terça-feira, 31 de maio de 2022

Versejando 113

 

Milton S. Souza (A menina da praia)

Ela nasceu em Tramandaí e passou a infância na beira da praia, ajudando o pai nas pescarias, no inverno, e trabalhando com a mãe no quiosque de venda de lanches, quando a praia ficava lotada no verão. Gostava de estudar e carregava dentro do seu coração o sonho de ser médica. Também adorava dançar. E foi exatamente nos bailes caseiros que ela começou a notar que os coleguinhas preferiam as outras meninas. Ela sempre ficava “esquentando o banco” por um bom tempo. O apelido de “gordinha” serviu para deixar a garota irritada. Mas serviu também para uma decisão: precisava emagrecer de qualquer maneira, pois, aos 13 anos de idade, até parecia uma daquelas baleias que apareciam no meio do mar. Precisava mudar.

Uma coleguinha receitou um “chá milagroso”, mistura de diversas ervas conhecidas com uma outra erva, mais forte, chamada cofrei. Ficou por quase um ano tomando aquele chá (escondido dos pais, é claro). E começou mesmo a emagrecer rapidamente. Mas junto com a magreza surgiu uma fraqueza nas pernas. Em pouco tempo já nem conseguia caminhar. Apavorados, sem dinheiro e sem cobertura de um plano de saúde, os pais procuraram socorro em Porto Alegre. Após perambularem por vários hospitais, serem atendidos por diversos médicos, os dois escutaram o diagnóstico terrível: a filha estava com câncer na espinha. Não voltaria a caminhar e teria pouco tempo de vida...

O casal sentiu o chão se abrir. Ainda ficaram por vários dias em Porto Alegre, chegando a dormir em bancos de praça por causa da falta de dinheiro. Quando os guardas deixavam, dormiam no saguão do hospital. Passavam fome e frio. Mas estavam pertinho da menina, que continuava emagrecendo. Na primeira melhora, com alta hospitalar, levaram a filha de volta para Tramandaí. Se não existia possibilidade de cura, ficariam mais perto dos vizinhos e dos amigos. Na praia a vida era mais calma e os “pilas” não sumiam tão rapidamente do bolso. E a garota começou a se adaptar, numa cadeira de rodas, iniciando uma nova vida. Seus olhos castanhos brilhavam quando falava em melhorar, voltar a estudar e cursar Medicina. Sonhava também participar dos bailes na vizinhança. Mas as suas pernas não queriam mais dançar...

Por cerca de um ano, enfrentou aquela agonia. Era muito teimosa: não gostava de ficar parada em casa. Muitas vezes, quando a mãe retornava do trabalho, ela estava lavando a casa ou arrumando a cozinha, se arrastando pelo chão. Fazia de tudo para não se entregar para a doença (não sabia que estava condenada). E até começou a planejar a sua festa de 15 anos. Queria um vestido branco, bem comprido, que tapasse a cadeira de rodas. Queria que o pai entrasse com ela no salão, mesmo sabendo que não poderia dançar a valsa. Queria todos os seus amigos em volta, para cantar com eles, como fazia nas festinhas da escola...

Poucos dias antes do seu aniversário, foi ficando cada vez mais fraca. Quase nem saia da cama. Pouco conversava. Num sábado de sol, porém, acordou disposta e pediu para dar uma volta na beira da praia. Com a cadeira de rodas empurrada pela mãe, deixou o verde do mar invadir os seus olhos castanhos. Ficou por longo tempo olhando os navios atracados na plataforma da Petrobras. Espantou as gaivotas, atirando punhados de areia. Antes de voltar, deixou as ondas beijarem os seus pés, fazendo  as rodas da cadeira atolar na areia. Voltou para casa muito cansada, mas com um sorriso nos lábios. Foi a sua despedida do mundo que tanto adorava. Na hora de dormir, pediu para a colocarem o vestido branco (comprado para os 15 anos) em cima da cama. Depois de dar um “boa noite” para toda a família, descansou. Sua vida terminou antes do sol nascer novamente. Morreu dormindo, sem um gemido, sem uma queixa. Partiu para o infinito poucos dias antes da sua festa. Seus pais entenderam aquela partida: certamente ela resolvera realizar no céu o seu baile de debutante…

Cecília Meireles (Antologia Poética) = 7 =

ATITUDE

Minha esperança perdeu seu nome...
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.

O último passo do destino
parará sem forma funesta,
e a noite oscilará como um dourado sino
derramando flores de festa.

Meus olhos estarão sobre espelhos, pensando
nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.

E um campo de estrelas irá brotando
atrás das lembranças ardentes.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

DESVENTURA

Tu és como o rosto das rosas:
diferente em cada pétala.

Onde estava o teu perfume? Ninguém soube.
Teu lábio sorriu para todos os ventos
e o mundo inteiro ficou feliz.

Eu, só eu, encontrei a gota de orvalho que te alimentava,
como um segredo que cai do sonho.

Depois, abri as mãos, — e perdeu-se.

Agora, creio que vou morrer.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

EPIGRAMA N. 5

Gosto de gota d'água que se equilibra
na folha rasa, tremendo ao vento.

Todo o universo, no oceano do ar, secreto vibra:
e ela resiste, no isolamento.

Seu cristal simples reprime a forma, no instante incerto:
pronto a cair, pronto a ficar — límpido e exato.

E a folha é um pequeno deserto
para a imensidade do ato.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

EPIGRAMA N. 6

Nestas pedras caiu, certa noite, uma lágrima.
O vento que a secou deve estar voando noutros países,
o luar que a estremeceu tem olhos brancos de cegueira,
— esteve sobre ela, mas não viu seu esplendor.

Só, com a morte do tempo, os pensamento que a choraram
verão, junto ao universo, como foram infelizes,
que, uma lágrima foi, naquela noite a vida inteira,
— tudo quanto era dar, — a tudo que era opor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

EPIGRAMA N. 7

A tua raça de aventura
quis ter a terra, o céu, o mar.

Na minha, há uma delícia obscura
em não querer, em não ganhar...

A tua raça quer partir,
guerrear, sofrer, vencer, voltar.

A minha, não quer ir nem vir.
A minha raça quer passar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

GRILO

Máquina de ouro a rodar na sombra,
serra de cristal a serrar estrelas...

Caem pedaços de sono, entre os silêncios,
em grandes flores, mornas e dóceis,
com o peso e a cor de vagas borboletas.

Rostos de espuma, nomes de cinza,
— a vida sobe nos caules da noite, pouco a pouco.

Máquina de ouro tremendo no ar de vidro frio,
cortando o broto das palavras rente à boca...

Desmanchando nos dedos arquiteturas que iam parando,
e livros de imagens que o vento compunha, ilógicamente.

Ah! que é dos ramos de estrelas finamente desprendidas,
pela sonora lâmina que estás vibrando sempre, sempre?

Que é das noites extensas, de ares mansos de alegrias,
sem ruas, sem habitantes, sem solidão, sem pensamento?

Que é das mãos esperando o amanhecer definitivo
e caídas também na torrente do tempo?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

LUAR

Face do muro tão plana,
com o sabugueiro florido.

O luar parece que abana
as ramagens na parede.

A noite toda é um zumbido
e um florir de vagalumes.

A boca morre de sede
junto à frescura dos galhos.

Andam nascendo os perfumes
na seda crespa dos cravos.

Brota o sono dos canteiros
como o cristal dos orvalhos.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

PAUSA

Agora é como depois de um enterro.
Deixa-me neste leito, do tamanho do meu corpo,
junto à parede lisa, de onde brota um sono vazio.

A noite desmancha o pobre jogo das variedades.
Pousa a linha do horizonte entre as minhas pestanas,
e mergulha silêncio na última veia da esperança.

Deixa tocar esse grilo invisível
— mercúrio tremendo na palma da sombra —
deixa-o tocar a sua música, suficiente
para cortar todo arabesco da memória...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

VALSA

Fez tanto luar que eu pensei nos teus olhos antigos
e nas tuas antigas palavras.
O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos
que tornei a viver contigo enquanto o vento passava.

Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto
e modelou tua voz entre as algas.
Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
e estudo apenas o ar e as águas.

Coitado de quem pôs sua esperança
nas praias fora do mundo...
— Os ares fogem, viram-se as águas,
mesmo as pedras, com o tempo, mudam.

Fonte:
Cecília Meirelles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.

A. A. de Assis (Adélia, a poeta)

Há pessoas que são mais do que pessoas. Sei lá se é bem isso que estou querendo dizer, mas é mais ou menos isso. Há pessoas que são um pouco mais. Há pessoas que são Adélia Prado. Adiante falarei dela. Primeiro preciso falar da televisão.

Sou grato demais ao cara boa-cabeça que inventou a televisão. Tem gente que bota culpa nela pelo destramelamento dos costumes. Pode ser até que em parte sim. De qualquer modo, acho que ela faz mais bem do que mal. Pelo menos para os velhinhos como eu. Vejo nela um telejornal por dia para acompanhar a história do mundo; vejo todo dia a missa das 18h na TV Aparecida; futebol só vejo quando tem jogo da seleção brasileira. Mas o que curto mesmo é ver filmes na Netflix e na Prime e navegar no Youtube.

Faz pouco tempo tirei uma semana para ver/ouvir uma série de entrevistas da poeta Adélia Prado. Coisa gostosa é escutar conversa de gente inteligente e simpática. Adélia é assim. A gente escuta, escuta e não se cansa de escutar, ainda mais com aquele tão bonito sorriso dela.

A querida escritora nasceu e mora mineira há 88 anos em Divinópolis. Sempre igualzinha. Mudam as modas, mudam os modismos, Adélia continua Adélia. Nada muda nela, que bom que não muda. A mesma mulher independente, alegremente religiosa, corajosa, sábia. Só sai de Minas para de vez em quando ir a algum lugar derramar poesia. Sempre de ônibus, porque tem medo de avião. Sempre adelissimamente simples, espontânea, doce.

Última grande poeta brasileira conhecida, lida, ouvida e aplaudida em todo o Brasil. Não dá para falar aqui de toda a sua lindíssima obra. Dá, porém, para recordar alguns dos seus muitos deliciosos versos. Prepare o seu coração. Escute Adélia:

“Eu quero amar feinho. / Amor feinho é bom porque não fica velho”. “A poesia me pega com a sua roda dentada. / Eu corro ela corre mais, / eu grito ela grita mais, / me pega na ponta do pé / e vem até na cabeça”. “Eu ponho o amor no pilão com cinza e grão / e soco. Macero ele”.

“O reino do céu é semelhante / a um homem como você, José”. “Falo em latim pra requintar meu gosto”. “O que a memória ama / fica eterno. Te amo com a memória imperecível”. “Te alinho junto das coisas que falam / uma coisa só: Deus é amor”. “Não sou feia que não possa casar”. “Eu te amo exatamente como amo / o que acontece quando escuto oboé”. “Meu coração vai desdobrando / os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos”. “Deus é mais belo que eu. / E não é jovem. / Isto sim, é consolo”. “Nem me adiantou envelhecer, / partes de mim continuam adolescentes”.

“Minha tristeza não tem pedigree, / já minha vontade de alegria, / sua raiz vai ao meu mil avô”. “Minha mãe achava estudo / a coisa mais fina do mundo”. “Súbito é bom ter um corpo pra rir / e sacudir a cabeça. / A vida é mais tempo alegre do que triste”. “Bem-aventurado o que pressentiu quando a manhã começou”. “Quem entender a palavra entende Deus, / cujo Filho é o Verbo”, “Janela, palavra linda. / Janela é o bater das asas da borboleta amarela”. 

Há, sim, pessoas que são um pouco mais. Há pessoas que são Adélia Prado.
=================================
(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 19-5-2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.


segunda-feira, 30 de maio de 2022

Daniel Maurício (Poética) 31

 

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XLIV

ABRAÇO VAZIO


MOTE:
Quando em meus braços te aperto
numa ternura sem fim,
eu sinto que mesmo perto
tu ficas longe de mim.
Clênio Borges
(Porto Alegre/RS)


GLOSA:
Quando em meus braços te aperto
bate forte o coração
e inteira me desconcerto
com uma enorme emoção!

Terminam os meus cansaços
numa ternura sem fim,
na doçura dos abraços
que em sonhos, tu dás a mim!

Mas sendo meu sonho incerto,
ser feliz eu não consigo,
eu sinto que mesmo perto
tu jamais estás comigo!

Eu sinto angústia, até quando
estamos juntos, enfim...
É que, mesmo me abraçando,
tu ficas longe de mim.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

METADE?

MOTE:
Metade da minha vida
eu passei sozinha, assim,
numa ilusão já perdida
sem você perto de mim.

Dalvina Fagundes Ebling
(Cruz Alta/RS, ?? – 2020)


GLOSA:
Metade da minha vida
pensei em você, meu bem...
N’outra metade vivida,
pensei em você, também!

Pensando, sempre pensando
eu passei, sozinha, assim,
você, de mim, se afastando
aproximou o meu fim!

Minha lágrima caída
formou um lago de dor,
numa ilusão já perdida
afogando o meu amor!

Não sei pra que respirar,
para que viver, enfim?
A vida vai terminar
sem você perto de mim.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

PARA ALGUÉM QUE PARTIU...

MOTE:
Deixando a terra em saudade,
lá no céu vive a bonança
de morar na eternidade
tão viva em nossa lembrança!

Elisabeth Souza Cruz
(Nova Friburgo/RJ)


GLOSA:
Deixando a terra em saudade,
para sempre, tu partiste
e, sem ti, felicidade
aqui, já não mais existe!

Mas a tua alma tão pura,
lá no céu vive a bonança
pois deixaste só ternura
para nós, em tua herança!

Acredito de verdade
que estás feliz, que estás bem,
de morar na eternidade
onde, um dia, irei também!

Só o teu corpo está ausente,
vivemos dessa esperança,
pois continuas presente
tão viva em nossa lembrança!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

LÁGRIMAS...

MOTE:
Lágrimas... triste verdade
de uma ausência permanente,
é o recesso da saudade
que fica dentro da gente.

Fernando Câncio Araújo
(Fortaleza/CE, 1922 – 2013)


GLOSA:
Lágrimas... triste verdade
são as vertentes da dor
onde vemos a maldade
escondendo até o amor!

Sentimos forte presença
de uma ausência permanente,
e nossa esperança e crença
fogem repentinamente!

Enfrento a realidade
no pranto que jorra triste,
é o recesso da saudade,
de um algo que, ainda, existe!

É uma lembrança real,
é o passado, no presente,
é uma marca sem igual
que fica dentro da gente.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

VOCÊ.. NO MEU SONHO!...

MOTE:
Cada vez que tenho um sonho,
formas, luzes, cores, som,
é você que lá eu ponho,
para o sonho ficar bom!

Fernando Vasconcelos
(Diamantina/MG, 1937 – 2010, Ponta Grossa)


GLOSA:
Cada vez que tenho um sonho,
sentindo você comigo,
eu fico feliz, risonho...
esse sonho é o meu amigo!

Me faço, então, diretor:
formas, luzes, cores, som.
Ponho um enredo de amor,
e música de bom tom!

Sonhando, não sou tristonho,
no palco do coração.
é você que lá eu ponho
e vibra minha emoção!

Realizo o meu desejo.
Saber ser feliz é um dom.
Eu lhe dou um grande beijo
para o sonho ficar bom!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXIV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2005.

Nilto Maciel (A Grande Ave de Rapina)

Quase morri de espanto e medo, quando vi pela primeira vez a grande ave. Instintivamente deitei-me. Talvez por isso ela não deva ter visto a minha pessoa. Pousou lentamente, recolhendo as asas. Vagou a vista pela plantação e, a passos largos, dirigiu-se ao espantalho. Horrorizei-me: com duas bicadas violentas estraçalhou o boneco.

Parece um gavião, não fosse este tão pequeno. As pernas são de dois metros a mais. O bico figura tesoura de cortar galhos. Quando estende as asas lembra um avião.

Quase todo dia vejo o pássaro gigante. Surge de inopino (de repente), em voo rasante, comete uma rapina e foge. Às vezes pousa no lombo de uma vaca. Espeta as garras na barriga da presa e levanta vôo. No céu aquele gavião imenso e uma rês em gemidos de morte. Os animais menores ele os devora no próprio local da captura. Pousa, dá uma bicada na cabeça da vítima, e, em pouco tempo, não resta mais nada a mastigar.

Impotente, fui à cidade em busca de socorro. Alguns riram de mim. Aguentei calado as zombarias. Afinal, eles são autoridade. São aves de rapina, eu sou bichinho do mato. Disseram não existir ave maior no mundo que a águia. E em nossos ares não voam tais predadores. Sou um mentiroso. Nunca me haviam chamado assim. E, se eu não parasse de aterrorizar o povo com notícias falsas, um calabouço me esperava. Outros vieram em meu socorro: eu certamente me fizera louco. Nada de interrogatório e tortura. Bastava me internarem num manicômio. Com camisa-de-força, choque elétrico e outros tratamentos eu logo esqueceria as aves de rapina. Um senhor muito risonho sugeriu amarrarem-me pés e mãos e conduzirem-me ao campo onde tem aparecido o pássaro. Outro senhor me prometeu uns chifres. Assim eu semelharia um boi. Falaram ainda em espantalho. E gargalhavam: “com duas bicadas o gavião acaba esse espantalho”.

Depois da viagem nunca mais falei da grande ave de rapina. Se encontro um vaqueiro, fujo com medo de conversa. Vaca sumida, vaca comida.

E fico aqui sozinho, dia após dia, tremido de medo, miudinho, olho no gavião, que volta e meia retorna, espeta aqui e bica ali, devorador e insaciável.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (A escrava branca)

A história de uma certa escrava branca chamada Isaura, que se passava nos primeiros anos do reinado de Dom Pedro II, numa fazenda de café do Rio de Janeiro, foi belamente desenvolvida pelo autor Bernardo Guimarães. E tem muitíssimo a ver com os acontecimentos dos dias atuais.

Isaura era filha da jovem mucama Juliana, com o bondoso feitor de pele branca, Miguel. Juliana era a serviçal favorita da matriarca Ester, dona da casa grande da fazenda. Mesmo assim, Juliana sentia – se incomodada com as insinuantes abordagens do Comendador Almeida, marido da generosa Ester. O patrão, vendo que suas investidas eram em vão, mandou a moça para a senzala. Lá, Juliana foi profundamente castigada, mas mesmo vivendo em meio a um verdadeiro inferno, ela se encanta por Miguel, com quem tem um romance e engravida. Muito maltratada, a jovem morreu após o parto. A matriarca adota a menina, que nasce com a pele alva feito neve, e que se chamaria Isaura. Ela cresce tendo direito à educação e, no futuro, torna-se uma jovem requintada, doce e dona do coração mais íntegro e puro que as pessoas daquela casa conheciam.

Isaura era feliz e sentia-se protegida naquele ambiente. Até que, Leôncio, o filho da matriarca, retorna da Europa, onde vivia. O rapaz, ao conhecê-la, instantaneamente apaixona-se por ela. E logo passa a assediá-la. A moça resiste às investidas. Até mesmo porque o jovem era noivo de uma jovem chamada Malvina. Contudo, a sua protetora vem a adoecer e morre. Com a morte de sua senhora, ela fica sob a proteção do carrasco Leôncio. E seguindo o destino que cada dia assemelhava–se mais com o destino da sua mãe, continua a resistir aos assédios. Com isso, vai para a senzala e lá passa por constantes castigos. Mas seu pai, que não trabalhava mais na fazenda, ressurge e foge com ela para Recife. Lá, Isaura conhece Álvaro, um rapaz rico, abolicionista, e que menospreza a escravidão. Quando sua vida parecia melhorar, Isaura, a convite de Álvaro, vai a uma festa da alta sociedade, onde é descoberta por um ambicioso estudante chamado Martinho, que em troca de alguns benefícios, a denuncia para o seu senhor que a captura. O tempo passa. Leôncio descobre–se falido. E sabe quem compra todos os seus bens, incluindo a própria escrava Isaura? Álvaro.

Desesperado, Leôncio se mata com um tiro na cabeça. E, enfim, a escrava branca é libertada e pode ser feliz sem nada a temer.

Essa famosa história, escrita em linguagem romântica, lançada no século XIX, nos remete a quadros atuais, onde a condição do ser feminino, em muitos lares e áreas de trabalho, ainda sofre com o assédio e com a violência de homens, que ainda insistem em se apropriarem das mulheres da maneira indescritível.

Em pleno 2022, ao abrirmos os jornais, ligar a TV ou acessar a internet, logo nos deparamos com essa triste realidade.  Deve-se lançar um olhar mais carinhoso às escravas Isauras do século XXI. Pois é inadmissível pensar que justamente por não temerem passar por severas punições, tantos homens permaneçam insultando, assediando e até mesmo, matando mulheres.  

Onde a justiça não se cumpre, irremediavelmente a violência entra e se farta!

Fonte:
Texto enviado pela autora.

domingo, 29 de maio de 2022

Varal de Trovas n. 560

 

Moacyr Scliar (Cara de velho, cabeça de velho)

Rugas podem ser decisivas para comprar cigarro no Japão.  Máquinas que vendem cigarros no Japão podem começar  em breve a contar as rugas para verificar se quem está  comprando tem idade suficiente para fumar. A idade legal  para fumantes no Japão é de 20 anos. (19/05/2008)  


Quando ficou sabendo que as máquinas de vender cigarros  seriam equipadas com um dispositivo capaz de avaliar a idade do  comprador pelas rugas do rosto, ele ficou irritado e preocupado.  Irritado porque, apesar de ter apenas treze anos, era um fumante  inveterado, consumindo pelo menos uma carteira por dia, e não  admitia que alguém tentasse impedi-lo de fazer isso. Várias vezes  a mãe, viúva (o pai falecera quando ele era ainda criança), pedira  que o filho deixasse de fumar; sempre respondia com impropérios. “Sou dono do meu nariz”, gritava, “pouco me importa se o  fumo faz mal ou não, eu quero fumar e vou continuar fumando.”  

O problema, portanto, não era a mãe. O problema era a máquina.  Com a mãe podia gritar, a mãe podia ser intimidada; a máquina não. Se a implacável lente mirando seu rosto transmitisse para o computador uma imagem incompatível com o rosto de um adulto, ele  estaria simplesmente ferrado. A máquina era o lugar onde sempre comprava, porque em outros lugares jamais lhe venderiam o produto.

Só havia uma coisa a fazer: arranjar cara de velho (velho,  para ele, era qualquer pessoa com mais de 20 anos). Mas de que  maneira? Menino inteligente, várias possibilidades lhe ocorreram. A primeira: usar, diante da máquina, uma máscara de velho,  dessas que são vendidas em lojas de disfarces. Mas isso seria um  problema. Se, diante da máquina, colocasse a máscara, não faltaria  alguém para denunciar a fraude aos responsáveis, o que seria no  mínimo um aborrecimento.  

Outra possibilidade: maquiagem. Tinha uma vizinha que era  maquiadora profissional, poderia lhe pedir que o transformasse  num ancião, ou pelo menos num adulto capaz de comprar cigarros. Mas isso exigiria que a procurasse periodicamente. A moça  acabaria cansando dessa história. Além disso, a ideia de andar  maquiado pela rua não lhe agradava.  

Só restava uma alternativa: ficar mesmo com cara de velho. Sabia  que rugas aparecem com o tempo, com as preocupações, com o sofrimento. Mas poderia acelerar esse processo, mediante esforço pessoal.  E foi o que fez: todos os dias ficava na frente do espelho, franzindo a  testa, contraindo a face, tudo para produzir rugas. E rugas começaram mesmo a surgir, ou pelo menos assim ele o achava.  Mas ao mesmo tempo uma estranha mudança começou a ocorrer. Ele agora se sentia velho, olhava o mundo com olhos de velho,  e de velho rabugento. Já não podia suportar garotos barulhentos, garotos desaforados, garotos que não respeitavam pessoas de idade.  

A todo instante repreendia seus amigos, para espanto deles - e para  espanto dele próprio. Meu Deus, pensava, não é que as rugas estão  mesmo me envelhecendo?  

Só havia uma solução: parar de fumar. Foi o que fez. As rugas  sumiram. Uma tossezinha seca que o incomodava sumiu. Não briga mais com a mãe. E aguarda com tranquilidade o dia em que se  transformará num velho, enrugado, mas contente consigo próprio.

Fonte:
Moacyr Scliar. Histórias que os jornais não contam. Ed. Agir, 2012.

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 6 –

LACRIMOSA

"No meu leito, durante a noite, busquei
aquele que meu coração ama."
(Ct. 3,1)


A tu'alma é triste
Qual funéreo sino,
Que traça o destino,
Soluçando a sorte;
Ao cair da tarde,
Terríveis anseios
Oprimem teus seios
Com odor de morte.

A tu'alma é triste
Como a mãe ferida,
Que já vê perdida
Sua filha amada;
Ao cair da tarde,
Transpassada em dores,
Carente de amores,
Padece calada.

A tu'alma é triste
Tal como o violino,
Que gagueja um hino
Com falhada voz;
Ao cair da tarde,
Só restam escolhos,
Que teus tristes olhos
Avistam a sós.

A tu'alma é triste
Tal como o condor,
Que o vil caçador
Expulsou do ninho;
Ao cair da tarde,
A tu'alma cora,
Consternada chora
Por um só carinho.

A tu'alma é triste
Como o bandolim,
Que chorou por mim
Triste despedida;
Ao cair da tarde,
São os teus cabelos
Do triste salgueiro
Ramagem caída.

A tu'alma é triste
Como o som da gaita,
E com balalaica
Acentuou seu choro;
Ao cair da tarde,
Faça uma oração,
Que os anjos irão
Abençoar-te em coro.
= = = = = = = = = = =

NO SALÃO
"...Mostra-me o teu rosto!"
(Ct. 2.14)


Neste dia negro
De febril pavor,
Meu desejo único
É te consolar.
Eu preciso muito
Aliviar tua dor
E as feridas d'alma
Com amor curar.

Vai o longo dia,
Vai mui lentamente,
Meu anseio é ver
Meu amor passar.
Um olhar apenas,
Um sorrir somente
Far-me-ão só bem,
Para me acalmar.

Sem estrela alguma
- Noite tenebrosa! -
Barulhenta festa
Naquele salão...
Eu quero o perfume
Da mais bela rosa,
Que podia estar
Entre a multidão.

Entro no recinto.
E, de quando em quando,
Atento palmilho
O extenso salão...
Meus olhos sedentos
Veem cada canto,
Mas, em cada canto,
Só há ilusão.

Não vejo mais nada...
Que posso fazer?!
Naquele local
Há imenso calor.
Eu fico frustrado,
Sem poder te ver,
Só resta-me o lenço
Pra enxugar meu suor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

SAUDADE DE OUTRORA

"Ó tu, que habitas nos jardins,
faze-me ouvir a tua voz."
(Ct. 8.13)


Com grande saudade,
Relembro-me agora,
Qual sonho tão lindo,
Dos tempos de outrora;
Sonhando eu sabia
Que alguém me esperava,
Feliz e sorrindo...
Então, me acordava.

Ao brilho do Sol,
A aurora sumia;
Alegre eu partia,
Depois do arrebol.

Eu era feliz:
Buscava meu mundo,
Que o mundo retinha,
Bem dentro de si.

E o mundo que eu tinha
No seio do mundo,
O mundo não via
Que glória era a minha.

Ao brilho do Sol,
A aurora sumia;
Alegre eu partia,
Depois do arrebol.

Eu era feliz:
Buscava o amor
- Da alma o perfume,
Que é alma da flor.

Do mundo que eu via,
Tão perto de mim,
Nem mesmo eu sabia
O tudo que eu tinha.

Com grande saudade,
Relembro-me agora,
Qual sonho tão lindo,
Dos tempos de outrora;
Sonhando eu sentia
Que alguém me esperava,
Feliz e sorrindo...
Então, me acordava…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.

Samuel da Costa (Ópera mundi [de tudo que te é avaro])


''Dê-me tua mão, diz que tem saudade…
Esqueça nosso árduo passado, vaidade
Meu corpo febril, aqueça, junto ao teu
Sem receio, diz que me deseja, sempre.''
Fabiane Braga Lima


            Lenny passa em revista seus equipamentos de trabalho disposto na pequena bancada de trabalho! Dispostas, de forma aleatória, as sofisticadas e importadas máquinas fotográficas, os últimos modelos lançados no mercado mundial, passando por ultrapassadas máquinas analógicas, indo parar em caros celulares e tablets. Mas tem a voz, a orientação do pai: — Filmes, tudo analógicos, nada destas bobagens eletrônicas atuais!

— Madalena! Traga o seu kit! E a tua mochila! — A dona da casa ainda estava olhando profundamente para o que me melhor tem a disposição. Evitou olhar para a assistente de produção como quem admite uma derrota.

— Madame? — Atônita a assistente olha para o chão sem saber o que fazer ou dizer.

— A tua câmera bag infeliz, aquela que te dei de presente não sei quando! — Lenny se vira e joga a chave do carro para a assistente. — Deixa a tua motoneta aqui e vá pegar tudo o que tens em casa, os tripés não precisa vou usar os meus. Vai mulher!

 O grito bem alto, da dona da casa fez estremecer a pequena assistente de produção, que girou nos calcanhares e se dirigiu até a garagem.

Lenny sabia que a assistente tem o que ela precisa naquela hora, a velha tecnologia mecânica, as velhas polaroides, rolleiflexes de uma série de câmaras analógicas difíceis de encontrar no mercado. Colecionadora da velha tecnologia, Madalena é a cara da corrente foto-arte, ela é ligada umbilicalmente de corpo e alma ao movimento do romantismo.

A jovem sonhadora Madalena, não se encaixa mesmo na atual avalanche tecnológica digital. Lenny sabe do amor platônico da assistente por ela, muitas das vezes Lenny pensou em levar a assistente para a cama de fato. Mas Lenny não mistura trabalho com vida pessoal, em definitivos as aventuras de Lenny eram fora de casa e fora da vida profissional.

Lenny olha para o relógio na parede, não demoraria muito para as duas modelos chegarem e fotógrafa vai vestíbulo, vai até as araras separar os figurinos que pretendia usar. A fotógrafa pensa na mãe se um dia visse a filha adorada trabalhando de camareira, a requintada senhora desmaiaria, Lenny sorri para si mesmo, pois nunca esteve tão feliz e realizada. Ela não se sentiu assim nem mesmo quando chutou o ex-namorado, um jornalista bonachão, alto e gordo, um verdadeiro imbecil, um típico membro da classe média interiorano praiana.

A fotógrafa pensa em ligar para a assistente, para apressá-la, mas prefere ir até a varanda e acender um cigarro, os cigarros mentolados de Madalena que cedo ela pegou da balsa da assistente. Lenny não se reconhecia, sempre fora livre é verdade, mas um alguém que sussurra ditames ao seu ouvido, um som quase inaudível. Ela sabia que não é um sentimento de não pertencimento é outra coisa, algo bem mais profundo. E, de repente, vem uma lembrança da infância, não muito distante, uma lembrança adormecida que ressuscitou com a visita inesperada do senhor Otto Blumenthau. Estavam de férias no litoral, a família toda, estavam na orla da praia, que tinha sofrido um engordamento recentemente, no rádio local tinha um locutor histérico que discursava com o engordamento das areias da praia.

O pai de Lenny estava sentado em uma cadeira alugada para turistas, ele estava com o rádio no colo. O velho Otto Blumenthau estava lendo um jornal de circulação nacional e o político tinha um charuto caribenho apagado na boca. No céu azul, as aves marinhas grasnavam no alto, a mãe de Lenny ao lado do pai, ambos bem vestidos com suas roupas de veraneio, o casal abrigado por um guarda-sol. E os irmão de Lenny? A fotógrafa não sabia onde estavam, só ouvia eles que gritavam um para o outro: — A bola! A bola chuta a bola! — Os dois riram alto. Também tinha o vento ameno, o barulho do vento e as ondas que quebravam na orla da praia.

E tinha o abismo gelado, ela caminhou até a beira do abismo álgido, Lenny saiu de perto dos pais e caminhou e caminhou, e veio os gritos da mãe e Lenny voltou os olhos para trás. O pai baixou o jornal, ele estava com o charuto aceso na boca naquela hora e olhou e ergueu o jornal de volta na altura dos olhos. A mãe de Lenny correu até ela e abraçou, a ergueu do chão e voltaram para onde estavam instalados. A mãe de Lenny estava chorando, parou para gritar com a babá e para os seguranças. Depois se voltou para o marido

— Vamos embora, Otto! Chega Otto! Vamos voltar pra casa!!! — Os gritos histéricos da esposa do político chamaram a atenção de todos e todas.

– Cala boca, mulher, é só um sphyrna, e ainda é só um filhote!

— Um o quê?

— Um pequeno tubarão-martelo, um filhote ainda! Eu já vi maiores e mais vorazes lá no congresso! — O pai falou com o charuto na boca enquanto a mulher chorava com a pequena Lenny nos braços. A babá sorria, os seguranças sorriam e o chefe de gabinete de Otto sorriu seco.

De volta ao tempo presente, a fotógrafa tem a fotografia do tal tubarão-martelo em toda a parte. A lembrança do pai dando a máquina fotográfica descartável, que o pai de Lenny tinha comprado de um ambulante na calçada da praia. O pai somente deu a máquina fotográfica como quem dá brinquedo para uma criança. Otto simplesmente deu para a pequena Lenny, sem dizer nada, e lá foi a pequena Lenny tirar uma fotografia do sphyrna na beira mar. E foi assim que Lenny produziu a primeira fotografia, e foi assim que o pai de Lenny, mandou revelar a fotografia e orgulhoso mandou ampliar e emoldurar a fotografia da filha.

O barulho da porta da garagem se abrindo trouxe Lenny para a realidade em que vivia. E a fotógrafa tragou a fumaça do cigarro e foi ver se Madalena cumpriu a tarefa que ela tinha dado ou escutaria uma avalanche de desculpas vagas e tolas.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sábado, 28 de maio de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 5

 

Humberto de Campos (A Coberta)

Não há quem não conheça, em todo o Brasil, a fecundidade da mulher cearense. Terra privilegiada e infeliz, em que a natureza, ao mesmo tempo, se destrói e se refaz, o Ceará constitui um caso curiosíssimo pelo modo por que aumenta, no meio das maiores calamidades, a sua população. À semelhança dos dragões fantásticos dos belos contos medievais, cujo sangue, ao cair na terra, se transformava em legiões de guerreiros, cada cearense que tomba de fome ou de sede, rebenta, no ano seguinte, multiplicado por dez. E daí serem frequentes, em todo o Estado, os casais com vinte, trinta, e até quarenta filhos, que se espalham depois pelo mundo, honrando pelo talento, e dignificando pelo trabalho, o glorioso nome do Ceará.

As famílias de prole modesta que vivem no Sul, compreendem dificilmente como pode uma pobre mãe lidar com uma tribo tão numerosa. E, no entanto, nada mais fácil para o cearense. Eu conheci, por exemplo uma senhora daquela procedência, que descobrira um processo originalíssimo de fiscalizar o seu exército de descendentes. Mãe de dezessete filhos, de um a quatorze anos, D. Josefa aproximava-se, à tarde, da mesa de cozinha, e partia, ali, uma ou duas rapaduras. Chamava os filhos e, deixando-os a comer, ia colocar-se ao lado do único pote d’água que havia na casa. Acossada pela sede, originada pela absorção do açúcar, a meninada corria, logo, a beber, enquanto D. Josefa os ia contando:

- Um. .. dois. . . três. . . quatro... cinco.. seis...

E assim por diante, até dezessete. Se havia apenas dezesseis, a bem-aventurada gambá-humana saía a procurar, como o pastor da parábola, a ovelha desgarrada.

D. Ifigênia de Medeiros, outra senhora que a seca de 1918 desterrou do seu Estado natal, possuía, entretanto, um processo mais simples. Casada em 1898, aos treze anos, com um fazendeiro de Itapipoca, teve desse consórcio abençoado, que durou seis anos, nove filhos, sendo quatro meninos e cinco meninas. Contraídas novas núpcias, no mesmo ano da viuvez (1904), com um tabelião de Sobral, forneceu D. Ifigênia ao Ceará, em mais cinco anos de matrimônio e caldos de galinha, sete meninas. Viúva pela segunda vez, casou em 1909 com um agricultor da serra de Uruburetama, a quem deu cinco meninos e cinco meninas, em nove anos. Perdido este terceiro esposo em 1918, recusou a fecundíssima senhora seis ou oito pretendentes que lhe apareceram, preferindo embarcar para o Rio de janeiro, onde se encontra desde aquele ano.

Apresentado a essa virtuosa nortista, que vive, hoje, em relativa abundância, perguntei-lhe, curioso, se ela não se confundia com tanta criança em casa.

- Eu? - atalhou, sorrindo. - Absolutamente!

E explicou-me o seu processo de evitar confusões:

- Eu adotei, para comodidade, o seguinte sistema: os filhos de cada marido usam roupa de uma cor. Os do primeiro, por exemplo, em número de nove, usam roupa de cor cinzenta.

E chamou para dentro:

- Lili? Iaiá? Amélia? Nenê? Totó? Bibi? Alfredo? Almerinda?

Aparecida a primeira parte da tribo, D. Ifigênia continuou:

- Os filhos do meu segundo marido vestem-se de azul.

E chamou:

- Teté? Lulu? Judith? Ester? Virgilina? Margarida? Sebastiana?

A segunda turma apareceu.

- Os do meu terceiro marido trajam amarelo.

E gritou:

- Jequiriçá? Pindoboçú? Coema? Jaci? Lindóia? Ubirajara? Peri? Iracema? Jacaúna? Guaraciaba?

O terceiro turno surgiu.

Evacuada a sala, D. Ifigênia sorriu; acrescentando:

- E ainda tem!

- Ainda tem? - exclamei, espantado.

- Tem, sim!

E entrando para o quarto contíguo, trouxe, nos braços, um pequenito de três meses.

Esse, nascido no Rio de janeiro, vinha embrulhadinho numa coberta de retalhos, em que se misturavam o branco, o azul, o preto, o amarelo, o roxo, o rosa, o pardo, o verde, o encarnado…

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Contos e Lendas do Paraná - 10 (Jandaia do Sul – Londrina – Matinhos – Missal)


Cidade de Jandaia do Sul

A lenda de Jandaia


Há muitos anos vagava entre os pinheirais uma esbelta menina de olhos da cor de pinhão e seus cabelos esvoaçavam, como fios dourados em espigas de milho. Nunca se soube de onde ela veio, apenas que seu pai era um bravo cacique, que deveria habitar a imensidão da terra roxa, colher frutos silvestres e beber dos mananciais cristalinos.

Mas, ansiosa, aguardava o dia em que haveria de surgir um companheiro, que seria destro na caça e forte na guerra. Já lhe dissera Tupã, quando ela se banhara numa cascata, mirando-se nas águas: “Jandaia haverá de receber, em breve, aquele que te revelará os arcanos do amor, foste talhada para os seus braços e só a ele servirás. Tu o verás presente entre os esplendores do sol e o vigor dos arbustos”.

Em todas as manhãs, muito antes da alva, Jandaia subia no cimo da colina perscrutando os pinheiros frondosos e aguardando o romper do sol, que também viria fixar-lhe o bronze de sua pele. Numa radiosa manhã, quando Jandaia inebriava-se de luz, eis que se aproxima um cervo com uma flecha cravada, tombando a seus pés. Surge, em seguida, um caçador, jovem e forte. Ele se deslumbra, ante aquela princesa selvagem.

Jandaia acaricia o cervo, depois dirige seu olhar para o moço guerreiro e acena-lhe para que se aproxime. Ele deixa o arco e as flechas e acolhe-a nos braços. Em frêmitos a mata regozija-se. Jandaia cinge-o em seus braços; sendo observada pelo sol. Este, enciumado, aquece os lábios rubros de Jandaia, a enfeitiça e seduz, agora mais que em todas as outras manhãs. Enciumado, arrebata-a para si. Ela, então, sente que ama o sol e deve-lhe sua existência.

Tupã, tomado de uma grande ira, vendo que Jandaia pertencia ao sol e não ao guerreiro que enviara, transformou-a numa cidade. Para que todos pisassem sobre ela e cobrissem de asfalto seus braços bronzeados.

O sol, condoído, surge todos os dias, com o mesmo calor de outrora, espargindo-se sobre a cidade e, como se não bastasse, ordena ao Cruzeiro do Sul, à noite, para que a vigie. Por isso, Jandaia recebeu mais um nome. Devendo sempre chamar-se Jandaia do Sul
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Cidade de Londrina
Guairacá

Guairacá, lobo dos campos e das águas, era o cacique corajoso, aquele que defendia os guaranis e a terra com denodo e bravura, desde o baixo Iguaçu até o Paranapanema e do Tibagi ao Paranazão. Era uma região ambicionada notadamente pelos castelhanos, que já haviam dominado os rio da Prata e Paraguai. Os castelhanos sempre quiseram invadir essas terras. Mas sempre enfrentaram os bravos de Guairacá, dos cem mil arcos vencedores.

Um outro guerreiro de grande valor o sucedeu quando de sua morte e comandou os guerreiros no agitado período daquele pedaço do Brasil: Mbiaçá. Numa homenagem póstuma, ele chamou aquela região de Guairacá para que todos se lembrassem daquele que rechaçara as tentativas dos homens estranhos. Foi este fato que, por muitos e muitos anos, frente a toda a sorte de inimigos impediu que a terra e a gente fossem avassaladas pelos estrangeiros, castelhanos e portugueses, que abreviaram seu nome para Guairá, tendo sido cantado em prosa e verso:

“Andava Guairacá mui valeroso,
Astuto, sabio, artero e mui valiente
Compuzo una terrible palizada
De aguas y comidas abastada.

El fuerte fué con mana fabricado
A los lados con muchos torreones,
Estaba a todas partes resguardado
Con sus trincheras, fosas y bastiones.
Sin duda Satanás ha revelado
A Guairacá el modelo y Invenciones.”

= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Cidade de Matinhos
O homem de branco


Conta-se que na região de Matinhos existiam muitos índios carijós e que havia muito ouro nas montanhas. Das histórias dos primeiros colonizadores, destaca-se a figura de um “homem de branco” que, à época, começou a fazer contato com os índios e ficou amigo deles. Os índios perceberam que o homem queria o ouro deles e tentaram logo se proteger.

Cada vez que este homem os procurava, eles se afastavam, porque constataram que o ouro estava desaparecendo. Na verdade os brancos queriam a região, o Bairro Tabuleiro, morro do Cabaraquara, onde existem, ainda, muitos sambaquis entre as matas.

Um dia o “homem de branco” começou a ficar doente, com muitas dores. Acredita-se que a causa foi envenenamento, causado pelos próprios indígenas, através de bebidas que foram oferecidas ao homem. Até hoje, alguns moradores do antigo local relatam que o “homem de branco” ainda assombra a região e a quem mora ali.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Cidade de Missal
Indianer*


Na década de 1960 no oeste do Paraná havia muitas florestas, com muitos animais selvagens e aves de diversas espécies. Devido a tantas riquezas, iniciou-se a venda dessas terras, entre os rios Ocoí e São Vicente. Assim, vieram os pioneiros, cheios de sonhos e ânimo, pressentindo a riqueza que provinha daquele chão.

Onde hoje é a Esquina Gaúcha, antiga Placa, uma das comunidades pertencentes à cidade de Missal, os colonos abriram as primeiras clareiras, construíram as primeiras casas e galpões, transformando a mata em terras para lavoura.

Segundo a lenda, alguém silenciosamente os observava, dia e noite. Com o passar do tempo, a presença e os olhares do observador começaram a ser percebidos. Os pioneiros o tinham como um índio, que com imensa tristeza e dor os observava destruir sua linda floresta, que para ele era sua casa. No alto das árvores, em meio às folhagens, o índio estava por perto e ao perceber que alguém o pressentia, ou estava vindo a seu encontro, sumia misteriosamente. As pessoas, então, comentavam entre si, temerosas:

– Hast du auch der Indianer gesehen?**

Os pioneiros fizeram várias tentativas de descobrirem seu paradeiro; imaginava-se que ele se protegia morando dentro de alguma grande árvore oca de nome “peroba” (atualmente essa árvore é considerada símbolo de Missal). Quando anoitecia, todos ficavam esperando o aparecimento do visitante misterioso.

Os jovens quando iam à casa dos vizinhos, ou a bailes, escutavam ruídos de galhos secos quebrando-se, folhagens mexendo-se e sentiam que “algo” ou “alguém” os acompanhava em tais passeios.

O tempo passou, sem que ninguém nunca descobrisse o misterioso e discreto seguidor, as histórias se espalharam. Os pioneiros, assustados, nunca descobriram quem era e quais suas intenções. Jamais souberam se seria um Indianer. Tão misteriosamente quanto surgiu e tão silenciosamente quanto fora sua companhia foi seu desaparecimento, sem que ninguém realmente o tenha visto.
= = = = = = = = = = =
* Indianer = Índio
**– Hast du auch der Indianer gesehen? = – Você também viu o índio?

= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 20

 

Lêdo Ivo (A palavra escrita no muro)

Era quase um garrancho, mas o menino a leu, letra por letra.

  E disse:

  – Boa noite.

  A palavra respondeu:

  – Boa noite.

 Diante da delicadeza da resposta, o menino perguntou:

  – Quem é você?

  E ela, rindo com todas as letras do seu corpo, respondeu:

  – Sou uma palavra.

  O menino pensou que ela estivesse presa, já que não podia sair do lugar, e perguntou-lhe:

  – Mas quem pôs você de castigo aí no muro?

  A palavra retrucou:

  – Eu não estou de castigo. Estou livre. Todas as palavras que você lê nos muros da cidade são livres. Nenhuma delas está em cativeiro.

  – Mas você está presa.

  A palavra tornou a desmentir:

  – Eu não estou presa. Num muro uma palavra é livre como um pássaro. Menino, vou dizer-lhe uma coisa para você guardar a vida inteira. Nenhuma palavra vive em cativeiro.

O menino lembrou-se, então, de que em sua casa havia um grande dicionário que tinha nome de gente.

E ponderou:

– Mas, num dicionário, as palavras estão presas.

A palavra (seria uma palavra senhora ou senhorita?) riu, exibindo seus belos e brancos dentes feitos de sílabas, e explicou:

– Mesmo num dicionário as palavras são livres. Um dicionário não é uma prisão. É uma praça onde a gente se reúne.

– Pra quê? – interrogou o menino.

– Para servir aos homens. Todos nós temos uma serventia. Estamos a serviço da vida, do amor. Uma palavra é como um sol. Esquenta as pessoas. Quem sabe palavra não sente frio!

– Mas quem foi que pôs você aí no muro? – quis saber o menino.

– Foi um homem. Foi a mão de um homem.

– Foi de dia ou foi de noite? (O menino era curioso, queria saber tudo.)

A palavra não precisou se lembrar da hora em que fora colocada no muro como se fosse uma criança que a mãe põe no colo. Sabia isso na ponta da língua, pois as palavras também têm uma língua, como gente:

– Foi de noite. Estava muito escuro. Você sabe que a noite é nossa irmã? Muitas vezes, em certos lugares, só de noite é que a gente pode andar.

– Mas as palavras andam?

– Menino, as palavras andam sempre. São como os ciganos. Não podem ficar paradas em lugar nenhum, nem nos livros nem na boca dos homens. Já lhe disse que somos passarinhos. Nascemos para voar.

– Então, como foi que você nasceu?

– Eu não nasci. Eu estava voando. Então pousei na mão de um homem como se fosse um passarinho. Ele não precisou de gaiola para me agarrar. Era um homem que tinha vindo de um comício, o povo tinha gritado muito. Ele estava precisando de uma palavra para dizer o que queria, tudo aquilo que estava dentro do seu coração e não podia manifestar-se porque eu ainda não tinha aparecido. Então eu pousei na mão dele. Esta rua estava escura, quase ninguém passava. O homem olhou para um lado e para o outro, viu que nenhum soldado estava passando, não havia polícia por perto, e pôs-me aqui. Dia e noite as pessoas passam e, mesmo em silêncio, conversam comigo, e levam-me em suas lembranças e nos seus corações. É um pouco difícil de explicar, mas eu sou levada e no entanto fico aqui, sem sair do lugar. Você entende?

– E como é o seu nome, palavra-passarinho? – quis saber o menino.

– Meu nome é LIBERDADE, menino.

– A senhora tem um nome muito bonito!

– Não me chame de senhora, chame-me de você. Eu sou você.

Fonte:
Lêdo Ivo. O menino da noite. Publicado em 1995.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 7

A cruz, qual velho estandarte,
lembra a ausência que se explica,
na solidão de quem parte,
na tristeza de quem fica!!!
= = = = = = = = = = =

Ao lado da antiga cama,
no olhar triste da parede,
um torno velho reclama
a ausência de tua rede!
= = = = = = = = = = =

Entre os que não sabem ler,
há cego sem ter razão;
Falta-lhe a luz do saber
mas não a luz da visão!
= = = = = = = = = = =

Essa criança tão pobre,
tem tanto encanto e magia,
que um anjo, quando a descobre,
vem beijá-la todo dia!
= = = = = = = = = = =

Esses bens com os quais me iludo,
tudo aos teus pés eu deponho;
não me serve ter de tudo,
se não te tenho em meu sonho!
= = = = = = = = = = =

Eu, a viola, uma rede,
e ao lado, a candeia acesa,
mostra a sombra na parede
da solidão sobre a mesa!
= = = = = = = = = = =

Há na primeira centelha
da luz do sol da manhã,
dois lábios de cor vermelha
na boca morna da chã!
= = = = = = = = = = =

Meu corpo, o tempo derrota;
mói tudo quanto eu transponho...
Mas morre e não muda a rota
da poeira do meu sonho!
= = = = = = = = = = =

Na ausência do teu ciúme,
morre a angústia e nasce a flor!
e esse enredo se resume
em nova história de amor!
= = = = = = = = = = =

Não há deserto que impeça
os passos de um beduíno
que, aos poucos, rompe sem pressa,
a poeira do destino!
= = = = = = = = = = =

No abraço, o amor é tão lindo,
mas no adeus, que desencanto!...
Começa sempre sorrindo,
mas sempre termina em pranto!
= = = = = = = = = = =

No fogão velho, um mormaço
atiça o fogo apagado,
e aquece as preces que eu faço
sobre as cinzas do passado!
= = = = = = = = = = =

No rancho, em meio à pobreza,
crianças pedindo pão;
faltava pão sobre a mesa,
sobrava amor pelo chão!
= = = = = = = = = = =

Nos pratos dessa balança,
há impurezas e impuros;
como se ter confiança
em tribunais tão perjuros?...
= = = = = = = = = = =

Nossas mãos, guardam segredos,
e esses segredos, tão sós,
são presos aos nossos dedos,
por laços cheios de nós!
= = = = = = = = = = =

O "adeus" para mim, descreve,
algo, que jamais se alcança!…
Se alguém me diz "até breve",
não diz "adeus" à esperança!
= = = = = = = = = = =

O sol em seu caminhar,
à tarde, em seus rituais,
apaga as luzes no mar
e acende os faróis do cais!
= = = = = = = = = = =

Ouço o mar, sem queixa alguma
e, em noites de lua cheia,
seus versos feitos de espuma
bordam poemas na areia!
= = = = = = = = = = =

Ó, velho mar, teus cantares,
dão-me estranhas sensações,
de ouvir vozes de outros mares
nos meus mares de ilusões!
= = = = = = = = = = =

Quem sonha e quem crê no amor,
pela espera, o amor alcança;
pois, vivem na mesma flor:
O sonho, a crença e a esperança!
= = = = = = = = = = =

Se a lágrima, é dor pulsando,
que dói na alma, quando cai,
ela dói muito mais, quando
faz finca pé mas não vai!
= = = = = = = = = = =

Se em tua cruz há três cravos,
três candelabros de luz,
meus braços são dois escravos
dos cravos de tua cruz!
= = = = = = = = = = =

Se há desilusões, fracassos,
és culpada desta dor!…
Foste buscar noutros braços
pobres migalhas de amor!
= = = = = = = = = = =

Se o meu verso não te alcança,
ama os poetas passarinhos,
que o verso deles balança
os poetas que estão nos ninhos!
= = = = = = = = = = =

Se uma lágrima deságua,
molhando os véus do meu rosto,
é um pingo das gotas d’água
que há nos olhos de um sol posto!
= = = = = = = = = = =

Sozinho e arrastando a cruz,
sem ter a luz da visão…
O pobre cego, sem luz,
busca a Luz na escuridão!...
= = = = = = = = = = =

Teus olhos à noite, ao vê-los,
eu tento manter a calma,
como se ouvisse os apelos
da alma da noite, em minha alma!
= = = = = = = = = = =

Vim te pedir ajoelhado,
mãos postas diante do altar,
perdão por cada pecado
que eu não soube perdoar!
= = = = = = = = = = =

Vi, nas velhas cicatrizes
do tempo da mocidade...
Meus pés presos às raízes,
e as mãos, às mãos da saudade!

Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Livro enviado pelo trovador.

Ana Lúcia Merege Correia (Uma História do Livro no Brasil)

Na virada entre os séculos XIX e XX, Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, conheceu um rápido desenvolvimento urbano e econômico. A imigração fez crescer o número de habitantes; foram criadas faculdades de Direito, Engenharia e Medicina; a rede de transporte marítimo e ferroviário cresceu e se tornou mais eficaz, e vários setores econômicos foram estimulados, incluindo a produção e o comércio de livros.

O “Almanach rio-grandense” publicado em 1874 pela tipografia Deutsche Zeitung arrola apenas três livrarias em Porto Alegre: a de Joaquim Alves Leite, aberta em 1850, que vendia vários produtos além de livros; a de Madame Marcus, frequentada por estudantes; por fim, a Livraria Rodolfo José Machado, fundada em 1854, que também atuava como editora. Nas décadas seguintes, porém, esses números iriam crescer, passando a incluir várias novas casas, entre as quais as filiais porto-alegrenses da Livraria Americana e da Livraria Universal.

Segundo Eduardo Arriada, da UFPel, a mais importante editora gaúcha daquela época era a Livraria Americana, de Carlos Pinto. Fundada em 1871 na cidade de Pelotas – um dos maiores centros comerciais do estado --, a Livraria foi responsável pela edição do “Almanaque Literário e Estatístico do Rio Grande do Sul” entre 1889 e 1917, atuou no setor de livros didáticos e publicou literatura nacional e estrangeira, com nomes como Daudet, Maupassant, Zola e Dostoievsky. Suas obras saíam na série de bolso Biblioteca Econômica, com baixo preço e pequeno formato. Laurence Hallewell afirma que as traduções e edições não eram autorizadas pelos detentores dos direitos de publicação, configurando-se no que hoje conhecemos como “pirataria”.

Em 1917, a Americana passou a ser propriedade da Livraria Universal, fundada em 1887 pelos irmãos Carlos e Guilherme Echenique. A Universal seguiu um caminho parecido com o da empresa de Carlos Pinto: inicialmente sediada em Pelotas, abriu filiais em Rio Grande e em Porto Alegre, publicou obras didáticas e de literatura e até mesmo seu próprio almanaque: o “Almanaque Popular Brasileiro”, dirigido por Alberto Ferreira Rodrigues. Encerrou suas atividades em 1929, quando Porto Alegre já contava com várias importantes livrarias. A maior parte se concentrava na Rua dos Andradas, também conhecida como Rua da Praia.

A Livraria do Globo também ficava nesse endereço. Fundada em dezembro de 1883 pelo português Laudelino Pinheiro Barcelos, era, a princípio, um negócio modesto, que anunciava a venda de “livros, músicas, papel, miudezas e objetos de escritório”. Pouco depois, Barcelos ampliou o negócio por meio de uma oficina tipográfica, na qual passou a realizar impressões por encomenda. Em 1890 contratou o jovem e dinâmico José Bertaso, que rapidamente galgou degraus na empresa, tornando-se sócio de Laudelino e, com a morte deste em 1919, proprietário da Livraria do Globo. Segundo Hallewell, Bertaso previu a escassez de papel que se seguiria à Primeira Guerra Mundial e fez um bom estoque, depois vendido com lucro. Também adquiriu a primeira máquina de linotipo do estado.

Em 1917, a Livraria do Globo abriu sua primeira filial, na cidade de Santa Maria. Em 1922, começou a publicar novas vozes da literatura gaúcha: Telmo Vergara, Darcy Azambuja, Ernani Fornari e vários outros. Ao mesmo tempo, visando à maior projeção da empresa, Mansueto Bernardi, encarregado do departamento de propaganda, fez publicar também alguns livros traduzidos, contratou editores especializados e artistas gráficos e fundou a “Revista do Globo”, um periódico de variedades que contou com colaboradores de renome, tanto nas ilustrações quanto na redação de artigos e colunas.

Ao deixar a firma, Bernardi foi substituído no setor editorial por Henrique, filho de José Bertaso. Em 1932, a direção da revista passou às mãos de um jovem escritor, Érico Veríssimo, já então colaborador e tradutor de vários livros publicados pela Globo. Entre os de maior sucesso estavam as histórias policiais da Coleção Amarela, iniciada em 1931 e que publicou 85 títulos em 18 anos. Em 1936, segundo Hallewell, a empresa contava com quinhentos funcionários e ocupava um prédio de três andares, e Henrique Bertaso viajava pela Europa a fim de adquirir os direitos de publicação de obras alemãs, italianas, espanholas e francesas.

Em 1938, após seu livro “Olhai os Lírios do Campo” se tornar um sucesso de vendas, Veríssimo assumiu o papel de conselheiro literário, uma espécie de curadoria principalmente dos livros a traduzir, que saíam pelas coleções Nobel e Biblioteca dos Séculos. Esta publicou obras de vulto, como “A Comédia Humana”, de Balzac. A edição de dezoito volumes foi considerada pelo crítico Nelson Werneck Sodré a maior realização da Globo até então, com destaque para o coordenador, Paulo Rónai. Além das traduções, a editora continuava a publicar autores brasileiros, principalmente locais, desde uma edição crítica dos “Contos Gauchescos e Lendas do Sul”, de João Simões Lopes Neto (1865 – 1916), até livros de estreia, como “A Rua dos Cataventos”, de Mário Quintana, que saiu em 1940.

No início dos anos 1950, a quantidade de obras traduzidas se reduziu bastante, visto que medidas tomadas pelo Governo dificultavam o pagamento feito a autores e editores residentes no exterior. Os números voltaram a crescer na década seguinte, porém a Globo havia mudado seu foco para a produção de livros didáticos, publicações técnicas e obras de referência. O departamento de Dicionários e Enciclopédias era um dos mais ativos na empresa, e contou com a colaboração de autores e pesquisadores renomados, tais como Leonel Valandro, Francisco Fernandes e Álvaro Magalhães, organizador da “Enciclopédia Brasileira Globo”, que, segundo Hallewell, foi a primeira a contar com verbetes elaborados exclusivamente por especialistas brasileiros. Outro nome de relevo foi Edgard Cavalheiro, que mais tarde viria a ser gerente da Editora Cultrix.

Em 1972, Érico Veríssimo publicou “Um Certo Henrique Bertaso”, livro em que narrava sua experiência na Editora Globo e homenageava o editor. Este faleceu em 1977, e pouco depois se iniciou uma grande reformulação, com a mudança da sede da firma para o Rio de Janeiro e a abertura de franquias. Em 1986 a empresa foi vendida à Rio Gráfica Editora, pertencente a Roberto Marinho, dono do conglomerado midiático também chamado Globo, que passou a utilizar a marca para os produtos da gráfica. Assim, o nome e a história da pequena livraria fundada em Porto Alegre continuam através de uma editora pertencente ao Grupo Globo, com sede em São Paulo, que publica livros de literatura e de não-ficção e revistas como a Época e a Galileu.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 6

 

Aluísio de Azevedo (Músculos e Nervos)


Terminava a primeira parte do espetáculo, quando D. Olímpia entrou no circo, pelo braço do pai.

Havia grande enchente. O público vibrava ainda sob a impressão do último trabalho exibido, que devia ter sido maravilhoso, porque o entusiasmo explodia por toda a plateia e de todos os lados gritavam ferozmente: “Scot! À cena Scot!” Dois sujeitos de libré azul com alamares dourados conduziam para o interior do teatro um cavalo que acabava de servir. Muitos espectadores, de chapéu no alto da cabeça, estavam de pé e batiam com a bengala nas costas das cadeiras; as cocotes pareciam loucas e soltavam guinchos, que ninguém entendia; das galerias trovejava um barulho infernal, e, por entre aquela descarga atroadora, só o nome do idolatrado acrobata sobressaía, exclamado com delírio por mil vozes.

– Scot! Scot!

Olímpia sentiu-se aturdida; o pai, no íntimo, arrependia-se de lhe ter feito a vontade, consentindo em levá-la ao circo, mas o médico recomendara tanto que não a contrariassem… e ela havia mostrado tanto empenho no capricho de ir aquela noite ao Politeama…

De repente, um grito uníssono partiu da multidão. Estalaram as palmas com mais ímpetos; choveram chapéus; arremessaram-se leques e ramalhetes, Scot havia reaparecido.

– Bravo! Bravo, Scot!

E os aplausos recrudesceram ainda.

O ginasta, que entrara de carreira, parou em meio da arena, aprumou o corpo, sacudiu a cabeleira anelada, e, voltando-se para a direita e para a esquerda, atirava beijos, sorrindo, no meio daquela tempestade gloriosa.

Depois de agradecer, estalou graciosamente os dedos e retirou-se de costas, a dar cambalhotas no ar.

Desencadeou-se de novo a fúria dos seus admiradores, e ele teve de voltar à cena ainda uma vez, mais outra, cada vez mais triunfante.

Olímpia, entretanto, com a cabeça pendida para a frente, o olhar fito, os lábios entreabertos, dir-se-ia hipnotizada, tal era a sua imobilidade. O pai tentou chamá-la à conversa; ela respondeu por monossílabos.

– Queres… vamos embora.

– Não.

Na segunda parte do espetáculo, a moça parecia divertir-se. Não despregava a vista de Scot, a quem cabia a melhor parte dos trabalhos da noite.

O mais famoso era a sorte dos voos. Consistia em dependurar-se ele de um trapézio muito alto, deixar-se arrebatar pelo espaço e, em meio do trajeto, soltar as mãos, dar uma cambalhota e ir agarrar-se a um outro trapézio que o esperava do lado oposto.

Cada um destes saltos levantava sempre uma explosão de bravos.

Scot havia feito já por duas vezes, o seu voo arriscado; faltava-lhe o último e o mais perigoso. Diferenciava este dos primeiros em que o acrobata, em vez de lançar-se de frente, tinha de ir de costas e voltar-se no ar, para alcançar o trapézio fronteiro.

O público palpitava ansioso, até que Scot afinal assomou no alto trampolim armado nas torrinhas, junto ao teto.

Cavou-se logo um fundo silêncio nos espectadores. Os corações batiam com sobressalto; todos os olhos estavam cravados na esbelta figura do artista, que, lá muito em cima, parecia, nas suas roupas justas de meia, a estátua de uma divindade olímpica. Destacava-se-lhe bem o largo peito, hercúleo, guardado pelos grossos braços nus, em contraste com os rins estreitos, mais estreitos que as suas nervosas coxas, cujos músculos de aço se encapelavam ao menor movimento do corpo.

Com uma das mãos ele segurava o trapézio, enquanto com a outra limpava o suor da testa. Depois, tranquilamente, sem o menor abalo, prendeu o lenço à sua cinta bordada e de lantejoulas e deu volta ao corpo.

Ouvia-se a respiração ofegante do público.

Scot sacudiu o braço do trapézio, experimentando-o, puxou-o afinal contra o colo e deixou-se arrebatar de costas.

Em meio do circo desprendeu-se, gritou: “Hop!” deu uma volta no ar e lançou-se de braços estendidos para o outro trapézio.

Mas, o voo fora mal calculado, e o acrobata não encontrou onde agarrar-se.

Um terrível bramido, como de cem tigres a que rasgassem a um só tempo o coração, ecoou por todo o teatro. Viu-se a bela figura de Scot, um instante solta no espaço, virar para baixo a cabeça e cair na arena, estatelada, com as pernas abertas.

O recinto do circo encheu-se logo. Nos camarotes mulheres desmaiaram, em gritos; algumas pessoas fugiam espavoridas, como se houvesse um incêndio; outras jaziam pálidas, a boca aberta e a voz gelada na garganta. Ninguém mais se entendia; nas torrinhas passavam uns por cima dos outros, numa avidez aterrada, disputando ver se conseguiam distinguir o acrobata.

Este, todavia, sem acordo e quase sem vida, agonizava por terra, a vomitar sangue.

Olímpia, lívida, trêmula, estonteada, quando deu por si, achou-se, sem saber como, ao lado do moribundo. Ajoelhou-se no chão, tomou-lhe a cabeça no regaço, e vergou-se toda sobre ele, procurando sentir nas faces frias o derradeiro calor daquele belo corpo escultural e másculo. E, desatinada, ofegante, apalpava-lhe o peito, o rosto, a bronzea carne dos braços, e, com um grito de extrema agonia, molhava a boca no sangue que ele expelia pela boca.

Scot teve um estremecimento geral de corpo, contraiu-se, vergou a cabeça para trás, volveu para a moça os seus límpidos olhos comovidos, agora turvados pela morte, soltou o gemido derradeiro.

E o corpo do acrobata escapou das mãos finas de Olímpia, inanimado.

Fonte:
Aluísio de Azevedo. Aos vinte anos. Publicado em 1895.

Caldeirão Poético XLVI: Argentina


Alfonsina Storni
Suiça (1892-1938) Argentina

A SÚPLICA


Senhor, Senhor, há muito tempo, um dia,
sonhei o amor, como ninguém houvera
ainda sonhado, amor que fosse e que era
a vida toda todo uma poesia.

Passa o inverno e esse amor não chegaria,
passaria também a primavera;
o verão persistente volveria...
E o outono ainda me encontra à sua espera.

Ó Senhor, sobre minha espádua nua,
faze estala, por mão que seja crua,
o látego que mandas aos perversos,

que já anoitece sobre minha vida
e esta paixão ardente e desmentida
eu a gastei, Senhor, fazendo versos!

(Tradução de Oswaldo Orico)
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Arturo Capdevilla
(1889-1967)

EM VÃO


Quanto verso de amor, cantado em vão!
Como minha alma está ficando velha
ao recordar a história em que se espelha
a insensatez dos tempos que se vão!

Quanto verso de amor, gemido em vão!
A princípio, o nectário e eu, a abelha...
Depois... Meu coração todo se engelha
na neve amarga em que se fez ancião.

Quanto verso de amor, perdido em vão!
 — Minha janela em luzes se recorta...
Ainda vivo... que flores!... é verão...

Dá-me pena, entretanto, à minha porta,
como uma triste borboleta morta,
tanto verso de amor, chorado em vão!

(Tradução de Mello Nóbrega)
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Carlos Alberto Leumann
(1886-1952)
 
TRAGÉDIA SIMPLES


Tinham ambos quinze anos. Com delírio
queriam-se; porém, ela escondia
sua enorme ternura, e ele temia
dizer-lhe o seu segredo, o seu martírio.

O tempo ia correndo, enquanto Sírio
com reflexos de prata o céu feria.
E passaram-se os dias... Certo dia
ela ficou tão branca como um lírio.

Morreu sonhando... E ele, com passo tardo
buscando-a pela fúnebre pradeira,
achou a tumba entre o crescido cardo.

E ali, junto da amada companheira,
alma ferida de pungente dardo,
falou de seu amor a vez primeira.

(Tradução de Jacy Pacheco)
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Héctor Pedro Blomberg
(1899-1955)

VELHAS CARTAS DE AMOR


Ah, queimá-las não pude... É que elas — quem diria? —
guardam murchas assim, tua morta paixão,
— a febre de uma noite, as lágrimas de um dia —
como o eco já sem voz de urna última canção.

Tuas cartas! — num tempo a que eu retornaria —
fizeram palpitar de amor meu coração...
Depois, veio o silêncio, a distância, a agonia,
e o bálsamo do tempo — a cruel consolação!

Vivem nelas ainda um romance apagado,
a luz da mocidade, o fogo de um passado,
a glória de uma vida aos vinte anos em flor...

Ontem, contava-as, sim — com um gesto indiferente...
Mas, sobre elas caiu uma lágrima ardente...
E não pude queimar tuas cartas de amor...

(Tradução de J. G. de Araújo Jorge)
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Luís Cané
(1897-1957)

METAMORFOSE


Sufocar este amor, enriqueceu
meu coração de canto e de harmonia,
e em claro manancial de poesia
sua secreta dor se converteu.

Tornou-se canto tudo o que sofreu;
a pena sem consolo, em alegria,
minha noite por dentro, fez-se dia,
e se pôs a lembrar do que esqueceu...

A sofrer por amor, fez disto um gozo,
na face, a flor de um riso, invés de pranto,
e oculta na raiz, a alma ferida...

E a fingir um destino venturoso
e a parecer que o canto era só canto,
acabou alegrando a própria vida!

(Tradução de J. G. de Araújo Jorge)

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.