quarta-feira, 31 de julho de 2024

Mensagem na Garrafa = 132 =


MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS, 1906 – 1994, Porto Alegre/RS

Presença

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, trevo machucado,
folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo.
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu te sentir
como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida...
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te!

A. A. de Assis (A flor que veio do Lácio)

De colônia em colônia, ia Roma espalhando mundo afora a sua língua. Em cada região conquistada, a primeira providência dos dominadores era impor o latim como idioma oficial

Numa bela região da Itália, tendo por moldura a oeste o mar Tirreno, a leste os Apeninos, ao norte a Toscana e a Úmbria, e a Campânia ao sul, havia o Lácio.  Seus habitantes falavam o latim, então modesto ramo linguístico brotado do grande tronco indo-europeu.

No Lácio, um pouco segundo a lenda, um pouco segundo a história, no ano 753 a.C., às margens do Tibre, numa paisagem onde a natureza caprichosamente plantou charmosas colinas (dizem que sete), nasceu Roma, a eterna. Mais que a história, manda ainda a lenda (aliás sempre mais bonita) que se credite aos gêmeos Remo e Rômulo, mais a Rômulo do que a Remo, a fundação da nobre urbe. 

Roma cresceu, virou império, tomou conta de toda a Itália, acabou estendendo o seu poder por meio mundo. Rica e forte, pôde ao mesmo tempo tornar-se importante polo cultural, graças principalmente ao que aprendeu com os gregos. À influência recebida da cultura grega deve-se também, em boa parte, o notável enriquecimento do latim, aos poucos transformado em primorosa e encantadora língua.

Havia, porém, duas modalidades de latim: o clássico (erudito), usado na produção literária, monitorado pelos gramáticos e adotado como padrão pela restrita roda dos romanos cultos; e o latim vulgar, falado (e raramente escrito) pelos mortais comuns.

De colônia em colônia, ia Roma espalhando mundo afora a sua língua. Em cada região conquistada, a primeira providência dos dominadores era impor o latim como idioma oficial. Não o latim chique dos discursos de Cícero e dos versos de Virgílio, mas o latim povão – a fala descontraída dos soldados e dos barnabés do império.

Ocorre ainda que,  no contato com os povos subjugados, ia o latim assimilando parte do vocabulário e marcas do sotaque e da sintaxe de cada região. Daí resultou que, passados alguns séculos, não era mais o latim que se falava: eram dialetos, logo consolidados como novos idiomas.

Assim se formaram as chamadas línguas neolatinas, entre as quais o italiano, o francês, o romeno, o catalão, o espanhol,  o português.

A chegada dos romanos à península Ibérica  (onde estão hoje Espanha e Portugal) data do século terceiro a.C. Na época, a região era habitada pelos celtiberos, sabendo-se que por ali também passaram gregos, fenícios, cartagineses e outros grupos. No ano 711 d.C., a península foi invadida pelos árabes, que ali permaneceram durante cerca de 700 anos, até serem expulsos definitivamente.

Em meio a todas essas escaramuças, ao se encerrar o primeiro milênio já se definira a língua espanhola e estava nascendo a língua portuguesa, liricamente rebatizada, muitos séculos depois, pelo nosso Bilac, como “última flor do Lácio”.

Fonte: enviado pelo autor.

Recordando Velhas Canções (Aroeira)


Compositor: Geraldo Vandré

Vim de longe, vou mais longe
Quem tem fé vai me esperar
Escrevendo numa conta
Pra junto a gente cobrar

No dia que já vem vindo
Que esse mundo vai virar
No dia que já vem vindo
Que esse mundo vai virar

Noite e dia vêm de longe
Branco e preto a trabalhar
E o dono senhor de tudo
Sentado, mandando dar

E a gente fazendo conta
Pro dia que vai chegar
E a gente fazendo conta
Pro dia que vai chegar

Marinheiro, marinheiro
Quero ver você no mar
Eu também sou marinheiro
Eu também sei governar

Madeira de dar em doido
Vai descer até quebrar
É a volta do cipó de aroeira
No lombo de quem mandou dar
É a volta do cipó de aroeira
No lombo de quem mandou dar

Vim de longe, vou mais longe
Quem tem fé vai me esperar
Escrevendo numa conta
Pra junto a gente cobrar

No dia que já vem vindo
Que esse mundo vai virar
No dia que já vem vindo
Que esse mundo vai virar

Noite e dia vêm de longe
Branco e preto a trabalhar
E o dono senhor de tudo
Sentado, mandando dar

E a gente fazendo conta
Pro dia que vai chegar
E a gente fazendo conta
Pro dia que vai chegar

Marinheiro, marinheiro
Quero ver você no mar
Eu também sou marinheiro
Eu também sei governar

Madeira de dar em doido
Vai descer até quebrar
É a volta do cipó de aroeira
No lombo de quem mandou dar

É a volta do cipó de aroeira
No lombo de quem mandou dar
É a volta do cipó de aroeira
No lombo de quem mandou dar 
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Aroeira: O Canto de Resistência de Geraldo Vandré
A música 'Aroeira', composta por Geraldo Vandré, é um símbolo de resistência e esperança em tempos de opressão. Lançada durante o período da ditadura militar no Brasil, a canção utiliza metáforas para falar de luta e da certeza de um futuro onde a justiça prevalecerá. O refrão 'É a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar' refere-se a um dito popular que significa que a violência e a injustiça cometidas contra alguém ou um povo retornarão para aqueles que as perpetraram. A aroeira, uma árvore conhecida por sua madeira resistente e que era usada para fazer chicotes, simboliza aqui o instrumento de tortura que, metaforicamente, voltará contra os opressores.

A letra fala de uma jornada de luta ('Vim de longe, vou mais longe'), onde a fé e a perseverança são essenciais ('Quem tem fé vai me esperar'). A 'conta' que está sendo escrita é uma alusão à contabilidade das injustiças e dos abusos que serão cobrados no futuro ('Pra junto a gente cobrar'). A música transmite a mensagem de que, apesar da opressão ('E o dono senhor de tudo / Sentado, mandando dar'), haverá um dia de acerto de contas ('No dia que já vem vindo / Que esse mundo vai virar').

Geraldo Vandré, conhecido por suas canções de protesto, utiliza a figura do 'marinheiro' para falar sobre a capacidade de navegar e de governar a própria vida, em oposição àqueles que se consideram donos do destino dos outros. A música é um chamado à resistência e à luta por um mundo mais justo, onde as desigualdades e a opressão serão superadas ('Noite e dia vêm de longe / Branco e preto a trabalhar').

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Daniel Maurício (Poética) 72

 

Mensagem na Garrafa = 131 =


ANTOINE DE SAINT EXUPÉRY
Lyon/França, 1900 – 1944, Mar Mediterrâneo

As pessoas têm estrelas que não são as mesmas. 

Para uns, que viajam, as estrelas são guias. Para outros, elas não passam de pequenas luzes. Para outros, os sábios, são problemas. Para o meu negociante, eram ouro. 

Mas todas essas estrelas se calam. 

Tu porém, terás estrelas como ninguém... Quero dizer: quando olhares o céu de noite, (porque habitarei uma delas e estarei rindo), então será como se todas as estrelas te rissem! E tu terás estrelas que sabem sorrir! 

Assim, tu te sentirás contente por me teres conhecido. 

Tu serás sempre meu amigo (basta olhar para o céu e estarei lá). 

Terás vontade de rir comigo. E abrirá, às vezes, a janela à toa, por gosto... e teus amigos ficarão espantados de ouvir-te rir olhando o céu. 

Sim, as estrelas, elas sempre me fazem rir!

Figueiredo Pimentel (A casa mal-assombrada)

Isolada de outras habitações havia uma casa onde ninguém morava, porque se dizia que era mal-assombrada. À meia-noite ouviam-se ruídos de correntes, gritos, gemidos e suspiros, e uma luzinha brilhava, ora numa janela, ora em outra. O proprietário não achava locatário, e mesmo não queria saber dela, que ia se arruinando pouco a pouco.

Um dia procuraram-no duas mulheres – mãe e filha – muito pobres, que acabavam de ser expulsas da casinha em que moravam. Pediam-lhe licença para ocupar a casa mal-assombrada.

O homem admirou-se daquele pedido, e depois de avisá-las dos perigos que corriam, consentiu sem dificuldade.

As duas mulheres no mesmo dia mudaram-se.

Eram onze horas da noite quando foram se deitar, nada tendo visto nem ouvido de extraordinário. A mãe, como já era velha, e se sentia cansada das arrumações, dormiu logo. A filha, porém, ficou acordada, rolando na cama, sem conseguir adormecer.

Uma hora depois, ouviu o sino da matriz bater meia-noite. No mesmo instante a moça escutou um ruído estranho, enquanto uma voz gemia:

— Eu caio!... Eu caio!...

Ela olhou para cima, de onde parecia vir a voz. Nada viu, mas disse:

— Pois caia, com Deus e a Virgem Maria!

Do teto do quarto caíram duas pernas.

A mesma voz assim falou mais três vezes, e a rapariga dando sempre a mesma resposta, viu cair sucessivamente o tronco, os braços e a cabeça de um homem.

Os quatro pedaços reuniram-se, e apareceu uma criatura humana, tão pálida como um cadáver, que lhe falou:

— Se não tens medo, vem comigo.

Adelaide acompanhou-o atravessando toda a casa, até chegarem ao quintal.

Então debaixo de um tamarindeiro, o morto mandou-a cavar a terra, encontrando uma lata com dinheiro, que transportaram para dentro.

Chegando ao quarto, disse-lhe o defunto:

— Eu sou uma alma penada, que ando sofrendo por causa deste dinheiro. Quando era vivo, roubei-o de uma pobre viúva, desgraçando-a, bem como aos órfãos, seus filhos. Deste dinheiro, a metade é para você e sua mãe, e a outra metade é para distribuir para os pobres, e mandar dizer cem missas por minha alma.

Acabando de falar, a alma penada desapareceu.

Adelaide fez tudo o que ele havia mandado, e ficou rica para o resto de sua vida.

Fonte: Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Se eu quiser falar com Deus)


Compositor: Gilberto Gil

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz

Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios

Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou

Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho

Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar

Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que, ao findar, vai dar em nada

Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar
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A Busca Espiritual em 'Se Eu Quiser Falar Com Deus' de Gilberto Gil
A canção 'Se Eu Quiser Falar Com Deus', composta e interpretada por Gilberto Gil, é uma profunda reflexão sobre a busca espiritual e a comunicação com o divino. Através de uma letra poética e introspectiva, Gil explora o tema da conexão com Deus, sugerindo que para alcançá-la, é necessário um processo de despojamento e humildade.

No primeiro verso, o ato de ficar a sós, apagar a luz e calar a voz simboliza o isolamento e a introspecção necessários para a meditação ou oração. A paz e o desatar dos nós representam a libertação das amarras materiais e preocupações mundanas que impedem a comunicação espiritual. A menção de ter mãos vazias e alma e corpo nus reforça a ideia de que a verdadeira conexão com o sagrado exige simplicidade e entrega total.

A segunda parte da música aborda a aceitação da dor e das adversidades da vida, como parte do caminho para o entendimento espiritual. Comer o pão que o diabo amassou e virar um cão lamber o chão dos palácios e castelos sugere humildade e a aceitação de situações difíceis. A jornada espiritual é descrita como uma aventura sem garantias, onde é preciso subir aos céus sem cordas para segurar, simbolizando a fé e a coragem necessárias para enfrentar o desconhecido. Ao final, a estrada que 'vai dar em nada' pode ser interpretada como a compreensão de que as respostas buscadas podem não ser encontradas nos termos esperados, mas que o próprio caminho é uma forma de encontro com o divino.

Roberto Carlos pediu a Gilberto Gil uma canção, sem especificar o tema. Sabendo-o religioso, Gil fez então “Se Eu Quiser Falar com Deus”, uma longa e filosófica enumeração de atitudes e pensamentos (“Tenho que ficar a sós / (...) / tenho que apagar a luz / (...) / tenho que calar a voz / (...) / tenho que encontrar a paz...”) distribuídos por 36 versos, sobre uma melodia repetida três vezes e de grande simplicidade na parte inicial, com seus dez primeiros compassos baseando-se numa mesma célula melódica.

O seguimento, que tem um caráter de soul music, ostenta um elaborado desenvolvimento melódico, em movimento crescente, só de colcheias, que vão atingir o ápice na tônica final, depois de uma intrincada sequência harmônica. Na terceira e última volta a palavra “nada” é repetida treze vezes, sem que se produza uma sensação de monotonia, em razão dos predicados assinalados.

Entretanto, talvez pelo seu sentido mais filosófico do que religioso, “Se Eu Quiser Falar com Deus”, não foi aproveitada por Roberto Carlos. “O que chegou a mim”, afirma Gil no livro Todas as letras, “foi que ele (Roberto) disse que aquela não era a ideia de Deus que ele tem”. Então, a canção foi gravada pelo autor no citado álbum, Luar, com grande orquestra de sopros e cordas, além de um coro feminino, salientando-se como a principal faixa do disco (A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34).
Fontes:

domingo, 28 de julho de 2024

José Feldman (Versejando) 144


 

Mensagem na Garrafa = 130 =


MARIA DE QUEIROZ
(Rio de Janeiro/RJ)

Gratidão

Diariamente eu chego a simples conclusão de que a vida é tão maravilhosa porque também é feita de colos, de feridas que cicatrizam, de amigos que celebram ou choram junto, de café coado com coador de pano, de gente que pega ônibus ou faz caminhada pela manhã, de quem planta o que se pode comer, de vizinhos que alimentam seus gatos com comida de gente. Que a vida é feita de algumas pessoas que direcionam todo o seu potencial criativo para melhorar a qualidade de vida de gente que eles nem conhecem. Que é feita de e-mails que chegam recheados de saudade e de cartas extraviadas solitárias numa gaveta de um correio qualquer. De muros e pontes e cais. De aviões que suprimem distâncias e de barcos que chegam. De bicicletas que atravessam cidades. De redes que balançam gente. De rostos que recebem beijos. De bocas que beijam. De mãos que se dão. Que existem pessoas altamente gostáveis, altamente rabugentas, altamente generosas, pessoas distraídas que perdem as coisas, mal-educadas que buzinam sem necessidade, pessoas conectadas que se preocupam com o lixo, pessoas sedutoras e seduzíveis, possíveis e impossíveis, pessoas que se entregam, pessoas que se privam, pessoas que machucam, pessoas que chegam pra curar desencadeadores de poemas, de sorrisos, de lições de vida que ficarão guardadas para sempre… A vida é tão maravilhosa porque ela nos compensa com ela mesma.

Eduardo Martínez (Os rabiscos da Ana Lúcia)

Ana Lúcia adorava fazer desenhos nos cantos dos cadernos. Sua mãe, no entanto, sempre que pegava a menina entretida com aquilo, não perdia a oportunidade de repreendê-la.

— Ana Lúcia, pare de rabiscar!

Teimosa que era, a garota, lápis na mão, parecia decidida a criar figuras diversas sobre o papel. Os amigos ficavam maravilhados, e a professora de artes, do alto de tanto conhecimento, afirmava que a aluna possuía talento incomum. Ana Lúcia sonhava acordada com o dia que seus desenhos seriam expostos em uma galeria, talvez até mesmo no Louvre, em Paris. 

O tempo passou, Ana Lúcia desenvolveu um estilo próprio. Tanto é que, não raro, alguém a convidava para ilustrar algum livro. Chegou a emoldurar alguns desenhos, que eram vendidos a preços módicos na feira do bairro, mas que a enchiam de esperanças de sobreviver da sua arte. 

Perto de completar 25 anos, a mulher conheceu João, um dos compradores dos seus quadros. O primeiro contato, apesar de agradável, não parecia nada mais do que a relação entre vendedora e cliente. Todavia, encantado com os traços produzidos por Ana Lúcia, o rapaz retornou à feira nas semanas seguintes, onde sempre comprava uma ou duas obras. 

Aconteceu no final de setembro, quando a primavera atiça os corações solitários. João, mesmo que tímido, convidou a artista para um café. Do café, foram ao cinema. Dali, foi um pulo até a cama, onde descobriram que não conseguiriam mais viver separados.

Juntaram os panos e, dois anos após, veio a pequena Lisa e, no ano seguinte, nasceram os gêmeos Francisco e José. Sem hora para desenhar, Ana Lúcia viu seus sonhos se perderem entre as pilhas de roupas e as fraldas para trocar. José, que precisou arrumar outro emprego, ainda lavava a louça, mas se sentia culpado por não poder ajudar mais a esposa. Faltavam-lhe forças.

As décadas seguintes voaram sem que Ana Lúcia tivesse tempo de perceber as rugas que se apossaram do seu rosto. Ela estava sentada no sofá, quando o marido chegou. Ele trazia um embrulho e, antes de entregá-lo à esposa, a beijou docemente nos lábios.

Que nem menina, a velha abriu o presente e se deparou com um bloco de folhas e um conjunto de lápis. Seus olhos cansados sorriram ao olhar o passado de maneira mais generosa. Tanto é que, pelos dias seguintes, Ana Lúcia voltou a desenhar compulsivamente. 

É verdade que, de vez em quando, imaginava sua saudosa mãe dizendo para ela parar de rabiscar. Seja como for, a desenhista já agendou uma exposição de seus quadros na garagem de sua casa. Parentes e amigos estão ansiosos para tal evento. 

Pois é, parece que os sonhos não têm data de validade.

Fonte: Blog do Menino Dudu. 27.02.2024

Francisca Júlia (Rei Fantasma)

(Balada alemã)

Quem é que cavalga a esta hora na escuridão da noite, sob a chuva que cai e o vento que uiva? As árvores agitam a folhagem desordenada, arrepiadas do terror da noite.

O velho passa apressadamente, apertando nos braços o filhinho amado, fazendo-lhe com o rosto e com as mãos um carinhoso abrigo.

— Oculta-me o rosto, pai.

— Para que queres que te oculte o rosto, filho?

— Não vês o rei envolvido em seu manto de púrpura, brandindo o cetro como um louco?

— Não tenhas medo, filho, é uma nuvem e mais nada. É uma nuvem que estremeceu diante da fúria do vento e se desfez em água.

"Linda criança, vem comigo! vamos gozar as riquezas do meu reino, embriagar a vista no esplendor do meu ouro, correr os meus campos onde há flores perfumadas e árvores vergando ao peso dos frutos".

— Pai, pai! Não ouves o que o rei me promete em voz baixa?

— Não é nada, meu filho, é o vento brando que murmura nas ramas e que resvala nas folhas, e mais nada. Filho, não tenhas medo.

"Criança linda, queres vir comigo? As minhas filhas são claras como a neve e têm cabelos louros como o sol, elas te conduzirão à dança noturna em companhia das fadas do bosque, elas te ensinarão brinquedos nunca vistos e te farão passear numa barquinha azul sobre as águas do lago. E tu hás de adormecer ao seu canto e sonhar sob seus afagos".

— Pai, pai! Não vês as filhas do rei dançando lá em baixo na planície, vestidas de branco, com os rostos escondidos nos cabelos?

— Meu filho, meu filho, eu vejo bem: são os salgueiros distantes, embranquecidos de neve, que o vento agita e balança, e mais nada.

"Amo-te, bela criança. Gosto do teu rosto pálido, dos teus olhos azuis como o céu e dos teus cabelos negros como a noite. Vem! Quero levar-te comigo para deslumbrar-te nas riquezas do meu reino. Se tentares resistir, arranco-te dos braços do teu pai".

— Pai, pai! O rei me leva, o rei me arranca, o rei me mata. Livra-me, pai! Ele é tão mau, ele é tão grande, ele é tão feio!

O pobre pai treme; fustiga o cavalo; atravessa a escuridão da noite sob a chuva que cai e o vento que uiva, aperta tanto o filho contra o peito que o sufoca.. Muito tempo depois, quando entrou em casa, tinha nos braços a criança morta.

Fonte> Francisca Júlia. Livro da infância. 1899. Disponível em Domínio Público

Recordando Velhas Canções (A camisola do dia)


Compositores: Herivelto Martins e David Nasser

Amor, eu me lembro ainda
Que era linda, muito linda
Um céu azul de organdi
A camisola do dia
Tão transparente e macia
Que eu dei de presente a ti
Tinha rendas de Sevilha
A pequena maravilha
Que o teu corpinho abrigava
E eu, eu era o dono de tudo
Do divino conteúdo
Que a camisola ocultava
A camisola que um dia
Guardou a minha alegria
Desbotou, perdeu a cor
Abandonada no leito
Que nunca mais foi desfeito
Pelas vigílias de amor
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A Camisola do Dia: Memórias de um Amor Passado
A música 'A Camisola do Dia', de Chico Buarque, é uma delicada e nostálgica reflexão sobre um amor passado. A letra descreve com detalhes a lembrança de uma camisola que simboliza um momento de felicidade e intimidade entre o eu-lírico e sua amada. A camisola, feita de um tecido fino e adornada com rendas de Sevilha, é uma metáfora para a beleza e a fragilidade do relacionamento que um dia foi pleno de alegria e amor.

Chico Buarque utiliza a camisola como um símbolo poderoso para evocar memórias de um tempo em que ele se sentia dono de um 'divino conteúdo', referindo-se ao corpo e à alma de sua amada. A descrição minuciosa da peça de roupa e a sensação de posse e admiração que ela traz ao eu-lírico revelam a profundidade do sentimento que ele nutria. A camisola, portanto, não é apenas um objeto, mas um receptáculo de emoções e lembranças que marcaram profundamente o eu-lírico.

No entanto, a música também aborda a passagem do tempo e a inevitável transformação das coisas. A camisola, que um dia foi símbolo de alegria, agora está desbotada e abandonada, representando a perda e o fim do relacionamento. O leito que nunca mais foi desfeito pelas 'vigílias de amor' sugere a ausência de momentos íntimos e a solidão que se seguiu ao término do romance. Assim, 'A Camisola do Dia' é uma canção que fala sobre a beleza efêmera do amor e a melancolia das lembranças que ele deixa para trás. https://www.letras.mus.br/chico-buarque/1339771/ 

sábado, 27 de julho de 2024

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 51

 

Mensagem na Garrafa = 129 =


SILVANA DUBOC

Trem da vida

Há algum tempo atrás, li um livro que comparava a vida a uma viagem de trem. Uma leitura extremamente interessante, quando bem interpretada.

Isso mesmo, a vida não passa de uma viagem de trem, cheia de embarques e desembarques, alguns acidentes, surpresas agradáveis em alguns embarques e grandes tristezas em outros.

Quando nascemos, entramos nesse trem e nos deparamos com algumas pessoas que julgamos, estarão sempre nessa viagem conosco: nossos pais. Infelizmente, isso não é verdade; em alguma estação eles descerão e nos deixarão órfãos de seu carinho, amizade e companhia insubstituível... mas isso não impede que, durante a viagem, pessoas interessantes e que virão a ser super especiais para nós, embarquem.

Chegam nossos irmãos, amigos e amores maravilhosos.

Muitas pessoas tomam esse trem apenas a passeio. Outros encontrarão nessa viagem somente tristezas. Ainda outros circularão pelo trem, prontos a ajudar a quem precisa. Muitos descem e deixam saudades eternas, outros tantos passam por ele de uma forma que, quando desocupam seu acento, ninguém nem sequer percebe.

Curioso é constatar que alguns passageiros que nos são tão caros, acomodam-se em vagões diferentes dos nossos; portanto, somos obrigados a fazer esse trajeto separados deles, o que não impede, é claro, que durante o trajeto, atravessemos com grande dificuldade nosso vagão e cheguemos até eles... só que, infelizmente, jamais poderemos sentar ao seu lado, pois já terá alguém ocupando aquele lugar.

Não importa, é assim a viagem, cheia de atropelos, sonhos, fantasias, esperas, despedidas... porém, jamais, retornos. Façamos essa viagem, então, da melhor maneira possível, tentando nos relacionar bem com todos os passageiros, procurando, em cada um deles, o que tiverem de melhor, lembrando, sempre, que, em algum momento do trajeto, eles poderão fraquejar e, provavelmente, precisaremos entender porque nós também fraquejaremos muitas vezes e, com certeza, haverá alguém que nos entenderá.

O grande mistério, afinal, é que jamais saberemos em qual parada desceremos, muito menos nossos companheiros, nem mesmo aquele que está sentado ao nosso lado.

Eu fico pensando se quando descer desse trem sentirei saudades ... acredito que sim. Me separar de alguns amigos que fiz nele será, no mínimo dolorido. Deixar meus filhos continuarem a viagem sozinhos, com certeza será muito triste, mas me agarro na esperança que, em algum momento, estarei na estação principal e terei a grande emoção de vê-los chegar com uma bagagem que não tinham quando embarcaram... e o que vai me deixar feliz, será pensar que eu colaborei para que ela tenha crescido e se tornado valiosa.

Amigos, façamos com que a nossa estada, nesse trem, seja tranquila, que tenha valido a pena e que, quando chegar a hora de desembarcarmos, o nosso lugar vazio traga saudades e boas recordações para aqueles que prosseguirem a viagem.

Laé de Souza (Férias)

Finalmente chegaram e, como sempre, ficaram umas coisas para a última hora. Do carro  calibrou pneus, abasteceu, deu aquela caprichada no som, arrumou umas fitas novas do Zezé di Camargo & Luciano e, para não ser chamado mais uma vez de machista, uma antiga do Roberto para sua mulher. Só não deu para trocar as pastilhas, mas também em estrada quase não se usa freio, matutava. Das coisas de uso coletivo e individuais, a mulher se encarregara e com certeza, como de hábito, ficariam algumas no esquecimento.

Já tinha falado; "Vamos sair na madrugada e não quero atraso." Dito e feito. Lá pelas dez horas, já estavam descarregando as coisas na casa alugada na Praia Grande. A caixa de isopor com cerveja, o litro de 51 e o limão ficaram no carro, já de frente para a rua. Antes das onze, o Arisco (nome dado carinhosamente ao Gol) estava estacionado na areia, com porta-malas aberto para expandir mais o som. No abrir das portas, o guri de cinco anos correu para o mar sem dar a mínima para os gritos de pavor e raiva da mãe. Garibaldini, normalmente nervoso, e ainda mais com umas na cabeça, arrastou o moleque da água até a mãe pela orelha, fora os cocorotes na cabeça jogando-o aos pés dela e dizendo a ela que aprendesse a agir e ensinar com mais rigor em lugar de ficar aos gritos sem resultado prático. 

Um gorducho, sentado na areia, que estava se sentindo incomodado com aquele barulhão da música e agora com o choro do garoto, olhou feio. Um outro com dedo em riste, falou-lhe sobre o direito e estatuto da criança, ameaçando encanar o Garibaldini por infringir o artigo 5° da Lei 8.069/90. Coisa que logo passou, pois o fulano percebeu em pouco tempo que o moleque não era brincadeira e aprontava uma atrás da outra. Como ele mesmo disse tomando um gole da caipirinha: "É, seu Garibaldini, esse pra educar, vai ter que ser nos trancos mesmo." Sob reprovação no olhar da Dona Tidinha que se ensaboava com o bronzeador. 

Com o sol já se pondo, Garibaldini reclamava que a mulher quase não tinha ido na água e estava toda vermelha. Com certeza não ia aguentar até o fim das férias. E se era só para tomar sol, que ficassem na represa. 

Tidinha que sempre ficava na dela, mas tinha tomado uns goles de batida de abacaxi, respondeu que nem se compara o sol de água salgada com o de doce. E tinha outra: que ele maneirasse nas olhadelas para uma fulana deitada numa esteira em frente, senão ela ia aprontar uma boa, ainda mais altinha como estava.

Ao cabo de dez dias de praia, chegaram de viagem tarde da noite. No dia seguinte, no banco, Garibaldini, não bastasse o ardor das queimaduras, abria a boca de sono e preguiça e pensava; que férias são estas, que cansam mais e ainda deixam preocupações em cobrir cartão de crédito e estouro de conta. E reclamava para o colega ao lado: "Vida de bancário não está fácil não."

Fonte: Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000. Enviado pelo autor.

Fabiane Braga Lima (Ela se reconstruiu)

Todos os dias ela sonhava com ele. Ela tímida, nunca disse os seus verdadeiros sentimentos. Nem precisava ser perceptível o quanto ela queria. E a saudade era grande, mas fez com que ela caminhasse e pudesse se enxergar. Aliás viver de fantasia era exaustivo e inexato.

O tempo passou rápido e a saudade foi aumentando, também ela nunca se abriu com ele, seria tempo perdido. Certo dia, ela se olhou no espelho, olhou para dentro do seu interior e por fora, estava pálida. E por dentro indecifrável, não havia palavras para definir. Tudo que viveu, era um verdadeiro delírio. 

Bom! Acho que ela nunca quis a suposta paixão, queria mostrar somente a sua arte. Viver de arte. Mas com tanta mentira em sua volta, não havia outra esperança. Então, ela acordou para vida, com objetivos novos, e o mais resoluto de todos foi enxergar a mentira, na qual vivia.

Ninguém que seja lúcido engana- se por tanto tempo! E, o próprio tempo nos mostra. Não a conheci, mas admiro sua coragem de enfrentar seus demônios....! Enfim, viva a arte. A arte!

Fonte: Texto enviado por Samuel da Costa.

Recordando Velhas Canções (Retrato em branco e preto)


Compositores: Chico Buarque e Tom Jobim

Já conheço os passos dessa estrada
Sei que não vai dar em nada
Seus segredos sei de cor
Já conheço as pedras do caminho
E sei também que ali sozinho
Eu vou ficar tanto pior
E o que é que eu posso contra o encanto
Desse amor que eu nego tanto
Evito tanto e que, no entanto
Volta sempre a enfeitiçar
Com seus mesmos tristes, velhos fatos
Que num álbum de retratos
Eu teimo em colecionar

Lá vou eu de novo como um tolo
Procurar o desconsolo
Que cansei de conhecer
Novos dias tristes, noites claras
Versos, cartas, minha cara
Ainda volto a lhe escrever
Pra lhe dizer que isso é pecado
Eu trago o peito tão marcado
De lembranças do passado e você sabe a razão
Vou colecionar mais um soneto
Outro retrato em branco e preto
A maltratar meu coração
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A Melancolia do Amor em 'Retrato Em Branco e Preto'
A música 'Retrato Em Branco e Preto', composta por Tom Jobim, é uma expressão lírica da melancolia e da resignação diante de um amor que persiste apesar da dor e da consciência de sua natureza infrutífera. A letra revela um eu-lírico que conhece bem o caminho do amor, suas dificuldades e armadilhas, mas que, mesmo assim, se vê incapaz de resistir ao encanto que esse amor exerce sobre ele.

A repetição dos 'passos dessa estrada' e o conhecimento dos 'segredos' e das 'pedras do caminho' sugerem uma relação amorosa que se repete em ciclos, onde o sofrimento é uma constante. A imagem do álbum de retratos serve como metáfora para as memórias que o eu-lírico insiste em guardar, mesmo sabendo que elas apenas reforçam a dor de um amor que parece condenado. A referência ao 'retrato em branco e preto' evoca uma sensação de algo antigo, imutável e desprovido de vida ou cor, simbolizando a estagnação emocional do protagonista.

A música também aborda a dificuldade de se libertar de um amor que já causou sofrimento, mas que ainda assim é objeto de desejo e inspiração para a poesia. O 'soneto' e o 'retrato em branco e preto' que o eu-lírico decide colecionar são representações desse amor que, apesar de tudo, continua a 'maltratar' seu coração. A canção é um retrato da complexidade dos sentimentos humanos, onde amor e dor coexistem e se entrelaçam de maneira inextricável.

Segundo sua irmã Helena, Tom Jobim compôs o tema “Zíngaro”, inspirado em um violinista cigano, que “na verdade era ele próprio, radicado naquele estranho mundo (os Estados Unidos) e sentindo saudade de seu país”.

Em 1965, a composição foi incluída no elepê A certain Mr. Jobim, gravado numa igreja transformada em estúdio, em Manhattan com a participação de um de seus arranjadores favoritos, o alemão Claus Ogerman.

O título “Retrato em Branco e Preto” surgiu depois, com a letra dramática de Chico Buarque, que trata de um amor desesperado (“Lá vou eu de novo como um tolo / procurar o desconsolo / que cansei de conhecer / novos dias tristes / noites claras / versos, cartas, minha cara / ainda volto a lhe escrever”).

Mais uma vez, Tom Jobim oferece uma lição de economia e inteligência. Os três primeiros compassos, criados sobre uma melodia de quatro notas vizinhas ré, dó sustenido, mi e dó natural — são idênticos, mas, com harmonizações diferentes. O intervalo inicial da canção, uma segunda menor, vai sendo ampliado e explorado de várias maneiras à medida que a melodia avança, aumentando a tensão, a dramaticidade, o que é muito bem aproveitado no poema do Chico.

Ritmicamente dos dezesseis compassos de “Retrato em Branco e Preto”, treze são absolutamente iguais, formados por oito colcheias. Tais observações podem primeira vista, levar à conclusão de que a canção é repetitiva e até pobre quando na realidade é exatamente o oposto, um tratado sobre o que possível fazer com um intervalo de duas notas. Tom Jobim sabia como ninguém partir de uma célula simples e enriquece-la ao máximo.

Em 1968, “Retrato em Branco e Preto” seria gravado pelo próprio Tom com o Quarteto 004. Esta foi a primeira de uma série de interpretações emocionantes como as de Chico Buarque, Elis e Tom, João Gilberto (em três registros diferentes) e a do trompetista Chet Baker, que em gravação filmada para o documentário “Let’s Get Lost”, feita pouco antes de sua morte, realizou num improviso comovente um autêntico hino de amor a Jobim (A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34).

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “20”

 

Mensagem na Garrafa = 128 =


APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Traumas 

AS INCISURAS invisíveis da alma –, ou aqueles talhos sangrentos que não dimensionamos à olhos nus, são como terremotos internos que abalam as estruturas mais profundas do nosso ser. Elas não escolhem hora nem lugar, tampouco avisam que estão coladas em nossa pele. Sempre deixam cancelas profundas e marcantes que nem o tempo é capaz de apagar, pelo menos de uma maneira que acreditamos completa e sem melindres para reclames posteriores.                                                                               
 
Cada pessoa carrega dentro de si seus medos e aflições, assombros e espantos de maneira única, tipo assim, como se fosse uma ferida questionando a maneira de como vemos o mundo e interagimos com ele. São memórias dolorosas alojadas em cantos e desvãos esquecidos dentro da mente e, para o nosso desespero, emergem do corriqueiro nosso de cada dia, notadamente quando menos esperamos. 

As repugnâncias e as decepções, podem nascer de momentos de grandes dissabores, seja por perda ou por simples melancolia. Podem vir, em paralelo, tipo uma infância difícil, uma quadra de relações debilitadas sem motivos aparentes, ou seja, de palavras vazias que somente têm por objetivo ficarem mais profundamente visíveis que qualquer outro corte físico. Elas nos ensinam, apesar dos pesares, a sermos moderados, cautelosos e prudentes. 

Nós, brasileiros, de um modo geral, não somos, nem levamos a coisa à sério. Vivemos dispersos, voando em sonhos sem futuro lógico. Se estivéssemos ligados e atentos, unidos e agregados em um objetivo (vinte e quatro horas por dia), construiríamos muros altos ao redor do nosso coração e de suas fragilidades. Desse modo, olharíamos com mais atenção e carinho para o horizonte e, sobretudo, encararíamos o futuro com uma forte dose de esperança. Existe, por conta de tal imprevisto, pequenos outros entraves. Quais seriam?! As escoriações e os traumas. Referidas figuras também podem ser empecilhos, e sempre afloram com algo embutido no mesmo pacote. 

Outras situações rigorosas surgem a todo instante, nos ensinando lições valiosas sobre superação. Aprendemos a nos levantar após cada queda, a curar e tratar as feridas com compaixão e a transformar a dor em força.  A jornada de cura dos traumas é pessoal e muitas vezes solitária. Requer coragem para enfrentar de peito aberto e cabeça erguida, os fantasmas do passado. Atrelado a esses espectros, feito unha e carne, devemos alimentar a vontade férrea de buscar ajuda urgente quando ela se fizer necessária. 

Nessas horas, uma terapia ou o apoio de amigos e familiares são fundamentais no decorrer desse processo. É importante lembrarmos que, embora os percalços façam parte ativa do que somos, eles não nos definem. Tais imposições, nos ensinam apenas que somos muito mais poderosos que as nossas experiências, notadamente as doridas e amargas. Com o tempo, cultivando a paciência e o trabalho, poderemos aprender a conviver com os nossos piores pesadelos, sem permitirmos que eles destruam as nossas vidas ou a de nossas famílias. 

No final, os traumas, ou as crises, são apenas partes indistintas da complexa tapeçaria que nada mais é que a experiência humana disfarçada em outra roupagem. Eles, os traumas, nos ensinam, mais, ou melhor, nos mostram, nos orientam e nos falam abertamente sobre a vulnerabilidade e a força. Do mesmo modo, nos capacitam sobre a teoria do “se quebrar e se reconstruir.” Talvez, paralelamente, nos tornem mais empáticos e compreensíveis com as lutas e pelejas dos outros, todos, obviamente sem distinção de raça ou credo. 

O fato é que, de repente, sem que esperemos por algum resultado benéfico, poderemos ter diante de nosso cotidiano, as nossas batalhas internas, e, de roldão, as guerras particulares refreadas, saradas e apaziguadas, ou mesmo resultado, qualquer outro traumatismo que nos tente levar para o buraco da perdição, ainda que infâmias que no dia a dia, minuto a minuto pelejam arduamente para nos tirar o foco, ou a paz e o sossego da verdadeira jornada que intencionamos seguir trilhando... se faz mister termos os olhos abertos. A mente em alerta, o corpo todo em estado de vigilância total. Dessa forma, simples e corriqueira, conseguiremos a condução da tão sonhada, desejada e querida FELICIDADE.

(Texto enviado pelo autor)

Luís da Câmara Cascudo (O bem se paga com o bem)

A onça caiu numa armadilha preparada pelos caçadores e, por mais que tentasse escapar, ficou prisioneira. Resignara-se a morrer, quando viu passar um homem. Chamou-o e lhe pediu que a libertasse.

— Deus me livre! — disse o transeunte. – Se você ficar solta, devorar-me-á.

A onça jurou que seria eternamente agradecida, então o homem desatou as cordas que seguravam a tampa do alçapão e ajudou a onça a deixar a cova. Logo que esta se encontrou livre, agarrou seu salvador por um braço, dizendo:

— Agora você é o meu jantar.

Debalde o homem pediu e rogou. A onça, finalmente decidiu:

— Vamos combinar uma coisa. Ouvirei a sentença de três animais. Se a maioria for favorável ao meu desejo, comê-lo-ei.

O homem aceitou e saíram os dois. Encontraram um cavalo, velho, doente, abandonado. A onça narrou o caso. O cavalo disse:

— Quando eu era moço e forte trabalhei e ajudei o homem a enriquecer. Qual foi o meu pagamento? Largaram-me aqui para morrer, sem um auxílio. O bem só se paga com o mal.

Adiante depararam com um boi. Consultado, opinou pela razão da onça. Contou sua vida de serviços ao homem e, quando julgava que ia ser recompensado, soube que fora vendido para ser morto e retalhado pelo açougueiro. O bem só se paga com o mal.

O homem, triste, acompanhava a onça que lambia o beiço, quando viram um macaco. Chamaram o macaco e pediram o seu parecer. O macaco começou a rir. A onça ia-se zangando:

— Por que tanta risada, camarada macaco?

— Não é fazendo pouco, — explicou o macaco — é que eu não acredito que o homem caísse na armadilha que ele mesmo preparou.

— Ela não caiu. Quem caiu foi eu. — contava a onça.

— Foi você? Então como é que esse homem fraquinho pôde libertar um bicho tão grande e forte como a camarada onça?

A onça, despeitada pelo macaco julgá-la mentirosa, foi até o alçapão e saltou para o fundo do fosso, gritando lá de baixo:

— Está vendo? Foi assim!

Mais que depressa o macaco empurrou o engradado de varas pesadas que fazia de tampa e a onça tornou a ficar prisioneira.

— Camarada onça! - sentenciou o macaco — O bem só paga com o bem. E como você fez o mal, receba o mal.

E se foi embora com o homem, deixando a onça para morrer de fome na armadilha.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público. in Jangada Brasil, Abril 2011 - Ano XIII - nº 146 . acesso em 20 de dezembro de 2012.