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segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

José Feldman (O Crepúsculo dos Justos)

 
A cidade roncava lá fora, um organismo indiferente feito de buzinas e pressa. Dentro das paredes que um dia abrigaram risadas fartas e jantares de fim de semana, agora reinava um silêncio pesado, quebrado apenas pelo tique-taque melancólico de um relógio de pêndulo. Ali vivia Horácio, um homem que a vida havia dobrado, mas não quebrado — pelo menos não até agora.

Horácio era a personificação da generosidade. Um homem cuja biografia poderia ser escrita com os gestos de bondade que dedicou a todos ao seu redor. Divorciado há uma década, ele investiu o restante de suas energias em amigos que ele considerava sua família estendida. Ele era o ombro para chorar, o caixa para emprestar dinheiro sem juros e o motorista do dia e da noite. Dedicação incondicional. Amor em sua forma mais pura e desinteressada.

Mas o tempo é um cobrador impiedoso. A idade é implacável, o corpo de Horácio começou a falhar antes do espírito. O caminhar virou arrastar, a memória, uma peneira fina onde os nomes recentes se perdiam, e a independência, uma miragem distante. Ele precisava de cuidados, de presença, de uma mão que o guiasse no labirinto da velhice frágil.

Foi então que a verdadeira face da "amizade" começou a se revelar, não em um ato de traição, mas no silêncio ensurdecedor da omissão.

A reunião aconteceu na sala de estar, a mesma sala onde, anos atrás, eles brindavam a aniversários e conquistas. Estavam lá Mário, o empresário a quem Horácio tirou do buraco da falência; Lúcia, cuja faculdade foi paga com um empréstimo que jamais foi cobrado; e Beto, o afilhado que Horácio ensinou a andar de bicicleta e a viver com dignidade.

A conversa começou com eufemismos, palavras polidas que tentavam mascarar a crueza do abandono.

"Horácio, pensamos muito em você", começou Mário, ajustando os óculos caros. "Você precisa de um lugar com mais estrutura, com médicos 24 horas por dia."

"Sim, um lar de idosos", completou Lúcia, olhando para as próprias unhas. "Lá tem atividades, outros velhinhos para conversar... é melhor para o seu astral."

"É o melhor para você, padrinho", Beto tentou, evitando o olhar mareado do velho.

Eles falavam de "lares" e "clínicas de repouso" com a mesma naturalidade que se fala de um resort de férias. O eufemismo era a cortina de fumaça para a verdade brutal: eles não queriam a responsabilidade. A gratidão tinha prazo de validade. As promessas de "para sempre amigos" se dissolviam diante da perspectiva de trocar fraldas, agendar médicos ou, pior, abrir mão de uma hora de sua vida ocupada para simplesmente fazer companhia a Horácio.

Horácio não discutiu. Ele apenas ouviu. E em cada palavra vazia, sentiu o peso da rejeição cair sobre seus ombros já curvados. O asilo não era uma solução de cuidado; era uma solução de descarte.

Naquela noite, sozinho em seu quarto, Horácio encarou o espelho. Não viu o homem generoso que dedicou sua vida aos outros, viu apenas um estorvo, uma bagagem que seus amigos — sua suposta família — estavam ansiosos para despachar.

O descaso é uma forma de violência silenciosa, um veneno de ação lenta. A atitude deles não apenas minou sua saúde física, mas aniquilou seu espírito. A autoestima de Horácio, que sempre se baseou em seu valor como pilar de apoio para os outros, desabou. Ele se sentiu o homem mais solitário e mal-amado do mundo.

A rejeição doeu mais do que a artrite nos joelhos ou a falha da memória. Doeu na alma. A ingratidão daqueles a quem ele amou incondicionalmente transformou seus últimos anos em um inverno perpétuo.

Ele não foi para um asilo. Foi para um depósito. Um depósito de memórias, onde o amor que ele distribuiu jazia esquecido, e onde a única companhia era a sombra da solidão, tecida pela indiferença daqueles que um dia chamou de amigos. 

A crônica da sua vida terminou não com um rugido, mas com o sussurro triste de um adeus silencioso a um mundo que ele amou, mas que se recusou a amá-lo de volta quando ele mais precisava.

sábado, 6 de dezembro de 2025

José Feldman (Ecos da Violência em um Mundo em Desacordo)


Vivemos em tempos em que a dor e o terror parecem estar cada vez mais entrelaçados em nosso cotidiano. As guerras se multiplicam como ervas daninhas, brotando em qualquer parte do mundo onde líderes, ávidos por poder e controle, não hesitam em sacrificar a paz em nome de ambições pessoais. É um espetáculo trágico, onde o valor da vida é reduzido a meras estatísticas, enquanto as balas e os bombardeios ressoam como uma sinfonia macabra, privando a vida de milhares de pessoas sem um respingo de amor pela vida humana.

A televisão, um dos principais meios de formação de opinião e comportamento, tornou-se um campo de batalha onde a violência é glorificada. Os programas que atraem a atenção dos jovens estão recheados de cenas grotescas, onde vampiros e zumbis dominam narrativas que banalizam a morte e o sofrimento. Entre uma série e outra, há uma programação que mistura a ficção mais aterrorizante com os realities mais cruéis, trazendo uma nova forma de entretenimento que, na verdade, reflete uma sociedade em profunda crise. Enquanto a realidade clama por vozes de justiça e compaixão, enredamo-nos em histórias que alimentam a violência ao invés de promover a compreensão.

Os ecrãs se tornam janelas para um abismo que ecoa sentimentos destrutivos. As crianças e adolescentes, diante desses conteúdos, modelam suas perspectivas e comportamentos. Ao invés de imaginarem um mundo repleto de possibilidades pacíficas, absorvem uma visão distorcida, onde a força e a agressão se tornaram a norma. As conversas que poderiam girar em torno do amor e da solidariedade são substituídas pela retórica do “nós contra eles”, perpetuando barreiras que deveriam ser destruídas.

Nos séculos passados, a humanidade fez progressos impressionantes em ciência e tecnologia. As inovações nos conectaram de maneira que nunca antes se viu. Contudo, essa mesma evolução parece despontar uma falência moral. A arte e a educação, potências para o desenvolvimento humano, são frequentemente ofuscadas pelo brilho da violência. O retrato atual é o de uma sociedade em que a empatia e o respeito pelo próximo parecem resquícios de um passado que não se revisitou.

E em meio a essa turbulência, as mulheres continuam a ser tratadas como objetos, corpos que, em muitas culturas, são vistos como prêmios em disputas, ou vítimas em circunstâncias que escandalizam os mais sensíveis. Em um mundo que deveria ser de igualdade, a misoginia ainda ressoa com força, como se houvesse um consenso silencioso de que suas vidas têm menor valor. Assistimos a atos brutais, discursos odiosos e uma cultura que perpetua a ideia de que é aceitável desumanizar a mulher. O que é mais chocante: o ato em si ou a indiferença que o rodeia?

As novas gerações erguem-se sob o peso desse legado de desamor e agressão. É desesperador pensar que, ao invés de estarmos moldando um futuro de paz, estamos semeando as sementes da discórdia e da intolerância. O mundo digital, que poderia ser uma plataforma de troca de ideias e construção de pontes, acaba se tornando um terreno fértil para o ódio e a divisão.

Entretanto, há uma esperança latente. Cada crise traz consigo uma oportunidade de reflexão e transformação. É possível que as vozes que clamam por paz e por equidade ganhem força em meio ao ruído ensurdecedor da violência. Educadores e artistas têm um papel fundamental na reconstrução do tecido social. É através da arte que podemos inspirar mudança, e por meio da educação que podemos abrir os olhos das futuras gerações, mostrando que um mundo baseado no respeito e na empatia é não apenas desejável, mas possível.

A verdadeira evolução não está apenas nas máquinas que criamos, mas na capacidade de nos entendermos e apoiarmos uns aos outros. A resistência à violência começa com pequenos atos de bondade, com diálogos abertos sobre as verdades que nos machucam e com um compromisso coletivo de construir um futuro que respeite a dignidade de todos.

Que possamos, então, ser agentes de mudança nesse cenário nebuloso, ampliando a luz em vez de alimentar a escuridão. Porque no fim, a verdadeira luta é aquela que travamos no interior de nós mesmos. A guerra que queremos vencer não é contra um inimigo distante, mas contra os preconceitos e as barreiras que nos afastam um dos outros. Se de fato quisermos um amanhã, cabe a nós plantarmos as sementes dessa revolução silenciosa e poderosa.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais e oficinas de trovas. Morou 40 anos na capital de São Paulo, onde nasceu, ao casar-se mudou para Curitiba/PR, radicando-se em Maringá/PR, cidade onde sua esposa é professora da UEM. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence à Confraria Luso-Brasileira de Trovadores. Possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007 e Voo da Gralha Azul (com trovas de trovadores vivos e falecidos). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações: 
Publicados: “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”.
Em andamento: “Pérgola de textos”, "Chafariz de Trovas", “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas), “Asas da poesia”, "Reescrevendo o mundo: Vozes femininas e a construção de novas narrativas”

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

José Feldman (No coração da arte)

Texto construído tendo por base a trova de Antônio Juraci Siqueira (Belém/PA)
Mata a revolta em teu peito,
não a deixes florescer:
rio com pedras no leito
não pode alegre correr!...
Em uma cidade do interior, onde a vida pulsava em cada esquina e as cores das flores enfeitavam os jardins, havia um ar de expectativa. No entanto, sob a superfície dessa beleza, muitas pessoas carregavam revoltas silenciosas. A cidade, com suas ruas movimentadas e sorrisos superficiais, escondia angústias que frequentemente se manifestavam em olhares tristes e conversas sussurradas.

Entre os habitantes, estava Daniel, um jovem artista cujas obras refletiam a complexidade da vida ao seu redor. Ele era conhecido por sua sensibilidade e por captar a essência das emoções humanas com suas pinceladas. Mas, nos últimos meses, Daniel se sentia cada vez mais frustrado. A pressão da sociedade, as expectativas familiares e a luta por reconhecimento como artista o deixavam inquieto. Sua alma criativa, antes livre, agora estava aprisionada por uma revolta crescente.

Certa manhã, enquanto caminhava pela feira local, Daniel viu algo que o tocou profundamente. Uma mulher idosa, com o rosto marcado pelo tempo, estava vendendo flores. Seus olhos, embora cansados, brilhavam com uma sabedoria única. Ela sorria para cada cliente, oferecendo não apenas flores, mas esperança. Daniel parou para admirar a cena, mas logo a revolta em seu peito começou a se manifestar. “Por que as pessoas não veem a beleza que realmente importa?”, pensou, sentindo-se frustrado com a superficialidade ao seu redor.

A mulher percebeu sua inquietação e, quando ele se aproximou, disse: – Caro jovem, mata a revolta em teu peito, não a deixes florescer. 

As palavras dela ressoaram em sua mente, como um eco de sabedoria. Daniel hesitou, mas decidiu compartilhar suas preocupações. 

– Sinto que a arte e a sinceridade estão se perdendo nesta cidade. Todos parecem tão focados em seguir o que é esperado, esquecendo-se do que realmente importa.

A mulher sorriu com ternura. 

– A vida é como um rio, meu jovem. Se o leito do rio está cheio de pedras, ele não pode correr alegremente. Se você deixar a revolta dominar, não conseguirá fluir. A arte deve ser um reflexo da vida, e a vida é feita de altos e baixos. Encontre beleza nas pedras e transforme-as em parte da sua jornada.

A conversa com a mulher deixou Daniel pensativo. Ele percebeu que estava permitindo que a revolta o impedisse de criar. Aquelas palavras o inspiraram a buscar a beleza nas dificuldades, a transformar sua dor em arte. Decidiu que era hora de mudar sua perspectiva e não deixar que a frustração o definisse.

Nos dias seguintes, Daniel começou a trabalhar em uma nova série de pinturas. Em vez de se concentrar apenas nas alegrias da vida, ele decidiu capturar também as lutas e as emoções complexas que todos enfrentavam. Usou cores escuras para representar a dor e a revolta, mas também introduziu tons vibrantes que simbolizavam a esperança e a resiliência. Cada pincelada era uma tentativa de mostrar que, mesmo em meio ao sofrimento, a beleza poderia surgir.

Quando chegou o dia da exposição, a cidade estava em festa. As pessoas se reuniram para celebrar a arte e a cultura local. 

Daniel estava nervoso, mas também animado. Suas pinturas, que refletiam sua jornada interna e a luta comum de muitos, começaram a atrair a atenção. As pessoas paravam diante de suas obras, algumas com lágrimas nos olhos, outras sorrindo ao reconhecer suas próprias histórias nas telas.

Uma jovem se aproximou dele e disse: – Seus quadros me tocaram profundamente. Nunca pensei que alguém pudesse expressar tão bem o que sinto por dentro. 

Daniel sorriu, sentindo que a conexão que buscava finalmente se concretizava. Ele percebeu que sua arte tinha o poder de tocar os corações das pessoas e que, ao compartilhar suas emoções, poderia também aliviar a revolta que muitos carregavam.

A exposição foi um sucesso, e a cidade começou a se transformar. As pessoas começaram a falar mais sobre suas emoções e a compartilhar suas lutas. Daniel se tornou um símbolo de coragem e autenticidade, mostrando que é possível enfrentar a revolta e ainda encontrar beleza na jornada. As conversas nas praças e cafés agora incluíam discussões sobre arte, vida e a importância de abraçar tanto as alegrias quanto as tristezas.

Certa noite, enquanto caminhava pela cidade iluminada, Daniel encontrou a mulher idosa vendendo flores novamente. Ele se aproximou e a agradeceu. 

– Você me ajudou a ver a beleza que estava escondida. Agora, consigo fluir como um rio. 

A mulher sorriu, seus olhos brilhando com a sabedoria que só o tempo pode trazer. 

– Lembre-se, jovem artista, que a vida é feita de ciclos. Sempre haverá pedras no caminho, mas é sua escolha como lidar com elas.

E assim, Daniel aprendeu que a revolta, quando bem direcionada, pode se transformar em força criativa. Pois, ao matar a revolta em seu peito, ele não apenas encontrou seu próprio caminho, mas também reacendeu a luz em outros, mostrando que, mesmo com pedras no leito, é possível fazer o rio correr alegremente.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais e oficina de trovas. Morou 40 anos na capital de São Paulo, onde nasceu, ao casar-se mudou para Curitiba/PR, radicando-se em Maringá/PR, cidade onde sua esposa é professora da UEM. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a Confraria Brasileira de Letras, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, etc. Possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações: 
Publicados: “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”.
Em andamento: “Pérgola de textos”, "Chafariz de Trovas", “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas), “Asas da poesia”, "Reescrevendo o mundo: Vozes femininas e a construção de novas narrativas".
Fontes:
José Feldman. Caleidoscópio da vida. Floresta/PR: Plat. Poe. Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

terça-feira, 18 de novembro de 2025

O Trovadorismo no Brasil (Introdução)

                                                            (organização e pesquisa por José Feldman)
O trovadorismo é um dos movimentos literários mais antigos e marcantes da história, surgido na Europa medieval, especialmente no sul da França, por volta do século XII. No entanto, no Brasil, o trovadorismo não surgiu como um movimento literário formalizado e alinhado às características do trovadorismo europeu, mas foi reinterpretado e adaptado ao longo do tempo. Aqui, as manifestações poéticas com características trovadorescas emergiram principalmente através da influência portuguesa e se desenvolveram de maneira singular, conectando-se tanto à tradição oral quanto à escrita.

INFLUÊNCIAS PORTUGUESAS NO BRASIL COLONIAL

O trovadorismo como movimento literário original não existiu no Brasil colonial, pois ele já havia declinado na Europa antes mesmo da descoberta do país em 1500. Contudo, sua herança foi transmitida ao Brasil por meio da cultura portuguesa. O trovadorismo europeu, caracterizado pelas cantigas de amor, cantigas de amigo e cantigas de escárnio e maldizer, influenciou a literatura oral e popular trazida pelos colonizadores. No Brasil, essas formas de poesia ganharam novos contornos, misturando-se com a cultura indígena e africana, o que deu origem a manifestações poéticas híbridas.

No período colonial, os jesuítas desempenharam um papel importante na difusão da poesia lírica e religiosa, que incorporava traços do trovadorismo. Um exemplo notável é a obra do padre José de Anchieta, que utilizava versos para catequizar os índios. Embora sua produção literária fosse mais voltada para a poesia religiosa e pedagógica, alguns de seus textos apresentavam traços líricos que lembravam as cantigas trovadorescas, com sua musicalidade e simplicidade.

O SÉCULO XVIII E O NEOTROVADORISMO TROPICAL

No século XVIII, com o advento da escola literária conhecida como Arcadismo, alguns poetas brasileiros retomaram elementos do trovadorismo em suas obras. O Arcadismo, com sua valorização da simplicidade, da natureza e do bucolismo, abriga certa afinidade com a poesia trovadoresca, especialmente nas cantigas de amor e amigo. 

Entre os principais nomes desse período está Tomás Antônio Gonzaga, autor de “Marília de Dirceu”. Embora sua obra esteja mais alinhada ao Arcadismo, ela contém elementos líricos que ecoam o espírito trovadoresco, sobretudo na expressão do amor idealizado e na musicalidade dos versos. Outro destaque é “Cláudio Manuel da Costa”, cujos poemas líricos apresentam uma sensibilidade que dialoga com a tradição trovadoresca medieval.

SÉCULO XIX: O ROMANTISMO E A REINTERPRETAÇÃO DO TROVADORISMO

No século XIX, com o Romantismo, o Brasil viveu um momento de forte resgate e reelaboração das tradições literárias do passado. O trovadorismo inspirou muitos poetas românticos, especialmente no que diz respeito à exaltação do amor, da natureza e da melancolia. A poesia romântica brasileira muitas vezes ecoava o lirismo trovadoresco, com sua musicalidade e idealização amorosa.

Entre os principais expoentes desse período, destaca-se Gonçalves Dias, cuja obra poética apresenta traços líricos que remetem ao trovadorismo, especialmente na idealização da mulher e na musicalidade dos versos. Em poemas como “Seus Olhos” e “Canção do Exílio”, percebe-se o uso de uma linguagem simples e direta, com forte apelo emocional e musical.

Outro poeta que dialoga indiretamente com o trovadorismo é Álvares de Azevedo, com sua poesia marcada pela melancolia, pelo amor idealizado e, frequentemente, por um tom confessional. Embora inserido no contexto do Ultra-Romantismo, seu lirismo intenso e sua sensibilidade podem ser associados à tradição trovadoresca.

SÉCULO XX: O RESSURGIMENTO DO ESPÍRITO TROVADORESCO

O século XX trouxe novas formas de manifestações poéticas no Brasil, mas o espírito trovadoresco continuou a se manifestar em diferentes contextos. Durante esse período, o trovadorismo foi reinterpretado e reinventado, especialmente por movimentos literários que valorizavam a tradição oral e a cultura popular brasileira.

Um exemplo marcante é o movimento modernista, que, embora fosse essencialmente vanguardista, resgatou aspectos da poesia popular e da tradição medieval, adaptando-os para um contexto contemporâneo. Poetas como Mário de Andrade e Manuel Bandeira incorporaram em suas obras elementos da oralidade, da musicalidade e da simplicidade que remetem ao trovadorismo.

Além disso, o século XX assistiu ao fortalecimento da literatura de cordel, que, de certa forma, pode ser vista como uma herdeira do trovadorismo. Os cordelistas, com suas histórias rimadas e sua musicalidade, mantiveram viva a tradição de criação poética ligada à oralidade e à cultura popular. Autores como Leandro Gomes de Barros e Patativa do Assaré revitalizaram o espírito trovadoresco, adaptando-o à realidade nordestina e às questões sociais do Brasil.

MODERNISMO E A GERAÇÃO DE 45 (SÉCULO XX)

O Modernismo brasileiro, em suas diferentes fases, buscou a nacionalização da arte e a valorização da cultura popular. Embora a primeira fase fosse de ruptura, a terceira fase modernista, ou Geração de 45, viu um retorno à métrica e à forma fixa, o que ajudou a resgatar a estrutura da trova.

Expoentes desse período:

J. G. de Araújo Jorge: Poeta popular de grande sucesso na metade do século XX, organizou concursos de trovas ("Jogos Florais") na TV Rio em 1959, popularizando o gênero e incentivando novos trovadores.

Adelmar Tavares: Conhecido como o "Rei da Trova", foi um grande expoente e pioneiro na organização do movimento trovadoresco no Brasil, ajudando a fundar a União Brasileira de Trovadores (UBT).

Luiz Otávio: Outro nome importante na organização e difusão da trova no Brasil, também envolvido na promoção dos Jogos Florais.

O TROVADORISMO NAS DÉCADAS RECENTES

Nas últimas décadas, o trovadorismo tem sido reinterpretado por poetas contemporâneos e artistas que buscam resgatar a musicalidade e a simplicidade lírica características do movimento original. Em tempos de globalização e cultura digital, muitos artistas têm se inspirado na tradição trovadoresca para criar obras que dialogam com o passado e o presente.

O trovadorismo também se manifesta em movimentos artísticos ligados à música popular brasileira, onde a poesia e a musicalidade encontram terreno fértil. Compositores como Chico Buarque, Vinícius de Moraes e Caetano Veloso podem ser vistos como "trovadores modernos", cujas obras combinam lirismo, musicalidade e uma profunda conexão com a tradição poética.

EUROPA E BRASIL , DIFERENÇAS

O trovadorismo europeu e o brasileiro apresentam diferenças marcantes, especialmente porque o trovadorismo, como movimento literário formal, não surgiu de maneira autônoma no Brasil. 

O trovadorismo europeu, datado entre os séculos XII e XIV, foi uma manifestação cultural e literária característica da Idade Média, enquanto no Brasil ele foi reinterpretado e adaptado, influenciando diferentes formas de expressão poética ao longo do tempo. 

ORIGEM HISTÓRICA

Europa:
O trovadorismo surgiu na Europa medieval, mais precisamente no sul da França, com os trovadores provençais. Ele se desenvolveu como uma arte poética e musical ligada às cortes feudais, com forte influência dos valores da Cavalaria e do Amor Cortês. Era um movimento literário bem definido, marcado pelas cantigas de amor, amigo, escárnio e maldizer.

Brasil:
O trovadorismo não existiu como um movimento literário formal. Ele chegou indiretamente, por meio da colonização portuguesa, como uma herança cultural. Elementos da poesia trovadoresca foram transmitidos através da tradição oral, da literatura popular e das influências líricas trazidas pelos jesuítas e colonizadores. Aqui, ele foi reinterpretado em diferentes períodos e estilos literários, como o Arcadismo, o Romantismo e a Literatura de Cordel.

CONTEXTO CULTURAL

Europa:
O trovadorismo europeu estava diretamente ligado à cultura das cortes feudais e aos ideais cavaleirescos, como o amor platônico e a exaltação à dama. Era uma expressão elitista e aristocrática, pois os trovadores compunham para as classes nobres, que eram os principais mecenas das artes.

Brasil: 
No Brasil, a poesia com elementos trovadorescos não estava vinculada a uma aristocracia feudal. Ela foi incorporada à cultura popular e adaptada às realidades locais, como o ambiente rural, a religiosidade e as influências indígenas e africanas. Essa adaptação tornou o "espírito trovadoresco" mais democrático e acessível, manifestando-se especialmente na oralidade e nas tradições populares, como a literatura de cordel.

TEMAS E LINGUAGEM

Europa:
Os temas do trovadorismo europeu eram bastante específicos e formalizados:
  - Cantigas de Amor: Amor cortês, idealizado, geralmente com o eu lírico masculino exaltando uma dama inatingível.  
  - Cantigas de Amigo: Relacionadas à saudade e ao lamento amoroso, com o eu lírico feminino.  
  - Cantigas de Escárnio e Maldizer: Sátiras diretas ou indiretas, com críticas sociais ou pessoais.  

  A linguagem era sofisticada, repleta de metáforas e simbolismos, e seguia normas rígidas de composição (versificação, rimas e métrica).

Brasil:  
Os temas ganharam um caráter mais popular e regional. A poesia influenciada pelo trovadorismo brasileiro incorporou o cotidiano, o amor simples, a religiosidade e as realidades locais. A linguagem, em geral, tornou-se mais direta e menos formal, com forte influência da oralidade. Exemplos disso aparecem na literatura de cordel e na poesia popular, que muitas vezes preservam a musicalidade e a métrica, mas com um tom mais acessível e próximo do povo.

MÚSICA E ORALIDADE

Europa:  
O trovadorismo europeu estava profundamente ligado à música. Os trovadores não apenas escreviam poesia, mas também as cantavam, acompanhados de instrumentos musicais, como o alaúde e a viela. A poesia trovadoresca era essencialmente uma arte performática, destinada a ser ouvida nas cortes.

Brasil:  
Embora a poesia trovadoresca europeia tenha influenciado a tradição musical e oral brasileira, a música se desvinculou do poema escrito. No entanto, a literatura de cordel, que pode ser vista como uma herança indireta do trovadorismo, manteve a oralidade ao ser recitada ou cantada pelos cordelistas, especialmente no Nordeste. A música popular brasileira também incorporou o lirismo trovadoresco em canções de amor e sátira.

ESTRUTURAS POÉTICAS

Europa:  
A poesia trovadoresca seguia formas fixas e rígidas, como a balada, a canção e a tenson (debate poético). As cantigas tinham uma métrica específica (geralmente redondilhas maiores ou menores) e apresentavam esquemas de rima bem definidos, com uso de paralelismos e refrãos.

Brasil:  
Embora houvesse influência das formas fixas, a poesia brasileira adaptou-se às características locais. No Arcadismo, por exemplo, a métrica clássica (decassílabos e redondilhas) foi herdada do trovadorismo. Na literatura de cordel, predominam a redondilha e a rima simples, mas com mais liberdade na composição e maior foco na narrativa.

EXEMPLOS DE PRODUÇÃO

Europa:  
Entre os principais trovadores europeus estão:
  - Bernart de Ventadorn (cantigas de amor);  
  - Martim Codax (cantigas de amigo);  
  - João Garcia de Guilhade (cantigas de escárnio e maldizer).  

  Suas obras eram curtas, líricas e altamente estilizadas, voltadas para o entretenimento e a admiração nas cortes.

Brasil:  
Tomás Antônio Gonzaga (Arcadismo), Gonçalves Dias (Romantismo) e os cordelistas nordestinos (como Leandro Gomes de Barros e Patativa do Assaré) mantiveram vivo o espírito trovadoresco. Eles adaptaram o lirismo, a musicalidade e a crítica social ao contexto brasileiro.

CONTEXTO SOCIAL E LITERÁRIO

Europa:  
O trovadorismo europeu surgiu em um contexto de feudalismo, onde a arte era patrocinada pelos nobres e estava diretamente associada à vida nas cortes. Era uma literatura elitista, voltada para um público específico e restrito.

Brasil:  
A poesia influenciada pelo trovadorismo brasileiro se desenvolveu em um contexto muito mais amplo e heterogêneo. Ela foi incorporada à cultura popular, sendo usada como uma forma de expressão coletiva e muitas vezes ligada à luta social, como acontece na literatura de cordel ou na música popular.

A REALEZA DO MOVIMENTO TROVADORESCO NO MODERNISMO NO BRASIL

Adelmar Tavares e Luiz Otávio desempenharam papéis fundamentais na modernização e revitalização do trovadorismo no Brasil. Eles foram figuras centrais no movimento que trouxe o espírito trovadoresco para o século XX, resgatando e adaptando as características medievais do gênero para o contexto contemporâneo. Seus títulos de "Rei da Trova" e "Príncipe da Trova" refletem o reconhecimento de suas contribuições poéticas e de seus esforços para popularizar a trova no Brasil.

ADELMAR TAVARES: O REI DA TROVA

Adelmar Tavares (1888–1963) é uma das figuras mais importantes da poesia brasileira no período moderno. Ele foi um poeta, jurista e membro da Academia Brasileira de Letras. Recebeu o título de "Rei da Trova" pelo seu excepcional talento em construir trovas e pela sua dedicação à forma poética, que o tornou um mestre incontestável no gênero.

CONTRIBUIÇÕES E DESTAQUE NO TROVADORISMO

Resgate da Forma Tradicional: 
Adelmar Tavares destacou-se por revitalizar a trova, trazendo-a de volta à cena literária brasileira em um momento em que a poesia moderna, com suas formas mais livres, dominava o cenário. Ele manteve a estrutura tradicional da trova (quatro versos, redondilhas maiores, rimas rigorosas e musicalidade), conectando-se às raízes do trovadorismo medieval europeu.
  
Temas Universais e Populares: 
Suas trovas exploravam temas como o amor, a saudade, a fé e a vida cotidiana, mas com uma sensibilidade que transcendia os limites da poesia popular. Ele conseguia equilibrar simplicidade e profundidade, atingindo tanto o público erudito quanto o popular.

Reconhecimento Nacional: 
Sua maestria no gênero o levou a ser chamado de "Rei da Trova", um título que reflete o respeito que ele conquistou entre seus pares e leitores. Ele foi celebrado como o maior representante da trova em sua época, sendo uma referência para as gerações posteriores.

Influência no Movimento Trovadoresco: 
Adelmar Tavares influenciou diretamente o renascimento do trovadorismo no Brasil ao demonstrar que a trova, mesmo com suas raízes medievais, podia continuar relevante na literatura moderna. Seu trabalho serviu como inspiração para outros poetas, que passaram a valorizar e explorar essa forma poética em suas obras.

LUIZ OTÁVIO: O PRÍNCIPE DA TROVA

Luiz Otávio (1916–1977), pseudônimo de Gilson de Castro, foi outro grande nome da trova no Brasil. Ele recebeu o título de "Príncipe da Trova" por sua habilidade poética e pelo esforço em organizar e promover o trovadorismo como um movimento literário e cultural no século XX.

CONTRIBUIÇÕES E DESTAQUE NO TROVADORISMO

Luiz Otávio é conhecido como o fundador de uma organização trovadoresca que reunia poetas de todo o país, em 1966, promovendo concursos, eventos e publicações dedicados exclusivamente à trova.  Essa organização foi fundamental para a consolidação da trova como um gênero poético reconhecido no Brasil. 

Divulgação e Valorização da Trova: 
Luiz Otávio não apenas produziu trovas de alta qualidade, mas também dedicou sua vida a divulgar essa forma poética. Ele acreditava no poder da trova como uma expressão artística acessível, capaz de tocar tanto os letrados quanto o público em geral.

Estilo Poético: 
Suas trovas destacavam-se pela perfeição técnica e pela sensibilidade. Ele abordava temas como o amor, a amizade, a natureza e a espiritualidade, sempre com uma linguagem clara e musical. Sua habilidade em capturar sentimentos profundos em apenas quatro versos o tornou um modelo para outros trovadores.

Influência no Movimento Trovadoresco:
Luiz Otávio consolidou o trovadorismo moderno no Brasil, não apenas como poeta, mas como organizador e incentivador de outros trovadores. Seu título de "Príncipe da Trova" reconhece tanto sua produção literária quanto seu papel como líder do movimento trovadoresco no século XX. Ele foi o responsável por transformar a trova em um gênero vivo e ativo, com uma forte base de seguidores e praticantes.

OS TÍTULOS DE REI E PRÍNCIPE DA TROVA

Os títulos de "Rei da Trova" para Adelmar Tavares e "Príncipe da Trova" para Luiz Otávio não foram meramente simbólicos, mas um reconhecimento de seus papéis fundamentais na preservação, revitalização e popularização da trova no Brasil. Enquanto Adelmar Tavares foi celebrado como o maior trovador de sua época, Luiz Otávio foi reconhecido como o principal articulador e organizador do movimento trovadoresco moderno.

Adelmar Tavares: Rei pela excelência técnica e sensibilidade poética, ele foi o maior expoente do gênero em sua geração.

Luiz Otávio: Príncipe por sua liderança e pelo papel central na criação de uma comunidade organizada de trovadores, garantindo a continuidade e o reconhecimento da trova como forma literária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As diferenças entre o trovadorismo europeu e o brasileiro refletem as realidades históricas e culturais de cada contexto. Enquanto o trovadorismo europeu foi um movimento aristocrático e formalizado, o brasileiro reinterpretou essa tradição de forma mais popular e democrática, adaptando-a às influências locais e à diversidade cultural do país. No Brasil, a musicalidade, o lirismo e a simplicidade típicos desse movimento continuam a ecoar em várias manifestações artísticas e literárias.

Embora o trovadorismo não tenha surgido de forma autônoma no Brasil, ele deixou marcas profundas na literatura e na cultura do país. Desde a influência portuguesa no período colonial até as reinterpretações modernas, o espírito trovadoresco continua a inspirar poetas, músicos e artistas. Seja nas cantigas medievais adaptadas pelos jesuítas, na poesia lírica do Arcadismo e do Romantismo, ou na literatura de cordel e na música popular brasileira, o trovadorismo permanece vivo e relevante, ecoando sua musicalidade e lirismo ao longo dos séculos.

Adelmar Tavares e Luiz Otávio foram os pilares do trovadorismo moderno no Brasil. Enquanto o primeiro resgatou o lirismo e a musicalidade da trova, o segundo institucionalizou o movimento, ampliando sua prática e alcance. Ambos não apenas revitalizaram um gênero poético de raízes medievais, mas também demonstraram que a trova, com sua simplicidade e profundidade, podia ser uma forma de arte viva e relevante, capaz de conectar gerações e públicos diversos. Seus títulos, de "Rei" e "Príncipe", são uma justa homenagem ao impacto duradouro de suas obras e ações.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais e oficina de trovas. Morou 40 anos na capital de São Paulo, onde nasceu, ao casar-se mudou para Curitiba/PR, radicando-se em Maringá/PR, cidade onde sua esposa é professora da UEM. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a Confraria Brasileira de Letras, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, etc. Possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações: 
Publicados: “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”.
Em andamento: “Pérgola de textos”, "Chafariz de Trovas", “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas), “Asas da poesia”, "Reescrevendo o mundo: Vozes femininas e a construção de novas narrativas".

Fontes:  Chafariz de Trovas. Floresta/PR: Plat.Poe. Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por JFeldman com Microsoft Bing

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

José Feldman (Café Literário)

Era uma tarde chuvosa, com muitos relâmpagos, quando três escritoras se encontraram em um pequeno café localizado dentro de uma biblioteca antiga, além da imaginação. O ambiente era acolhedor, com estantes repletas de livros ao fundo e o aroma do café fresco pairando no ar. 

Lygia Fagundes Telles, Raquel de Queiroz e Clarice Lispector já estavam sentadas em uma mesa rústica, cercadas por cadernos, canetas e uma xícara fumegante.

Lygia (sorrindo): Que delícia poder estar aqui com vocês! Às vezes, sinto que as bibliotecas têm um modo especial de nos inspirar, não acham?

Raquel (balançando a cabeça): Com certeza. É como se cada livro aqui tivesse algo a nos contar. E eu adoro a ideia de que todos nós, de alguma forma, estamos conectadas por essas histórias.

Clarice (olhando pela janela): É verdade. Mas, falando em histórias, como andam os enredos de vocês? Estou curiosa para saber em que estão trabalhando.

Lygia (pegando um caderno): Estou explorando a vida de uma mulher que descobre um diário antigo em uma casa de família. Ela começa a desvendar segredos que mudam sua perspectiva sobre o passado. É uma viagem entre o real e o imaginário.

Raquel (entusiasmada): Isso me lembra um pouco da história que estou escrevendo. Minha protagonista é uma mulher do sertão que luta para manter sua identidade em meio às adversidades. A conexão com suas raízes é fundamental.

Clarice (pensativa): Como isso é profundo. Eu estou mergulhando na mente de uma mulher que se sente perdida em sua própria vida. É uma exploração da solidão e da busca por pertencimento. Acredito que, no fundo, todas nós lidamos com essas questões de alguma forma.

Lygia (inclinando-se para frente): Eu adoro como você aborda a solidão, Clarice. É um tema tão universal. Você consegue transmitir essa sensação de forma tão intensa.

Raquel (sorrindo): E, ao mesmo tempo, nos mostra a força das mulheres. A luta é uma parte intrínseca da nossa narrativa, não é?

Clarice (concordando): Exatamente. E, curiosamente, muitas vezes encontramos força nas fragilidades. Na minha história, a protagonista descobre que a vulnerabilidade pode ser uma fonte de poder.

Lygia (pensativa): Isso me faz refletir sobre como as experiências de vida moldam nossas personagens. Cada uma de nós traz um pedaço de si nas histórias que contamos.

Raquel (entusiasmada): E o que vocês acham sobre a influência do ambiente em nossos enredos? Para mim, o sertão é quase um personagem. Ele tem vida própria, e suas características influenciam profundamente a trajetória da minha protagonista.

Clarice (sorrindo): Eu sinto o mesmo. No meu caso, o espaço urbano, com suas contradições, é fundamental. O caos da cidade reflete a confusão interna da minha personagem.

Lygia (abrindo os braços): E quanto aos sentimentos? A literatura, para mim, é uma forma de explorar o que muitas vezes não conseguimos expressar. Através da escrita, conseguimos dar voz a emoções complexas.

Raquel (com um brilho nos olhos): Sim! E isso é especialmente importante para nós, mulheres. Muitas vezes, nossas vozes foram silenciadas, e agora temos a oportunidade de contar nossas histórias.

Clarice (pensativa): Isso me lembra da forma como a sociedade vê as mulheres. Nossas histórias desafiam estereótipos, não é? Cada uma de nós, de nossa maneira, traz à tona questões que precisam ser discutidas.

Lygia (concordando): E é essa diversidade de experiências que enriquece a literatura. Precisamos continuar a abrir espaços para novas vozes e narrativas.

Raquel (erguendo a xícara): Um brinde a isso! À força da mulher na literatura e a todas as histórias que ainda estão por vir.

Clarice (levantando a xícara também): E que possamos inspirar outras mulheres a encontrar suas vozes e contar suas histórias.

As três escritoras brindaram, sentindo a energia daquela manhã, ricas em ideias e reflexões. O café na biblioteca se tornara um espaço de criação, onde palavras se entrelaçavam como as vidas de suas protagonistas, cada uma em busca de seu próprio caminho e significado. 

E assim, entre livros, risos e diálogos profundos, a manhã se desenrolou, repleta de promessas e sonhos literários, enquanto o mundo lá fora continuava a girar, alheio à magia que acontecia naquele pequeno refúgio de histórias e inspiração.

Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

sábado, 25 de outubro de 2025

José Feldman (Maya)


Foste uma amiga, uma irmã,
foste uma luz… o calor.
No despertar da manhã
foste simplesmente… amor.


 Há lembranças que se enraízam como árvores antigas: elas crescem, fazem sombra e, quando o vento passa, deixam cair uma folha cuja textura a gente reconhece sem precisar olhar. Maya é uma dessas árvores na minha memória — uma presença que ocupou quintais, ruas, abraços e um pedaço enorme do nosso coração. Nasceu em São Paulo, capital, em 1997. Veio da mão de uma amiga, entregue como quem confia a chave de casa a alguém que sabe cuidar. E cuidar, com ela, foi aprender a grande lição de que os animais chegam para ensinar a amar.

No começo éramos ruins em cuidar de cachorros; confessar isso hoje é confessar uma ingenuidade que me envergonha e encanta ao mesmo tempo. Eu cheguei a fazer um cartaz numa venda perto de casa: doava-se a cadela, tomada numa mistura de desespero e de inexperiência. Coloquei-o ali como se arrancar o problema resolvesse também o afeto que já começava a crescer. Na manhã em que um senhor apareceu interessado, Maya chorou como quem pede para não ser trocada por um ponto final. Chamou a manhã inteira — um choro que parecia questionar a nossa lógica.

Quando um senhor tentou se aproximar, ela adotou uma postura defensiva e quase atacou; ele, visivelmente assustado, desistiu. Foi nesse instante que entendemos: ela não era de dar, era de ficar. E ficamos. Mais tarde encontramos o senhor novamente — nas ruas do bairro — e, Maya, que na manhã anterior parecera pronta a atacar, lambeu a mão dele com a mesma simplicidade com que dá à vida um sopro de perdão. A natureza dela tinha essa contradição doce: firmeza e ternura, proteção e entrega.

Maya era grande, uma mistura nobre entre Akita e Pastora Belga Albina. Eu brincava que ela era uma “Akitora” — um nome que juntava o porte imponente com a pelagem clara que lembrava neve. Majestade era, aliás, uma palavra que lhe caía bem. Caminhava como quem foi feita para ocupar espaço: passos largos, cabeça erguida, olhar que media situações. E ao mesmo tempo que era imponente, era dócil como poucas criaturas que já conheci. As crianças do bairro a adoravam. Entravam no quintal para brincar, deitavam-se ao lado dela, corriam e riam, e Maya aceitava tudo com paciência de rainha misericordiosa.

Havia, porém, um ódio irrefreável por bêbados que passavam em frente ao portão. Não tolerava esse tipo de presença; o latido que soltava nessas ocasiões não era infantil, era uma reprimenda, quase uma convocação à ordem. Quando havia algazarra de cachorros na rua, era Maya quem impunha silêncio: bastava um latido seu que as vozes mais altas pareciam se dissolver. Em todas as casas por onde vivemos — Taboão da Serra, Curitiba, Ubiratã e finalmente Maringá — ela se tornou referência para os cães da região: Maya latia, e o bairro escutava.

Em Curitiba, teve um episódio que virou lenda entre os vizinhos. Numa época em que estávamos viajando, houve uma invasão: um ladrão subiu o muro da casa para roubar. Maya pegou esse ladrão no muro mesmo. Simples assim. Haviam rastos de sangue do ladrão no muro, com certeza no desespero de tentar se salvar. Não foi uma cena de filme; foi a realidade exemplar de uma cachorra que assumiu seu posto de guardiã com firmeza. O nome dela correu as ruas: “a Maya pegou o ladrão” — e a sensação foi de uma vitória coletiva. O mesmo ladrão, sabíamos depois, havia roubado outras casas naquela sequência de dias. Mas quando encontrou a Maya na frente, a história mudou. Ela era destemida quando necessário.

Era também uma mãe dedicada. Cruzou com um Border Collie em Curitiba e teve sete filhotes. A casa encheu de patas, de olhos curiosos e de filhotes que tinham fila para adotá-los. Ficamos com um deles; os outros foram-se rápido, porque quem a conhecia sabia que ter um filhote dela seria um privilégio. Ser mãe foi mais um dos papéis que ela desempenhou com naturalidade: havia nela uma mistura de disciplina e afeto, um código que os filhotes aprenderam rápido.

As caminhadas com ela eram, na verdade, passeios em que ela nos levava. Entre risos, sempre digo isso: era ela quem ditava o ritmo, quem escolhia o caminho, quem parava para cheirar a vida. Numa dessas ocasiões lembro de um dia em que ela disparou, e mesmo presa ao enforcador — que eu segurava firme — arrastei-me até colidir com uma árvore. Saí daquele encontro com o joelho raspado e o riso envergonhado, enquanto Maya, impassível, já queria seguir adiante. Era fiel: fazia o que queria, mas fazia junto.

Inteligente ao extremo, ela aceitava uma trapaça uma vez — talvez duas — mas não mais. Eu podia enganá-la uma vez, e ela ficaria olhando com curiosidade; na segunda vez, o olhar era de reprovação quase cômica, como se dissesse: “Qual é? Acha que sou tonta e caio outra vez?” Tinha um senso de justiça fantástico. Essa inteligência fazia dela não só uma companhia, mas uma interlocutora silenciosa: seus olhos avaliavam, ponderavam, perdoavam ou censuravam de modo claro.

O tempo foi passando e, por anos, Maya foi nossa sombra, nossa mesa redonda, nossa segurança. Em 2012 sua saúde começou a declinar. Ela ficou, aos poucos, mais quieta; os passeios diminuíram, as corridas tornaram-se raras, e ela passou a deitar mais tempo do que antes. Os sinais da velhice vinham com a mesma dignidade com que vivera: sem grande dramatização, apenas um corpo pedindo repouso. No dia 19 de abril de 2013, em Maringá, ela partiu: 16 anos que pareciam ter passado tão depressa e, no entanto, deixavam uma lenta bagagem de saudade.

Maya morreu de falência dos órgãos. Foi um fim que doeu, não apenas pela violência do corpo que se entrega, mas pela concretude da despedida depois de tantos anos de presença constante. Ela deixou descendentes: Fluffy, um Border Collie que morreu aos 10 anos em Ubiratã por doença desconhecida, e Mel, que viveu até 2019 e partiu aos 16 anos em Maringá. A linhagem dela seguiu, em parte, como quem carrega a tocha adiante.

Ainda hoje, quando fecho os olhos, a lembrança de Maya vem com cheiro de grama, de poeira da estrada e de pelo macio. Vejo sua cabeça grande encostada na minha perna, o olhar que pedia nada e dava tudo, as crianças correndo ao redor, e lembro do cartaz que pus na venda, uma prova da nossa inexperiência, e da lição que isso nos deu: não se dá alguém como Maya, ela se conquista e te conquista de volta.

Sinto falta das pequenas coisas: o jeito que ela levantava o olhar para pedir um pedaço do comida, como acompanhava cada passo quando estávamos no quintal, como deitava de lado para que as crianças subissem e se aninhassem. Sinto falta de vê-la chupando manga que pegava de nossa árvore onde moravamos, e não é que a danada pegava sempre as melhores mangas. Sinto falta das tardes que os nossos gatos brincavam com ela no quintal de casa, fazendo-a de boba. Geralmente vinha pra mim, chorosa, com um arranhado no corpo, de algum gato provavelmente. Sinto falta da segurança que a presença dela trazia nas noites, quando a casa parecia menor por fora mas completa por dentro. Sinto falta do respeito que impunha e do conforto que oferecia.

Em dias de vento forte, eu imaginava Maya no portão, vendo os bêbados passarem e decidindo, com um latido seco, que aquilo não ficaria ali. Em dias de sol, a via sendo acariciada pela luz, um corpo branco que brilhava como se tivesse pegado o próprio verão. E quando me lembro da sua inteligência e do seu humor — da soberania com que assumia as manhas e o humor com que aceitava as regras — percebo a sorte que tivemos em tê-la por perto.

Há uma saudade que é como um caminho conhecido: a gente passa por ele sempre que quer encontrar uma presença. Para mim, essa estrada leva direto a Maya. Às vezes, preso num dia comum, me surpreendo sorrindo ao lembrar da cena em que ela lambeu a mão do senhor que antes despertara seu instinto de defesa, ou do dia em que mordeu o ladrão ou ainda da vez em que a casa inteira ficou em silêncio por causa de um único latido. Essas memórias são pequenas vitórias contra o esquecimento.

Maya era muito mais do que a soma de suas ações; ela era um personagem que alterou nossa narrativa familiar. Nos ensinou a cuidar, nos policiou, fez-nos rir e, sobretudo, foi um porto. Depois que se foi, aprendemos a medir espaços: um banco na sala que parece maior, um canto do quintal que ecoa as patas, uma coleira que agora é só lembrança. A vida, com sua dureza e sua ternura, seguiu — mas com a marca dela cravada em cada gesto de cuidado que depois demos.

Escrever sobre Maya é trazer à tona não só a história de uma cadela exemplar, mas a própria história de quem aprendeu com ela. É confessar que já fomos melhores e piores, e que, diante de um animal assim, o melhor de nós e também a nossa impotência frente às vicissitudes da vida aparece. É também uma forma de agradecer: por ela ter escolhido ficar quando nossas mãos hesitaram, por ter sido dócil com as crianças, implacável com ladrões, e por ter ensinado que a lealdade é prática diária e silêncio cúmplice.

Hoje, quando falo dela, lembro-me da akitora, a raça que lhe denominei. Em seu nome, há reverência. Em qualquer lembrança, há saudade. Mas há também consolo: ela viveu muito, viveu bem, e deixou herança material e espiritual. Fluffy e Mel foram pedaços do legado; as histórias que lembramos continuam a circular; e dentro de nós, o modo de amar transformado por ela segue ativo.

Maya era majestade e afeto, cidade e quintal, guarda e companhia. Era o tipo de presença que nos ensina por imitação: você olha para ela e entende como se cuida, como se espera e como se protege. Sua vida foi um mapa de gestos que inaugurou muitos de nossos modos de agir com os animais. E a saudade — ah, a saudade — é essa árvore que inclino a cabeça para lembrar e, geralmente, chorar, um choro triste e um choro alegre. É também um carinho antigo que me aquece inesperadamente em dias frios.

Se penso em algo final que ela me deixou, é a convicção de que cuidar transforma. Fomos péssimos no início, aprendemos no caminho, e Maya foi sempre generosa com nossas falhas. Quando morreu, restou o aprendizado e o espaço que nunca mais seria igual. Hoje, aqui sentado, escrevo e vejo o sol atravessando a cortina, e, por um segundo, o brilho parece o mesmo do pelo dela. Sorrio, deixo a saudade me dominar — porque saudade, no final das contas, é prova de que houve amor, e que esse amor valeu cada passo que ela nos fez a dar ao seu lado.

Oh, minha querida Maya. Que saudade!!!
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais e oficina de trovas. Morou 40 anos na capital de São Paulo, onde nasceu, ao casar-se mudou para Curitiba/PR, radicando-se em Maringá/PR, cidade onde sua esposa é professora da UEM. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a Confraria Brasileira de Letras, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, etc. Possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações: 
Publicados: “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”.
Em andamento: “Pérgola de textos”, "Chafariz de Trovas", “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas), “Asas da poesia”, "Reescrevendo o mundo: Vozes femininas e a construção de novas narrativas".

Fonte:
José Feldman. Minhas irmãs de quatro patas. Floresta/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul (em construção)
Fotos e montagem por JFeldman