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domingo, 20 de julho de 2025

Estante de Livros (“Papéis Avulsos”, de Machado de Assis) – 2, final

7) O anel de Polícrates

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 2 de julho de 1882, com a assinatura Machado de Assis. Narrado como um diálogo entre transeuntes. O personagem foi inspirado no então recém-falecido Artur de Oliveira, o “saco de espantos”, que, conquanto uma figura intelectualmente exuberante (“uma cachoeira de ideias e imagens”), que em sua estadia em Paris tornou-se amigo de grandes artistas como Victor Hugo e Gustave Doré, acabou caindo em decadência financeira e física e falecendo prematuramente de “tísica” (tuberculose), sem deixar uma obra escrita significativa (“era impaciente, não sofria a gestação indispensável à obra escrita”). O título faz referência a uma história, contada por Plínio, o Velho, sobre o tirano Polícrates de Samos, que, tendo lançado um anel valioso ao mar como sacrifício à deusa Fortuna, teve a sorte inaudita de recuperá-lo, depois que “o anel foi engolido por um peixe, o peixe pescado e mandado para a cozinha do rei”.

O personagem Xavier, após ter a ideia original de comparar a vida a um cavalo xucro, resolve testar sua sorte (ou seu azar – "caiporismo" na terminologia da época) usando o método do anel de Polícrates, ou seja, espalhando a ideia e vendo se um dia retornaria, no sentido de que as pessoas, ao contá-la, atribuiriam a ele a autoria.

TRECHO: Era um endiabrado, um derramado, planeava todas as coisas possíveis, e até contrárias, um livro, um discurso, um medicamento, um jornal, um poema, um romance, uma história, um libelo político, uma viagem à Europa, outra ao sertão de Minas, outra à lua, em certo balão que inventara, uma candidatura política, e arqueologia, e filosofia, e teatro, etc., etc., etc. Era um saco de espantos. Quem conversava com ele sentia vertigens.

8) O empréstimo

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 30 de julho de 1882, com a assinatura Machado de Assis e o subtítulo: Anedota filosófica, “anedota” não no sentido atual de “piada”, mas de “relato sucinto de um fato jocoso ou curioso” (dicionário Aurélio). Custódio, protótipo do caipora (azarado), procura um tabelião que conheceu numa ceia de Natal para pedir um vultoso empréstimo a fim de entrar de sócio num negócio.

TRECHO: Esse Custódio nascera com a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho. Tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo [...] Mas não tinha dinheiro; nem dinheiro, nem aptidão ou pachorra de o ganhar; por outro lado, precisava viver.

9) A sereníssima república (subtítulo: Conferência do cônego Vargas)

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 20 de agosto de 1882, com a assinatura Machado de Assis. Uma conferência científica em estilo nonsense sobre a vida social das abelhas serve de pretexto para uma sátira “aos vários sistemas de votação propostos para o estabelecimento de um governo representativo”. O conferencista narra a descoberta de uma espécie de abelhas que desenvolveu uma linguagem tão complexa quanto a humana. Ele as dota de uma organização social que toma por modelo a antiga Sereníssima República de Veneza.

TRECHO: Nada, porém, se pode comparar ao pasmo que me causou a descoberta do idioma araneida, uma língua, senhores, nada menos que uma língua rica e variada, com a sua estrutura sintáxica, os seus verbos, conjugações, declinações, casos latinos e formas onomatopaicas, uma língua que estou gramaticando para uso das academias, como o fiz sumariamente para meu próprio uso.

10) O espelho (subtítulo: Esboço de uma nova teoria da alma humana)

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 8 de setembro de 1882, com a assinatura Machado de Assis. Uma “história dentro da história” insólita, que explora os meandros misteriosos da alma humana. “Jacobina, o narrador, abandonado sozinho no sítio da sua tia, encara o seu vazio interior, na cena talvez mais famosa do livro inteiro, e tem que vestir seu uniforme de alferes da guarda nacional para se convencer da sua própria existência.”

TRECHO: Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior.

11) Uma visita de Alcibíades (subtítulo: Carta do desembargador X... ao chefe de polícia da Corte)

A versão original desse conto foi publicada no Jornal das Famílias de outubro de 1876 sob o pseudônimo Victor de Paula, a versão incluída nos Papéis Avulsos tendo sido bastante modificada. Essa versão preliminar foi incluída por R. Magalhães Júnior em sua coletânea Contos Esparsos de textos inéditos de Machado de Assis. Narrado como uma carta ao chefe de polícia, em que um desembargador, adepto do espiritismo, doutrina que chegou no Brasil na década de 1870, descreve como o general grego Alcibíades apareceu em sua casa. O choque cultural é hilário, por exemplo, a cena em que o narrador vai pôr a gravata e Alcebíades se assusta, achando que vai se enforcar.

TRECHO: Como eu passasse a gravata à volta do pescoço e tratasse de dar o laço, Alcibíades supôs que ia enforcar-me, segundo confessou depois. E, na verdade, estava pálido, trêmulo, em suores frios. Agora quem se riu fui eu. Ri-me, e expliquei-lhe o uso da gravata e notei que era branca, não preta, posto usássemos também gravatas pretas. Só depois de tudo isso explicado é que ele consentiu em restituir-ma. Atei-a enfim, depois vesti o colete.

12) Verba testamentária

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 8 de outubro de 1882, com a assinatura Machado de Assis, e o subtítulo “Caso patológico dedicado à Escola de Medicina”, eliminado na versão em livro. A história de um homem, Nicolau, que só conseguia conviver com quem lhe fosse inferior, com “naturezas subalternas”. Pessoas superiores, mais bonitas, mais bem vestidas, mais ricas, provocavam nele “perturbações fisiológicas”, supostamente causadas por um “verme do baço”. Tendo nascido no final do século XVIII, vemos desfilar pelo conto os acontecimentos políticos – grito do Ipiranga, Constituinte, abdicação de D. Pedro I, Regência, Maioridade de D. Pedro II – da primeira metade do século XIX. O título refere-se a uma verba deixada em testamento para a futura confecção do caixão do personagem por um agente funerário específico por ele nomeado.

TRECHO: Nicolau amava em geral as naturezas subalternas, como os doentes amam a droga que lhes restitui a saúde;

Fontes:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Papéis_Avulsos
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

sábado, 19 de julho de 2025

Estante de Livros (“Papéis Avulsos”, de Machado de Assis) – 1


Papéis avulsos é um livro de contos, lançado em 1882, embora alguns críticos literários considerem “O Alienista” mais uma novela do que propriamente um conto. Foi o terceiro livro de contos publicado por Machado de Assis, “a mais notável coletânea de Machado, a mais original e radical”.

"Em termos da evolução intelectual do seu autor, Papéis avulsos (1882) é sem dúvida a mais importante das coleções de contos de Machado de Assis. [...] É possível que, de certo ponto de vista, as coleções posteriores sejam melhores ─ mais sutis na sua ironia, mais penetrantes na sua complexidade psicológica ─, mas aqui sente-se o poder resultante de uma repentina libertação de energia. Há, obviamente, uma relação crucial com Memórias póstumas de Brás Cubas, publicado em livro no ano anterior [...]. Em Papéis avulsos e Brás Cubas a energia é, acima de tudo, satírica: o Machado bem comportado dos romances da década anterior, que só tinha mostrado o seu lado mais perigoso em contos como “A parasıta azul” (1873) ou nas estranhas “fantasias” publicadas em O Cruzeiro, em 1878, revela-se, finalmente, em pé de igualdade com os grandes temas de um Erasmo ou um Swift."

O livro abre com uma advertência de que, embora se trate de contos separados, possuem pontos em comuns: “Avulsos são eles, mas não vieram para aqui como passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma mesa.”

O escritor e crítico literário Carlos de Laet assim anunciou o lançamento de Papéis Avulsos: “Abram vossas excelências e senhorias lugar na sua biblioteca para mais um bom e espirituoso livro do sr. Machado de Assis: – Papéis avulsos – reunião de contos e artigos humorísticos, alguns dos quais já foram devidamente apreciados, quando figuraram no rodapé das folhas diárias favorecidas pela colaboração do distinto escritor.

Contos

1) O Alienista

Publicado originalmente na revista quinzenal A Estação entre 15 de outubro de 1881 e 15 de março de 1882 com a assinatura Machado de Assis. Conta a história do renomado médico Simão Bacamarte, que retorna à sua terra natal, Vila de Itaguaí, para dedicar-se aos estudos da psiquiatria. Para tanto, decide implementar um asilo para abrigar os loucos da cidade e região, cabendo ao próprio médico diagnosticar a loucura dos pacientes e propor sua internação. Antevendo as ideias da antipsiquiatria do século XX, Machado brinca com as fronteiras tênues entre a sanidade mental e loucura. Pode-se interpretar o conto (ou novela) como crítica ao cientificismo exacerbado: Simão Bacamarte, sempre agindo em nome da ciência (“Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência”), acaba se revelando um déspota. O texto evoca o Elogio da Loucura, de Erasmo, além das peças de Molière que satirizam médicos e as obras de Cervantes, Jonathan Swift e Voltaire.

TRECHO: Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido.

2) Teoria do Medalhão

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 18 de dezembro de 1881, com a assinatura Machado de Assis. Apresenta o diálogo em que um pai dá conselhos a seu filho, Janjão, no dia em que completa sua maioridade, sobre como se portar em sociedade, adotando o ofício de medalhão. Como fez em sua coluna Aquarelas na revista O Espelho, onde traçou perfis caricaturais de personagens da sociedade como o parasita e o empregado público aposentado, aqui Machado, através dos conselhos de um pai a seu filho, vai traçar a “caricatura” literária do chamado “medalhão”, um figurão que se mete a falar de tudo sem na verdade se aprofundar em nada, sendo por isso admirado pela sociedade. Segundo o crítico literário Araripe Júnior, “Somos com efeito um país de medalhões; e o autor dos Papéis avulsos faz ressaltar o caráter atrofiante com que essa espécie funesta desenvolve-se, difunde-se em todas as relações da vida pública no Brasil.”

TRECHO: A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra.

3) A Chinela turca

A versão original desse conto precursor do “surrealismo’’ do século XX foi publicada em A Época de 14 de novembro de 1875 sob o pseudônimo Manassés, a versão incluída nos Papéis Avulsos tendo sido consideravelmente modificada. Essa versão preliminar foi incluída por R. Magalhães Júnior em sua coletânea Contos e Crônicas de textos inéditos de Machado de Assis. O bacharel Duarte, prestes a sair para o baile, recebe a visita do Major Lopo Neves, sujeito enfadonho, que o visita para consultá-lo acerca de um drama que havia escrito. Durante a interminável leitura do manuscrito, Duarte recebe a visita da polícia, que o acusa do furto de uma chinela turca.

TRECHO: A chinela de que se trata vale algumas dezenas de contos de réis; é ornada de finíssimos diamantes, que a tornam singularmente preciosa. Não é turca só pela forma, mas também pela origem. A dona, que é uma de nossas patrícias mais viajeiras, esteve, há cerca de três anos no Egito, onde a comprou a um judeu. A história, que este aluno de Moisés referiu acerca daquele produto da indústria muçulmana, é verdadeiramente miraculosa, e, no meu sentir, perfeitamente mentirosa. Mas não vem ao caso dizê-la. O que importa saber é que ela foi roubada e que a polícia tem denúncia contra o senhor.

4) Na arca (subtítulo: Três capítulos inéditos do Gênesis)

Publicado originalmente em O Cruzeiro de 14 de maio de 1878, sob o pseudônimo Eleazar. Um preâmbulo ao texto, suprimido na versão em livro, foi publicado na revista Confluência no 1 (1991) e reproduzida na edição dos Papéis Avulsos publicada pela Penguin/Companhia das Letras. Paródia ao texto bíblico, dividida em capítulos e versículos. Os filhos de Noé, Sem, Jafé e Cam desentendem-se sobre como dividir a terra após o Dilúvio.

TRECHO: “Eles ainda não possuem a terra e já estão brigando por causa dos limites.”

5) D. Benedita (subtítulo: Um retrato)

Publicado originalmente na revista A Estação de 15 de abril a 15 de junho de 1882, com a assinatura Machado de Assis. História de Dona Benedita, mulher indecisa, que nasceu sob o signo da veleidade, no sentido de “vontade imperfeita, hesitante”. Casada com o Desembargador, que está há alguns anos no Pará, onde, dizem as más línguas, vive amasiado com outra mulher, D. Benedita planeja viajar para visitar o marido, mas não consegue se decidir por embarcar. E assim sua vida transcorre como uma sucessão de indecisões hamletianas.

TRECHO: D. Benedita arredou a cortina da janela, deu com os vidros molhados; era uma chuvinha teimosa, o céu estava todo brochado de uma cor pardo-escura, malhada de grossas nuvens negras. Ao longe, viu flutuar e voar o pano que cobria o balaio que uma preta levava à cabeça: concluiu que ventava. Magnífico dia para não sair, e, portanto, escrever uma carta, duas cartas, todas as cartas de uma esposa ao marido ausente.

6) O segredo de Bonzo (subtítulo: Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto)

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 30 de abril de 1882, com a assinatura Machado de Assis. Alegoria sobre a credulidade humana e a propensão a acreditar no charlatanismo. Narrado como um relato do desbravador português do século XVI Fernão Mendes Pinto,[14] que visita o reino de Bungo e descobre o milagroso Bonzo Pomada, capaz de convencer outras pessoas. De fato, uma das acepções da palavra “pomada”, embora hoje em desuso, é “mentira, fraude” (ver dicionários Aulete e Houaiss).

TRECHO: Considerei o caso, e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente.
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continua…

Fontes:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Papéis_Avulsos
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

domingo, 13 de julho de 2025

Estante de Livros (“Histórias sem Data”, de Machado de Assis) – 2, final


10) Uma senhora

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 27 de novembro de 1883 e republicado na edição semanal de 4 de dezembro. Perfil de uma mulher que (com a ajuda da natureza) se recusa a envelhecer. Ao primeiro fio de cabelo branco, ela se horroriza. Retarda o casamento da filha para não virar “avó”, e quando enfim vira, mais parece mãe do neto. Se Machado quis escrever histórias sem data, que não se restringiam à sua época, aqui acertou em cheio: a busca da eterna juventude não é incomum na sociedade contemporânea.

TRECHO: Ela era, porém, daquela casta de mulheres que riem do sol e dos almanaques. Cor de leite, fresca, inalterável, deixava às outras o trabalho de envelhecer. Só queria o de existir.

11) Anedota Pecuniária

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 6 de outubro de 1883 e republicado na edição semanal de 9 de outubro. Perfil satírico-caricatural de um homem avarento, possuído pela “voracidade do lucro” ou, em outras palavras, “erotismo pecuniário”.

TRECHO: Entendamo-nos: ele faz arte pela arte, não ama o dinheiro pelo que ele pode dar, mas pelo que é em si mesmo!

12) Fulano

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 4 de janeiro de 1884. Vida de um homem, Fulano Beltrão, pacato e reservado que, depois que um amigo publica uma nota elogiosa sobre ele na imprensa, toma gosto por se exibir e se autopromover na mídia. “A imprensa é uma grande invenção, disse ele à mulher”. Em 'Fulano', Machado revela como a imprensa, uma das tecnologias emergentes, poderia transformar hábitos e reputações. Um sujeito tranquilo como Fulano Beltrão virou um homem público. A autopublicação de seus feitos – mesmo que prosaicos – provocavam comentários na praça. Antecipando quase um século, Machado já sabia que o meio era a mensagem.” Enquanto aguarda a abertura do testamento de Fulano, o narrador rememora a trajetória do personagem.

TRECHO: Venha o leitor comigo assistir à abertura do testamento do meu amigo Fulano Beltrão.

13) A Segunda Vida

Publicado originalmente na Gazeta literária, v. 1, 1883-1884, pp. 146-9. Conto psiquiátrico-filosófico. Monsenhor Caldas recebe a visita de um louco (José Maria) que alega ter morrido décadas antes, mas sua alma foi agraciada com o privilégio de renascer e viver uma segunda vida. Porém, tendo ouvido tantas pessoas mais velhas exclamarem, ao verem um jovem: “Quem me dera aquela idade, sabendo o que sei hoje!”, pede para nascer com a experiência adquirida na primeira vida. O que parece ser uma coisa boa acaba se tornando uma maldição. “Para quem já desejou voltar a viver com a experiência passada, um conto desafiador.”

TRECHO: Como ia dizendo a Vossa Reverendíssima, morri no dia vinte de março de 1860, às cinco horas e quarenta e três minutos da manhã. Tinha então sessenta e oito anos de idade. Minha alma voou pelo espaço, até perder a terra de vista, deixando muito abaixo a lua, as estrelas e o sol; penetrou finalmente num espaço em que não havia mais nada, e era clareado tão-somente por uma luz difusa. Continuei a subir, e comecei a ver um pontinho mais luminoso ao longe, muito longe. O ponto cresceu, fez-se sol.

14) Noite de Almirante

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 10 de fevereiro de 1884. Um marinheiro (Deolindo Venta-Grande) volta de uma longa viagem de instrução e está ansioso por rever sua paixão, a caboclinha Genoveva de vinte anos, e passar com ela uma “noite de almirante” (no linguajar dos marinheiros), com quem trocou votos de fidelidade mútua. Surpreende-se ao descobrir que ela o deixou por um tal José Diogo, mascate de fazendas. E ela admite essa sua “traição” na maior inocência e ingenuidade, como se não tivesse feito nada de errado: “O coração mudou.”

TRECHO: Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva...

15) Manuscrito de um Sacristão

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 17 de fevereiro de 1884. Ironia do destino: Um padre místico e sua prima sonhadora descobrem que são almas gêmeas, mas não têm a coragem de assumir seu amor.

TRECHO: Ela, é claro que tinha achado o marido que esperava, mas saiu-lhe tão impossível como a vida que sonhou.

16) Ex Cathedra

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 8 de abril de 1884. Conto romântico. Um intelectual chamado Fulgêncio, viciado em livros, que vive numa casa solitária na Tijuca, na época um arrabalde distante, desde que perdeu a mulher educa sua enteada Caetaninha, que vive uma vida isolada, sem ir aos teatros nem bailes. Um dia chega do norte um filho natural do falecido irmão do Fulgêncio, para o tio criar. 

Até aqui temos, segundo o autor, todos os elementos de uma história romanesca: 'um velho lunático, uma mocinha solitária e suspirosa, e vemos despontar inopinadamente um sobrinho.” De fato, o próprio tio do moço e padrinho da moça acha por bem casá-los futuramente, e para tal resolve instruí-los para dotar o amor de uma base científica, ministrando, ex cathedra (ou seja, “com a autoridade e o conhecimento de quem possui um título”), lições sobre “noções gerais do universo, uma definição da vida, demonstração da existência do homem e da mulher, organização das sociedades, definição e análise das paixões, definição e análise do amor, suas causas, necessidades e efeitos”. E como nas boas histórias do romantismo (embora “oficialmente” Machado já tenha transposto o limiar do “realismo”), os jovens acabam trocando um "trovão de beijos”, ou dois, três, quatro.

TRECHO: Fusão, transfusão, difusão, confusão e profusão de seres e de coisas.

17) A senhora do Galvão

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 14 de maio de 1884. Perfil feminino. Maria Olímpia, a senhora do Galvão, recebe cartas anônimas insinuando que seu marido tem um caso com a “viúva do brigadeiro”, amiga da família. Durante todo o conto, paira a dúvida se a acusação é verídica ou falsa.

TRECHO: E por que é que a carta não seria uma calúnia? Naturalmente não era outra coisa: alguma invenção de inimigas, ou para afligi-la, ou para fazê-los brigar.

18) As academias de Sião

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 14 de maio de 1884. Conto fantástico. Enquanto o jovem rei de Sião (antigo nome da Tailândia), Kalaphangko, tem a alma feminina, sua concubina, a bela Kinnara, tem uma alma masculina. Um dia ela propõe que troquem de corpos: a alma dele passa para o corpo dela, e a alma dela passa para o corpo dele. Mas a troca tem um prazo determinado. O conto prenuncia as teses da ideologia de gênero.

TRECHO: Kinnara levantou-se agitada. Assim como o rei era o homem feminino, ela era a mulher máscula — um búfalo com penas de cisne.

Fontes:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Histórias_sem_Data
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

sábado, 12 de julho de 2025

Estante de Livros (“Histórias sem Data”, de Machado de Assis) – 1


Histórias sem data é um livro de contos de Machado de Assis lançado em 1884 pela editora Garnier,”constituído de dezoito contos em que se encontram várias de suas obras-primas no gênero”. O título não significa que os contos não se situam num período de tempo específico (só dois não o fazem), e sim que são atemporais, descrevem situações que poderiam ter acontecido em qualquer época. Como explica o próprio autor na “Advertência da 1a edição”, os contos tratam “de cousas que não são especialmente do dia, ou de um certo dia”. “Machado, nessas Histórias sem Data, mostra de novo que é um autor que escreve sobre seu tempo e lugar, de olho no que está além deles.”

Este espírito atemporal é muito bem captado pela resenha do livro publicada na coluna “Notas à Margem”, assinada por V., na primeira página do Diário de Notícias de 2 de setembro de 1884:

“estas histórias não têm data, nem dela precisam, em verdade.
Se as recuássemos cem anos, pareceriam modernas aos largos e poderosos espíritos que semearam no século XVIII todos os germes da psicologia, da filosofia e das ciências de hoje. Cem anos passados sobre a data de seu aparecimento, serão lidas ainda com o interesse que despertam as coisas novas.

Modernas hoje, como ontem, como amanhã.”

Miguel de Novais, cunhado de Machado de Assis, então vivendo em Lisboa, a quem este enviara um exemplar do livro, escreveu em 5 de janeiro de 1885: “Já li duas vezes estas suas histórias sem data. O meu amigo adotou um gênero, de que eu aliás gosto, que pode agradar a muitos como agrada, mas que não fará de Machado d'Assis um escritor popular.”

A imprensa da época publicou várias notas e resenhas sobre o livro, sempre elogiando o “estilo correto e leve”, “estilo cuidadosamente lapidado”, “correção de frase e limpidez de estilo”, etc. de Machado, com a única exceção da resenha no folhetim “Sobre a Perna” de A Folha Nova de 15/9/1884, que se queixa do excesso de galicismos na obra.

Sobre este livro comenta Monteiro Lobato em carta de 3 de junho de 1915 a Godofredo Rangel: "Ontem li Histórias sem data, de Machado, e ainda estou sob a impressão. Não pode haver língua mais pura, água mais bem filtrada, nem melhor cristalino a defluir em fio da fonte. E ninguém maneja melhor tudo quanto é cambiante. A gama inteira dos semitons da alma humana. É grande, é imenso, o Machado. É o pico solitário das nossas letras. Os demais nem lhe dão pela cintura."

CONTOS DO LIVRO

1) A Igreja do Diabo

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 17 de fevereiro de 1883 e republicado na edição semanal de 20 de fevereiro. Conto fantástico. O diabo, desafiando a Deus, resolve fundar sua própria igreja onde o que era pecado vira virtude, e o que era virtude vira pecado. A humanidade adere com entusiasmo. Mas se nas religiões tradicionais as pessoas pecavam às escondidas, agora elas praticam o bem furtivamente, sintoma da eterna contradição humana.

TRECHO: O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

2) O lapso

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 17 de abril de 1883 e republicado na edição semanal de 24 de abril. Conto satírico sobre pessoas que prosperam à custa do endividamento. A história transcorre no final do século XVIII, quando o Brasil ainda era colônia. Tomé Gonçalves, homem abastado, deve a meio mundo: ao cabeleireiro, ao sapateiro, ao alfaiate, etc. O médico holandês Jeremias Halma, que se radicou no Rio de Janeiro, explica que o devedor é vítima de uma doença, o “lapso de memória”. Ele esqueceu o que significa “pagar”. Mas o médico promete curar o “doente”.

TRECHO: […] um lapso da memória; o Tomé Gonçalves perdeu inteiramente a noção de pagar. Não é por descuido, nem de propósito que ele deixa de saldar as contas; é porque esta ideia de pagar, de entregar o preço de uma cousa, varreu-se lhe da cabeça.

3) Último capítulo

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 20 de junho de 1883. Perfil masculino. Conta a história, narrada em primeira pessoa, de um personagem trágico e caricatural ao mesmo tempo, o qual, perseguido a vida toda pelo azar (caiporismo no linguajar da época), decide se matar com um tiro de pistola. Sobre este mesmo tema Machado já escrevera em 1870 no Jornal das Famílias um conto não publicado em livro intitulado “O Rei dos Caiporas”, reunido postumamente nos Contos Avulsos coletados por Raimundo Magalhães Júnior.

TRECHO: Repito, sou um grande caipora, o mais caipora de todos os homens.

4) Cantiga de esponsais

Publicado originalmente na revista A Estação de 15 de maio de 1883 e na revista O Álbum de outubro de 1883. Conto melancólico, protagonizado em 1813 (quando Machado nem tinha nascido), sobre o tema do artista frustrado, incapaz de pôr no papel as ideias criativas que pululam em sua mente. É a história de Romão Pires que, três dias depois de casado, iniciou um “canto esponsalício” (ou “cantiga de esponsais” como está no título), mas nunca conseguiu concluí-lo. No final ouve a canção que gostaria de ter composto cantarolada à janela por uma moça recém-casada. Este tema da incapacidade de exprimir um pensamento que está no cérebro é expresso à perfeição no soneto “O Martírio do Artista” do poeta Augusto dos Anjos.

TRECHO: a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia.

5) Singular Ocorrência

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 30 de maio de 1883. História forte, dramática, de dupla traição: O marido trai sua esposa e é traído pela amante. Mas se reconciliam. A história é narrada em forma de um diálogo. O marido da história é o Andrade, alagoano, 26 anos, misto de advogado e político, casado, mas mulherengo. A amante é a Marocas, profissão não explicitamente nomeada (“Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará.”), com muitos namorados, alguns deles “capitalistas bem bons”. Segundo o prefácio de Antônio Houaiss e Francisco de Assis Barbosa das Histórias sem Data das Edições Críticas de Obras de Machado de Assis, “Machado retoma um tema romântico por excelência, o da prostituta regenerada [...]”, que já fora tema de José de Alencar em Lucíola.

TRECHO: Mas o acaso, que é um deus e um diabo ao mesmo tempo...

6) Galeria póstuma

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 2 de agosto de 1883. Joaquim Fidélis, apesar da “saúde de ferro”, morre inesperadamente, deixando um diário com descrições nem sempre lisonjeiras de seus amigos e do sobrinho Benjamim, que ele criou. Outro morto-que-volta-da-tumba para perturbar os vivos. Todos lamentaram o falecimento de Joaquim Félix, mas a surpresa estava nos comentários que ele deixou sobre os seus melhores amigos.

TRECHO: "Este meu sobrinho, dizia o manuscrito, tem vinte e quatro anos de idade, um projeto de reforma judiciária, muito cabelo, e ama-me. Eu não o amo menos. Discreto, leal e bom, — bom até à credulidade. Tão firme nas afeições como versátil nos pareceres. Superficial, amigo de novidades, amando no direito o vocabulário e as fórmulas."

7) Capítulo dos Chapéus

Publicado originalmente na revista A Estação de 15 e 31 de agosto e 15 de setembro de 1883. Perfil feminino. Conto espirituoso sobre uma desavença conjugal por causa de um chapéu.

TRECHO: Musa, canta o despeito de Mariana, esposa do bacharel Conrado Seabra, naquela manhã de abril de 1879. Qual a causa de tamanho alvoroço? Um simples chapéu, leve, não deselegante, um chapéu baixo.

8) Conto Alexandrino

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 13 de maio de 1883. Este conto satírico transcorre na Antiguidade. Dois filósofos cipriotas (que mais parecem uns “cientistas malucos”) viajam de navio para Alexandria a fim de testarem a hipótese de que “o princípio das paixões e das virtudes humanas estava distribuído pelas várias espécies de animais”, sendo assim possível transmiti-las para os homens, por exemplo, “o sangue de rato, dado a beber a um homem, possa fazer do homem um ratoneiro”. A experiência com o sangue dos ratos, de uma crueldade extrema, de fato transforma os dois honestos em ladrões, levando-os à prisão. No final, eles próprios são vítimas de uma cruel experiência por parte de Herófilo, inventor da anatomia.

O conto pode ser visto como uma crítica aos excessos da ciência. “Machado de Assis aborda como tema central do conto a criação exagerada de teorias no século XIX, pois é possível perceber no conto um questionamento bem pontual sobre a cientificidade desse mesmo século: se realmente tudo valia a pena em nome da ciência.”

TRECHO: Os infelizes berravam, choravam, suplicavam; mas Herófilo dizia-lhes pacificamente que a obrigação do filósofo era servir à filosofia, e que para os fins da ciência, eles valiam ainda mais que os ratos, pois era melhor concluir do homem para o homem, e não do rato para o homem. E continuou a rasgá-los fibra por fibra, durante oito dias. No terceiro dia arrancaram-lhes os olhos, para desmentir praticamente uma teoria sobre a conformação interior do órgão. Não falo da extração do estômago de ambos, por se tratar de problemas relativamente secundários, e em todo caso estudados e resolvidos em cinco ou seis indivíduos escalpelados antes deles.

9) Primas de Sapucaia!

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias de 24 de outubro de 1883 e republicado na edição semanal de 30 de outubro. Conto com pinceladas românticas. As primas que dão título ao conto (chamadas Claudina e Rosa) não têm vida própria, figurando apenas como símbolo de um estorvo, de alguém que atrapalha uma conquista amorosa. Na verdade, o conto gira em torno do que chamamos hoje de “mulher fatal”, que atrai os homens para destruí-los.

Resumo do conto: O narrador (o conto é em primeira pessoa) depara, em frente à Igreja de São José, no Rio de Janeiro, com uma mulher por quem sentira forte atração dois meses atrás no Prado Fluminense, mas não pode ir atrás dela porque está acompanhando duas primas da cidade interiorana de Sapucaia que não sabem se locomover sozinhas no Rio de Janeiro. Depois de deixá-las em casa, ele volta a procurar aquela mulher, mas sem êxito. Cansado, entra num hotel para almoçar e lá se imagina fazendo dela sua amante. Imagina até seu nome: Adriana. Por algum tempo, procura sua musa pelos logradouros, mas sem êxito. No ano seguinte, surpreende-se quando, em viagem a Petrópolis com o amigo Oliveira, descobre que ele está tendo um caso com uma mulher também de nome Adriana e, por uma incomum coincidência, trata-se da mesma mulher por quem estava interessado. Mas o relacionamento do amigo com aquela “mulher fatal” acaba se revelando abusivo e destrutivo.

TRECHO: Adriana é casada; o marido conta cinquenta e dois anos, ela trinta imperfeitos. Não amou nunca, não amou mesmo o marido, com quem casou por obedecer à família. Eu ensinei-lhe ao mesmo tempo o amor e a traição; é o que ela me diz nesta casinha que aluguei fora da cidade, de propósito para nós.
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continua…

Fontes:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Histórias_sem_Data
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quinta-feira, 10 de julho de 2025

Estante de Livros (“Histórias da Meia-Noite”, de Machado de Assis) – 2, final

3) Ernesto de Tal

Publicado originalmente no Jornal das Famílias de março e abril de 1873, com os pseudônimos J.J. e Job, respectivamente. Ernesto é apaixonado por Rosina, que finge mutualidade no sentimento, caso ela não consiga encontrar um marido mais alto na sociedade. Rosina, quando Ernesto fica duvidoso sobre suas intenções e a confronta, inventa desculpas por qualquer que seja a atitude de que ele (corretamente) suspeita, de forma que ele se sinta culpado pelo mal-estar que "ele" causou. Rosina decide casar-se com um "rapaz de nariz comprido" ainda mantendo Ernesto como plano B, mas este descobre sobre o casamento. Ernesto confronta o rapaz de nariz comprido, e após uma briga se unem contra Rosina: Ambos mandam a mesma carta anunciando a descoberta do plano dela e o término de suas relações. Os dois se tornam amigos. Rosina, pensando ter perdido o rapaz de nariz comprido de vez, apela a Ernesto e o convence a se casar com ela, ameaçando até suicídio caso ele não satisfaça essa paixão. Ernesto e o rapaz de nariz comprido continuam bons amigos, mas o segundo nunca se casa.

A história transcorre em 1850, quando o autor era criança. Os dois rivais principais pelo amor de Rosina não têm seus nomes revelados: Ernesto de Tal ("não estou autorizado para dizer o nome todo") e o "rapaz de nariz comprido". A "Rua Nova do Conde esquina do Campo da Aclamação" onde começa o conto corresponde hoje à Rua Frei Caneca, esquina do Campo de Santana, na época área residencial. A Rua do Areal, até onde Ernesto sobe, é hoje a Rua Moncorvo Filho.

TRECHO: Veja o leitor aquela moça que ali está, sentada num sofá, entre duas damas da mesma idade, conversando baixinho com elas, e requebrando de quando em quando os olhos. É Rosina. Os olhos de Rosina não enganam ninguém exceto os namorados. Os olhos dela são espertinhos e caçadores, e com um certo movimento que ela lhes dá, ficam ainda mais caçadores e espertinhos.

4) Aurora sem dia

Publicado originalmente no Jornal das Famílias de novembro e dezembro de 1870 assinado como Machado de Assis. É um conto que possui um tom irônico, e descreve a trajetória de Tinoco, funcionário de um fórum que decide virar poeta. Porém, seus poemas são superficiais, começam a se transformar em discursos, e Tinoco resolve seguir carreira política. Em seguida, desiste da política e dedica-se à agricultura. É uma crítica à vaidade de artistas medíocres e à falta de seriedade na política. O conto publicado em 1870 no Jornal das famílias foi significativamente modificado quando de sua publicação em Histórias da meia-noite.[7] O foco narrativo foi alterado, partes foram suprimidas e outras foram adicionadas. De modo geral, o tom moralista da primeira versão foi substituído por uma perspectiva mais irônica.

Dois termos empregados pelo autor tinham na época acepções diferentes de hoje: em "tragara até às fezes a taça do infortúnio", "fezes" tem o sentido de "borra" (substância que se deposita no fundo do recipiente), e em "imagens safadas", este adjetivo tem o sentido de "gasto ou inutilizado pelo uso".[8]

TRECHO: Os jornais andavam cheios de produções suas, umas tristes, outras alegres, não daquela tristeza nem daquela alegria que vem diretamente do coração, mas de uma tristeza que fazia sorrir, e de uma alegria que fazia bocejar.

5) O relógio de ouro

Publicado originalmente no Jornal das Famílias de abril e maio de 1873 com o pseudônimo Job. Luís Negreiros encontra em casa um relógio que nunca vira antes. Questiona sua esposa, Clarinha, sobre o relógio, mas não recebe resposta. Ele se irrita e a agride, mas ainda assim nada ela responde. É implícito que Luís em pensamento a acusa de adultério. Seu sogro, Sr. Meireles, está em casa para jantar. Ele lembra Luís de seu aniversário no dia seguinte, e percebe a indiferença da filha. Meireles vai para casa avisando que não voltará mais se seja o que for que estiver acontecendo entre o casal não for resolvido. Luís pede desculpas a Clarinha, entendendo agora que o relógio era um presente. Mas ela intervém e mostra uma carta endereçada ao escritório de Luís, mas redirecionada para casa pois ele saiu antes que pudesse ser entregue. A carta, para "meu nhonhô" e assinada por "tua Iaiá", informa o envio do presente.

TRECHO: Luís Negreiros tinha muita razão em ficar boquiaberto quando viu o relógio em casa, um relógio que não era dele, nem podia ser de sua mulher. Seria ilusão dos seus olhos? Não era; o relógio ali estava sobre uma mesa da alcova, a olhar para ele, talvez tão espantado como ele, do lugar e da situação.

6) Ponto de vista

Publicado originalmente no Jornal das Famílias de outubro e novembro de 1873 com o título "Quem Desdenha" e assinado Machado de Assis. Uma série de cartas entre D. Luísa, D. Raquel, e Dr. Alberto. Entre assuntos cotidianos, Raquel conta para Luísa sobre o casamento de Mariquinhas com o pai de Alberto. Raquel se mostra incomodada com a situação, devido à velhice do pai de Alberto. Já o próprio Alberto, embora de boa aparência, é um pobre de espírito. Luísa insinua que a insistência no assunto reflete o interesse amoroso por parte de Raquel, que nega. Com o decorrer das cartas, Raquel revela estar apaixonada e que vai casar-se, mas sem revelar a identidade do noivo para Luísa. Quando Raquel finalmente revela o nome, o conto termina com uma carta em branco de Luísa.

TRECHO: O coração é um mar, sujeito à influência da lua e dos ventos.

Fontes:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3rias_da_Meia-Noite
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segunda-feira, 7 de julho de 2025

Estante de Livros (“Histórias da Meia-Noite”, de Machado de Assis) – 1


Histórias da meia-noite é uma coletânea de contos de Machado de Assis. A compilação foi publicada em novembro de 1873, reunindo seis trabalhos publicados entre 1870 e 1873 no Jornal das Famílias.

Enquanto nos romances da década de 1870 e nas coletâneas de poesias Machado de Assis se pauta pelo espírito romântico predominante na época, nos contos reunidos neste livro o autor se aproxima do espírito mais irônico de suas crônicas, num “estilo temperado de humorismo”. “Há um tom de conversa e estudo, não a narração que busca sentimentalizar o leitor.”

Sobre o livro, escreveu o jornal A Reforma na seção Bibliografia, na segunda página da edição de 18 de novembro de 1873, em matéria não assinada (mas de autoria de Joaquim Serra): “Não perde o Sr. Machado de Assis a ocasião que se lhe apresenta de censurar o lado ridículo da sociedade que ele tão bem conhece, assim nada lhe escapa; nem o político do campanário e as suas pretensões estultas, nem o sestro literário de um certo círculo, nem a educação em geral dada entre nós às crianças, nem aqueles defeitos das moças a quem se não dá bons conselhos, deixaram de formar ao espirituoso escritor assunto para sensatas reflexões.”

Já o colunista literário do jornal O Novo Mundo de 23 de janeiro de 1874 (pág. 63) reclama que, enquanto o autor “nos dá lindos esboços de mulher”, seus personagens masculinos são pintados “com cores na verdade bem carregadas e rudes”. Por exemplo, em "A Parasita Azul", o Leandro Soares “vende um amor de muitos anos por uma eleição da vila” e o Camilo Seabra “é um mentiroso que para obter a mão da mulher que desejava ‘planeou um grande golpe’, a saber uma premeditada ‘tentativa de suicídio’. Não terá o nosso sexo algumas amostras mais atrativas?”

“Histórias da meia noite” era uma expressão corrente na época que designava histórias fictícias, sem respaldo na realidade (lorotas, por assim dizer).

CONTOS

1) A parasita azul

Publicado originalmente no Jornal das Famílias de junho a setembro de 1872 com o pseudônimo Job. É um conto de amor que inicia a coletânea. Relata a volta do jovem Camilo a Goiás, depois de estudar medicina em Paris. De volta a Santa Luzia (atual Luziânia), sua cidade natal, disputa o amor da arredia Isabel com Leandro Soares. Este, rejeitado pela formosa donzela, jurou que ninguém mais se casaria com ela, e está disposto a matar um eventual pretendente. Mas Camilo, embora seja um "melhor partido", sofre a mesma rejeição por parte da moça, mesmo depois que descobre que foi ele o menino que, anos atrás, colheu para Isabel uma "linda parasita azul, entre os galhos de uma árvore", que ela guarda, já seca, com carinho. A temperamental moça só concorda em desposá-lo depois que ele lhe dá um susto, simulando uma tentativa de suicídio. Leandro, como "prêmio de consolação", ganha uma indicação para um cargo político. Segundo Milton Hatoum, o conto contrasta Paris, a capital do mundo, com um grotão no interior de Goiás, sendo "um dos primeiros contos que tratam dos disparates da sociedade brasileira, embora seja eivado de imaginação romântica e traços romanescos, como a paixão do protagonista Camilo por uma princesa moscovita e outras peripécias parisienses."

TRECHO: Paris e a princesa, tudo havia desaparecido do coração e da memória do rapaz. Um só ente, um lugar único mereciam agora as suas atenções: Isabel e Goiás.

2) As bodas de Luís Duarte

Publicado originalmente no Jornal das Famílias de junho e julho de 1873 com o título "As Bodas do Dr. Duarte" e pseudônimo Lara. É um conto que consiste no casamento de Luís Duarte com Carlota Lemos. Descreve uma história ocorrida em apenas um dia, justamente o dia do casamento, no qual há uma cerimônia a que familiares e amigos das duas famílias comparecem. O personagem mais relevante é o Tenente Porfírio, que com sua retórica um tanto quanto exagerada, mas apreciada, é considerado um homem imprescindível para qualquer cerimônia da região. Num período em que Machado produzia romances inseridos no espírito romântico, nesta "sátira aos ritos pequeno-burgueses" dá um primeiro passo na direção ao realismo literário, ao descrever nos mínimos detalhes, quase em tempo real (sem saltos temporais), com forte carga de ironia, a cerimônia de casamento de Carlota com o mancebo Luís Duarte. "Ao longo da narrativa aparecem cenas e personagens que dão sucessão à sociedade de aparências, preocupada, sobretudo, com o efeito de seus atos, deixando de lado a essência dos acontecimentos. Com uma espécie de câmera cinematográfica, sendo assim, o narrador machadiano percorre todas as personagens presentes na cerimônia, tecendo comentários sobre elas ou flagrando algumas de suas ações. A intenção é de apresentá-las de modo irônico e ambíguo, causando humor na leitura."

TRECHO COM FORTE CARGA IRÔNICA DESCREVENDO O DR. VALENÇA: O abdômen é a expressão mais positiva da gravidade humana; um homem magro tem necessariamente os movimentos rápidos; ao passo que para ser completamente grave precisa ter os movimentos tardos e medidos. Um homem verdadeiramente grave não pode gastar menos de dois minutos em tirar o lenço e assoar-se. O Dr. Valença gastava três quando estava com defluxo e quatro no estado normal. Era um homem gravíssimo.

TRECHO DO DISCURSO DO TENENTE PORFÍRIO: Senhores, duas flores nasceram em diverso canteiro, ambas pulcras, ambas rescendentes, ambas cheias de vitalidade divina. Nasceram uma para outra; era o cravo e a rosa; a rosa vivia para o cravo, o cravo vivia para a rosa: veio uma brisa e comunicou os perfumes das duas flores, e as flores, conhecendo que se amavam, correram uma para a outra. A brisa apadrinhou essa união.
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continua…

Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3rias_da_Meia-Noite
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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Estante de Livros ("O Gato que Veio para o Natal", de Cleveland Amory)

"O Gato que Veio para o Natal" é um livro escrito por Cleveland Amory, publicado originalmente em 1987. É uma obra encantadora que mistura humor, emoção e amor pelos animais, especialmente pelos gatos. 

RESUMO

O livro começa durante a época de Natal, quando Cleveland Amory, um conhecido autor e defensor dos direitos dos animais, resgata um gato branco das ruas de Nova York. Amory é inicialmente relutante em adotar o gato, mas rapidamente se apega ao felino, que ele chama de "Polar Bear" (Urso Polar) devido à sua aparência.

A narrativa segue a evolução do relacionamento entre Amory e Polar Bear, explorando as aventuras e desventuras da dupla. O gato, que inicialmente parece ser indiferente e independente, lentamente começa a mostrar seu carinho e lealdade a Amory. 

Ao longo do livro, Amory compartilha histórias cômicas e tocantes sobre a vida com Polar Bear, incluindo as peculiaridades do gato e as várias maneiras pelas quais ele enriquece a vida de seu dono.

O livro também aborda temas mais amplos, como a importância da adoção de animais, o amor incondicional que os animais de estimação podem oferecer e a conexão profunda que pode se formar entre humanos e seus companheiros animais. Amory usa sua experiência pessoal para promover a conscientização sobre o tratamento ético dos animais e a necessidade de respeito e cuidado pelos nossos amigos peludos.

1. TEMAS PRINCIPAIS

Amizade e Companheirismo: 
O livro destaca a profunda amizade que pode se desenvolver entre um ser humano e um animal de estimação. Amory e Polar Bear formam um vínculo que transcende as barreiras de espécie, mostrando como os animais podem ser companheiros leais e amorosos.

Adoção e Resgate de Animais: 
Amory aborda a importância de adotar animais abandonados e resgatá-los das ruas. Ele mostra como um ato de bondade pode transformar a vida de um animal e, ao mesmo tempo, trazer alegria e significado para a vida de quem adota.

Humor e Emoção: 
O autor mistura humor e emoção em sua narrativa, criando uma leitura envolvente e cativante. As histórias cômicas sobre as travessuras do gato são equilibradas por momentos tocantes que mostram o impacto positivo do gato na vida de Amory.

Defesa dos Direitos dos Animais: 
Como defensor dos direitos dos animais, Amory usa o livro para promover a conscientização sobre o tratamento ético dos animais. Ele defende a necessidade de respeito, cuidado e compaixão pelos animais, destacando a importância de protegê-los e tratá-los com dignidade.

2. ESTILO DE ESCRITA

Cleveland Amory escreve com um estilo leve e acessível, tornando o livro uma leitura agradável e envolvente. Ele usa uma linguagem simples, mas eficaz, para transmitir suas histórias e experiências. O humor é uma marca registrada de sua escrita, e ele consegue encontrar o equilíbrio perfeito entre momentos engraçados e emocionantes.

3. PERSONAGENS

Cleveland Amory: Como personagem principal e narrador, Amory é um autor e defensor dos direitos dos animais que compartilha suas experiências de vida com o gato Polar Bear. Sua personalidade é carismática e apaixonada, e ele se mostra um verdadeiro amante dos animais.

Polar Bear: O gato branco resgatado por Amory é o co-protagonista do livro. Sua personalidade é cativante e cheia de peculiaridades, e ele se torna uma figura central na vida de Amory. A relação entre os dois é o coração da narrativa.

4. IMPACTO E RELEVÂNCIA

"O Gato que Veio para o Natal" teve um impacto significativo tanto em amantes de gatos quanto em defensores dos direitos dos animais. O livro sensibilizou muitos leitores sobre a importância da adoção de animais e o tratamento ético dos mesmos. Além disso, a obra de Amory inspirou muitos a considerar a adoção de animais abandonados e a se engajar na defesa dos direitos dos animais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

"O Gato que Veio para o Natal" é uma obra tocante e inspiradora que combina humor, emoção e uma mensagem importante sobre o cuidado com os animais. Cleveland Amory oferece uma visão sincera e apaixonada sobre a vida com um gato resgatado, destacando a importância do amor e da compaixão pelos nossos amigos animais. O livro continua a ressoar com leitores de todas as idades, tornando-se um clássico entre os amantes de gatos e defensores dos direitos dos animais.

Fontes:
José Feldman. Estante de livros. Maringá/PR: I. A. Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Montagem da Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing com capa do livro

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Estante de Livros ("Nove Vidas: Em Busca do Sagrado na Índia", de William Dalrymple)

William Dalrymple, renomado historiador e escritor britânico, apresenta em "Nove Vidas: Em Busca do Sagrado na Índia" (2009) uma obra fascinante que combina jornalismo, história e antropologia. O livro é um mergulho profundo nas complexas e ricas tradições espirituais da Índia contemporânea, narrado por meio de histórias de nove pessoas, cada uma representando um caminho espiritual único. Dalrymple explora a convivência entre modernidade e espiritualidade, mostrando como as práticas religiosas e culturais tradicionais se adaptam ou resistem às mudanças rápidas da sociedade indiana.

RESUMO DO LIVRO

“Nove Vidas” é estruturado como uma coleção de relatos biográficos, cada um dedicado a uma pessoa cuja vida é moldada por uma tradição espiritual específica. As histórias são baseadas em entrevistas realizadas por Dalrymple ao longo de anos, e cada uma é narrada com uma sensibilidade que combina respeito pela cultura retratada com uma abordagem jornalística objetiva. Abaixo está um breve resumo das nove histórias:

1. O Monge Jainista que Espera a Morte
 A história acompanha um monge jainista que pratica “sallekhana”, um ritual rigoroso de jejum até a morte. Ele reflete sobre renúncia, desapego e a disciplina espiritual extrema necessária para seguir esse caminho.

2. A Bailarina de Templo que Sobreviveu à Extinção do Devadasi
Uma mulher que foi uma "devadasi" (bailarina e serva de templo dedicada a uma divindade) fala sobre o declínio de sua tradição, agora associada a exploração sexual, e como ela tenta preservar o valor cultural e espiritual da dança.

3. O Cantor de Epopeias  
Um cantor de epopeias “rajasthani”* narra a tradição oral de sua comunidade, que envolve performances épicas transmitidas por gerações, mas agora ameaçadas pela modernidade e pela globalização.

4. A Mulher Possuída por uma Deusa  
Uma mulher de uma aldeia é possuída por uma deusa durante rituais religiosos. Sua história explora o papel das mulheres na religião popular indiana e a convivência entre possessões espirituais e a vida cotidiana.

5. O Peregrino Muçulmano que Caminha para a Redenção
A jornada de um homem que realiza peregrinações anuais a um santuário sufi, revelando o lado místico e inclusivo do Islã na Índia e as tensões entre o sufismo e o islamismo ortodoxo.

6. O Estalajadeiro que Era um Tântrico
Um estalajadeiro na Bengala Ocidental é também um seguidor do tantra, uma tradição espiritual envolta em mistério e frequentemente incompreendida. Sua história revela as práticas e crenças do tantrismo.

7. O Escultor de Imagens Sagradas
Um artesão que esculpe ídolos de divindades hindus reflete sobre seu trabalho como um ato de devoção, mas também como um meio de sustento em uma sociedade em mudança.

8. O Monge Tibetano que Escolheu a Guerra  
Um monge budista tibetano relembra como ele deixou a vida monástica para lutar contra a ocupação chinesa no Tibete, apenas para retornar à espiritualidade em busca de redenção.

9. O Baul*: Místico e Vagabundo  
Um cantor itinerante da tradição Baul, do estado de Bengala Ocidental, compartilha sua filosofia de vida, que rejeita convenções sociais e dogmas religiosos em favor de uma espiritualidade livre.

TEMAS CENTRAIS

A obra de Dalrymple é construída em torno de vários temas centrais, que se entrelaçam nas histórias individuais:

Espiritualidade em Transformação: 
O livro mostra como as tradições religiosas da Índia estão sendo moldadas pelas forças da modernidade, globalização e mudanças sociais. Algumas tradições estão desaparecendo, enquanto outras se adaptam às novas realidades.

Conflito entre Tradição e Modernidade: 
Muitas das histórias apresentam protagonistas que enfrentam dilemas ao tentar equilibrar práticas espirituais tradicionais com as pressões da vida contemporânea. Por exemplo, o cantor de epopeias luta para manter viva uma tradição oral em um mundo dominado pela tecnologia.

Diversidade Religiosa e Cultural: 
Dalrymple celebra a diversidade espiritual da Índia, com histórias que abrangem o hinduísmo, o jainismo, o budismo, o sufismo islâmico e tradições populares como o tantrismo e os Bauls. Essa diversidade reflete a riqueza cultural da Índia, mas também suas tensões internas.

Renúncia e Sacrifício: 
Muitos personagens do livro dedicam suas vidas a práticas que exigem sacrifício extremo, como o monge jainista que pratica “sallekhana” ou o escultor de ídolos que vê seu trabalho como um ato de devoção, mesmo enfrentando dificuldades econômicas.

Relação entre Religião e Identidade: 
As histórias mostram como as práticas espirituais moldam a identidade das pessoas, definindo quem elas são em suas comunidades e no mundo.

ESTRUTURA NARRATIVA E ESTILO

O escritor adota um estilo de escrita que é ao mesmo tempo lírico e jornalístico. Ele descreve as paisagens, rituais e emoções com uma riqueza de detalhes que transporta o leitor para o contexto de cada história. Ao mesmo tempo, ele mantém uma abordagem objetiva e respeitosa, permitindo que os protagonistas falem por si mesmos.

A estrutura do livro, com cada capítulo dedicado a uma pessoa, permite que o leitor mergulhe em cada tradição individualmente, ao mesmo tempo em que percebe os paralelos entre as diferentes histórias. Apesar da diversidade dos relatos, há uma coesão temática que une o livro como um todo.

REFLEXÕES FILOSÓFICAS E SOCIAIS

“Nove Vidas” é mais do que uma coleção de histórias espirituais; é também uma meditação sobre as mudanças sociais, políticas e econômicas que afetam a Índia contemporânea:

Impacto da Globalização: 
O livro aborda como a modernidade está afetando tradições antigas. Por exemplo, o cantor de epopeias enfrenta a perda de público e relevância em um mundo onde a cultura oral está sendo substituída por mídias digitais.

Resistência e Adaptação: 
Algumas tradições lutam para sobreviver, enquanto outras encontram maneiras de se adaptar. O tantrismo, por exemplo, continua a existir nas margens da sociedade, enquanto a dança devadasi tenta se reinventar como uma forma de arte culturalmente valorizada.

Questões de Gênero e Poder: 
As histórias de mulheres no livro, como a devadasi e a mulher possuída por uma deusa, destacam as complexidades do papel das mulheres nas tradições religiosas da Índia. Elas enfrentam tanto empoderamento espiritual quanto exploração social.

IMPORTÂNCIA CULTURAL E ANTROPOLÓGICA

Dalrymple oferece uma visão rara e íntima das tradições espirituais da Índia, muitas das quais estão desaparecendo ou sendo transformadas. O livro funciona como um registro cultural e histórico, preservando histórias que poderiam ser esquecidas em um mundo em rápida mudança.

Além disso, “Nove Vidas” desafia os estereótipos simplistas sobre a Índia, apresentando uma visão multifacetada de sua espiritualidade. Dalrymple mostra que a Índia não é apenas o lar de grandes religiões organizadas, mas também de uma miríade de práticas populares, místicas e sincréticas.

CRÍTICA E RELEVÂNCIA

Uma das maiores forças da obra é sua capacidade de humanizar pessoas cujas vidas são frequentemente reduzidas a curiosidades ou exotismos. Dalrymple dá voz a indivíduos que representam tradições espirituais, mas também têm dilemas humanos universais, como medo, amor, perda e esperança.

Por outro lado, algumas críticas apontam que o livro, apesar de sua sensibilidade, ainda reflete a perspectiva de um observador ocidental. Isso pode levar à romantização de certas práticas ou à ênfase em aspectos mais incomuns da espiritualidade indiana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Nove Vidas: Em Busca do Sagrado na Índia” é uma obra rica e envolvente que combina narrativa literária com investigação antropológica. William Dalrymple oferece um retrato profundamente humano e multifacetado das tradições espirituais da Índia, explorando como elas resistem, se adaptam e às vezes desaparecem diante das mudanças do mundo contemporâneo. O livro não é apenas uma exploração das tradições religiosas da Índia, mas também uma reflexão sobre o que significa ser humano em um mundo em constante transformação.
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* Notas
Rajasthani = é uma língua indo-ariana do Oeste. É falada por cerca de 50 milhões de pessoas no Rajastão e em alguns outros estados da Índia (Gujarat, Haryana, Panjabe) e em algumas áreas do Paquistão, como no Sind e no Panjabe. No total são cerca de 80 milhões de falantes no mundo.

Baul = são um grupo de trovadores da região da Bengala, agora dividida em Bangladesh e Bengala Ocidental. São parte da cultura da Bengala rural. Dizem que eles foram influenciados grandemente pela seita tântrica hindu dos Kartabhajas. Os Bauls viajam em busca do ideal interno, Maner Manush (Homem do coração). A origem da palavra é discutível. Entretanto, é de comum acordo que ela vêem tanto do sânscrito batul, que significa insanidade divinamente inspirada ou byakul, que significa ansiar fervorosamente. A música dos Bauls, refere-se a um tipo particular de música folclórica cantada pelos Bauls. Carrega a influência dos movimentos de Bhakti Hindu tanto quanto shuphi, uma forma de música Sufi mediada por muitas milhas de intercâmbio cultural, exemplificada pelas canções de Kabir.A música Baul celebra o amor celestial, mas faz isso em termos bem terrenos. Com tal interpretação liberal de amor, é portanto natural que a música votiva Baul transcenda a religião, e algum dos compositores baul, tais como Lalon Fakir nasceram muçulmanos.
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WILLIAM BENEDICT HAMILTON-DALRYMPLE nasceu em Edimburgo/Escócia, em 1965, é um historiador, curador, locutor e crítico. Ele também é um dos co-fundadores e codiretores do maior festival de escritores do mundo, o anual Festival de Literatura de Jaipur. Os livros de Dalrymple ganharam inúmeros prêmios. O BBC documentário televisivo sobre a sua peregrinação à nascente do rio Ganges, "Shiva's Matted Locks", um dos três episódios dele na série Jornadas Indianas, que Dalrymple escreveu e apresentou, rendeu-lhe o Prêmio Grierson para Melhor Série Documental em BAFTA em 2002. Em 2018, foi premiado com o Medalha Presidente do Academia Britânica, a maior honra da academia em seu conjunto de prêmios e medalhas concedidos por "serviços notáveis à causa das ciências humanas e sociais. Foi nomeado Comandante do Ordem do Império Britânico (CBE) no homenagens ao aniversário de 2023 por serviços prestados à literatura e às artes. Ele é primo em terceiro grau de Rainha Camila, sobrinho-neto de Virgínia Woolf. Foi primeiro para Deli em 1984, e mora na Índia intermitentemente desde 1989. Os interesses de Dalrymple incluem a história e a arte de Índia, Paquistão, Afeganistão, o Oriente Médio, Hinduísmo, Budismo, o Jainistas e Cristianismo Oriental. Cada um de seus dez livros ganhou prêmios literários. Seus três primeiros foram livros de viagens baseados em suas viagens ao Oriente Médio, Índia e Ásia Central. Suas primeiras influências incluíram escritores de viagens como Roberto Byron, Eric Newby, e Bruce Chatwin. Ele compareceu à inauguração Festival de Literatura da Palestina em 2008, realizando leituras e oficinas em Jerusalém, Ramallah e Belém. Seu livro de 2009, Nove Vidas: Em Busca do Sagrado na Índia Moderna, e como todos os seus outros, foi para o primeiro lugar na lista de best-sellers de não ficção indiana. Após sua publicação, ele excursionou pelo Reino Unido, Índia, Paquistão, Bangladesh, Austrália, Holanda e EUA com uma banda composta por algumas das pessoas apresentadas em seu livro, incluindo Sufis, Faquires, Bauls. Dalrymple escreveu e apresentou a série de televisão em seis partes Pedras do Raj , as três partes Jornadas Indianas (BBC, agosto de 2002) e Alma Sufi (Canal 4, novembro de 2005). A trilogia de Jornadas Indianas consiste em três episódios de uma hora começando com Fechaduras foscas de Shiva que, ao traçar a origem do Ganga, leva Dalrymple em uma viagem para o Himalaia; a segunda parte, Cidade de Djinns, é baseado em seu livro de viagens de mesmo nome e dá uma olhada História de Delhi; por último, Duvidando de Thomas leva Dalrymple para os estados indianos de Kerala e Tamil Nadu, com o qual São Tomé, o Apóstolo de Jesus está intimamente associado.

Fontes:
Biografia: https://en.wikipedia.org/wiki/William_Dalrymple
José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: I.A. Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing