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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Irmãos Grimm (O violino maravilhoso)


Era uma vez um homem muito rico, mas muito avarento, que tinha como criado um rapaz honesto e ativo, como não haverá muitos. Todas as manhãs, o moço se levantava ao romper da aurora e só se deitava ao último cantar do galo.

Quando havia algum trabalho mais penoso, ante o qual todos recuavam, o rapaz fazia-o, contente, satisfeito e sem sombra de azedume.

Logo que acabou o primeiro ano de permanência na casa do avarento, que não estipulara soldo, não recebeu um ceitil (tipo de moeda) de paga, pensando de si para si que o moço, não tendo dinheiro, não tentaria outra colocação. O rapaz calou-se e continuou a trabalhar como antes, e ao cabo de dois anos, o avarento nada deu, o rapaz permaneceu no seu mutismo.

Ao fim do terceiro ano, o rico, espicaçado pela consciência, meteu a mão no bolso para remunerar o criado fiel, mas, raciocinando, arrependeu-se e tirou a mão vazia. O rapaz exclamou então:

— Patrão servi-o três anos o melhor que me foi possível; agora quero ver mundo e por isso peço que me pague as moedas que me deve.

— Tens razão! — respondeu o rico avarento — Fiquei sempre muito satisfeito com o teu trabalho e a tua boa-vontade, e por isso vou remunerar-te como mereces. Aqui tens três escudos novos; é um por cada ano que me serviste.

O rapaz, que andava sempre alegre e que era de uma grande simplicidade no que respeitava a dinheiro, julgou ter recebido uma fortuna que lhe permitiria viver vida folgada por largos anos.

Disse adeus ao antigo patrão e foi-se embora, atravessando montes e vales, cantando, saltando e alegre que nem um passarinho.

Ao acercar-se de um monte, viu sair um velhinho muito curvado que lhe gritou:

— Olá, companheiro, não pareces levar em conta os pesares à tua vida?!

— Que ganho eu em me apoquentar? — retorquiu o moço — Tenho na algibeira o soldo de três anos de trabalho.

— E a quanto monta essa fortuna?

— A três escudos novinhos, muito luzidios. Olha, sinto-os tilintar, quando lhes toco com as mãos.

— Ora ouve cá — tornou o gnomo, de bom coração como se vai ver. – Eu estou muito velhinho, e forças para trabalhar já não tenho; tu, que és novo e forte, estás ainda em bom tempo de ganhares a vida.

O rapaz, que era de boa índole, apiedou-se do velho gnomo e fez-lhe presente dos três preciosos escudos que tanto prazer lhe davam.

— Como és generoso — expressou-se então o gênio bom em figura de gnomo — dou-te licença para que me peças três coisas que são a paga dos teus três escudos.

— Então, pois sim! — fez o rapaz incredulamente — Isto que tu queres fazer é só do domínio das fantasias para entreter crianças. Mas, enfim, sempre quero experimentar. Desejo então: uma espingarda que acerte logo no que eu mire; um violino que tenha a virtude de forçar a todos bailar, quantos me ouçam e, finalmente, que toda e qualquer pessoa me conceda, sem mais nem menos, a graça que eu pedir.

— És modesto no pedir — retrucou o gnomo que, curvando-se, tirou do monte uma espingarda, e um bonito violino que se podia meter na algibeira. Aqui tens — continuou o gnomo ao os dar-lhe — e fica ciente de que serás servido sempre na primeira graça que solicitares.

O rapaz, jovialíssimo, continuou a sua rota. Depois de caminhar um bocado deparou-se-lhe um judeu, muito feio, com barbas de bode muito compridas e que estava absorto a ouvir o canto de uma avezinha.

— É extraordinário que um animal de tão pequeno talho, possua um trinado tão cheio. Quanto não daria eu para o ter engaiolado!

— Posso satisfazer o teu desejo — disse o rapaz que tinha ouvido as últimas palavras, e apontando a espingarda ao passarinho, este caiu atordoado em cima dos espinhos.

— Vá lá, seu maroto, vá lá buscar o passarinho.

— Tratas-me com crueldade — respondeu o judeu — mas não deixo de agradecer-te e vou apanhar a avezinha.

Em seguida meteu-se pelos espinhos custando-lhe a abrir caminho. De súbito o rapaz teve uma estupenda lembrança: principiou a tocar o violino. Logo o judeu ergueu as pernas e começou a saltar, a pular, a contorcer-se todo, ficando preso nos espinhos dos ramos, em que se achava e que lhe espicaçavam a cara, arrancando-lhe as barbas; ficou com o vestuário todo rasgado e a cara a escorrer sangue.

— Ai, ai! — lastimava-se o infeliz judeu — Sossega, aquieta-te, não toques mais nesse amaldiçoado instrumento, aqui não é lugar próprio para baile!

O azougado moço não fazia caso do pedido pensando com os seus botões:

— Este rabino esfolou tanto infeliz enquanto pôde, que é justo que seja esfolado agora!

E de novo tomou o violino tirando acordes mais ligeiros. O pobre judeu, forçado a acompanhar o compasso, pulava e saltava; a cara cada vez estava mais ensanguentada, o fato desfazia-se em farrapos e o pobre velho gemia de dor. De súbito gritou:

— Apieda-te de mim, pelas barbas de Abraão, que em paga te darei uma bolsa cheia de dinheiro que trago comigo.

— Alegras-me tanto com essa boa-nova que vou guardar o dinheiro. Antes, porém, quero dar-te os meus parabéns pela maneira graciosa e original por que danças! É uma perfeição!

O judeu então, entregando-lhe a bolsa que prometera, suspirou imenso, enquanto que o alegre moço continuou a andar, cantando. Quando já o não avistou, o rabino, não podendo conter o seu rancor, exclamou:

— Músico das dúzias, estás a dever comigo. Grande espertalhão! Hás de pagar-me a partida mais cara do que ossos!

Tendo com essa fala dado vazão ao seu ódio, seguiu por atalhos e alcançou a cidade mais próxima antes que o rapaz aparecesse. Uma vez lá, foi queixar-se ao juiz nestes termos:

— Venho aqui pedir justiça, senhor, para um maroto que me atacou, maltratou e roubou o que eu trazia. A prova de que não minto é olhar-me a maneira porque vem o fato e a minha cara. Forçou-me a dar-lhe a bolsa que trazia, cem moedas de ouro, que eram todo o meu pecúlio, as economias que consegui com o meu trabalho, o único bem que possuía. Faça todo o possível para que esse tesouro me seja restituído.

— Foi com alguma arma que o gatuno te pôs assim? — perguntou a autoridade.

— Nada, não senhor. Agarrou-me e arranhou-me. É ainda moço, e traz uma espingarda e um violino; com estes dados facilmente se identifica.

O magistrado pôs em campo os guardas, que depressa viram o indicado espertalhão, que muito tranquilamente se encaminhou para essa localidade. Deram-lhe voz de prisão e trouxeram-no ante o magistrado e o judeu, que repetiu a acusação.

— Não toquei nessa criatura nem com um dedo — defendeu-se o rapaz — assim como não lhe tirei à força o dinheiro que ele trazia; ofereceu-me da melhor vontade para que eu não tocasse mais no violino, cujos acordes o faziam nervoso!

— É mentira! — exclamou o rabino — Está a mentir impunemente!

— Está resolvida a questão? — ajuntou o magistrado — Pois é caso extraordinário um judeu dar de mão beijada uma bolsa com ouro, só por não ouvir um bocado de música. Pois senhor: a sentença do seu mau ato está lavrada: vai ser enforcado imediatamente!

O verdugo — que se havia ido chamar, segurou o inocente moço, conduziu-o à forca, que já estava erguida na praça principal onde acorreu toda a cidade em peso, e o rabino fora o primeiro a mostrar-se fazendo menção de socar o pobre condenado, vociferando:

— Espertalhão, vais ter a recompensa que te é devida!

O moço conservou-se muito tranquilo; subiu sozinho a escada apoiada à forca; ao chegar ao topo, virou-se para o juiz já togado, que viera vistoriar o patíbulo e solicitou-lhe:

— Antes de ter o nó na garganta, concede-me um derradeiro favor?

— Concedo — respondeu o magistrado — desde o momento em que não seja o perdão!

— Nada disso é, pois não sou tão exigente... desejava apenas tirar uns ligeiros acordes do violino!

Ao ouvir tais palavras, o rabino deu um estridente grito de susto e pediu encarecidamente ao juiz que não consentisse!

— Qual a razão porque não hei de conceder a graça que este homem me pediu, se é a única alegria que por instantes posso dar-lhe? Tragam-lhe o violino.

— Ai, meu Deus! — lamentou o rabino ao querer fugir, mas sem que lhe fosse possível abrir caminho pela compacta massa de povo que enchia a praça.

— Dou-lhe uma peça de ouro, — prometeu ele no auge da aflição — se me amarrar com força ao pau da forca!

Nesse instante, porém, o rapaz deu o primeiro toque no violino. O magistrado, o escrivão, o agente, os guardas, enfim tudo o que compunha o corpo da magistratura da terra, os circunstantes, o próprio judeu, tiveram um estremecimento; ao segundo toque, todos ergueram as pernas, o próprio verdugo desceu a escada e colocou-se em pé de dança.

O moço então — ao vê-los naquela pouco parlamentar atitude — tocou o mais possível, e agora os vereis: o povo fazia cabriolas; o juiz e o judeu saltavam como que movidos por molas; rapazinhos, velhos, magros, gordos, tudo dançava; se até os cães se erguiam nas patas de trás e dançavam como todos! O condenado deu uns acordes mais fortes e nessa ocasião era inexplicável o movimento: pareciam possessos de algum espírito ruim, batendo com as cabeças umas nas outras, pisando-se, acotovelando-se, atropelando-se. Gemiam com dores, e o magistrado, aflito, fatigadíssimo, pediu:

— Não toques mais que eu perdoo-te! Foi o que o moço quis ouvir, visto que, concordando que o gracejo fora longo, parou e guardou o violino no bolso, desceu os degraus e veio postar-se em frente do rabino que, fatigado, extenuado, exausto, se sentara na rua, respirando a custo.

— Agora és tu quem vais confessar a proveniência da bolsa que me deste, com peças de ouro. Não mintas, do contrário pego novamente no violino e tornas a dançar! — Tais as palavras que o rapaz dirigiu ao judeu, que confessou terrificado:

— Roubei-a, roubei-a, tu tiveste jus a ela pela tua honestidade; dei-a para que não tocasses mais no violino!

Aparecendo o juiz, já um pouco refeito do cansaço, inquiriu do que se havia passado e provando-se à evidência que tinha havido roubo, mandou enforcar o rabino.

Fonte: Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Contos e Lendas da Espanha (O Galego e o cavalo do rei)

Certa vez aconteceu um fato curioso com um galego que era criado de um rei.

Esse rei tinha um belíssimo cavalo branco. E o prezava mais que a todas as riquezas que possuía. Gostava tanto do animal, que anunciou, que seria capaz de mandar para a forca o homem que lhe trouxesse a notícia mais triste do mundo. E quando lhe perguntaram que notícia seria essa, o rei respondeu sem hesitação:

— A morte do meu cavalo, oras. O que mais poderia ser?

Algum tempo depois, um soldado andaluz estava cuidando do cavalo, como fazia todas as manhãs. De repente, o animal se assustou. Relinchando, deu um coice no ar com tanta força, que escorregou e quebrou uma pata. Sem outra alternativa, o soldado teve de sacrificá-lo ali mesmo. Depois, começou a tremer de medo, pois conhecia muito bem a ameaça do rei. E não duvidava que ele fosse capaz de mandar enforcá-lo. 

Apavorado, o soldado chegou a molhar a camisa, de tanto que transpirava e tremia. O galego, que naquele momento entrava na cocheira, deparou-se com um triste quadro: o cavalo sem vida e o soldado pálido como um fantasma, a ponto de sofrer um ataque e cair ali mesmo, ao lado do animal.

— O que aconteceu? — perguntou o galego.

O soldado contou, mas sua voz soava tão trêmula, que o galego o interrompeu:

– Espere um. pouco enquanto vou buscar um copo de água. Você precisa se acalmar, homem.

O galego voltou rapidamente;

– Pronto, aqui está. Trate de beber a água em pequenos goles e tome cuidado para não se afogar.

O soldado obedeceu, E com um olhar de gratidão, devolveu o copo ao galego:

— Obrigado, amigo.

— Sente-se melhor?

_ Não muito... Pois minha vida está por um fio.

– Calma — o galego recomendou. — Conte-me o que aconteceu.

O soldado assim o fez. No final, disse:

– Você estava presente quando o rei deu aquela declaração?

– Sim. Ele jurou que mandaria enforcar... O homem que lhe levasse a notícia da morte de seu cavalo — o soldado completou, voltando a tremer como uma vara verde no meio da ventania.

— Sabe de uma coisa? — disse o galego. Acho que vou livrá-lo dessa encrenca.

— Mas como?

– Encarregando-me de levar a notícia ao rei.

– Agradeço, mas isso não é justo. Não quero que você seja morto em meu lugar.

– Acontece, meu amigo, que não pretendo morrer tão cedo.

— E o que você tenciona fazer?

– Isso é comigo. Agora, trate de levar o cavalo para o pasto. 

E o galego se afastou, muito tranquilo e confiante. Com um suspiro de alívio, o soldado andaluz apressou-se a cumprir a ordem do galego. Pediu a outros criados que o ajudassem, colocou o cavalo numa carroça e deixou-o no pasto.

O galego entrou no palácio do rei e disse aos guardas que tinha uma notícia importante. O rei, que tratava com deferência os empregados responsáveis por seu belo cavalo, não tardou a recebê-lo.

— E então? — perguntou. — O que há?

Saiba Vossa Majestade que o cavalo branco está jogado lá no pasto, com moscas entrando-lhe pela boca e saindo-lhe pelo rabo.

O rei, assustado, exclamou:

– Mas, homem, isso quer dizer que ele morreu!

— Ah, eu não sei, majestade, pois não sou veterinário.

Assim, o galego escapou da forca, pois não tinha sido ele, e sim o rei, quem havia dito que o cavalo estava morto.

Fonte> Yara Maria Camillo (seleção). Contos populares espanhóis. SP: Landy, 2005.

sábado, 20 de abril de 2024

Figueiredo Pimentel (A gatinha branca)

Existiu há séculos passados um rei que tinha três filhos. Tendo medo que eles tivessem desejos de reinar antes de sua morte, porque já corriam boatos que conspiravam contra ele, e não querendo deixar um lugar que tão dignamente ocupava, pensou que o melhor meio de viver em repouso era distraí-los com promessas, cujo resultado seria iludi-los.

Uma vez chamou-os ao quarto e disse-lhes:

— Meus filhos, a minha avançada idade já não permite que me dedique aos negócios do reino com tanto cuidado como antes, e quero que seus vassalos não sofram. Por isso, quero colocar a minha coroa na cabeça de um de vós. Haveis, porém, de concordar comigo que, para isso é preciso que façais uma ação digna de tão grande presente. Quero, pois, que vós três procureis um cão, lindo e fiel, que me faça companhia no resto dos meus dias. Aquele que me trouxer o animal mais bonito será o dono da minha coroa e, portanto, meu herdeiro.

Os moços ficaram admirados com o desejo de seu velho pai, mas resolveram ir procurar o animal que lhes havia de dar a sucessão do reino, prometendo que, ao fim de um ano, àquela mesma hora, estariam de volta dando o resultado da incumbência.

Partiram os moços, cada um para um lado.

O príncipe Nestor, como era chamado o mais jovem, seguiu viagem, e não havia dia em que não comprasse um cachorrinho.

Mas, como não podia nadar acompanhado de tantos animais, à proporção que comprava um mais bonito, abandonava os outros.

Ia seguindo sempre à procura de um animal lindo, quando uma noite foi surpreendido por uma tempestade no meio de uma floresta.

Subiu em uma árvore muito grande, que havia perto do lugar onde estava, para se abrigar da chuva, e poder passar a noite, quando viu de longe uma luzinha.

Desceu imediatamente, e foi caminhando na direção daquele farolzinho.

Chegou à porta de um castelo, o mais soberbo que se pode imaginar, todo de ouro, com muros de porcelana transparente, representando todas as histórias de fadas que há no mundo.

Aproximando-se da porta, tocou a campainha, cujo som, repercutindo lá dentro, parecia ser de ouro ou de prata.

Passados poucos segundos, abriu-se a porta, sem que ele visse outra coisa senão uma dúzia de mãos no ar, segurando archotes para alumiar sua passagem.

Ficou tão admirado, que hesitava em entrar, quando sentiu que o empurravam para a frente.

Começou a andar ao acaso, e sempre maravilhado de ver salas, com mais de mil velas cada uma, cada qual de uma qualidade: de ouro, de prata, de marfim, de pérolas, de tudo quanto é precioso neste mundo.

Depois de ter atravessado as salas, as mãos que o conduziram até ali, fizeram-no parar, e viu um sofá encostado a um fogão.

Sentou-se, e sentiu mãos começarem a despir-lhe a roupa molhada que trazia, substituindo-a por uma bela camisa bordada a ouro com botões de pérolas.

Com este novo vestuário, as mesmas mãos empurraram-no a um quarto contíguo, onde viu um lavatório, espelho, perfumarias as mais esquisitas, enfim tudo quanto é necessário a um moço para se vestir.

Sentou-se em uma cadeira de marfim, e começaram a fazer-lhe a barba, penteá-lo, frisá-lo e mudar-lhe a camisa por uma roupa mais própria e de riqueza nunca vista.

As mesmas mãos, depois do príncipe Nestor estar pronto, conduziram-no a uma sala, admirável pelos seus enfeites.

A mesa estava posta com dois talheres, o que intrigava em excesso o príncipe, a ponto de se julgar no inferno.

A sua admiração chegou ao auge quando, a um sinal dado, viu uma porção de gatos, de diversas raças e cores, entrar cada um com um instrumento e seguidos de um gato de óculos, com um rolo de papel debaixo do braço.

Subiram os bichinhos para um estrado, e começaram a tocar, cada qual de sua maneira, de sorte que formavam a orquestra mais engraçada que jamais se tem imaginado, pelas caretas que os bichinhos faziam, o que provocaram ao príncipe gargalhadas estrepitosas.

Pensava Nestor em todas as coisas que lhe haviam acontecido naquele castelo, quando viu entrar uma figurinha, coberta com um véu de crepe, e com dois gatos fardados segurando na cauda do seu vestido preto, também de luto e de espada à cinta.

Seguia-se um cortejo de gatos, cada um trazendo ratoeiras cheias de ratos, camundongos e morcegos.

O príncipe não sabia como se ter de tanta surpresa, quando a figura se aproximou dele, e viu uma bela gatinha branca.

Tinha um ar triste, e começou a miar tão docemente que quem a ouvisse se sentiria pesaroso.

Chegou-se ao moço, e falou-lhe:

— Filho de rei, sê bem-vindo; a minha real majestade te recebe com gosto.

— Excelentíssima gatinha, disse o príncipe, sois tão generosa em me receber com tanto agrado, que não me pareceis uma gatinha qualquer; o dom da palavra, que possuis, e este castelo tão rico, são provas bastante evidentes do que vos digo.

— Príncipe, respondeu a gatinha, acaba com teus galanteios; sou simples, em meus discursos e em meus modos, porém, tenho bom coração. Ordeno que sirvam ao nosso hóspede, e que os músicos se calem, porque o príncipe não entende o que eles dizem.

— E eles dizem alguma coisa? replicou o príncipe.

— Sem dúvida, continuou ela. Temos aqui poetas de muito espírito; e se demorares aqui algum tempo, ficarás convencido do que te digo.

Serviram o jantar, e o príncipe viu dois pratos, com um ratinho assado, e outro com uma carne que ele não conheceu.

Ficou com repugnância de comer tal comida, porém a gata, adivinhando o que se passava no espírito do moço, asseverou-lhe que o outro prato era feito de propósito para ele, e que por isso não precisava ter escrúpulos.

O príncipe acreditou no que lhe dizia a gatinha, e jantou muito bem, admirando somente um retrato que viu no colar da gatinha, onde reconheceu a fotografia de um homem muito bonito, e que se parecia um pouco com ele.

Perguntou de quem era aquele retrato; a gatinha ficou mais triste e não respondeu.

Com medo de contrariá-la, levantaram-se da mesa, sem mais o jovem moço se ocupar com a fotografia.

Depois do jantar, foi o príncipe Nestor convidado para assistir a um espetáculo no teatro do palácio, e ficou maravilhado de ver doze gatos e doze macacos dançarem como as mais afamadas bailarinas.

Terminado o espetáculo, esteve o príncipe a conversar com a gatinha, admirando cada vez mais como ela era instruída em todas as histórias dos príncipes e reis do mundo.

Já era mais de meia-noite, quando os dois se deram as boas-noites, e foram deitar-se.

No dia seguinte estava o príncipe ainda deitado, quando lhe apareceram duas mãos que traziam numa bandeja de ouro e brilhantes um cartão da gatinha, convidando-o para uma caçada.

O príncipe levantou-se, vestiu-se, e foi ter com a gatinha, que já encontrou montada em um macaco, oferecendo-lhe ela um cavalo-de-pau, que corria mais que o melhor animal deste mundo, e tanto como o vento.

A caçada era feita pelos gatos aos coelhos, e era de se admirar como podiam estes animais caçar aqueles.

***

Levava Nestor essa boa vida, e havia esquecido o fim da sua viagem, entretido como estava pelos divertimentos que a toda hora lhe proporcionava a gatinha, quando um dia esta lhe disse:

— Sabes que só tens três dias para procurar o cãozinho que teu pai deseja, e que teus irmãos já encontraram dois, lindos?

O príncipe, admirado de sua negligência, exclamou:

— Por que encanto secreto esqueci a coisa mais importante deste mundo, para mim? Onde poderei encontrar um cão como desejo, e um cavalo bastante rápido para fazer tantas léguas em tão pouco tempo?

A gatinha, vendo-o tão inquieto, acalmou-o:

— Sossega; sou tua amiga; podes ficar ainda um dia em meu palácio; e, conquanto daqui ao teu reino haja quinhentas léguas, o meu cavalo-de-pau vai lá ter em menos de doze horas.

— Agradeço-vos muito, bela gatinha, mas não é preciso somente chegar à casa de meu pai; é necessário também encontrar um cão, e onde irei agora achá-lo?

— Pois toma esta amêndoa, disse a gatinha; lá dentro está um cãozinho.

— Oh! disse o príncipe, vossa majestade quer caçoar comigo?

— Não; e se não acreditas, encosta-a ao ouvido, que escutarás o latido.

O príncipe obedeceu; e quando ouviu o “au-au” do cachorrinho, ficou maravilhado; e queria por força abrir a amêndoa para ver o animalzinho.

A gatinha proibiu-lhe que assim procedesse, dizendo que só devia abri-la em presença do rei seu pai.

Nestor despediu-se da gatinha, dizendo que se sentia pesaroso de deixar uma gata tão gentil, e suplicou-lhe ardentemente para que fosse a seu palácio, onde seria muito bem tratada.

A gatinha deu um suspiro triste, e não respondeu.

O moço montou no cavalo-de-pau e voou ao palácio do rei, onde encontrou os irmãos, que estavam chegando naquele instante.

Quando os três príncipes chegaram à presença do velho rei, este não sabia qual dos dois cães trazidos era o mais bonito, tão lindos eram. Perguntou a Nestor onde estava o animal que devia trazer.

— Está aqui, meu pai, e mostrou-lhe a amêndoa.

O rei supôs que o filho queria caçoar, e já estava disposto a mandar castigá-lo severamente pela falta de respeito, quando o moço abriu a amêndoa, de onde saiu um cãozinho, do tamanho de um caroço de feijão, a latir, a pular e a saltar que era um gosto.

Todos foram de acordo haver sido Nestor quem trouxera o animal mais lindo. Mas o rei, que não se achava com disposição de lhe ceder a coroa, disse:

— Na verdade, meu filho, foste tu que ganhaste o prêmio. Mas, para não descontentar a teus irmãos, quero uma segunda prova. Tragam-me, daqui a um ano, um pano que seja capaz de atravessar o fundo da agulha mais fina que houver em todo o reino.
***

Partiram os príncipes à procura do que lhes pedia seu pai pensando onde poderiam encontrar pano tão fino que passasse pelo fundo de uma agulha, e desanimados de conseguir o que lhes fora pedido.

Nestor montou no cavalo-de-pau, e partiu para o palácio da gatinha, a quem foi pedir proteção e conselho.

As mãos, que da primeira vez o tinham recebido, assim que ele chegou, levaram-no à presença da gatinha, que lhe falou:

— Príncipe, senti muito a tua partida, e não contava mais te ver, porque te estimo muito, e desejava a tua volta. Infelizmente, do que desejo neste mundo, nada tenho conseguido. Falemos sobre assunto que mais te interessa. Já sei a que vens; o que teu pai pede é muito difícil de se conseguir, senão quase impossível. Como tenho, porém, aqui no meu reino, tecelões admiráveis, vou fazer a tua encomenda e estou certa que eles envidarão todos os esforços para me serem agradáveis.

Nestor começou a viver no palácio da gatinha a mesma vida que dantes. Tendo sempre com que se distrair – festas de todas as espécies – esqueceu-se do fim da sua segunda visita.

Uma tarde em que conversava com a gatinha, cada vez mais admirado de tanto espírito do animalzinho, ela lhe disse:

— Príncipe, é amanhã o dia em que deves apresentar a teu pai o pano que ele te encomendou. Já te esqueceste?

— Palavra que tinha me esquecido, minha formosa gatinha, do fim a que voltara a este palácio. A vossa companhia é tão encantadora, que de bom gosto passaria o resto de minha vida, aqui. O único sentimento que tenho é não serdes mulher, para eu viver de joelhos, vos adorando. Mesmo assim, basta que me dês consentimento, que aqui ficarei, não querendo mais saber do direito que tenho, sobre a coroa de rei meu pai.

— Príncipe, o que me pedes é impossível. Volta ao palácio de teu pai, a quem não deves abandonar por amor a uma triste gata.

— Mas como voltarei eu, se de todo me esqueci de procurar o pano, e de hoje até amanhã não o poderei haver, nem que tenha o auxílio do cavalo-de-pau?

— Sossega, príncipe Nestor, disse ela muito triste, eu me incumbi de arranjar o pano que teu pai deseja. Ei-lo aqui. Vai, e lembra-te sempre da tua amiga, a gatinha.

Entregou-lhe uma caixinha do tamanho de um dado.

O príncipe não poderia supor que dentro de uma caixinha tão pequena houvesse uma peça de pano. Mas, como a gatinha não gostava de caçoar, aceitou o microscópico embrulho, com recomendação de só abri-lo em frente do rei.

Montou no cavalo-de-pau que lhe dera a gatinha, e em dez horas viajou quinhentas léguas.

Assim que chegou ao palácio, viu dois cavaleiros saltando de dois cavalos, e reconheceu os dois irmãos.

Estes indagaram do príncipe Nestor se tinha arranjado a peça de pano, ao que lhes respondeu que não, porque o mais fino pano que encontrara só passava pelo anel de uma criança.

Chegaram os dois príncipes à presença do rei, que os julgou logo sem direito à coroa, por isso que a peça de pano que levavam só passava pelo fundo de uma agulha de coser sacos.

Voltando-se para seu filho mais moço:

— E tu, meu filho, foste tão feliz como da outra vez?

— Suponho que sim, meu pai. Aqui está a peça de pano que o senhor deseja. Tem cem metros de comprimento por trinta de largura.

Apresentou a caixinha que lhe havia dado a gatinha.

O rei não quis acreditar que uma caixa do tamanho de um dado pudesse conter tanto pano, mas para se certificar abriu-a.

Encontrou dentro uma caixa de vidro.

Todos começaram a duvidar do jovem príncipe, quando este pediu a seu pai que abrisse a segunda caixinha.

Este abriu-a, e encontrou um grão de milho.

Aumentaram as zombarias ao príncipe Nestor, dizendo que tinha sido enganado, e ele mesmo, um tanto envergonhado, disse consigo mesmo:

— Será possível que a gatinha branca me tenha ludibriado?

Nestor sentiu uma arranhadela na mão. Compreendeu que era a gatinha, que não queria que ele duvidasse de sua palavra; e, virando-se para todas as pessoas presentes, disse:

— Garanto a todos que encontrarão cem metros de pano de comprimento por trinta de largura.

O rei já se via satisfeito, por ver que a coroa não passaria a nenhum dos seus filhos, e, para contentar o príncipe Nestor, mandou que ele quebrasse o grão de milho.

Este imediatamente partiu-o, e encontrou um grão de ervilha, que também quebrou, tirando de dentro um pano tendo em todo o comprimento e largura pintadas todas as qualidades de pássaros, peixes e animais.

Todos se admiraram de ver um pano assim, e foram de acordo que a coroa pertencia a Nestor.

Todavia, o rei desta vez ainda não quis ceder, dizendo:

— Meus filhos, é a última experiência que faço. De bom grado daria o meu reino a meu filho mais moço, que é o que se tem saído melhor em suas aventuras, porém acho que um homem solteiro não governa bem um reino tão importante como é o meu. Por isso dou-vos um ano de prazo para trazer a mulher mais bonita que encontrardes. Aquele que trouxer a que mais me agradar, será o rei meu substituto, e casar-se-á com a moça. Quero gozar a minha velhice cercado de netinhos.

Os três príncipes saíram do castelo, indo Nestor, no seu cavalo-de-pau, em direção ao palácio da gatinha.

Chegando ali contou-lhe qual a incumbência que o pai lhe fazia, dizendo achar ser impossível consegui-lo.

— Não, príncipe, eu te ajudarei no que puder. Talvez saiba de alguma moça formosa, que queira ir em tua companhia.

— Não, minha gatinha, estou disposto a não voltar mais ao palácio; e peço-te o que já pedi uma vez: amo-te muito, e o meu maior desespero é ficar sem tua companhia.

— Não penses nisso, príncipe. Cuidemos do meio de fazer a vontade a teu pai, e, enquanto não o encontramos, divirtamo-nos.

Passou o príncipe mais de um ano no palácio da gatinha, e já estava esquecido do que viera ali fazer, quando um dia lhe disse a sua amiga:

— Meu caro príncipe, é depois de amanhã que deves ir ao palácio do rei, com a moça que levarás, e previno-te que arranjei uma, linda como os amores.

— Pois eu, minha gatinha, desisto de tudo, porque uma das condições que meu pai apresentou foi aquele que levar a moça mais bonita casar-se com ela, e eu não quero deixar de gozar a tua preciosa companhia.

— Não, príncipe Nestor, deves fazer o que te digo, que é para teu bem, e talvez para o meu. Arranjei a moça que procuras, mas é preciso um sacrifício de tua parte, para levá-la.

— Dize-me qual é, que o farei, uma vez que é para meu benefício, e talvez para o teu, como dizes.

— Só terás a moça, que é de uma beleza nunca vista, se me cortares a cabeça e a cauda, e as jogares no fogo.

— Isso não, gatinha: prefiro morrer, abandonar todos os reinos da terra, a ter que fazer tal barbaridade.

— Mas olha que é preciso; e se me tens a amizade que dizes, faze o que te peço de joelhos, que é para meu benefício.

— Pois bem, fá-lo-ei, se jurares que nada te acontecerá.

— Garanto-te que até serei mais feliz.

Nestor fez o que lhe disse a gatinha.

Com a mão trêmula pegou num facão, que ali aparecera por encanto, e de olhos fechados cortou-lhe a cabeça e o rabo.

Quando abriu os olhos, ficou deslumbrado.

Em sua frente estava uma moça de uma beleza extraordinária, que lhe disse:

— Obrigada, príncipe, pelo serviço que acabas de me prestar. Estou às tuas ordens, para irmos ao palácio do rei, teu pai. Sou uma princesa, transformada na gatinha que conheceste, por uma fada má, inimiga da minha madrinha, a fada Beleza. Só me desencantaria quando um príncipe me amasse no meu invólucro de gata, e me matasse. Salvaste-me, e hoje sou a rainha Maroca, senhora de seis reinos. Vamos ter com teu pai que, estou certa, não me recusará como nora.

O príncipe estava estupefato ante um fato tão estranho, e em frente de um formosa mulher, tão linda como nunca vira nem em sonhos.

Maroca mandou que seus vassalos, que eram os antigos gatos, também desencantados, preparassem a carruagem que os devia levar ao reino do pai do príncipe Nestor.

Era um lindo carrinho puxado por dez mil casais de pombos brancos, atrelados por cordões de ouro, onde, de espaço a espaço, havia um brilhante do tamanho de um grão de milho.

Quando os dois jovens chegaram ao palácio do rei, foi uma surpresa geral.

Os dois irmãos de Nestor não quiseram mostrar as suas noivas, envergonhados, embora fossem formosíssimas.

O rei, vendo aquela mulher com seu filho, lhe disse:

— Agora, meu querido filho, tens o direito à minha coroa, e estimo-o bem, vendo que vou ter uma nora como não há igual. Só ela vale todos os reinos que existem.

— Real Majestade, disse a rainha Maroca, desculpai se não aceitamos a vossa coroa. Pretendemos somente o vosso consentimento para nos casarmos. Podeis ficar com o vosso reino, e com mais um, que vos ofereço. Os meus cunhados serão reis de dois reinos, também meus, independentes da minha coroa, porque nos bastam, a mim e ao príncipe Nestor, três reinos que governaremos em boa harmonia.

O rei ficou contentíssimo com o que acabava de ouvir.

Efetuaram-se os casamentos dos três príncipes irmãos, no mesmo dia, com as maiores pompas que têm havido em casamentos de príncipes.

Cada um dos três príncipes foi tomar conta dos seus reinos, ficando satisfeitos e vivendo felizes por muito tempo.

Fonte> Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896. Disponível em Domínio Público. 

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Contos Tradicionais Portugueses (A lenda da Pedra Cavalar)

Onde se conta como Deus “abrigou” um cavaleiro atrapalhado pelo tempo que de repente se fez, lá para os lados de Ribeira de Pena.

Em tempos que já lá vão, seguia um cavaleiro por montes e vales da zona de Viela, no Concelho de Ribeira de Pena.

Cavalgava sereno e tranquilo por caminhos mal marcados, sem destino aparente. Solitário na paisagem, apreciava o panorama agreste e rústico que caracteriza as cercanias do Rio Tâmega. Mesmo na noite escura, era-lhe impossível ignorar os cheiros das plantas, o movimento que a brisa causava nas copas das árvores e as sonoridades cantantes das aves noturnas e dos cursos de água circundantes.

De súbito, o tempo mudou. Num instante, o que era paz transformou-se numa violenta tormenta, obrigando o cavaleiro a encostar a sua montaria a uma grande rocha que se erguia junto ao trilho estreito que seguia. Do outro lado, o precipício descia abrupto, fazendo ouvir o rugido das correntes, engrossadas pela chuva fortíssima.

A lama aumentava, o caminho escorregava cada vez mais. A queda de cavalo e cavaleiro parecia eminente.

O homem, aterrorizado, tentou esporear o cavalo para sair daquele inferno, mas o animal aterrado nem se mexia, patas profundamente enterradas na lama do caminho.

Então, o desgraçado começou a rezar fervorosamente, mal se ouvindo as suas preces na violenta intempérie.

Mas Deus ouvia-o e, apiedado, transformou a pedra rija num refúgio para o infeliz e sua montaria.

Agradecendo a ajuda, logo ali se abrigaram, deixando de ouvir a barulhenta borrasca.

O povo diz que esta misteriosa personagem não mais foi vista, mas que a sua história ficou marcada na pedra, sob a forma de uma estátua equestre, a que se começou a chamar a Pedra Cavalar.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Contos e Lendas do Mundo (Holanda: O Herói de Haarlem)

Há muitos, muitos anos, vivia em Spaarndam, na Holanda, um menino que tinha cerca de oito anos.

O pai dele era guarda de comporta e, às vezes, deixava-o ir com ele até ao cimo do dique ou lá abaixo, à terra seca.

Numa tarde de outono que prometia tempestade, a mãe entregou-lhe umas panquecas e pediu-lhe que as levasse a um velhote que era cego e que morava no campo. O menino lá foi e ficou um bocadinho em casa do seu velho amigo.

Quando começou a chuviscar, disse-lhe:

- "Vou voltar já para casa!"

E, com o pratinho vazio debaixo do braço, atravessou o dique a caminho de casa. Mas mal tinha iniciado a caminhada, olhando em redor, reparou que o nível da água no dique tinha subido muito.

"Isto não é bom sinal", pensou e apressou o passo. 

O vento soprava com força e o nível da água subia cada vez mais. Começava a ficar muito escuro e o menino caminhava ainda mais depressa. Por fim, desatou a correr.

Mas, de súbito, parou. Ouvia-se ali um ruído estranho.

Seria o vento, uma tempestade prestes a rebentar? Deu mais alguns passos devagar. Aquele ruído era cada vez mais claro.

Não, o vento não era. O ruído vinha de dentro do dique. Mas de onde? E o que seria?

Com cautela, o menino desceu pelo dique e começou a procurar o sítio de onde vinha aquele barulho. Sim, agora já devia estar perto, porque o ruído se ouvia cada vez melhor.

“Oh, o que era aquilo?”

Espantado e assustado, o menino ficou imóvel. O seu coração começou a bater muito depressa. Dali jorrava um fiozinho de água. Não de cima do dique, mas de dentro do dique. Devia existir um furo. E se ele não fosse tapado depressa, todo o terreno ficaria inundado e também a cidade de Haarlem estaria ameaçada.

Apressadamente procurou o ponto de onde jorrava a água e depressa descobriu um buraquinho. Era um buraquinho muito pequeno, o seu dedo cabia lá mesmo bem justo. Então, o ruído da água a correr deixou de se ouvir e não saiu nem mais uma gota de água do dique.

"Agora tenho de ficar aqui quieto", pensou o menino, "porque se eu tirar o dedo do buraquinho, ele fica cada vez maior e então, e então..." "Socorro, socorro!" gritou com quantas forças tinha, mas ninguém o ouviu, porque ninguém atravessava o dique àquelas horas.

"Então tenho de ficar aqui até amanhã de manhã", disse o menino valentemente. E lá ficou, toda a tarde e toda a noite.

Ficou enregelado e completamente hirto. Teve a sensação de nunca mais voltar a poder mexer-se. Gritou pela mãe e gritou pelo pai, mas eles não o ouviam. Decerto andavam agora à procura dele.

E a noite avançava e o vento assobiava.

A água batia contra o dique. Era como se murmurasse: "Quero passar, quero passar!" Mas o menino ficou ali quieto, com o dedo enfiado no dique e nem mais uma gota de água de lá saiu.

Assim foi encontrado ao romper da manhã do dia seguinte por um frade. Então, foi logo socorrido e levado para casa.

Tinha salvo a cidade e o país de uma grande desgraça. Era um verdadeiro herói!

Fonte> Embaixada Real dos Países Baixos. disponível em Miluem

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Contos das Mil e Uma Noites (Um Cádi astuto)

Não esqueçamos que Deus colocou os juízes no mundo para julgar as aparências. É somente Ele que julgará as intenções e os pensamentos escondidos.

Conta-se que havia certa vez no Cairo um cádi que cometeu tantas prevaricações e pronunciou tantos julgamentos iníquos que foi demitido de seu alto ofício e teve que viver dos recursos de sua engenhosidade.

Um dia, quando sua cabeça estava tão vazia quanto seu bolso e seu bolso tão vazio quanto seu estômago, chamou o único escravo que lhe restava e disse-lhe: 

– “Estou adoentado hoje e não posso sair de casa. Para nos sustentar, deves ou percorrer as ruas à procura de algum biscate ou enviar-me algum infeliz que precise de um parecer jurídico.” 

O escravo saiu com a intenção de molestar algum transeunte e arrastá-lo até o juiz para ser multado. Assim, mal cruzou com um cidadão pacífico carregando um cesto no ombro, tropeçou nele e enviou-o ao chão. A vítima levantou-se furiosa e avançou para castigar o agressor. Mas quando reconheceu nele o escravo do cádi, virou as costas e fugiu de encontro tão perigoso. 

– “Todos me conhecem como conhecem meu amo,” resmungou o escravo desanimado. “Devo achar outros meios.” 

Na primeira esquina, cruzou com um homem levando uma bandeja com um magnífico peru, recheado e guarnecido com tomates e alcachofras. Seguiu-o e viu-o entrar numa cozinha pública e entregar a ave ao mestre do forno, dizendo que voltaria para apanhá-la uma hora mais tarde. 

– “Esta é a minha oportunidade,” decidiu o escravo. 

Menos de uma hora depois, entrou na cozinha pública, dizendo: – “Salve Mustafa!” 

O mestre do forno reconheceu-o e respondeu: ”Salve Mobarak! Há muito tempo que meus carvões nada assam para teu amo. Trouxeste algo hoje?”

- Nada, exceto o peru.

- Mas este não te pertence, meu irmão.

- Não fales assim, ó xeque. Eu vi esse peru sair do ovo materno, alimentei-o, matei-o, recheei-o e o enviei a ti.

- Se for assim, estou pronto a te entregar - disse o cozinheiro – Mas que direi ao homem que o trouxe?

- Acho que ele não voltará. – replicou Mobarak num tom evasivo. – Mas se voltar, ele deve gostar de uma boa piada. Poderás dizer-lhe que tão logo o peru foi colocado no fogo, deu um grito agudo e voou. Agora, dá-me logo aquela ave, por favor. Acho que já está bem assada. 

O cozinheiro riu e entregou o peru a Mobarak, o qual correu para a casa do cádi e ajudou-o a limpar o prato. Quando, minutos depois, o dono do peru voltou para levá-lo, o cozinheiro disse-lhe: “Tão logo coloquei-o no forno, deu um grito agudo, voou para longe, e não voltou mais.” 

O homem não gostou nada da piada e gritou com raiva: “Ó nada, ousas brincar nas minhas barbas?” 

Das palavras passaram às imprecações e das imprecações aos socos. Uma multidão se formou em volta deles. “Estão brigando acerca da ressurreição de um peru recheado,” disseram os vizinhos, a maioria dos quais apoiavam o cozinheiro cuja honestidade nunca fora posta em dúvida. 

Entre os espectadores, havia uma mulher grávida. Quando o cozinheiro aplicou um pontapé no seu adversário, o golpe se desviou e atingiu a mulher, que emitiu um grito igual ao de uma galinha ultrajada e abortou na hora. Seu marido, informado, correu com um cacete enorme na mão, gritando: “Vou sodomizar este cozinheiro e seu pai e seu avô! Vou eliminar toda a raça dos cozinheiros da face da terra!” 

O mestre do forno, não querendo enfrentar essa fúria, fugiu, subiu ao terraço e deixou-se cair no terraço vizinho. Quis o destino que ele caísse com seu peso enorme sobre um mouro que dormia num canto. As costelas do mouro foram quebradas, e ele morreu na hora. Os outros mouros acorreram e prenderam o cozinheiro, e arrastaram-no até a casa do juiz. O dono do peru e o marido da mulher grávida juntaram-se a eles. Armando-se de seu ar mais solene, o cádi começou por recolher depósitos dobrados de cada litigante e, apontando o dedo para o primeiro réu, o cozinheiro, perguntou: “Que tens a dizer a respeito do peru?” 

Achando que era melhor aderir à tese do escravo do juiz, o cozinheiro respondeu: “Por Alá, ó representante da justiça humana e divina, assim que coloquei a ave no forno, emitiu um grito agudo e, mesmo recheado e guarnecido, levantou voo, foi-se e não mais voltou.”

Ao ouvir essas palavras, o dono do peru gritou: “Filho de cachorro, ousas contar tais tolices a nosso amo, o cádi?” 

Mas o cádi repreendeu-o com indignação: “E tu, tens a audácia, ó ímpio infiel, de duvidar de que Aquele que ressuscitará todas as criaturas no Dia predestinado, recolhendo-lhes os ossos dispersos pelos quatro cantos da terra, é incapaz de devolver a vida a um simples peru que tinha ainda a totalidade de seus ossos e só lhe faltavam as plumas?”

Impressionada com a argumentação do juiz, a multidão gritou: “Glória a Alá que ressuscita os mortos!” e pôs-se a vaiar e apupar o dono do peru até que ele foi embora, lamentando sua falta de fé.

Então, o cádi virou-se para o marido da mulher que havia abortado e perguntou-lhe: “E tu, que tens contra este homem?” O marido expôs sua queixa.

E o juiz pronunciou a seguinte sentença: “O caso é claro. O cozinheiro causou sem dúvida o aborto com o golpe que desfechou na mulher. A lei de Talião se aplica. Tu, o marido lesado, ganhaste a tua causa. Autorizo-te, portanto, a levar tua mulher à casa do réu e deixá-la lá até que esteja grávida outra vez. Também poderá continuar a viver com o réu e às suas custas até o sexto mês de gravidez, já que o aborto aconteceu no sexto mês da primeira gravidez. 

Ouvindo essa sentença, o marido declarou: “Ó nosso amo o cádi, desisto de minha queixa. Possa Alá perdoar meu adversário.

Abordando então o caso do mouro, perguntou o cádi aos seus parentes que acusação faziam ao cozinheiro. Falaram todos ao mesmo tempo, amaldiçoando o cozinheiro, apontando para o cadáver e clamando pelo preço do sangue.

Sentenciou então o juiz: “A evidência é decisiva. A indenização é devida. Preferis que seja paga em dinheiro ou em sangue?”

- Em sangue, gritaram. Sangue por sangue.

– Seja, proclamou o juiz. Levai este cozinheiro, enrolai-o na mortalha do defunto e colocai-o por baixo do minarete da mesquita do sultão Hassan. Então, o irmão da vítima subirá até o minarete e saltará de lá sobre ele, esmagando-o da mesma forma que ele esmagou a vítima... Quem de vós é o irmão do morto? 

Um certo mouro, que parecia ser o líder do grupo, levantou-se e declarou: “Ó nosso amo o cádi, retiramos a nossa queixa contra este homem. Possa Alá perdoá-lo!”

E saiu, seguido por todos os membros de sua tribo. A multidão dispersou-se, maravilhada com a equidade, sutileza e os profundos conhecimentos jurídicos do cádi. 

Quando os ecos do processo atingiram os ouvidos do sultão, restaurou o cádi nas suas altas funções e demitiu o honesto homem que o havia substituído.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

domingo, 7 de abril de 2024

Beatrix Potter (O Conto de Jemima Pato)


Que visão engraçada é ver uma ninhada de patinhos com uma galinha!

— Ouça a história de Jemima Pato, que estava chateada porque a esposa do fazendeiro não a deixava chocar seus próprios ovos.

Sua cunhada, a Sra. Rebeccah Pato, estava perfeitamente disposta a deixar a incubação para outra pessoa – “Não tenho paciência para sentar em um ninho por vinte e oito dias; e você também não, Jemima . Você os deixaria esfriar; você sabe que sim!”

“Quero chocar meus próprios ovos; vou chocá-los sozinha”, grasnou Jemima Pato.

Ela tentou esconder seus ovos; mas eles sempre foram encontrados e levados.

Jemima Pato ficou bastante desesperada. Ela decidiu fazer um ninho longe da fazenda.

Ela partiu em uma bela tarde de primavera ao longo da estrada de carroças que sobe a colina.

Ela estava usando um xale e um gorro.

Quando chegou ao topo da colina, viu um bosque ao longe.

Ela pensou que parecia um local seguro e tranquilo.

Jemima Pato não tinha o hábito de voar. Ela correu morro abaixo alguns metros agitando o xale e então saltou no ar.

Ela voou lindamente quando teve uma boa largada.

Ela deslizou sobre as copas das árvores até ver um lugar aberto no meio da floresta, onde as árvores e os arbustos haviam sido derrubados.

Jemima pousou pesadamente e começou a gingar em busca de um local de nidificação conveniente e seco. Ela imaginou um toco de árvore entre vegetação alta.

Mas, sentada no toco, ela se surpreendeu ao encontrar um cavalheiro elegantemente vestido lendo um jornal.

Ele tinha orelhas pretas eretas e bigodes cor de areia.

“Quack?” disse Jemima Pato, com a cabeça e o gorro de lado – “Quack?”

O cavalheiro levantou os olhos acima do jornal e olhou curiosamente para Jemima.

“Senhora, você se perdeu?” disse ele. Ele tinha uma cauda longa e espessa sobre a qual estava sentado, pois o toco estava um pouco úmido.

Jemima o achava muito educado e bonito. Ela explicou que não havia se perdido, mas que estava tentando encontrar um local seco e conveniente para se aninhar.

“Ah! é mesmo? de fato!” disse o cavalheiro de bigodes cor de areia, olhando curiosamente para Jemima. Ele dobrou o jornal e colocou-o no bolso do paletó.

Jemima reclamou da galinha supérflua.

“De fato! Que interessante! Eu gostaria de poder encontrar aquela ave. Eu a ensinaria a cuidar da própria vida!”

“Mas quanto a um ninho – não há dificuldade: tenho um saco cheio de penas em meu depósito de lenha. Não, minha cara senhora, você não atrapalhará ninguém. Pode ficar sentada lá o tempo que quiser”, disse o cavalheiro de cauda longa e espessa.

Ele liderou o caminho para uma casa muito aposentada e de aparência sombria entre as árvores.

Era feito de lenha e turfa, e havia dois baldes quebrados, um em cima do outro, perto de uma chaminé.

“Esta é minha residência de verão; você não acharia minha terra – minha casa de inverno – tão conveniente”, disse o hospitaleiro cavalheiro.

Nos fundos da casa havia um galpão caindo aos pedaços, feito de velhas saboneteiras. O cavalheiro abriu a porta e conduziu Jemima para dentro.

O galpão estava quase cheio de penas – era quase sufocante; mas era confortável e muito macio.

Jemima Pato ficou bastante surpresa ao encontrar uma quantidade tão grande de penas. Mas era muito confortável; e ela fez um ninho sem nenhum problema.

Quando ela saiu, o cavalheiro de bigodes cor de areia estava sentado em um tronco lendo o jornal – pelo menos ele o havia aberto, mas estava olhando por cima.

Ele foi tão educado que parecia quase arrependido por deixar Jemima ir para casa passar a noite. Ele prometeu cuidar muito bem de seu ninho até que ela voltasse no dia seguinte.

Ele disse que adorava ovos e patinhos; ele deveria se orgulhar de ver um belo ninho em seu galpão de madeira.

Jemima Pato vinha todas as tardes; ela pôs nove ovos no ninho. Eles eram brancos esverdeados e muito grandes. O cavalheiro astuto os admirou imensamente. Ele costumava virá-los e contá-los quando Jemima não estava presente.

Por fim, Jemima disse a ele que pretendia começar a sentar no dia seguinte – “e trarei um saco de milho comigo, para que nunca precise deixar meu ninho até que os ovos choquem. Eles podem pegar um resfriado”, disse o consciencioso Jemina.

“Madame, imploro que não se incomode com um saco; vou providenciar aveia. Mas antes de começar sua tediosa sessão, pretendo lhe dar uma guloseima. Vamos fazer um jantar só para nós!

“Posso pedir-lhe para trazer algumas ervas do jardim da fazenda para fazer uma omelete saborosa? Sálvia e tomilho, e hortelã e duas cebolas, e um pouco de salsa. Vou providenciar banha para o material – banha para a omelete”, disse o cavalheiro hospitaleiro de bigodes cor de areia.

Jemima Pato era uma simplória: nem mesmo a menção de sálvia e cebola a deixava desconfiada.

Percorreu a horta mordiscando pedacinhos de todas as espécies de ervas que servem para rechear o pato assado.

E ela foi até a cozinha e tirou duas cebolas de uma cesta.

O cão collie Kep a encontrou saindo: “O que você está fazendo com essas cebolas? Aonde você vai todas as tardes sozinha, Jemima Pato?”

Jemima estava bastante impressionada com o collie; ela contou-lhe toda a história.

O collie escutou, com sua cabeça sábia de lado; ele sorriu quando ela descreveu o cavalheiro educado com bigodes cor de areia.

Ele fez várias perguntas sobre a madeira e sobre a posição exata da casa e do galpão.

Então ele saiu e trotou pela aldeia. Ele foi procurar dois filhotes de cães de raposa que estavam passeando com o açougueiro.

Jemima Pato subiu pela última vez a estrada das carroças, numa tarde ensolarada. Ela estava bastante sobrecarregada com molhos de ervas e duas cebolas em um saco.

Ela voou sobre a floresta e pousou em frente à casa do cavalheiro de cauda longa.

Ele estava sentado em um tronco; ele cheirou o ar e continuou olhando inquieto ao redor da madeira. Quando Jemima desceu, ele pulou.

“Entre em casa assim que você olhar seus ovos. Dê-me as ervas para a omelete. Seja rápida!”

Ele foi bastante abrupto. Jemima Pato nunca o tinha ouvido falar assim.

Ela se sentiu surpresa e desconfortável.

Enquanto ela estava lá dentro, ela ouviu pés batendo na parte de trás do galpão. Alguém com um nariz preto cheirou a parte inferior da porta e depois a trancou.

Jemima ficou muito alarmada.

Um momento depois, houve os ruídos mais terríveis – latidos, latidos, rosnados e uivos, guinchos e gemidos.

E nada mais foi visto daquele cavalheiro de suíças de raposa.

Logo Kep abriu a porta do galpão e soltou Jemima Pato.

Infelizmente, os filhotes correram e comeram todos os ovos antes que ele pudesse detê-los.

Ele tinha uma mordida na orelha e os dois filhotes estavam mancando.

Jemima Pato foi escoltada para casa em lágrimas por causa daqueles ovos.

Ela pôs mais alguns em junho e teve permissão para ficar com eles, mas apenas quatro deles nasceram.

Jemima Pato disse que era por causa de seus nervos; mas ela sempre foi uma péssima babá.

Fonte: Beatrix Potter (escritora e ilustradora). O conto de Jemima Pato. Publicado originalmente em 1908 como The Tale of Jemima Puddle-Duck. Disponível em Domínio Público]