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segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Estante de Livros (“Kalki”, de Gore Vidal”)


1. Contexto e informações gerais

Gore Vidal (1925–2012), escritor estadunidense conhecido por romances, ensaios, peças e forte presença pública. Vidal transitou entre sátira social, crítica política e reinterpretações históricas.

Kalki foi publicado em 1978. Surge no fim da década de 1970, num período pós-Vietnã, pós-Watergate, com crise de confiança nas instituições dos EUA e crescimento de discórdias culturais (direita x esquerda, religião e ciência, etc.).

É um romance satírico/fábula apocalíptica. Vidal emprega humor mordaz, sarcasmo e linguagem erudita para tratar de temas filosóficos e sociopolíticos.

2. Enredo (visão geral, sem revelar todos os spoilers)

Kalki é uma narrativa que mistura política, religião e fantasia filosófica em tom satírico. O enredo gira em torno da figura-título — Kalki — uma espécie de messias ou figura apocalíptica inspirada no conceito hindu de Kalki (o décimo e último avatar de Vishnu, que aparece no fim do kali yuga para restaurar a ordem). Vidal reimagina esse arquétipo dentro de uma trama moderna: líderes, conspiradores e intelectuais que manipulam crenças religiosas, mídia em massa e poderio tecnológico para refazer o mundo. O romance combina intriga internacional, ideologias conflitantes e questões existenciais.

3. Estrutura narrativa e técnica

- Narrador/voz: 
Vidal usa o narrador em terceira pessoa com forte presença autoral — ironia e comentários meta-textuais atravessam o relato. A voz narrativa é muitas vezes ensaística, intervindo para julgar um personagem e tecer reflexões.

- Ritmo: 
Alterna momentos de diálogo afiado e exposição filosófica com episódios de ação e intriga. A cadência é deliberada; Vidal privilegia digressões eruditas que iluminam o pano de fundo intelectual dos conflitos.

- Organização: 
Episódica, com várias cenas que distanciam e aproximam leitores das consequências sociais e políticas das ações dos protagonistas. Há também pequenas unidades — conversas, ensaios dentro da narrativa — que funcionam como micro-exposições de ideias.

4. Personagens principais (arquétipos e função narrativa)

- Kalki (figura-título): Não é apenas um indivíduo, mas um símbolo/força. Representa a tensão entre a promessa de salvação e o risco de tirania messiânica quando poder secular e carisma religioso se combinam.

- Líderes políticos/intelectuais: Servem de contraponto — às vezes cínicos, às vezes idealistas — mostrando como a manipulação de símbolos e do medo pode ser usada para fins de poder.

- Figura(s) feminina(s) e secundárias: São instrumentalizadas tanto para expor hipocrisias quanto para humanizar o enredo; Vidal, porém, foi criticado por retratos femininos por vezes estereotipados ou situados em função do homem.

- Coletivo/“massa”: Mantém papel essencial como receptor da propaganda, da religião e da tecnologia, evidenciando a crítica de Vidal à passividade e ao conformismo.

5. Temas centrais

a) Messianismo e carisma político
- Vidal explora como o desejo humano por salvação e sentido se presta a exploração política. Kalki simboliza a ambiguidade do messias: libertador ou tirano? O romance mostra a facilidade com que sociedades fragilizadas aceitam figuras providenciais.

b) Religião vs. racionalidade
- Conflito entre mitos religiosos e explicações científicas/espírito crítico. Vidal não apenas descreve uma oposição; ele mostra uma fusão perversa: a religião instrumentalizada por estruturas de poder e suportada por tecnologia e mídia.

c) Manipulação das massas e comunicação de massa
- O livro examina a mídia como ferramenta de fabricação de consenso e formação de mitos. A era moderna (a partir do rádio, TV e imprensa) amplia o alcance de líderes carismáticos e cria um ambiente propício para doutrinação.

d) Apocalipse moral/político
- A ideia de um “fim” que será tanto renovação quanto destruição percorre o texto. Vidal penetra no significado do apocalipse moderno: não necessariamente um fim literal, mas um colapso de instituições e valores.

e) Poder, violência e utopia
- Crítica das utopias autoritárias que prometem ordem e progresso, mas exigem coerção. Vidal mostra como discursos de salvação podem mascarar o apelo por controle totalizante.

f) Ironia, cinismo e o papel do intelectual
- Vidal coloca o intelectual como observador crítico — às vezes impotente, às vezes cúmplice. Há uma reflexão sobre responsabilidade moral de escritores e pensadores.

6. Estilo e linguagem

- Linguagem: Erudita, afiada, com saltos irônicos. Vidal mistura referências históricas e filosóficas com brincadeiras satíricas.

- Humor: Sátira cáustica; o humor suaviza a gravidade do enredo, mas também marca o julgamento moral do autor.

- Intertextualidade: Referências a mitologia, história e cultura política ocidental. A escolha do nome “Kalki” é uma recuperação deliberada de mitos orientais para criticar fenômenos ocidentais.

- Didatismo: O romance tem explanações ensaísticas que podem parecer pedagógicas, mas que enriquecem o debate temático.

7. Leituras críticas e simbologias

- Kalki como figura ambivalente: se lido literalmente, é um salvador; simbolicamente, é a personificação do enviesamento humano pelo apelo ao sobrenatural. Vidal sugere que qualquer promessa totalizante de redenção tem potencial destrutivo.

- A fusão tecnologia/religião: A modernidade cria novas “milagres” (distribuição massiva de informação, manipulação psicológica em escala), tornando antigas categorias religiosas perigosamente reconfiguradas.

- O papel da performance: Lideranças carismáticas dependem de encenação. Vidal explora o teatro do poder — discursos, rituais, media training — como mecanismo de produção de fé pública.

- Paródia da política real: Embora a ação não trate diretamente de figuras históricas específicas, a sátira remete ao clima político dos anos 1970 (desilusão com elites, medo de totalitarismos, progressões carismáticas).

8. Críticas possíveis / limitações

- Figuras femininas: Crítica frequente em análises de Vidal é a representação das personagens femininas com menos profundidade ou como instrumentos narrativos.

- Tonalidade moralizante: Alguns leitores podem achar o tom demasiado moralista ou didático, com digressões que interrompem a fluidez do romance.

- Acesso cultural: A exploração de um conceito hindu (Kalki) por um autor ocidental levanta questões de apropriação cultural e leitura reduzida de tradições não-ocidentais. A representação pode ser interpretada como instrumentalização do mito oriental para fins retóricos ocidentais.

- Distanciamento emocional: A ironia constante e o sarcasmo podem criar um distanciamento emocional que limita empatia por personagens.

9. Relevância histórica e cultural

Em 1978, Kalki refletia temores pós-modernos sobre liderança messiânica e a fragilidade das democracias ocidentais. O livro ressoa com lutas políticas da época — e antecipa debates contemporâneos sobre populismo, fake news e culto à personalidade.

Hoje, o romance é relevante ao examinar ascendência de lideranças populistas, uso de mídia social para criação de mitos e a conflagração entre ciência, religião e política.

10. Leituras contemporâneas e atualizações interpretativas

- Populismo e redes sociais: A dinâmica mostrada por Vidal se atualiza no contexto das plataformas digitais, onde algoritmos e bolhas informativas amplificam vozes carismáticas e consolidam narrativas apocalípticas.

- Conspiranóias e pós-verdade: A instrumentalização da verdade (ou sua negação) nas mãos de líderes carismáticos é uma continuação temática clara e perturbadora.

- Ambientalismo e apocalipse: Hoje, o “fim do mundo” é frequentemente discutido em termos ecológicos. Kalki pode ser relido como reflexão sobre como, frente a emergências reais, as respostas políticas podem ser autoritárias sob pretexto de salvação.

11. Interpretação final

Kalki de Gore Vidal é uma fábula satírica e filosófica que usa a figura messiânica para criticar a combinação perigosa de carisma, tecnologia e poder institucional. A narrativa funciona como advertência: a busca por salvação coletiva, quando alimentada por medo e fedida de promessas simplistas, abre caminho a regimes autoritários e a erosão das liberdades. Vidal, com sua ironia e erudição, provoca reflexão sobre responsabilidade intelectual, a fragilidade das instituições modernas e o papel da mídia na construção de mitos políticos.

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Estante de Livros (“Contos Exemplares”, de Sophia de Mello Breyner Andresen)


Sophia de Mello Breyner Andresen, conhecida por sua poesia, também explorou a prosa em seu livro Contos Exemplares, publicado em 1962. As histórias, permeadas por uma profunda reflexão ética e poética, exploram temas como a justiça, a liberdade, a opressão e a busca pela dignidade humana. O contexto em que a obra foi escrita, por exemplo, é importante para entender as motivações e as intenções de Sophia. O livro foi publicado durante a ditadura Salazarista, o que pode explicar a temática da justiça e da liberdade presente em alguns contos.

O título da obra, com a palavra "exemplares", sugere que os contos não são meramente narrativas, mas sim fábulas morais que convidam o leitor a uma reflexão mais profunda sobre a condição humana e a sociedade. A escritora usa a prosa para expressar o mesmo discurso de justiça e liberdade presente em sua poesia. A prosa escrita por uma poeta, possui características específicas, como a busca pela tensão poética e o uso de símbolos.

Contos

O Jantar do Bispo
Este conto aborda o tema da justiça social e da hipocrisia das elites. A narrativa apresenta um bispo que, ao se deparar com a miséria, confronta a sua própria consciência e as suas responsabilidades para com os mais desfavorecidos. O conto explora a dualidade entre o discurso religioso e a prática social, expondo a falência moral de uma classe que prega a caridade, mas vive no luxo, alheia ao sofrimento do povo. 

Retrato de Mônica
Neste conto, a autora apresenta uma reflexão sobre a busca pela santidade e a renúncia do mundo material. Mônica, a personagem central, é um ser complexo, que lida com o conflito entre a sua vocação espiritual e a vida mundana. Através de Mônica, Sophia convida o leitor a questionar o significado da santidade, mostrando que a renúncia é um processo diário e que a negação da espiritualidade é um fardo repetido todos os dias. 

A Viagem
Este conto alegórico aborda a ideia de irreversibilidade e perda. A viagem, que pode ser interpretada como a jornada da vida, é um percurso de perdas constantes, de coisas que não podem ser recuperadas. A narrativa, construída com uma atmosfera de melancolia, explora a fragilidade da existência humana e a necessidade de aceitar a passagem do tempo e as inevitáveis perdas que ela traz. 

A Casa do Mar
Neste conto, a casa é descrita em profunda sintonia com o mar, funcionando como uma extensão da natureza. A história, cheia de simbolismo, evoca a serenidade, a paz e a comunhão com o mundo natural. O mar é uma metáfora recorrente na obra de Sophia e aqui, mais uma vez, representa a liberdade, a profundidade e a constante transformação da vida. 

O Homem
Este conto, com um tom mais tenso e urbano, explora a desumanização e a injustiça na sociedade moderna. A narrativa se concentra na degradação da sociabilidade nas cidades, mostrando como as pessoas podem se tornar insensíveis diante do sofrimento alheio. O conto questiona o resgate da humanidade em um mundo dominado pela indiferença e pela repressão. 

Outros contos notáveis

O Silêncio: 
A narrativa explora o peso do silêncio e as consequências da negação ou omissão, mostrando como um grito sufocado pode reverberar e distorcer a realidade.

A Árvore: 
Aborda temas como a passagem do tempo e o ciclo da vida, destacando a conexão entre o ser humano e a natureza.

Praia: 
O conto apresenta a fusão do mundo real com o mundo onírico, explorando a simbologia e a significação profunda do ser humano.

Homero: 
Assim como em Praia, este conto também funde o real e o sonho, apelando para uma interpretação mais profunda da vida e da religiosidade. 
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Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) foi uma das mais importantes e celebradas poetisas portuguesas do século XX. Sua obra, que abrange poesia, contos, livros infantis, ensaios e traduções, é marcada por um profundo amor pela natureza, pela busca da justiça e pela defesa da liberdade.  Nasceu na cidade do Porto em 6 de novembro de 1919, em uma família aristocrática. O sobrenome Andresen, de origem dinamarquesa, vem do seu avô paterno. Passou a infância entre o Porto e a Granja, onde a família possuía uma casa de praia, o que lhe proporcionou um contato próximo e duradouro com o mar. Estudou Letras Clássicas na Universidade de Lisboa, onde se envolveu em círculos culturais e políticos. Aderiu ao movimento estudantil que se opunha à ditadura do Estado Novo. Em 1975, no pós-Revolução dos Cravos, foi eleita deputada pelo Partido Socialista para a Assembleia Constituinte.  
Sua escrita, embora lírica e ligada à tradição clássica, é também profundamente moderna e engajada. Entre seus temas mais recorrentes estão:
O mar e a natureza: A paisagem litorânea e o mar são elementos centrais de sua poesia, servindo como metáforas para a liberdade, a verdade e a pureza.
Justiça e liberdade: Com uma forte consciência social, Sophia abordou a resistência à ditadura, a busca pela justiça e a luta pela liberdade em seus versos.
A arte e a palavra: A poeta explorou a arte de escrever como um ato de criação e de busca pela perfeição e clareza, características que lhe renderam reconhecimento nacional e internacional. 
Principais obras
Poesia: Poesia (1944), Livro Sexto (1962), O Nome das Coisas (1977).
Contos e ficção: Contos Exemplares (1962).
Literatura infantil: A Fada Oriana (1958), O Cavaleiro da Dinamarca (1964). 
Em 1999, tornou-se a primeira mulher portuguesa a receber o prestigiado Prêmio Camões, o mais importante da literatura em língua portuguesa. Faleceu em Lisboa, aos 84 anos, em 2 de julho de 2004, sendo sepultada no Panteão Nacional em 2014, um reconhecimento inédito para uma mulher.

Fontes:

domingo, 28 de setembro de 2025

Estante de Livros ("O Destino Viaja de Ônibus", de John Steinbeck)

Obs: Resumo biográfico do escritor após o resumo do livro

"O Destino Viaja de Ônibus" (título original: "The Wayward Bus"), publicado em 1947, é um romance de John Steinbeck que explora temas como a natureza humana, o desejo, a desilusão e a busca por significado em um mundo em transformação. 

Ambientado na zona rural da Califórnia pós-Segunda Guerra Mundial, o livro narra a história de um grupo diversificado de passageiros presos em uma viagem de ônibus interrompida por uma tempestade. Através das interações e experiências desses personagens, Steinbeck oferece um retrato complexo e, por vezes, satírico da sociedade americana.

ENREDO E ESTRUTURA

A trama central gira em torno de Juan Chicoy, o proprietário e mecânico de uma garagem decadente e do único ônibus que liga Rebel Corners ao mundo exterior. Quando uma tempestade torrencial danifica a estrada, um grupo de passageiros fica preso em uma jornada que se torna tanto física quanto existencial. Entre eles estão:

– Ernest Horton: Um vendedor viajante, preso em uma vida medíocre e sonhando com aventuras.
– Mildred Pritchard: Uma jovem mimada e entediada, em busca de emoção e romance.
– Norma: Uma garçonete insegura, obcecada por revistas de celebridades e em busca de amor.
– Camille Oaks: Uma dançarina de strip-tease, tentando escapar de seu passado e encontrar um novo começo.
– Van Brunt: Um homem misterioso e taciturno, carregando um segredo obscuro.

A estrutura do romance é relativamente simples, seguindo a jornada do ônibus e as interações entre os passageiros. No entanto, Steinbeck intercala a narrativa principal com flashbacks e monólogos interiores que revelam as motivações e os desejos ocultos de cada personagem.

TEMAS PRINCIPAIS

Natureza Humana: 
Steinbeck explora a complexidade da natureza humana, retratando personagens com qualidades e defeitos, sonhos e frustrações. Ele examina como o desejo, o medo, a ganância e a compaixão moldam o comportamento humano em situações de crise.

Desilusão:
Muitos dos personagens estão desiludidos com suas vidas e buscam algo mais. Ernest Horton sonha com aventuras exóticas, Mildred busca emoção e Norma anseia por um romance de conto de fadas. A jornada de ônibus se torna uma metáfora para a busca por um significado que muitas vezes se revela ilusório.

Desejo e Sexualidade: 
O desejo sexual é um tema recorrente no romance, manifestando-se de diferentes formas em cada personagem. Mildred usa sua sexualidade para manipular os homens, Norma idealiza o amor romântico e Camille busca uma conexão genuína. Steinbeck explora como o desejo pode ser tanto uma força destrutiva quanto uma fonte de esperança.

Classe Social:
O romance retrata a diversidade da sociedade americana, reunindo personagens de diferentes classes sociais e origens. As interações entre eles revelam as tensões e preconceitos que permeiam a sociedade.

Busca por Significado:
Em última análise, "O Destino Viaja de Ônibus" é uma meditação sobre a busca por significado em um mundo caótico e imprevisível. Os personagens são forçados a confrontar suas próprias limitações e a encontrar um sentido em suas vidas, mesmo em meio à desilusão e à incerteza.

ESTILO E SIMBOLISMO

O estilo de escrita de Steinbeck é caracterizado por sua prosa simples e direta, rica em detalhes sensoriais e descrições vívidas da paisagem californiana. Ele usa metáforas e simbolismos para enriquecer a narrativa e transmitir seus temas principais. O ônibus, por exemplo, pode ser interpretado como uma metáfora para a jornada da vida, enquanto a tempestade representa os desafios e obstáculos que encontramos ao longo do caminho.

RECEPÇÃO DA OBRA

"O Destino Viaja de Ônibus" recebeu críticas mistas após sua publicação. Alguns críticos elogiaram a habilidade de Steinbeck em retratar a complexidade da natureza humana e sua crítica social perspicaz, enquanto outros consideraram o romance menos bem-sucedido do que seus trabalhos anteriores. Apesar das críticas, o livro permanece uma obra importante na obra de Steinbeck, oferecendo uma visão fascinante da sociedade americana do pós-guerra e explorando temas que continuam relevantes hoje.

FINAL

"O Destino Viaja de Ônibus" é um romance complexo e multifacetado que oferece uma reflexão profunda sobre a natureza humana, o desejo, a desilusão e a busca por significado. Através de seus personagens cativantes e sua prosa evocativa, Steinbeck nos convida a embarcar em uma jornada que nos leva a confrontar nossas próprias limitações e a encontrar um sentido em nossas vidas, mesmo em meio à incerteza e ao caos.
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John Ernst Steinbeck nasceu em 27 de fevereiro de 1902, em Salinas/ Califórnia/ Estados Unidos. Ele foi um dos escritores mais influentes do século XX, conhecido por suas obras que exploram a condição humana, a luta dos pobres e a injustiça social. Cresceu em uma família de classe média, onde desenvolveu um interesse pela literatura desde cedo. Ele estudou na Universidade da Califórnia, em Berkeley, mas abandonou os estudos antes de concluir o curso, dedicando-se à escrita e a trabalhos temporários. Começou a ganhar reconhecimento na década de 1930, com obras como "Tortilla Flat" (1935) e "As Vinhas da Ira" (1939), que retratam as dificuldades enfrentadas por trabalhadores e agricultores, especialmente durante a Grande Depressão. Seu estilo realista e seu compromisso com temas sociais o tornaram uma voz poderosa em sua época. Seus romances frequentemente abordam questões de classe, desigualdade e a luta pela dignidade humana. Outras obras: “Ratos e Homens" (1937); "A Pérola" (1947); A Leste do Éden (1952). "As Vinhas da Ira" ganhou o Prêmio Pulitzer e é considerado uma de suas obras-primas. Steinbeck casou-se três vezes, primeiro com Carol Henning, depois com Gwyndolyn Conger e, por fim, com Elaine Scott. Ele teve dois filhos. Durante a Segunda Guerra Mundial, serviu como correspondente de guerra, e suas experiências influenciaram seu trabalho. Em 1962, Steinbeck recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, reconhecido por sua escrita que "capturou a realidade da vida americana e a luta de seus habitantes". Faleceu em 20 de dezembro de 1968, em Nova Iorque. Sua obra permanece relevante, abordando temas universais que ressoam com as lutas contemporâneas da sociedade.

domingo, 20 de julho de 2025

Estante de Livros (“Papéis Avulsos”, de Machado de Assis) – 2, final

7) O anel de Polícrates

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 2 de julho de 1882, com a assinatura Machado de Assis. Narrado como um diálogo entre transeuntes. O personagem foi inspirado no então recém-falecido Artur de Oliveira, o “saco de espantos”, que, conquanto uma figura intelectualmente exuberante (“uma cachoeira de ideias e imagens”), que em sua estadia em Paris tornou-se amigo de grandes artistas como Victor Hugo e Gustave Doré, acabou caindo em decadência financeira e física e falecendo prematuramente de “tísica” (tuberculose), sem deixar uma obra escrita significativa (“era impaciente, não sofria a gestação indispensável à obra escrita”). O título faz referência a uma história, contada por Plínio, o Velho, sobre o tirano Polícrates de Samos, que, tendo lançado um anel valioso ao mar como sacrifício à deusa Fortuna, teve a sorte inaudita de recuperá-lo, depois que “o anel foi engolido por um peixe, o peixe pescado e mandado para a cozinha do rei”.

O personagem Xavier, após ter a ideia original de comparar a vida a um cavalo xucro, resolve testar sua sorte (ou seu azar – "caiporismo" na terminologia da época) usando o método do anel de Polícrates, ou seja, espalhando a ideia e vendo se um dia retornaria, no sentido de que as pessoas, ao contá-la, atribuiriam a ele a autoria.

TRECHO: Era um endiabrado, um derramado, planeava todas as coisas possíveis, e até contrárias, um livro, um discurso, um medicamento, um jornal, um poema, um romance, uma história, um libelo político, uma viagem à Europa, outra ao sertão de Minas, outra à lua, em certo balão que inventara, uma candidatura política, e arqueologia, e filosofia, e teatro, etc., etc., etc. Era um saco de espantos. Quem conversava com ele sentia vertigens.

8) O empréstimo

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 30 de julho de 1882, com a assinatura Machado de Assis e o subtítulo: Anedota filosófica, “anedota” não no sentido atual de “piada”, mas de “relato sucinto de um fato jocoso ou curioso” (dicionário Aurélio). Custódio, protótipo do caipora (azarado), procura um tabelião que conheceu numa ceia de Natal para pedir um vultoso empréstimo a fim de entrar de sócio num negócio.

TRECHO: Esse Custódio nascera com a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho. Tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo [...] Mas não tinha dinheiro; nem dinheiro, nem aptidão ou pachorra de o ganhar; por outro lado, precisava viver.

9) A sereníssima república (subtítulo: Conferência do cônego Vargas)

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 20 de agosto de 1882, com a assinatura Machado de Assis. Uma conferência científica em estilo nonsense sobre a vida social das abelhas serve de pretexto para uma sátira “aos vários sistemas de votação propostos para o estabelecimento de um governo representativo”. O conferencista narra a descoberta de uma espécie de abelhas que desenvolveu uma linguagem tão complexa quanto a humana. Ele as dota de uma organização social que toma por modelo a antiga Sereníssima República de Veneza.

TRECHO: Nada, porém, se pode comparar ao pasmo que me causou a descoberta do idioma araneida, uma língua, senhores, nada menos que uma língua rica e variada, com a sua estrutura sintáxica, os seus verbos, conjugações, declinações, casos latinos e formas onomatopaicas, uma língua que estou gramaticando para uso das academias, como o fiz sumariamente para meu próprio uso.

10) O espelho (subtítulo: Esboço de uma nova teoria da alma humana)

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 8 de setembro de 1882, com a assinatura Machado de Assis. Uma “história dentro da história” insólita, que explora os meandros misteriosos da alma humana. “Jacobina, o narrador, abandonado sozinho no sítio da sua tia, encara o seu vazio interior, na cena talvez mais famosa do livro inteiro, e tem que vestir seu uniforme de alferes da guarda nacional para se convencer da sua própria existência.”

TRECHO: Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior.

11) Uma visita de Alcibíades (subtítulo: Carta do desembargador X... ao chefe de polícia da Corte)

A versão original desse conto foi publicada no Jornal das Famílias de outubro de 1876 sob o pseudônimo Victor de Paula, a versão incluída nos Papéis Avulsos tendo sido bastante modificada. Essa versão preliminar foi incluída por R. Magalhães Júnior em sua coletânea Contos Esparsos de textos inéditos de Machado de Assis. Narrado como uma carta ao chefe de polícia, em que um desembargador, adepto do espiritismo, doutrina que chegou no Brasil na década de 1870, descreve como o general grego Alcibíades apareceu em sua casa. O choque cultural é hilário, por exemplo, a cena em que o narrador vai pôr a gravata e Alcebíades se assusta, achando que vai se enforcar.

TRECHO: Como eu passasse a gravata à volta do pescoço e tratasse de dar o laço, Alcibíades supôs que ia enforcar-me, segundo confessou depois. E, na verdade, estava pálido, trêmulo, em suores frios. Agora quem se riu fui eu. Ri-me, e expliquei-lhe o uso da gravata e notei que era branca, não preta, posto usássemos também gravatas pretas. Só depois de tudo isso explicado é que ele consentiu em restituir-ma. Atei-a enfim, depois vesti o colete.

12) Verba testamentária

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 8 de outubro de 1882, com a assinatura Machado de Assis, e o subtítulo “Caso patológico dedicado à Escola de Medicina”, eliminado na versão em livro. A história de um homem, Nicolau, que só conseguia conviver com quem lhe fosse inferior, com “naturezas subalternas”. Pessoas superiores, mais bonitas, mais bem vestidas, mais ricas, provocavam nele “perturbações fisiológicas”, supostamente causadas por um “verme do baço”. Tendo nascido no final do século XVIII, vemos desfilar pelo conto os acontecimentos políticos – grito do Ipiranga, Constituinte, abdicação de D. Pedro I, Regência, Maioridade de D. Pedro II – da primeira metade do século XIX. O título refere-se a uma verba deixada em testamento para a futura confecção do caixão do personagem por um agente funerário específico por ele nomeado.

TRECHO: Nicolau amava em geral as naturezas subalternas, como os doentes amam a droga que lhes restitui a saúde;

Fontes:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Papéis_Avulsos
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

sábado, 19 de julho de 2025

Estante de Livros (“Papéis Avulsos”, de Machado de Assis) – 1


Papéis avulsos é um livro de contos, lançado em 1882, embora alguns críticos literários considerem “O Alienista” mais uma novela do que propriamente um conto. Foi o terceiro livro de contos publicado por Machado de Assis, “a mais notável coletânea de Machado, a mais original e radical”.

"Em termos da evolução intelectual do seu autor, Papéis avulsos (1882) é sem dúvida a mais importante das coleções de contos de Machado de Assis. [...] É possível que, de certo ponto de vista, as coleções posteriores sejam melhores ─ mais sutis na sua ironia, mais penetrantes na sua complexidade psicológica ─, mas aqui sente-se o poder resultante de uma repentina libertação de energia. Há, obviamente, uma relação crucial com Memórias póstumas de Brás Cubas, publicado em livro no ano anterior [...]. Em Papéis avulsos e Brás Cubas a energia é, acima de tudo, satírica: o Machado bem comportado dos romances da década anterior, que só tinha mostrado o seu lado mais perigoso em contos como “A parasıta azul” (1873) ou nas estranhas “fantasias” publicadas em O Cruzeiro, em 1878, revela-se, finalmente, em pé de igualdade com os grandes temas de um Erasmo ou um Swift."

O livro abre com uma advertência de que, embora se trate de contos separados, possuem pontos em comuns: “Avulsos são eles, mas não vieram para aqui como passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma mesa.”

O escritor e crítico literário Carlos de Laet assim anunciou o lançamento de Papéis Avulsos: “Abram vossas excelências e senhorias lugar na sua biblioteca para mais um bom e espirituoso livro do sr. Machado de Assis: – Papéis avulsos – reunião de contos e artigos humorísticos, alguns dos quais já foram devidamente apreciados, quando figuraram no rodapé das folhas diárias favorecidas pela colaboração do distinto escritor.

Contos

1) O Alienista

Publicado originalmente na revista quinzenal A Estação entre 15 de outubro de 1881 e 15 de março de 1882 com a assinatura Machado de Assis. Conta a história do renomado médico Simão Bacamarte, que retorna à sua terra natal, Vila de Itaguaí, para dedicar-se aos estudos da psiquiatria. Para tanto, decide implementar um asilo para abrigar os loucos da cidade e região, cabendo ao próprio médico diagnosticar a loucura dos pacientes e propor sua internação. Antevendo as ideias da antipsiquiatria do século XX, Machado brinca com as fronteiras tênues entre a sanidade mental e loucura. Pode-se interpretar o conto (ou novela) como crítica ao cientificismo exacerbado: Simão Bacamarte, sempre agindo em nome da ciência (“Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência”), acaba se revelando um déspota. O texto evoca o Elogio da Loucura, de Erasmo, além das peças de Molière que satirizam médicos e as obras de Cervantes, Jonathan Swift e Voltaire.

TRECHO: Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido.

2) Teoria do Medalhão

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 18 de dezembro de 1881, com a assinatura Machado de Assis. Apresenta o diálogo em que um pai dá conselhos a seu filho, Janjão, no dia em que completa sua maioridade, sobre como se portar em sociedade, adotando o ofício de medalhão. Como fez em sua coluna Aquarelas na revista O Espelho, onde traçou perfis caricaturais de personagens da sociedade como o parasita e o empregado público aposentado, aqui Machado, através dos conselhos de um pai a seu filho, vai traçar a “caricatura” literária do chamado “medalhão”, um figurão que se mete a falar de tudo sem na verdade se aprofundar em nada, sendo por isso admirado pela sociedade. Segundo o crítico literário Araripe Júnior, “Somos com efeito um país de medalhões; e o autor dos Papéis avulsos faz ressaltar o caráter atrofiante com que essa espécie funesta desenvolve-se, difunde-se em todas as relações da vida pública no Brasil.”

TRECHO: A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra.

3) A Chinela turca

A versão original desse conto precursor do “surrealismo’’ do século XX foi publicada em A Época de 14 de novembro de 1875 sob o pseudônimo Manassés, a versão incluída nos Papéis Avulsos tendo sido consideravelmente modificada. Essa versão preliminar foi incluída por R. Magalhães Júnior em sua coletânea Contos e Crônicas de textos inéditos de Machado de Assis. O bacharel Duarte, prestes a sair para o baile, recebe a visita do Major Lopo Neves, sujeito enfadonho, que o visita para consultá-lo acerca de um drama que havia escrito. Durante a interminável leitura do manuscrito, Duarte recebe a visita da polícia, que o acusa do furto de uma chinela turca.

TRECHO: A chinela de que se trata vale algumas dezenas de contos de réis; é ornada de finíssimos diamantes, que a tornam singularmente preciosa. Não é turca só pela forma, mas também pela origem. A dona, que é uma de nossas patrícias mais viajeiras, esteve, há cerca de três anos no Egito, onde a comprou a um judeu. A história, que este aluno de Moisés referiu acerca daquele produto da indústria muçulmana, é verdadeiramente miraculosa, e, no meu sentir, perfeitamente mentirosa. Mas não vem ao caso dizê-la. O que importa saber é que ela foi roubada e que a polícia tem denúncia contra o senhor.

4) Na arca (subtítulo: Três capítulos inéditos do Gênesis)

Publicado originalmente em O Cruzeiro de 14 de maio de 1878, sob o pseudônimo Eleazar. Um preâmbulo ao texto, suprimido na versão em livro, foi publicado na revista Confluência no 1 (1991) e reproduzida na edição dos Papéis Avulsos publicada pela Penguin/Companhia das Letras. Paródia ao texto bíblico, dividida em capítulos e versículos. Os filhos de Noé, Sem, Jafé e Cam desentendem-se sobre como dividir a terra após o Dilúvio.

TRECHO: “Eles ainda não possuem a terra e já estão brigando por causa dos limites.”

5) D. Benedita (subtítulo: Um retrato)

Publicado originalmente na revista A Estação de 15 de abril a 15 de junho de 1882, com a assinatura Machado de Assis. História de Dona Benedita, mulher indecisa, que nasceu sob o signo da veleidade, no sentido de “vontade imperfeita, hesitante”. Casada com o Desembargador, que está há alguns anos no Pará, onde, dizem as más línguas, vive amasiado com outra mulher, D. Benedita planeja viajar para visitar o marido, mas não consegue se decidir por embarcar. E assim sua vida transcorre como uma sucessão de indecisões hamletianas.

TRECHO: D. Benedita arredou a cortina da janela, deu com os vidros molhados; era uma chuvinha teimosa, o céu estava todo brochado de uma cor pardo-escura, malhada de grossas nuvens negras. Ao longe, viu flutuar e voar o pano que cobria o balaio que uma preta levava à cabeça: concluiu que ventava. Magnífico dia para não sair, e, portanto, escrever uma carta, duas cartas, todas as cartas de uma esposa ao marido ausente.

6) O segredo de Bonzo (subtítulo: Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto)

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 30 de abril de 1882, com a assinatura Machado de Assis. Alegoria sobre a credulidade humana e a propensão a acreditar no charlatanismo. Narrado como um relato do desbravador português do século XVI Fernão Mendes Pinto,[14] que visita o reino de Bungo e descobre o milagroso Bonzo Pomada, capaz de convencer outras pessoas. De fato, uma das acepções da palavra “pomada”, embora hoje em desuso, é “mentira, fraude” (ver dicionários Aulete e Houaiss).

TRECHO: Considerei o caso, e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente.
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continua…

Fontes:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Papéis_Avulsos
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domingo, 13 de julho de 2025

Estante de Livros (“Histórias sem Data”, de Machado de Assis) – 2, final


10) Uma senhora

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 27 de novembro de 1883 e republicado na edição semanal de 4 de dezembro. Perfil de uma mulher que (com a ajuda da natureza) se recusa a envelhecer. Ao primeiro fio de cabelo branco, ela se horroriza. Retarda o casamento da filha para não virar “avó”, e quando enfim vira, mais parece mãe do neto. Se Machado quis escrever histórias sem data, que não se restringiam à sua época, aqui acertou em cheio: a busca da eterna juventude não é incomum na sociedade contemporânea.

TRECHO: Ela era, porém, daquela casta de mulheres que riem do sol e dos almanaques. Cor de leite, fresca, inalterável, deixava às outras o trabalho de envelhecer. Só queria o de existir.

11) Anedota Pecuniária

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 6 de outubro de 1883 e republicado na edição semanal de 9 de outubro. Perfil satírico-caricatural de um homem avarento, possuído pela “voracidade do lucro” ou, em outras palavras, “erotismo pecuniário”.

TRECHO: Entendamo-nos: ele faz arte pela arte, não ama o dinheiro pelo que ele pode dar, mas pelo que é em si mesmo!

12) Fulano

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 4 de janeiro de 1884. Vida de um homem, Fulano Beltrão, pacato e reservado que, depois que um amigo publica uma nota elogiosa sobre ele na imprensa, toma gosto por se exibir e se autopromover na mídia. “A imprensa é uma grande invenção, disse ele à mulher”. Em 'Fulano', Machado revela como a imprensa, uma das tecnologias emergentes, poderia transformar hábitos e reputações. Um sujeito tranquilo como Fulano Beltrão virou um homem público. A autopublicação de seus feitos – mesmo que prosaicos – provocavam comentários na praça. Antecipando quase um século, Machado já sabia que o meio era a mensagem.” Enquanto aguarda a abertura do testamento de Fulano, o narrador rememora a trajetória do personagem.

TRECHO: Venha o leitor comigo assistir à abertura do testamento do meu amigo Fulano Beltrão.

13) A Segunda Vida

Publicado originalmente na Gazeta literária, v. 1, 1883-1884, pp. 146-9. Conto psiquiátrico-filosófico. Monsenhor Caldas recebe a visita de um louco (José Maria) que alega ter morrido décadas antes, mas sua alma foi agraciada com o privilégio de renascer e viver uma segunda vida. Porém, tendo ouvido tantas pessoas mais velhas exclamarem, ao verem um jovem: “Quem me dera aquela idade, sabendo o que sei hoje!”, pede para nascer com a experiência adquirida na primeira vida. O que parece ser uma coisa boa acaba se tornando uma maldição. “Para quem já desejou voltar a viver com a experiência passada, um conto desafiador.”

TRECHO: Como ia dizendo a Vossa Reverendíssima, morri no dia vinte de março de 1860, às cinco horas e quarenta e três minutos da manhã. Tinha então sessenta e oito anos de idade. Minha alma voou pelo espaço, até perder a terra de vista, deixando muito abaixo a lua, as estrelas e o sol; penetrou finalmente num espaço em que não havia mais nada, e era clareado tão-somente por uma luz difusa. Continuei a subir, e comecei a ver um pontinho mais luminoso ao longe, muito longe. O ponto cresceu, fez-se sol.

14) Noite de Almirante

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 10 de fevereiro de 1884. Um marinheiro (Deolindo Venta-Grande) volta de uma longa viagem de instrução e está ansioso por rever sua paixão, a caboclinha Genoveva de vinte anos, e passar com ela uma “noite de almirante” (no linguajar dos marinheiros), com quem trocou votos de fidelidade mútua. Surpreende-se ao descobrir que ela o deixou por um tal José Diogo, mascate de fazendas. E ela admite essa sua “traição” na maior inocência e ingenuidade, como se não tivesse feito nada de errado: “O coração mudou.”

TRECHO: Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva...

15) Manuscrito de um Sacristão

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 17 de fevereiro de 1884. Ironia do destino: Um padre místico e sua prima sonhadora descobrem que são almas gêmeas, mas não têm a coragem de assumir seu amor.

TRECHO: Ela, é claro que tinha achado o marido que esperava, mas saiu-lhe tão impossível como a vida que sonhou.

16) Ex Cathedra

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 8 de abril de 1884. Conto romântico. Um intelectual chamado Fulgêncio, viciado em livros, que vive numa casa solitária na Tijuca, na época um arrabalde distante, desde que perdeu a mulher educa sua enteada Caetaninha, que vive uma vida isolada, sem ir aos teatros nem bailes. Um dia chega do norte um filho natural do falecido irmão do Fulgêncio, para o tio criar. 

Até aqui temos, segundo o autor, todos os elementos de uma história romanesca: 'um velho lunático, uma mocinha solitária e suspirosa, e vemos despontar inopinadamente um sobrinho.” De fato, o próprio tio do moço e padrinho da moça acha por bem casá-los futuramente, e para tal resolve instruí-los para dotar o amor de uma base científica, ministrando, ex cathedra (ou seja, “com a autoridade e o conhecimento de quem possui um título”), lições sobre “noções gerais do universo, uma definição da vida, demonstração da existência do homem e da mulher, organização das sociedades, definição e análise das paixões, definição e análise do amor, suas causas, necessidades e efeitos”. E como nas boas histórias do romantismo (embora “oficialmente” Machado já tenha transposto o limiar do “realismo”), os jovens acabam trocando um "trovão de beijos”, ou dois, três, quatro.

TRECHO: Fusão, transfusão, difusão, confusão e profusão de seres e de coisas.

17) A senhora do Galvão

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 14 de maio de 1884. Perfil feminino. Maria Olímpia, a senhora do Galvão, recebe cartas anônimas insinuando que seu marido tem um caso com a “viúva do brigadeiro”, amiga da família. Durante todo o conto, paira a dúvida se a acusação é verídica ou falsa.

TRECHO: E por que é que a carta não seria uma calúnia? Naturalmente não era outra coisa: alguma invenção de inimigas, ou para afligi-la, ou para fazê-los brigar.

18) As academias de Sião

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 14 de maio de 1884. Conto fantástico. Enquanto o jovem rei de Sião (antigo nome da Tailândia), Kalaphangko, tem a alma feminina, sua concubina, a bela Kinnara, tem uma alma masculina. Um dia ela propõe que troquem de corpos: a alma dele passa para o corpo dela, e a alma dela passa para o corpo dele. Mas a troca tem um prazo determinado. O conto prenuncia as teses da ideologia de gênero.

TRECHO: Kinnara levantou-se agitada. Assim como o rei era o homem feminino, ela era a mulher máscula — um búfalo com penas de cisne.

Fontes:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Histórias_sem_Data
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sábado, 12 de julho de 2025

Estante de Livros (“Histórias sem Data”, de Machado de Assis) – 1


Histórias sem data é um livro de contos de Machado de Assis lançado em 1884 pela editora Garnier,”constituído de dezoito contos em que se encontram várias de suas obras-primas no gênero”. O título não significa que os contos não se situam num período de tempo específico (só dois não o fazem), e sim que são atemporais, descrevem situações que poderiam ter acontecido em qualquer época. Como explica o próprio autor na “Advertência da 1a edição”, os contos tratam “de cousas que não são especialmente do dia, ou de um certo dia”. “Machado, nessas Histórias sem Data, mostra de novo que é um autor que escreve sobre seu tempo e lugar, de olho no que está além deles.”

Este espírito atemporal é muito bem captado pela resenha do livro publicada na coluna “Notas à Margem”, assinada por V., na primeira página do Diário de Notícias de 2 de setembro de 1884:

“estas histórias não têm data, nem dela precisam, em verdade.
Se as recuássemos cem anos, pareceriam modernas aos largos e poderosos espíritos que semearam no século XVIII todos os germes da psicologia, da filosofia e das ciências de hoje. Cem anos passados sobre a data de seu aparecimento, serão lidas ainda com o interesse que despertam as coisas novas.

Modernas hoje, como ontem, como amanhã.”

Miguel de Novais, cunhado de Machado de Assis, então vivendo em Lisboa, a quem este enviara um exemplar do livro, escreveu em 5 de janeiro de 1885: “Já li duas vezes estas suas histórias sem data. O meu amigo adotou um gênero, de que eu aliás gosto, que pode agradar a muitos como agrada, mas que não fará de Machado d'Assis um escritor popular.”

A imprensa da época publicou várias notas e resenhas sobre o livro, sempre elogiando o “estilo correto e leve”, “estilo cuidadosamente lapidado”, “correção de frase e limpidez de estilo”, etc. de Machado, com a única exceção da resenha no folhetim “Sobre a Perna” de A Folha Nova de 15/9/1884, que se queixa do excesso de galicismos na obra.

Sobre este livro comenta Monteiro Lobato em carta de 3 de junho de 1915 a Godofredo Rangel: "Ontem li Histórias sem data, de Machado, e ainda estou sob a impressão. Não pode haver língua mais pura, água mais bem filtrada, nem melhor cristalino a defluir em fio da fonte. E ninguém maneja melhor tudo quanto é cambiante. A gama inteira dos semitons da alma humana. É grande, é imenso, o Machado. É o pico solitário das nossas letras. Os demais nem lhe dão pela cintura."

CONTOS DO LIVRO

1) A Igreja do Diabo

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 17 de fevereiro de 1883 e republicado na edição semanal de 20 de fevereiro. Conto fantástico. O diabo, desafiando a Deus, resolve fundar sua própria igreja onde o que era pecado vira virtude, e o que era virtude vira pecado. A humanidade adere com entusiasmo. Mas se nas religiões tradicionais as pessoas pecavam às escondidas, agora elas praticam o bem furtivamente, sintoma da eterna contradição humana.

TRECHO: O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

2) O lapso

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 17 de abril de 1883 e republicado na edição semanal de 24 de abril. Conto satírico sobre pessoas que prosperam à custa do endividamento. A história transcorre no final do século XVIII, quando o Brasil ainda era colônia. Tomé Gonçalves, homem abastado, deve a meio mundo: ao cabeleireiro, ao sapateiro, ao alfaiate, etc. O médico holandês Jeremias Halma, que se radicou no Rio de Janeiro, explica que o devedor é vítima de uma doença, o “lapso de memória”. Ele esqueceu o que significa “pagar”. Mas o médico promete curar o “doente”.

TRECHO: […] um lapso da memória; o Tomé Gonçalves perdeu inteiramente a noção de pagar. Não é por descuido, nem de propósito que ele deixa de saldar as contas; é porque esta ideia de pagar, de entregar o preço de uma cousa, varreu-se lhe da cabeça.

3) Último capítulo

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 20 de junho de 1883. Perfil masculino. Conta a história, narrada em primeira pessoa, de um personagem trágico e caricatural ao mesmo tempo, o qual, perseguido a vida toda pelo azar (caiporismo no linguajar da época), decide se matar com um tiro de pistola. Sobre este mesmo tema Machado já escrevera em 1870 no Jornal das Famílias um conto não publicado em livro intitulado “O Rei dos Caiporas”, reunido postumamente nos Contos Avulsos coletados por Raimundo Magalhães Júnior.

TRECHO: Repito, sou um grande caipora, o mais caipora de todos os homens.

4) Cantiga de esponsais

Publicado originalmente na revista A Estação de 15 de maio de 1883 e na revista O Álbum de outubro de 1883. Conto melancólico, protagonizado em 1813 (quando Machado nem tinha nascido), sobre o tema do artista frustrado, incapaz de pôr no papel as ideias criativas que pululam em sua mente. É a história de Romão Pires que, três dias depois de casado, iniciou um “canto esponsalício” (ou “cantiga de esponsais” como está no título), mas nunca conseguiu concluí-lo. No final ouve a canção que gostaria de ter composto cantarolada à janela por uma moça recém-casada. Este tema da incapacidade de exprimir um pensamento que está no cérebro é expresso à perfeição no soneto “O Martírio do Artista” do poeta Augusto dos Anjos.

TRECHO: a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia.

5) Singular Ocorrência

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 30 de maio de 1883. História forte, dramática, de dupla traição: O marido trai sua esposa e é traído pela amante. Mas se reconciliam. A história é narrada em forma de um diálogo. O marido da história é o Andrade, alagoano, 26 anos, misto de advogado e político, casado, mas mulherengo. A amante é a Marocas, profissão não explicitamente nomeada (“Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará.”), com muitos namorados, alguns deles “capitalistas bem bons”. Segundo o prefácio de Antônio Houaiss e Francisco de Assis Barbosa das Histórias sem Data das Edições Críticas de Obras de Machado de Assis, “Machado retoma um tema romântico por excelência, o da prostituta regenerada [...]”, que já fora tema de José de Alencar em Lucíola.

TRECHO: Mas o acaso, que é um deus e um diabo ao mesmo tempo...

6) Galeria póstuma

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 2 de agosto de 1883. Joaquim Fidélis, apesar da “saúde de ferro”, morre inesperadamente, deixando um diário com descrições nem sempre lisonjeiras de seus amigos e do sobrinho Benjamim, que ele criou. Outro morto-que-volta-da-tumba para perturbar os vivos. Todos lamentaram o falecimento de Joaquim Félix, mas a surpresa estava nos comentários que ele deixou sobre os seus melhores amigos.

TRECHO: "Este meu sobrinho, dizia o manuscrito, tem vinte e quatro anos de idade, um projeto de reforma judiciária, muito cabelo, e ama-me. Eu não o amo menos. Discreto, leal e bom, — bom até à credulidade. Tão firme nas afeições como versátil nos pareceres. Superficial, amigo de novidades, amando no direito o vocabulário e as fórmulas."

7) Capítulo dos Chapéus

Publicado originalmente na revista A Estação de 15 e 31 de agosto e 15 de setembro de 1883. Perfil feminino. Conto espirituoso sobre uma desavença conjugal por causa de um chapéu.

TRECHO: Musa, canta o despeito de Mariana, esposa do bacharel Conrado Seabra, naquela manhã de abril de 1879. Qual a causa de tamanho alvoroço? Um simples chapéu, leve, não deselegante, um chapéu baixo.

8) Conto Alexandrino

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 13 de maio de 1883. Este conto satírico transcorre na Antiguidade. Dois filósofos cipriotas (que mais parecem uns “cientistas malucos”) viajam de navio para Alexandria a fim de testarem a hipótese de que “o princípio das paixões e das virtudes humanas estava distribuído pelas várias espécies de animais”, sendo assim possível transmiti-las para os homens, por exemplo, “o sangue de rato, dado a beber a um homem, possa fazer do homem um ratoneiro”. A experiência com o sangue dos ratos, de uma crueldade extrema, de fato transforma os dois honestos em ladrões, levando-os à prisão. No final, eles próprios são vítimas de uma cruel experiência por parte de Herófilo, inventor da anatomia.

O conto pode ser visto como uma crítica aos excessos da ciência. “Machado de Assis aborda como tema central do conto a criação exagerada de teorias no século XIX, pois é possível perceber no conto um questionamento bem pontual sobre a cientificidade desse mesmo século: se realmente tudo valia a pena em nome da ciência.”

TRECHO: Os infelizes berravam, choravam, suplicavam; mas Herófilo dizia-lhes pacificamente que a obrigação do filósofo era servir à filosofia, e que para os fins da ciência, eles valiam ainda mais que os ratos, pois era melhor concluir do homem para o homem, e não do rato para o homem. E continuou a rasgá-los fibra por fibra, durante oito dias. No terceiro dia arrancaram-lhes os olhos, para desmentir praticamente uma teoria sobre a conformação interior do órgão. Não falo da extração do estômago de ambos, por se tratar de problemas relativamente secundários, e em todo caso estudados e resolvidos em cinco ou seis indivíduos escalpelados antes deles.

9) Primas de Sapucaia!

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 24 de outubro de 1883 e republicado na edição semanal de 30 de outubro. Conto com pinceladas românticas. As primas que dão título ao conto (chamadas Claudina e Rosa) não têm vida própria, figurando apenas como símbolo de um estorvo, de alguém que atrapalha uma conquista amorosa. Na verdade, o conto gira em torno do que chamamos hoje de “mulher fatal”, que atrai os homens para destruí-los.

Resumo do conto: O narrador (o conto é em primeira pessoa) depara, em frente à Igreja de São José, no Rio de Janeiro, com uma mulher por quem sentira forte atração dois meses atrás no Prado Fluminense, mas não pode ir atrás dela porque está acompanhando duas primas da cidade interiorana de Sapucaia que não sabem se locomover sozinhas no Rio de Janeiro. Depois de deixá-las em casa, ele volta a procurar aquela mulher, mas sem êxito. Cansado, entra num hotel para almoçar e lá se imagina fazendo dela sua amante. Imagina até seu nome: Adriana. Por algum tempo, procura sua musa pelos logradouros, mas sem êxito. No ano seguinte, surpreende-se quando, em viagem a Petrópolis com o amigo Oliveira, descobre que ele está tendo um caso com uma mulher também de nome Adriana e, por uma incomum coincidência, trata-se da mesma mulher por quem estava interessado. Mas o relacionamento do amigo com aquela “mulher fatal” acaba se revelando abusivo e destrutivo.

TRECHO: Adriana é casada; o marido conta cinquenta e dois anos, ela trinta imperfeitos. Não amou nunca, não amou mesmo o marido, com quem casou por obedecer à família. Eu ensinei-lhe ao mesmo tempo o amor e a traição; é o que ela me diz nesta casinha que aluguei fora da cidade, de propósito para nós.
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continua…

Fontes:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Histórias_sem_Data
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quinta-feira, 10 de julho de 2025

Estante de Livros (“Histórias da Meia-Noite”, de Machado de Assis) – 2, final

3) Ernesto de Tal

Publicado originalmente no Jornal das Famílias de março e abril de 1873, com os pseudônimos J.J. e Job, respectivamente. Ernesto é apaixonado por Rosina, que finge mutualidade no sentimento, caso ela não consiga encontrar um marido mais alto na sociedade. Rosina, quando Ernesto fica duvidoso sobre suas intenções e a confronta, inventa desculpas por qualquer que seja a atitude de que ele (corretamente) suspeita, de forma que ele se sinta culpado pelo mal-estar que "ele" causou. Rosina decide casar-se com um "rapaz de nariz comprido" ainda mantendo Ernesto como plano B, mas este descobre sobre o casamento. Ernesto confronta o rapaz de nariz comprido, e após uma briga se unem contra Rosina: Ambos mandam a mesma carta anunciando a descoberta do plano dela e o término de suas relações. Os dois se tornam amigos. Rosina, pensando ter perdido o rapaz de nariz comprido de vez, apela a Ernesto e o convence a se casar com ela, ameaçando até suicídio caso ele não satisfaça essa paixão. Ernesto e o rapaz de nariz comprido continuam bons amigos, mas o segundo nunca se casa.

A história transcorre em 1850, quando o autor era criança. Os dois rivais principais pelo amor de Rosina não têm seus nomes revelados: Ernesto de Tal ("não estou autorizado para dizer o nome todo") e o "rapaz de nariz comprido". A "Rua Nova do Conde esquina do Campo da Aclamação" onde começa o conto corresponde hoje à Rua Frei Caneca, esquina do Campo de Santana, na época área residencial. A Rua do Areal, até onde Ernesto sobe, é hoje a Rua Moncorvo Filho.

TRECHO: Veja o leitor aquela moça que ali está, sentada num sofá, entre duas damas da mesma idade, conversando baixinho com elas, e requebrando de quando em quando os olhos. É Rosina. Os olhos de Rosina não enganam ninguém exceto os namorados. Os olhos dela são espertinhos e caçadores, e com um certo movimento que ela lhes dá, ficam ainda mais caçadores e espertinhos.

4) Aurora sem dia

Publicado originalmente no Jornal das Famílias de novembro e dezembro de 1870 assinado como Machado de Assis. É um conto que possui um tom irônico, e descreve a trajetória de Tinoco, funcionário de um fórum que decide virar poeta. Porém, seus poemas são superficiais, começam a se transformar em discursos, e Tinoco resolve seguir carreira política. Em seguida, desiste da política e dedica-se à agricultura. É uma crítica à vaidade de artistas medíocres e à falta de seriedade na política. O conto publicado em 1870 no Jornal das famílias foi significativamente modificado quando de sua publicação em Histórias da meia-noite.[7] O foco narrativo foi alterado, partes foram suprimidas e outras foram adicionadas. De modo geral, o tom moralista da primeira versão foi substituído por uma perspectiva mais irônica.

Dois termos empregados pelo autor tinham na época acepções diferentes de hoje: em "tragara até às fezes a taça do infortúnio", "fezes" tem o sentido de "borra" (substância que se deposita no fundo do recipiente), e em "imagens safadas", este adjetivo tem o sentido de "gasto ou inutilizado pelo uso".[8]

TRECHO: Os jornais andavam cheios de produções suas, umas tristes, outras alegres, não daquela tristeza nem daquela alegria que vem diretamente do coração, mas de uma tristeza que fazia sorrir, e de uma alegria que fazia bocejar.

5) O relógio de ouro

Publicado originalmente no Jornal das Famílias de abril e maio de 1873 com o pseudônimo Job. Luís Negreiros encontra em casa um relógio que nunca vira antes. Questiona sua esposa, Clarinha, sobre o relógio, mas não recebe resposta. Ele se irrita e a agride, mas ainda assim nada ela responde. É implícito que Luís em pensamento a acusa de adultério. Seu sogro, Sr. Meireles, está em casa para jantar. Ele lembra Luís de seu aniversário no dia seguinte, e percebe a indiferença da filha. Meireles vai para casa avisando que não voltará mais se seja o que for que estiver acontecendo entre o casal não for resolvido. Luís pede desculpas a Clarinha, entendendo agora que o relógio era um presente. Mas ela intervém e mostra uma carta endereçada ao escritório de Luís, mas redirecionada para casa pois ele saiu antes que pudesse ser entregue. A carta, para "meu nhonhô" e assinada por "tua Iaiá", informa o envio do presente.

TRECHO: Luís Negreiros tinha muita razão em ficar boquiaberto quando viu o relógio em casa, um relógio que não era dele, nem podia ser de sua mulher. Seria ilusão dos seus olhos? Não era; o relógio ali estava sobre uma mesa da alcova, a olhar para ele, talvez tão espantado como ele, do lugar e da situação.

6) Ponto de vista

Publicado originalmente no Jornal das Famílias de outubro e novembro de 1873 com o título "Quem Desdenha" e assinado Machado de Assis. Uma série de cartas entre D. Luísa, D. Raquel, e Dr. Alberto. Entre assuntos cotidianos, Raquel conta para Luísa sobre o casamento de Mariquinhas com o pai de Alberto. Raquel se mostra incomodada com a situação, devido à velhice do pai de Alberto. Já o próprio Alberto, embora de boa aparência, é um pobre de espírito. Luísa insinua que a insistência no assunto reflete o interesse amoroso por parte de Raquel, que nega. Com o decorrer das cartas, Raquel revela estar apaixonada e que vai casar-se, mas sem revelar a identidade do noivo para Luísa. Quando Raquel finalmente revela o nome, o conto termina com uma carta em branco de Luísa.

TRECHO: O coração é um mar, sujeito à influência da lua e dos ventos.

Fontes:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3rias_da_Meia-Noite
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