ali, para guardá-las. Toda aquela gente viera do estrangeiro: uns da poderosa Inglaterra, outros da Alemanha, outros ainda da França. Uma dama muito linda colheu uma rosa e escondeu-a no seio. E os pardais pensaram então que as rosas eram onipotentes naquele lugar, e que a casa inteira fora construída em sua intenção, o que, seja dito de passagem, achavam que era demasiada honra. Contudo, como todos lhes prestavam tantas homenagens, também eles não queriam ficar atrás em matéria de cortesia.

   -Tuiii! - disseram então, varrendo o chão com a cauda.

   Deitaram um olhar de esguelha às rosas, e convenceram-se sem demora de que eram as suas velhas vizinhas. E eram, de fato. O pintor que tinha feito aquele esboço da roseira vizinha do chalé incendiado obtivera permissão para transportá-la, e dera-a de presente ao arquiteto, porque nunca tinha visto rosas mais belas; e o arquiteto plantara-a no túmulo de Thorwaldesen, onde ela continuou a florescer, como a imagem da beleza, semeando no chão suas pétalas rosada e cheirosas, para que pudessem ser levadas para terras estrangeiras, como lembrança daquele sítio reverenciado.

  - Então vocês obtiveram nomeação para a cidade? - perguntaram os pardais.

   E as rosas acenaram com a cabeça - que sim; porque reconheceram também seus vizinhos pardacentos, e ficaram muito contentes de tornar a vê-los.

   - Como é agradável - disseram elas - viver, e florescer, e tornar a encontrar velhos amigos...e ver diariamente rostos alegres! É como se todos os dias fossem domingos!

   - Tuiii! responderam os pardais. - Sim, elas são mesmo as nossas antigas vizinhas. Lembramo-nos muito bem da sua origem, junto do açude. Tuiii! Como subiram de categoria! E que honras, as que recebem! Ah! É bem certo que algumas pessoas nascem com uma colher de prata na boca! Mas lá está uma folha seca...

   E deram bicadas e bicadas na folha, até vê-la cair ao chão.

   Mas a roseira continuou a florescer, mais fresca e mais verdejante que nunca; e rosas, ao calor do sol, espalhavam o seu perfume sobre o túmulo de Thorwaldsen, a cujo nome imortal ficaram assim ligadas.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Hans Christian Andersen foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.

Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

domingo, 8 de junho de 2025

Zitkala-Ša (Os sete guerreiros)


(tradução do Inglês por José Feldman)

CERTA VEZ, sete guerreiros saíram para fazer guerra - as Cinzas, o Fogo, o Bexiga, o Gafanhoto, a Libélula, o Peixe e a Tartaruga. Como eles estavam conversando animadamente, agitando os punhos em gestos violentos, o vento veio e explodiu as Cinzas. 

“Ho!” gritaram os outros, “Ele não conseguiu lutar!”

Os seis continuaram correndo para fazer a guerra mais rapidamente. Desceram um vale profundo, o Fogo indo em primeiro lugar até chegarem a um rio. 

O Fogo disse "Hsss-tchu!" e desapareceu. "Ho!" gritaram os outros, "ele não conseguiu lutar!"

Por isso os cinco partiram mais rapidamente para a guerra. Eles foram para um grande madeira. Enquanto eles passavam por isso, a Bexiga foi ouvida zombar e dizer, “He! vocês deveriam se elevar acima destes, irmãos.” 

Com estas palavras ele subiu entre os topos das árvores; e a maçã espinhosa o picou. Ele caiu pelos galhos e não era nada! “Você vê isso!” disse os quatro, “este não poderia lutar.”

Mesmo assim, os guerreiros restantes não voltariam atrás. Os quatro foram corajosamente para fazer guerra. 

O Gafanhoto e sua prima, a Libélula, foram à frente. Chegaram a um lugar pantanoso, com um atoleiro muito fundo. Enquanto caminhavam pela lama, as pernas do Gafanhoto ficaram presas e ele as arrancou! Ele rastejou sobre um tronco e chorou: "Vocês me veem, irmãos, eu não consigo ir!"

A Libélula continuou, chorando por seu primo. Ele não seria consolado, pois amava muito seu primo. Quanto mais ele sofria, mais alto chorava, até que seu corpo tremeu com grande violência. Ele assoou o nariz vermelho e inchado com um barulho tão alto que sua cabeça se desprendeu do pescoço esguio, e ele caiu na grama.

"Vejam como é", disse o Peixe, abanando o rabo impacientemente, "essas pessoas não eram guerreiras!"

"Venham!" disse ele, "vamos continuar a guerrear."

Assim, o Peixe e a Tartaruga chegaram a um grande acampamento.

"Ei!" exclamaram as pessoas daquela vila redonda de tendas, "Quem são esses pequeninos? O que eles procuram?"

Nenhum dos guerreiros carregava armas consigo, e sua estatura imponente enganou os curiosos.

O Peixe era o porta-voz. Com uma peculiar omissão de sílabas, ele disse: "Shu... hi pi!”

"Wan! O quê? O quê?" clamavam as vozes ansiosas de homens e mulheres.

O Peixe disse novamente: "Shu... hi pi!" Por toda parte, jovens e velhos, com a palma da mão no ouvido. Ninguém ainda adivinhava o que o Peixe havia murmurado!

Da multidão perplexa, o velho e espirituoso Iktomi se aproximou. "He, escutem!" gritou, esfregando as palmas das mãos travessas, pois onde havia alguma confusão se formando, ele sempre estava no meio dela.

"Este homenzinho estranho diz: 'Zuya unhipi! Viemos para fazer guerra!'"

"Uun!" ressentiram-se as pessoas, subitamente abatidas. "Vamos matar a dupla tola! Eles não podem fazer nada! Eles não sabem o significado da frase. Vamos acender uma fogueira e cozinhar os dois!"

"Se nos colocarem para ferver", disse o Peixe, "haverá confusão."

"Ho ho!" riram os aldeões. "Veremos."

E então eles fizeram uma fogueira.

"Nunca fiquei tão irritado!" disse o Peixe. A Tartaruga, em um sussurro, respondeu: "Vamos morrer!"

Quando um par de mãos fortes levantou o Peixe sobre a água que jorrava, ele abaixou a boca. "Uhssh!" disse ele. Soprou a água sobre as pessoas, de modo que muitas ficaram queimadas e não conseguiam enxergar. Gritando de dor, elas fugiram.

"Oh, o que faremos com esses horríveis?" disseram elas.

Outros exclamaram: "Vamos levá-los para o lago de água lamacenta e afogá-los!"

Imediatamente, correram com elas. Jogaram o Peixe e a Tartaruga no lago. Em direção ao centro do grande lago, a Tartaruga mergulhou. Lá, ela espiou para fora da água e, acenando com a mão para a multidão, gritou: "É aqui que eu moro!"

O Peixe nadava de um lado para o outro com movimentos tão travessos que sua barbatana traseira fazia a água voar. "E han!" gritou o Peixe, "é aqui que eu moro!"

"Oh, o que nós fizemos!" disseram as pessoas assustadas, "isso será nossa ruína.”

Então, um sábio chefe disse: "Iya, o Devorador, virá e engolirá o lago!"

Então, um deles correu. Trouxe Iya, o Devorador; e Iya bebeu o dia todo no lago até que sua barriga se tornasse como a terra. Então, o Peixe e a Tartaruga mergulharam na lama; e Iya disse: "Eles não estão em mim". 

Ouvindo isso, o povo chorou muito.

Iktomi, que vadeava no lago, havia sido engolido como um mosquito na água. Dentro do grande Iya, ele olhava para o céu. Tão funda era a água no estômago do Devorador que a superfície do lago engolido quase tocava o céu.

"Eu irei por ali", disse Iktomi, olhando para a concavidade ao alcance do braço.

Ele cravou sua faca no estômago do Devorador, e a água que caía afogou as pessoas da aldeia.

Então, quando a grande água caiu em seu próprio leito, o Peixe e a Tartaruga chegaram à margem. Eles voltaram para casa vitoriosos e cantando em voz alta.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
ZITKALA-ŠA (1876-1938), que em Lakota significa 'Pássaro Vermelho', nasceu na Reserva Indígena Yankton em Dakota do Sul, filha de mãe Dakota e pai francês, que a abandonou quando criança. Aos oito anos, foi obrigada a deixar a liberdade e a felicidade da vida entre seu povo – como ela mesma dizia - para ser educada nos costumes e crenças europeus em um internato missionário Quaker. Lá ela recebeu o nome de Gertrude Simmons, seus longos cabelos foram cortados, ela foi forçada a suprimir todos os sinais e costumes de sua cultura e a rezar como uma quaker. As únicas coisas boas que resultaram disso para ela foram aprender a ler, escrever e tocar violino. Três anos depois, ela voltou para a reserva de Yankton apenas para descobrir, para sua consternação, que as pessoas na reserva estavam começando a adotar os costumes e modos de pensar dos europeus e que mesmo ela tinha um pé em cada mundo. Depois de mais três anos na reserva, ela voltou ao mundo dos brancos com a intenção de continuar sua formação musical. Ela aprendeu piano e violino e acabou ensinando música e estudando no Earlham College em Richmond, onde exibia publicamente sua bela oratória. Ao longo dos anos, cruzando repetidamente a ponte entre sua cultura e a cultura europeia, entre a reserva e o mundo branco, Zitkala-Ša acabaria se tornando escritora, editora, tradutora e ativista política, além de musicista e educadora. Ela chegaria a compor uma ópera com o compositor William F. Hanson, intitulada The Sun Dance Opera, baseada na Lakota Sun Dance, que o governo federal havia proibido o povo Ute de realizar em sua reserva. 

Em 1916, aos 30 anos, ela começou seu ativismo nativo americano ao ser nomeada secretária da Society of American Indians, uma associação dedicada à preservação do modo de vida nativo americano. Ela também fez lobby em círculos políticos pelo direito de seu povo à plena cidadania americana. De Washington DC, Zitkala-Ša fez duras críticas ao Bureau of Indian Affairs, chegando a pedir sua dissolução por causa de suas políticas de internato, pelo levantamento da proibição de crianças indígenas usarem sua própria língua e preservar seus costumes culturais. Ela denunciou os abusos que aconteciam nesses internatos sempre que um menino ou uma menina nativa se recusava a rezar de acordo com a maneira cristã.

Também de Washington ela começou a dar palestras em todo os Estados Unidos e, durante a década de 1920, começou a promover a ideia de criar um movimento pan-indígena que unisse todas as tribos da América do Norte para fazer lobby em nome dos povos nativos. Em 1924, graças em parte aos seus esforços, foi aprovada a Lei da Cidadania Indígena, concedendo direitos de cidadania americana à maioria dos povos indígenas que ainda não os possuíam. Em 1926, ela e o marido fundaram o Conselho Nacional dos Índios Americanos (NCAI), com o objetivo de unir as tribos dos Estados Unidos em sua luta pelos direitos dos índios. No entanto, Zitkala-Ša não era apenas um ativista pelos direitos das Primeiras Nações da América do Norte. Ela também esteve envolvida no ativismo pelos direitos das mulheres na década de 1920, quando ingressou na Federação Geral de Clubes Femininos. Zitkala-Ša morreu em 1938, aos 61 anos, e foi enterrada no Cemitério Nacional de Arlington, em Washington. Para homenageá-la, a União Astronômica Internacional nomeou uma cratera em Vênus "Bonnin", seu sobrenome de casada, Gertrude Simmons Bonnin.

Fontes:
Zitkala-Ša. Old Indian Legends. Publicada originalmente em 1901. 
Disponível em Domínio Público. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Vladmir Odoevsky (Conto indiano dos quatro surdos)


Não muito longe da aldeia, um pastor pastoreava as suas ovelhas. Já passava do meio-dia e o pobre pastor estava com muita fome. É verdade que, ao sair de casa, ele pediu à esposa que lhe levasse o café da manhã, mas a mulher, como se de propósito, não o fez.

O pobre pastor atirou-se aos pensamentos. Sabia que não poderia voltar para casa, já que não poderia deixar o rebanho à própria sorte, sujeito aos ladrões. E nem lhe parecia uma alternativa plausível — decerto pior — permanecer onde estava, já que a mordida fome lhe seria um tormento.

Olhando para um lado e para o outro, finalmente viu o vigia da aldeia, que ceifava a relva para alimentar a sua vaquinha.

Aproximando-se, disse-lhe o pastor:

— Por favor, querido amigo, cuide para que meu rebanho não se disperse. Irei para casa tomar o desjejum e depois voltarei imediatamente para cá. Se me ajudares, recompensar-te-ei generosamente pelo teu favor.

Parece que agora o pastor agiu com muita prudência; e, realmente, ele era um homem deveras inteligente e cauteloso. Mas era surdo. Tão surdo que um tiro de canhão, próximo aos seus ouvidos, não o faria olhar para trás; e, pior ainda, falava com um outro surdo. 

Com efeito, o vigia não ouvia melhor do que o pastor e, por isso, não era de admirar que não entendesse uma palavra sequer do que lhe falara o pastor. Pareceu-lhe que, pelo contrário, o pastor queria tomar-lhe a relva cortada. Então, esbravejou:

— Que queres tu com a minha grama? Não foste tu que a cortaste, fui eu. Por acaso a minha vaquinha haverá de morrer de fome para que o teu rebanho seja alimentado? Diga o que disser, não vou abrir mão desistir da minha grama.

Tendo dito isto, o vigia abanou a mão com raiva. Mas o pastor pensou que ele lhe havia prometido e foi para casa, tranquilo, com a intenção de dar uma boa sova à mulher, para que ela jamais deixasse de lhe levar o desjejum.

Quando chegou em casa, o pastou viu que a sua mulher, estirada no limiar da porta, chorava queixosamente. O bom pastor esforçou-se por ampará-la. Deitou-a na cama, deu-lhe remédio e fê-la sentir-se melhor. Não se esqueceu, todavia, de seu desjejum. Todo esse contratempo estendera-se bastante e o pastor sentiu-se inquieto.

— Como estará o meu rebanho? Sinto que uma desgraça virá prontamente — pensou o pastor.

Então, apressou-se em voltar ao campo. Para a sua grande alegria, viu que o seu rebanho continuava a pastar, com tranquilidade, onde o havia deixado.

Todavia, como um homem prudente que era, contou todas as suas ovelhas. Concluindo que o número de cabeças continuava o mesmo, disse a si mesmo:

— Homem honesto, o vigia!

Em seu rebanho, havia uma jovem ovelha. Era coxa, mas estava perfeitamente cevada. O pastor colocou-a aos ombros, dirigiu-se ao vigia e disse-lhe:

—Obrigado, amigo, por cuidar do meu rebanho! Eis aqui uma ovelha, em retribuição ao teu serviço.

É evidente que o vigia nada entendeu do que lhe fora dito. Todavia, quando viu a ovelha manca, gritou energicamente:

— Pouco me importa que a tua ovelha esteja coxa! Como posso saber quem a estropiou? Nunca me aproximei de teu rebanho!

— É verdade que ela é coxa — continuou o pastor, que não ouvira o que lhe fora dito. — Mas é uma bela ovelha, jovem e gorda. Leva-a, assa-a e come-a com os teus amigos.

— Pelo amor de Deus! — gritou o vigia, furioso. — Repito-te que não quebrei as patas de tua ovelha e que, nem mesmo, eu me acerquei de teu rebanho. Sequer olhei para ele!

Mas como o pastor, sem compreender o que lhe era dito, continuava a segurar a ovelha coxa diante de si, elogiando-a de todas as formas.

Já sem estribeiras, o vigia bateu com um punho no pastor. Este, por sua vez, enfurecido, preparou-se a defender-se e, provavelmente, teriam lutado, se não tivessem sido impedidos por um homem que passava a cavalo.

Devo dizer-vos que é costume dos indianos, quando discutem sobre qualquer assunto, pedir à primeira pessoa que encontram que proceda a um julgamento. Assim, o pastor e o vigia agarraram, cada um do seu lado, o freio do cavalo para o cavaleiro.

— Faz-me um favor — disse o pastor ao cavaleiro. — Para por um momento e julga. Verifica quem está ou não certo. Eu dei a este homem uma ovelha do meu rebanho como agradecimento pelos seus serviços; mas ele, como agradecimento pelo meu presente, quase me mata.

—Faz-me um favor — disse o outro. — Para um momento e julga. Diz-nos quem tem razão e quem é o culpado. Este pastor malvado me acusa de ter aleijado a sua ovelha, quando eu não me aproximei, sequer, de seu rebanho.

Infelizmente, o juiz que eles escolheram também era surdo, e ainda mais, dizem, do que os dois outros juntos.

Fez um sinal com a mão para que se calassem e disse-lhes:

— Devo confessar-vos que este cavalo não é meu. Eu o encontrei na estrada e, como tenho muita pressa em chegar à cidade por causa de um assunto importante, decidi montá-lo e, assim, chegar prontamente. Se ele é vosso, levai-o; se não, deixai-me ir a toda pressa, eis que não tenho tempo a perder.

O pastor e o vigia não ouviram nada do que lhes fora dito, mas supuseram que o cavaleiro não decidira em seu favor. Começaram ambos a gritar e a praguejar ainda mais alto, censurando a injustiça do mediador que tinham escolhido.

Nesse ínterim, surgiu na estrada um velho brâmane. Os três litigantes correram para ele e começaram a contar-lhe o seu caso. Mas o brâmane era tão surdo quanto eles.

— Compreendo! Compreendo! — respondeu-lhes. — Ela vos enviou para me pedirem que eu volte para casa (o brâmane falava da sua esposa). Mas não ireis conseguir, pois não há ninguém no mundo mais rabugento do que aquela mulher. Desde que me casei com ela, fez-me cometer tantos pecados que não os consigo lavar nem nas águas sagradas do rio Ganges. Prefiro, pois, alimentar-me de esmolas e passar o resto dos meus dias numa terra estrangeira a estar com ela. Já me decidi com firmeza. As vossas inúmeras súplicas me farão mudar de ideia e aceitar viver de novo na mesma casa com uma mulher tão má.

O barulho era maior do que antes; todos gritavam com todas as suas forças, sem se entenderem uns aos outros.

Entretanto, o que se tinha apossado do cavalo, quando viu que pessoas vinham de longe, a correr, tomou-as pelos donos do cavalo roubado; então, saltou do cavalo e fugiu.

O pastor, apercebendo-se que já se fazia tarde e que o seu rebanho estava completamente disperso, apressou-se em reunir as suas ovelhas e as levou para a aldeia, queixando-se amargamente de que não havia justiça na terra e atribuindo todos os problemas do dia a uma cobra que vira, ao sair de casa, rastejando na estrada.

O vigia voltou ao seu pasto e, ao encontrar a ovelha gorda — causa inocente daquela disputa — tomou-a e a levou nos ombros para casa, pensando que assim aplicava um castigo ao pastor por todas as suas ofensas.

O brâmane chegou à aldeia mais próxima, onde parou para passar a noite. A fome e a fadiga haviam-no deixado um tanto cansado. A fome e o cansaço apaziguaram um pouco o seu aborrecimento. Mas, no dia seguinte, os seus amigos e parentes vieram e convenceram o pobre brâmane a voltar para casa, prometendo persuadir a sua mulher rabugenta e fazer-se mais torná-la mais obediente e humilde.

Sabem, amigos, o que vos pode vir à mente quando lerem esta história?

É o seguinte: no mundo, há pessoas — grandes e pequenas — que não são surdas, mas que são piores que os surdos: o que lhe é dito, não escutam; o que lhes é assegurado, não entendo; quando se juntam, discutem, sem saber por que motivo. Discutem sem razão, ofendem-se sem ofensa e queixam-se das pessoas e do destino, ou atribuem o seu infortúnio a presságios ridículos, como o sal derramado ou um espelho partido.... Tenho por exemplo um amigo que nunca ouvia o que o professor lhe dizia na sala de aula e sentava-se no banco como se fosse surdo. E o que se deu? Cresceu como um parvo: jamais consegue realizar coisa nenhuma. Os espertos têm pena dele e os astutos enganam-no; mas ele, como se vê, queixa-se do destino, dizendo que nasceu azarado.

Fazei-me um favor, amigos, não sejais surdos! Os nossos ouvidos foram-nos dados para ouvir. Um homem inteligente disse que temos dois ouvidos e uma língua, e que, por isso, devemos ouvir mais do que falar.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Vladimir Fyodorovich Odoievsky (Moscou/Rússia, 1803 – 1869) foi um filósofo, escritor, crítico musical, filantropo e pedagogo russo. Chegou a ser conhecido como o Hoffmann russo devido ao seu enorme interesse por contos fantásticos e pelo jornalismo crítico. Odoievsky publicou uma série de contos para crianças (por exemplo, A Vila da Caixinha de Surpresas), e historias fantásticas para adultos (por exemplo, Cosmorama e Salamandra). Inspirou-se no conto de Alexander Pushkin, A Dama de Espadas, para escrever uma série de historias semelhantes, sobre a dissoluta vida da aristocracia da Rússia (por exemplo, A Princesa Mimi e A Princesa Zizi). A sua obra-prima foi uma coleção de ensaios e novelas intitulada As Noites Russas (1844), para a qual se inspirou na obra As Noites Áticas de Aulo Gélio. Como crítico musical, Odoievsky propagou o estilo nacional de Mikhail Glinka e seus seguidores. Escreveu muitos artigos sobre temas musicais, e um tratado sobre antigos cantos na Igreja Russa. Johann Sebastian Bach e Beethoven aparecem como personagens em algumas das suas novelas. Odoievsky promoveu a fundação da Sociedade Musical Russa, do Conservatório de Moscovo e do Conservatório de São Petersburgo. (fonte: wikipedia)

Fontes:
Conto publicado originalmente em 1835.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing