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quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Leonardo da Vinci (A navalha)


Era uma vez uma navalha de excelente qualidade, que morava numa barbearia. Um dia em que a loja estava vazia ela resolveu dar uma voltinha. Soltou-se do cabo e saiu para apreciar o lindo dia de primavera.

Quando a navalha viu o reflexo do Sol em si mesma, ficou surpresa e encantada. A lâmina de aço lançava uma luz tão brilhante que, subitamente, com excessivo orgulho, a navalha disse a si mesma:

- E eu vou voltar para aquela loja de onde acabei de fugir? É claro que não! Os deuses não podem querer que uma beleza tal como a minha seja desonrada desta maneira. Seria loucura ficar aqui cortando as barbas ensaboadas daqueles camponeses, repetindo sem cessar a mesma tarefa mecânica! Será que minha beleza foi realmente feita para um trabalho desses? Certamente não! Vou esconder-me num local secreto e passar o resto da vida em paz.

E em seguida foi procura um esconderijo onde ninguém a visse.

]Passaram-se meses. Um dia a navalha teve vontade de respirar ar fresco. Saiu cautelosamente de seu refúgio e olhou para si mesma.  Ai, que acontecera? A lâmina estava horrorosa, parecendo uma serra enferrujada, e não refletia mais a luz do Sol.

A navalha ficou muito arrependida pelo que havia feito, e lamentou amargamente a irreparável perda, dizendo:

- Oh, como teria sido melhor se eu tivesse conservado em forma a minha linda lâmina, cortando barbas ensaboadas! Minha superfície teria permanecido brilhante e minha borda afiada! Agora aqui estou eu, toda corroída e coberta de uma horrível ferrugem! E não há nada a fazer!

Moral da Estória:
O triste fim da navalha é o mesmo que sucede às pessoas inteligentes que preferem ser preguiçosas a usar seus talentos. Essas pessoas, assim como a navalha, perdem o brilho e a parta afiada de seu intelecto, sendo logo corroídas pela ferrugem da ignorância.
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Leonardo de Ser Piero da Vinci nasceu em 1452 na Itália e morreu em 1519, na França, era para seus contemporâneos um personagem discutido e controvertido. Como pintor era mal visto, porque jamais terminava as obras iniciadas; como escultor despertou suspeitas por não ter forjado em bronze o monumento equestre a Francisco Sforza; como arquiteto era perigosamente ousado; como cientista era de fato um louco. Sobre um ponto, no entanto, seus contemporâneos viam-se obrigados a concordar: Leonardo era um argumentador fascinante, um polido conversador, um contador de histórias “mágico” e fantástico, um gênio da palavra acompanhada da mímica. Falando da ciência, fazia calar os cientistas; argumentando sobre filosofia, convencia os filósofos; inventando fábulas e lendas, conquistava os favores e a admiração das cortes. Sempre, e em qualquer lugar, Leonardo era o centro das atenções. E jamais decepcionava seu auditório porque tinha sempre, alguma história nova para contar. As fábulas e lendas de Leonardo têm um objetivo e finalidade moral, algumas foram traduzidas por Bruno Nardini e publicadas no Brasil em 1972. O único personagem constante dessas fábulas e lendas é a natureza: a água, o ar, o fogo, a pedra, as plantas e os animais têm vida, pensamento e palavras. O homem, pelo contrário, aparece como instrumento inconsciente do destino, e sua ação, cega e implacável, destrói vencidos e vencedores.
“O homem é o destruidor de todas as coisas criadas”, escreveu Leonardo no “Livro das Profecias”; e nunca, como hoje em dia, na longa história de nosso planeta, uma asserção foi mais verdadeira e tão tragicamente atual..

Fontes:
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Carina Bratt (O Tempo e o Agora)

Homenagem especial ao ilustre amigo Dr. José Feldman e seu inimitável texto ‘O tempo e o Agora’ publicado aqui em seu blog em 10 e agosto de 2025. Vale a pena conferir: https://singrandohorizontes.blogspot.com/2025/08/jose-feldman-o-tempo-e-o-agora.html 
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EM SEU TEXTO simples e singelo, bucólico e pastoril, o escritor José Feldman sinaliza que o relógio marca a hora, cada instante é um agora... A vida não demora. O relógio marca a hora, e, com cada tique-taque, somos lembrados de que a vida é feita de instantes. Em um mundo que parece acelerar a cada dia, é fácil nos perdermos na correria. Voamos a mil para o trabalho, de igual forma para os compromissos, também para a rotina que nos consome parte da saúde. Mas a poesia nos lembra: cada instante é um agora. 

Quantas vezes deixamos de apreciar o que está diante de nós?  O cheiro do café fresco pela manhã, o sorriso de um amigo, a luz do sol mavioso filtrando pelas folhagens. Esses momentos, muitas vezes simples, são os que realmente compõem a tapeçaria da nossa existência. A vida não demora, ela tem pressa, embora seja feita de sutilezas que muitas vezes nos passam despercebidas. A verdade é que o tempo é um mestre implacável. Ele não espera. O que temos é este agora, e é nele que devemos encontrar significado. 

A vida não se mede apenas em grandes eventos, mas nas pequenas alegrias do dia a dia. Cada risada, cada conversa, cada instante vivido intensamente é um lembrete de que estamos aqui, presentes. Vale a pena parar e refletir. O que fazemos com nosso agora? Estamos realmente vivendo, ou apenas existindo? O relógio continua a marcar as horas, e a vida não espera. Não dá trégua. Não estanca. Por isso, vamos aprender com a lição simplória de José Feldman, a valorizar com garra cada momento, a respirar fundo e a sentir com determinação a beleza do presente. 

O presente é um amanhã que não retorna. No final, o que levará a nossa história não serão apenas os grandes feitos, mas as memórias construídas em cada agora. Nesse pé, ao invés de correr, que possamos caminhar, apreciar e amar. A vida é curta, é pequena, minúscula, e breve, E o tempo, esse sempre fiel companheiro, todavia, nos mostra a cada minuto, a cada segundo, a cada piscar de olhos, que o agora é tudo o que realmente temos. De fato, esse texto, ou melhor a poesia englobada nele, nos chama a atenção para algo tão essencial, mas frequentemente esquecido: o valor de cada momento presente, de cada pequena coisa que deixamos de lado. 

A vida, acredite, é mesmo feita desses instantes únicos que, juntos e irmanados num só objetivo, tecem a história que vivemos. O escritor José Feldman indiretamente destacou (sem dizer) a simplicidade das pequenas alegrias — tipo o cheiro do café fresco, o brilho do sol... Tudo isso é um lembrete poderoso de que há beleza em tudo ao nosso redor, se apenas nos permitirmos perceber. A dança silenciosa do tempo cada vez mais veloz, não pede licença. Empurra a porta do já e entra. 

Em cada batida suave do relógio, somos envolvidos pela melodia do agora. Há uma urgência serena, um desespero impiedoso que nos sussurra a toda hora nos ouvidos: ‘a vida não espera.’ Perdidos no frenesi da rotina, é fácil esquecer que os instantes simples carregam a essência do existir. O cheiro reconfortante de café recém passado, por exemplo, atrelado ao calor de um abraço genuíno, a luz do dia filtrando por entre as folhas — cada pequeno detalhe é um poema não escrito, entretanto, esperando para ser sentido e o melhor de tudo, vivido. 

O tempo, imparcial e incansável, segue seu curso. Ele não se detém para ninguém, mas oferece a todos um presente inestimável: “o agora, o já, o aqui.” Não há promessa para amanhã, nem controle sobre o ontem. Apenas a vastidão do momento presente nos pertence, e, dentro dele, a chance única de viver plenamente. José Feldman na sua simplicidade de menino criança, nos ensina que a vida nos convida a desacelerar, a tirar o pé do freio, a ouvir atentamente o coração que bate em sincronia com a realeza e com os segundos que passam. 

Em contrapartida, nos ensina também, a encontrar a beleza no que é passageiro e sublime. Que sejamos (diante dessa pureza nascida do interior do coração desse escritor magnânimo), que sejamos, meu Deus, que sejamos capazes de transformar a correria em contemplação, a contemplação em distração, a distração em presença, e o melhor de tudo: a existência em vivência. E sobretudo, para finalizar, a vivência, no “hoje agora”, no “agora, já”.
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CARINA BRATT nasceu em Curitiba/PR. Secretária particular e assessora de imprensa em Vila Velha/ES. Escreve crônicas em uma coluna denominada "Danações de Carina" para um site de Portugal.
Fontes:
Texto enviado pela autora,
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domingo, 12 de outubro de 2025

Newton Sampaio (Estio)

Frederico carrega ao alpendre a velha cadeira de balanço. Recosta-se, indolente.

— Mormaço, hein? Pergunta a mãe.

— É mesmo. Só que eu não estranho muito. O calor de lá me imunizou.

Dona Adelaide franze a testa.

— Já vem você com as coisas do Rio.

(Põe na voz uma intenção misteriosa).

— Você deve mais é esquecer aquilo. Cidade grande não presta. Cidade grande estraga a mocidade.

— Minha mocidade foi feita pra ser estragada. Não me interessa a velhice.

— Credo, menino! Deixe de blasfêmia! Então você quer morrer cedo?

— Mais ou menos.

Dona Adelaide fica perdida. Só sabe repetir.

— Deixe de blasfêmia. Deus castiga.

Frederico toma consciência da resposta imprudente. Iria amargar, inutilmente, o coração da velha.

— Desculpe, mamãe. Eu falava bobagens, só queria brincar.

— Logo vi. Isso não é coisa que se diga. A morte vem quando Deus quer. Ninguém morre na véspera.

Frederico fez que sim com a cabeça. Dona Adelaide se lembra:

— Vou botar a canjica no fogo. 

— A canjica? Boa ideia.

Olha o céu. Tudo limpinho. Sem uma nuvem. O sol apenas. Medonho, incansável. Tostando as folhas. E coriscando no rio sereno. E pondo diademas na testa do paredão grande.

Vem da outra esquina um som. A oficina do alemão em pleno funcionamento.

O martelo sobe e desce. A bigorna resiste. O ferro em brasas solta faíscas. E obedece: “ten-ten-ten-ten”. Depois o som fica mais agudo: “tin-tin-tin-tin”. O mesmo de vinte anos atrás.

“Tin... tin... ten... ten...”

Recorda a cena cotidiana da meninice. O mormaço pesando; o alemão bigornando, bigornando; e ele, de barriga pra cima, derramando na cama, estudando o céu, estudando.

No retângulo da janela, as nuvens se sucediam lentamente. Fixava uma com vontade. E a nuvem realizava morfologias engraçadas. Virava boi. Depois: montanha, navio, mulher, um leão de boca aberta, um santo puxando duas crianças, outra vez o boi, um leão de boca fechada...

Levava horas assim. Era mesmo que fita de cinema aquele pedaço do céu. A nuvem fazia tudo, desenhava tudo. Os urubus ajudavam de vez em quando. Os urubus descreviam curvas penosas, fechavam circunferências grandes e pequenas.

Um carro de boi canta monotonamente no extremo da cidadezinha. A cantiga do carro pesa, cansa, dá sono.

— Preciso fugir ao sono.

Busca um livro. O livro joga ditirambos à trepidação permanente das coisas, no dinamismo perene das espécies. O livro diz que o movimento é vida e acha que o espírito vive em função da inquietude. O livro exibe argumentos, discute. Mas o céu está sem nuvens. E os urubus, lá no alto, executam de repente uma fermata muito escura. E o paredão grande só sabe reluzir. E o rio é quieto, sonolento, mudo.

E a cantiga do carro cresce em monotonia. E a oficina do alemão não muda: “tin-tin-ten-ten...” E o mormaço desce, aborrece, abafa. “Tintin-ten-ten”... O carro... Os urubus... O céu limpinho, limpinho...

O livro joga ditirambos ao dinamismo permanente das coisas.
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(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 29/12/1936)
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Newton Sampaio natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
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sábado, 11 de outubro de 2025

Rabindranath Tagore (Era uma vez um rei)


"Era uma vez um rei."

Quando éramos crianças, não havia necessidade de saber quem era o rei do conto de fadas. Não importava se ele se chamava Shiladitya ou Shaliban, se morava em Kashi ou Kanauj. O que fazia o coração de um menino de sete anos bater forte de alegria era esta verdade soberana; esta realidade de todas as realidades: "Era uma vez um rei."

Mas os leitores desta era moderna são muito mais exatos e exigentes. Quando ouvem tal abertura para uma história, tornam-se ao mesmo tempo críticos e desconfiados. Aplicam o holofote da ciência à sua névoa lendária e perguntam: "Qual rei?"

Os contadores de histórias, por sua vez, tornaram-se mais precisos. Eles não se contentam mais com o velho e indefinido "Havia um rei", mas assumem, em vez disso, uma expressão de profundo conhecimento e começam: "Era uma vez um rei chamado Ajatasatru".

A curiosidade do leitor moderno, no entanto, não é tão facilmente satisfeita. Ele pisca para o autor através de seus óculos científicos e pergunta novamente: "Qual Ajatasatru?”

"Todo estudante sabe", prossegue o autor, "que houve três Ajatasatrus. O primeiro nasceu no século XX a.C. e morreu com a tenra idade de dois anos e oito meses. Lamento profundamente que seja impossível encontrar, em qualquer fonte confiável, um relato detalhado de seu reinado. O segundo Ajatasatru é mais conhecido pelos historiadores. Se você consultar a nova Enciclopédia de História..."

A essa altura, as suspeitas do leitor moderno se dissipam. Ele sente que pode confiar em seu autor com segurança. Ele diz a si mesmo: "Agora teremos uma história que é tanto enriquecedora quanto instrutiva."

Ah! Como todos nós amamos ser iludidos! Temos um medo secreto de sermos considerados ignorantes. E acabamos sendo ignorantes, afinal, só que o fizemos de uma maneira longa e indireta.

Há um provérbio inglês: "Não me faça perguntas e eu não lhe contarei mentiras." O menino de sete anos que está ouvindo um conto de fadas entende isso perfeitamente bem; Ele retém suas perguntas enquanto a história é contada. Assim, a pura e bela falsidade de tudo isso permanece nua e inocente como um bebê; transparente como a própria verdade; límpida como uma fonte borbulhante. Mas a mentira pesada e erudita dos nossos modernos precisa manter seu verdadeiro caráter velado e drapeado. E se em algum lugar for descoberto o menor vislumbre de engano, o leitor se afasta com um desgosto pudico, e o autor é desacreditado.

Quando éramos jovens, entendíamos todas as coisas doces; e podíamos detectar as doçuras de um conto de fadas por meio de uma ciência infalível própria. Nunca nos importamos com coisas inúteis como o conhecimento. Só nos importamos com a verdade. E nossos pequenos corações ingênuos sabiam muito bem onde ficava o Palácio de Cristal da Verdade e como alcançá-lo. Mas hoje espera-se que escrevamos páginas de fatos, enquanto a verdade é simplesmente esta:

"Havia um rei."

Lembro-me vividamente daquela noite em Calcutá, quando o conto de fadas começou. A chuva e a tempestade eram incessantes. A cidade inteira estava inundada. A água batia até os joelhos em nossa rua. Eu tinha uma esperança tênue, quase certa, de que meu tutor seria impedido de vir naquela noite. Sentei-me no banquinho no canto mais distante da varanda, olhando para a rua, com o coração batendo cada vez mais rápido. A cada minuto eu mantinha meus olhos na chuva, e quando ela começou a diminuir, eu rezava com todas as minhas forças; "Por favor, Deus, mande mais chuva até as sete e meia passarem." Pois eu estava quase pronto para acreditar que não havia outra necessidade de chuva a não ser para proteger um menino indefeso, certa noite, em um canto de Calcutá, das garras mortais de seu tutor.

Se não em resposta à minha prece, pelo menos de acordo com alguma lei mais grosseira da natureza física, a chuva não cessou.

Mas, infelizmente! Meu professor também não.

Exatamente no minuto, na curva da rua, vi seu guarda-chuva se aproximando. A grande bolha de esperança explodiu em meu peito e meu coração desabou. Verdadeiramente, se houver um castigo adequado ao crime após a morte, então meu tutor renascerá como eu, e eu nascerei como meu tutor.

Assim que vi seu guarda-chuva, corri o mais rápido que pude para o quarto da minha mãe. Minha mãe e minha avó estavam sentadas frente a frente, jogando cartas à luz de um abajur. Corri para o quarto, joguei-me na cama ao lado da minha mãe e disse:

"Mãe querida, o tutor chegou e estou com uma dor de cabeça terrível; não posso ficar sem aula hoje?"

Espero que nenhuma criança em idade precoce possa ler esta história e confio sinceramente que ela não será usada em livros didáticos ou cartilhas escolares. Pois o que fiz foi terrivelmente ruim e não recebi nenhum castigo. Pelo contrário, minha maldade foi coroada de sucesso.

Minha mãe me disse: "Está bem", e, virando-se para o criado, acrescentou: "Diga ao tutor que ele pode voltar para casa."

Era perfeitamente claro que ela não considerava minha doença muito grave, pois continuava com sua brincadeira como antes, sem dar mais importância. E eu também, enterrando a cabeça no travesseiro, ri à vontade. Nós nos entendíamos perfeitamente, minha mãe e eu.

Mas todos devem saber como é difícil para um menino de sete anos manter a ilusão de estar doente por muito tempo. Depois de cerca de um minuto, chamei a avó e disse: "Vovó, me conte uma história."

Tive que pedir isso muitas vezes. Vovó e mamãe continuaram jogando cartas e não deram atenção. Por fim, mamãe me disse: "Criança, não se incomode. Espere até terminarmos o nosso jogo." Mas eu insisti: "Vovó, me conte uma história." Disse à mamãe que ela poderia terminar o jogo amanhã, mas que deveria deixar a vovó me contar uma história ali mesmo.

Por fim, mamãe jogou as cartas no chão e disse: "É melhor você fazer o que ele quer. Eu não consigo lidar com ele." Talvez ela tivesse pensado que não teria um tutor chato no dia seguinte, enquanto eu seria obrigado a voltar para aquelas aulas idiotas.

Assim que mamãe cedeu, corri para cima da vovó. Segurei a mão dela e, dançando de alegria, arrastei-a para dentro da minha cortina mosquiteira, para a cama. Agarrei o travesseiro com as duas mãos, empolgado, e pulei de alegria. Quando me acalmei um pouco, disse: "Agora, vovó, vamos à história!”

A vovó continuou: "E o rei tinha uma rainha." Isso já era bom para começar. Tinha apenas uma.

É comum que reis em contos de fadas sejam extravagantes com rainhas. E sempre que ouvimos que há duas rainhas, nossos corações começam a afundar. Uma delas certamente ficará infeliz. Mas na história da vovó, esse perigo já havia passado. Ele tinha apenas uma rainha.

Em seguida, ouvimos que o rei não tinha nenhum filho homem. Aos sete anos, eu não achava que havia necessidade de me preocupar se um homem não tivesse tido um filho homem. Ele poderia apenas estar atrapalhando. Nem ficamos muito animados quando ouvimos que o rei foi para a floresta praticar austeridades a fim de ter um filho homem. Só havia uma coisa que me faria ir para a floresta: fugir do meu tutor!

Mas o rei deixou para trás com sua rainha uma menininha, que cresceu e se tornou uma linda princesa.

Doze anos se passaram, e o rei continua praticando austeridades, sem nunca pensar em sua bela filha. A princesa atingiu a plenitude da juventude. A idade do casamento passou, mas o rei não retorna. E a rainha se definha de tristeza e grita: "Minha filha dourada está destinada a morrer solteira? Ai de mim! Que destino é o meu!"

Então a rainha enviou homens ao rei para implorar-lhe fervorosamente que voltasse por uma única noite e fizesse uma refeição no palácio. E o rei consentiu.

A rainha cozinhou com suas próprias mãos, e com o maior cuidado, sessenta e quatro pratos, fez um assento para ele de sândalo e dispôs a comida em pratos de ouro e taças de prata. A princesa ficou atrás com o leque de cauda de pavão na mão. O rei, após doze anos de ausência, entrou na casa, e a princesa agitou o leque, iluminando todo o ambiente com sua beleza. O rei olhou para o rosto da filha e esqueceu-se de comer.

Por fim, perguntou à rainha: "Por favor, quem é esta moça cuja beleza brilha como a imagem dourada da deusa? De quem ela é filha?"

A rainha bateu na testa e exclamou: "Ah, quão terrível é o meu destino! A senhora não conhece a sua própria filha?”

O rei ficou atônito. Disse finalmente: "Minha filhinha cresceu e se tornou uma mulher."

"O que mais?", disse a rainha com um suspiro. "Você não sabe que já se passaram doze anos?"

"Mas por que você não a deu em casamento?", perguntou o rei.

"Você estava fora", disse a rainha. "E como eu poderia encontrar um marido adequado para ela?"

O rei ficou veementemente entusiasmado. "O primeiro homem que eu vir amanhã", disse ele, "quando eu sair do palácio, se casará com ela."

A princesa continuou agitando seu leque de penas de pavão, e o rei terminou sua refeição.

Na manhã seguinte, ao sair do palácio, o rei viu o filho de um brâmane catando gravetos na floresta, do lado de fora dos portões do palácio. Sua idade era de cerca de sete ou oito anos.

O rei disse: "Casarei minha filha com ele."

Quem pode interferir nas ordens de um rei? Imediatamente o rapaz foi chamado, e as guirlandas de casamento foram trocadas entre ele e a princesa.

Nesse momento, aproximei-me da minha sábia avó e perguntei-lhe ansiosamente: "E então?”

No fundo do meu coração, havia um desejo fervoroso de substituir aquele afortunado lenhador de sete anos. A noite ressoava com o tamborilar da chuva. A lamparina de barro ao lado da minha cama ardia fracamente. A voz da minha avó zumbia enquanto ela contava a história. E todas essas coisas serviram para criar em um canto do meu coração crédulo a crença de que eu estivera catando gravetos na aurora de algum tempo indefinido no reino de algum rei desconhecido, e em um instante guirlandas foram trocadas entre mim e a princesa, bela como a Deusa da Graça. Ela tinha uma faixa de ouro no cabelo e brincos de ouro nas orelhas. Ela tinha um colar e pulseiras de ouro, uma corrente de ouro em volta da cintura e um par de tornozeleiras de ouro tilintavam acima de seus pés.

Se minha avó fosse uma autora, quantas explicações ela teria para dar a esta pequena história! Primeiro, todos perguntariam por que o rei permaneceu doze anos na floresta? Segundo, por que a filha do rei permaneceu solteira durante todo esse tempo? Isso seria considerado absurdo.

Mesmo que ela tivesse conseguido chegar tão longe sem uma briga, ainda assim haveria um grande alvoroço sobre o casamento em si. Primeiro, nunca aconteceu. Segundo, como poderia haver um casamento entre uma princesa da Casta Guerreira e um rapaz da Casta Sacerdotal Brâmane? Seus leitores teriam imaginado imediatamente que a escritora estava pregando contra nossos costumes sociais de forma dissimulada. E escreveriam cartas para os jornais.

Portanto, rezo de todo o coração para que minha avó possa nascer avó novamente e não, por algum destino amaldiçoado, nascer como seu neto infeliz.

Então, com uma pulsação de alegria e deleite, perguntei à vovó: "E então?"

A vovó continuou: “Então a princesa levou seu pequeno marido embora em grande sofrimento, construiu um grande palácio com sete alas e começou a cuidar de seu marido com muito carinho.”

Pulei para cima e para baixo na minha cama, agarrei-me ao travesseiro com mais força do que nunca e disse: "E então?”

A avó continuou: “O menino foi para a escola e aprendeu muitas lições com seus professores, e à medida que crescia, seus colegas começaram a perguntar: "Quem é aquela bela dama que mora com você no palácio das sete asas?". O filho do brâmane estava ansioso para saber quem ela era. Ele só conseguia se lembrar de como um dia, quando estava catando gravetos, houve uma grande confusão. Mas tudo isso havia acontecido há tanto tempo que ele não tinha uma lembrança clara.

“Quatro ou cinco anos se passaram assim. Seus colegas sempre lhe perguntavam: "Quem é aquela bela dama do palácio das sete asas?". E o filho do brâmane voltava da escola e dizia tristemente à princesa: "Meus colegas sempre me perguntam quem é aquela bela dama do palácio das sete asas, e eu não consigo responder. Diga-me, diga-me, quem você é!".

“A princesa disse: "Deixe para lá. Eu lhe direi outro dia." E todos os dias o filho do brâmane perguntava: "Quem é você?", e a princesa respondia: "Deixe para lá por hoje. Eu lhe direi outro dia." Assim se passaram mais quatro ou cinco anos.

“Por fim, o filho do brâmane ficou muito impaciente e disse: "Se você não me disser hoje quem você é, ó bela dama, eu deixarei este palácio com as sete asas." Então a princesa disse: "Certamente lhe direi amanhã.”

“No dia seguinte, o filho do brâmane, assim que chegou da escola, disse: "Agora, diga-me quem você é." A princesa respondeu: "Esta noite, eu lhe direi depois do jantar, quando você estiver na cama."

“O filho do brâmane disse: "Muito bem"; e começou a contar as horas, esperando a noite. E a princesa, de lado, espalhou flores brancas sobre a cama dourada, acendeu uma lamparina dourada com óleo perfumado, adornou os cabelos, vestiu-se com um belo manto azul e começou a contar as horas, esperando a noite.

“Naquela noite, quando seu marido, o filho do brâmane, terminou a refeição, excitado demais para comer, e foi para a cama dourada no quarto coberto de flores, disse a si mesmo: "Esta noite, certamente saberei quem é esta bela dama no palácio com as sete asas."

“A princesa pegou para si a comida que sobrou do marido e entrou lentamente no quarto. Naquela noite, ela teve que responder à pergunta: quem era a bela dama que morava no palácio das sete asas? E, ao se aproximar da cama para contar a ele, descobriu que uma serpente havia saído das flores e mordido o filho do brâmane. Seu marido estava deitado no canteiro de flores, com o rosto pálido de morte.”

Meu coração parou de bater de repente e perguntei com a voz embargada: "E então?"

Vovó disse: "Então..."

Mas de que adianta continuar com a história? Isso só levaria ao que era cada vez mais impossível. O menino de sete anos não sabia que, se houvesse algum "E então?" após a morte, nenhuma avó de avó poderia nos contar tudo sobre isso.

Mas a fé da criança nunca admite a derrota e se agarraria ao próprio manto da morte para fazê-lo voltar. Seria ultrajante para ele pensar que tal história de uma noite sem professor pudesse parar tão repentinamente. Portanto, a avó teve que resgatar sua história da câmara sempre fechada do grande Fim, mas ela o faz de forma tão simples: simplesmente fazendo o cadáver flutuar em um caule de bananeira no rio e tendo alguns encantamentos lidos por um mágico. Mas naquela noite chuvosa e à luz fraca de uma lâmpada, a morte perde todo o seu horror na mente do menino, e parece nada mais do que o sono profundo de uma única noite. 

Quando a história termina, as pálpebras cansadas estão pesadas de sono. É assim que fazemos o corpinho da criança flutuar nas costas do sono sobre as águas calmas do tempo, e então, pela manhã, lemos alguns versos de encantamento para devolvê-lo ao mundo da vida e da luz.
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Rabindranath Tagore (1861-1941)
Nascido em 6 de maio de 1861, em Calcutá, Rabindranath Tagore tornou-se um dos escritores mais prolíficos do mundo: poeta, artista, dramaturgo, músico, romancista e ensaísta. Ele se sentia completamente à vontade tanto em bengali quanto em inglês, em parte porque estudou no University College, em Londres, em 1879-80. Ele já havia se tornado o poeta nacional de Bengala na época de seu Jubileu de Ouro em Calcutá, em 28 de janeiro de 1912, mas sua fama internacional só veio em novembro de 1913, quando ganhou o Prêmio Nobel de Literatura por Gitanjali, uma coletânea de poesias publicada inicialmente em bengali em 1910 e posteriormente traduzida pelo poeta e publicada em inglês em 1912, com uma introdução de W. B. Yeats. Ele traduziu pessoalmente tantos volumes de seus próprios poemas bengalis que pode ser considerado um poeta anglo-indiano. Tagore residiu em Shantiniketan e Ashram e fundou uma escola no antigo local, que se tornou a Universidade Visva-Bharati em 1918. Mrinalini Devi Raichaudhuri e ele se casaram, em um casamento arranjado, em 9 de dezembro de 1883, e tiveram cinco filhos: três filhas, Madhurilata, Renuka e Mira, e dois filhos, Rathindranath e Samindranath. Tagore obteve títulos honorários das universidades de Calcutá (1913), Dacca (1936), Osmania (1938) e Oxford (1940). Ele faleceu em 7 de agosto de 1941, em Calcutá, e foi cremado.

Fontes:
Rabindranath Tagore. The hungry stones and other stories. New York: The Macmillan Co., 1916. 
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sexta-feira, 10 de outubro de 2025

A. A. de Assis (Tirou tirógrafo)

Acho até que a história aconteceu de fato; só não me lembro de quem me contou. Fala de uma senhora que entrou num escritório pedindo permissão para conversar com o chefe. Queria um emprego para a filha dela. De pronto deu as credenciais: “Ela é moça despachada e já tirou tirógrafo”.  

Ah, sim... Mas que coisa era afinal “tirar tirógrafo”? Traduzo: era “tirar” o diploma de datilógrafo, ou seja, fazer o curso de datilografia. O chefe sorriu. A boa senhora mostrou o diploma. Conseguiu o emprego. 

Só as pessoas com mais de 60 anos devem estar entendendo esta conversa – a geração para a qual a máquina de escrever (precursora do computador) era ferramenta fundamental e a capacidade de operá-la era condição sine qua non para o sucesso na maioria das profissões. 

Tratava-se de um engenhozinho equipado com teclas, as quais movimentavam tipos que, por sua vez, imprimiam letras e números no papel. 

Até o começo dos anos 1980 a máquina de escrever era um acessório indispensável. A partir daí ela começou a ser suplantada pelo computador. Hoje somente em museus ou em estantes de colecionadores a gente ainda encontra alguma Remington, Olivetti, Smith Corona, Olympia, Hermes.

Em Maringá, até os anos 1960-70, havia diversas escolas de datilografia, todas elas frequentadas por um número grande de alunos, visto que o diploma de datilógrafo, além de elevar o status do portador, era essencial em todos os concursos. As festas de formatura eram  solenes, com os formandos em traje de gala, cerimonial no capricho, paraninfo, patrono, discursos, madrinha, padrinho, baile com orquestra e o demais que o momento impunha.  

O datilógrafo era um profissional bastante valorizado, especialmente nas repartições públicas, nos bancos e nos escritórios. O bom datilógrafo usava todos os dedos e escrevia sem olhar para o teclado. Avaliava-se a competência de cada um pelo número de toques corretos por minuto.

A profissão acabou, mas a habilidade continuou válida. Quem “tirou tirógrafo” já entrou avançado na era do computador.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá-PR – 09-10-2025)
Fontes:
Facebook do autor.
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Silmar Bohrer (Croniquinha) 144

 
Eram tempos de efervescência quando a vila que surgiu à beira do rio passou a município, agora com a condição de cidade. A abundância dos pinhais trouxe muitos forasteiros que instalaram dezenas de serrarias na região. A Maria-fumaça - único meio de transporte naqueles fundos - subia e descia o vale transportando a madeira produzida na região.  

Como sempre acontece, toda essa ebulição atraiu também muita mão-de-obra, assim como o comércio teve um crescimento espantoso. Surgiram novas lojas comerciais, armazéns, bodegas, atacado e varejo fornecendo a cidade e o interior, além das adjacências do agora município. 

E a Maria-fumaça saia carregada e voltava carregada. Ia embora a madeira e vinham os produtos que o comércio vendia para a população. Tempos áureos. Abundância. Crescimento.

E crescimento gera crescimento. A região tornou-se um grande centro madeireiro, riquezas entram e saem levadas pelo trem. São os comerciantes, são os fornecedores para o comércio, levas de trabalhadores que viram na região um verdadeiro Eldorado.

Por este tempo desembarcou na estação um senhor disposto a instalar um hotel na cidade  -existiam poucos e pequenos. Comprou terreno no centro e construiu a sua hospedagem. Rapidamente a clientela cresceu. A atenção, o bom atendimento, a cordialidade, desde logo cativaram muitos clientes que vinham, alguns mensalmente, e se hospedavam. 

Naturalmente alguns hóspedes se tornaram amigos do dono do hotel, pessoa espirituosa, com senso de humor, sempre fazendo brincadeiras. 

Certo dia o hoteleiro recebeu um telegrama de um hóspede, também irreverente gozador, que viajava muito pelo interior do país.

Dizia a missiva: 
- Manoel, encontrei um hotel pior do que o seu!! 

O hoteleiro, com o costumeiro humor brincalhão, enviou telegrama de volta respondendo: 

- Duvido!
Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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quinta-feira, 9 de outubro de 2025

José Luíz Boromelo (O trem da vida)

Na infância, brincávamos por horas sobre os trilhos do “trem de ferro”. E lá vinha ele, apitando freneticamente como um monstro portentoso e enraivecido, fazendo tremer o solo e os corações pueris. Os garotos maiores colocavam galhos de árvores para que o gigante de aço os destruísse, mas o “limpa-trilhos” da locomotiva fazia sua parte, empurrando para os lados qualquer coisa que estivesse em sua frente. A animação era maior quando o comboio fazia manobras para acoplar mais vagões, movimentação barulhenta que durava um dia inteiro. Dias felizes aqueles, que não voltam mais. Acabaram-se de vez as brincadeiras inocentes, as amizades sinceras. Restaram vagas lembranças, guardadas em algum lugar na memória, de uma época em que qualquer coisa servia como diversão sadia, diante da simplicidade desconcertante de uma criança pobre.

Os tempos são outros, os amigos se dispersaram, a maioria vive cercada pelos filhos e netos. Os que continuam por perto já não ousam sequer comentar sobre aquela fase mágica da vida, em que se desfrutava da descompromissada felicidade. Outros já cumpriram sua missão e partiram para a última empreitada. É quando vez ou outra se recebe com pesar a notícia do desaparecimento de algum amigo de infância ou de um familiar e a melancolia teima em permanecer ao nosso lado por um tempo. Mesmo sabendo que a morte faz parte do ciclo natural da vida, temos dificuldades para aceitar a separação definitiva.

 Isso só acontece porque estamos embarcados no trem da vida. Assim como aquele gigante de aço, esse também faz estremecer o coração e a alma das pessoas. Durante o percurso passamos por imensas dificuldades, mudando para o próximo vagão a cada novo recomeço. Poderemos até pensar que os amigos e familiares estarão sempre embarcados conosco, mas alguns descerão repentinamente na próxima estação. Encontraremos passageiros que se encarregarão de transformar a viagem num passeio extremamente feliz, outros se farão acompanhar de permanente e inexplicável tristeza e os que estarão circulando pelo trem da vida sempre prontos a auxiliar alguém que necessite de seus cuidados. Alguns descerão deixando muitas saudades. Outros, nem sequer serão notados.

 Então aproveitemos a viagem agora, procurando aceitar o outro com todos os seus defeitos e limitações, relevando suas falhas. Vamos nos deleitar com as belezas da paisagem, deixando para trás todas as dificuldades, as queixas e as tristezas dessa vida. Que possamos com nossa alegria, iluminar a vida daqueles que não têm brilho próprio e vagueiam na escuridão do sofrimento.  Lembremo-nos sempre da lição maior daquele que ofereceu sua própria vida para nos salvar: ”Em verdade eu te digo, ainda hoje estarás comigo no paraíso” (Lucas 23, 43). Esse é o maior exemplo de amor incondicional ao próximo. Que possamos receber a graça de viver sem a preocupação do inevitável e derradeiro desembarque. Que assim como o trem de ferro, ainda provoca uma avalanche de emoções, como naqueles longínquos bons tempos de criança.
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José Luiz Boromelo, é de Marialva/PR, policial rodoviário aposentado, escritor, cronista e agricultor, colaborador da Orquestra Municipal Raiz Sertaneja.

Fontes:
Recanto das Letras. 15.07.2015
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/5312243
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quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Fernando Pessoa (A pintura do automóvel)

Eu explico como foi (disse o homem triste que estava com uma cara alegre), eu explico como foi...

Quando tenho um automóvel, limpo-o. Limpo-o por diversas razões: para me divertir, para fazer exercícios, para ele não ficar sujo.

O ano passado comprei um carro muito azul. Também limpava esse carro. Mas, cada vez que o limpava, ele teimava em se ir embora. O azul ia empalidecendo, e eu e a camurça é que ficávamos azuis. Não riam... A camurça ficava realmente azul: o meu carro ia passando para a camurça. Por fim, pensei: «Não estou a limpar este carro. Estou a desfaze-lo!» E antes de acabar um ano, o meu carro estava em metal puro. Já não era um carro, era uma anemia. O azul tinha passado para a camurça. Mas eu não achava graça a essa transfusão de sangue azul. Vi que tinha que pintar o carro de novo.

Foi então que decidi orientar-me um pouco sobre esta questão dos esmaltes. Um carro pode ser muito bonito, mas, se o esmalte com que está pintado tiver tendências para a emigração, o carro poderá servir, mas a pintura é que não serve. A pintura deve estar pegada, como o cabelo, e não sujeita a uma liberdade repentina, como um chinó. Ora o meu carro tinha um esmalte chinó, que saía quando se empurrava.

Pensei eu: quem será o amigo mais apto a servir-me de empenho para um esmalte respeitável? Lembrei-me que deveria ser o Bastos, lavador de automóveis, com uma Caneças de duas portas nas Avenidas Novas. Ele passa a vida a esfregar automóveis, e deve portanto saber o que vale a pena esfregar.

Procurei-o e disse-lhe:

«Bastos amigo, quero pintar o meu carro. Quero pintá-lo com um esmalte que fique lá, com um esmalte fiel e inseparável. Com que esmalte é que o hei de pintar?»

«Com Barryloid (espécie de tinta)», respondeu o Bastos, «e só uma criatura muito ignorante é que tem a necessidade de me vir aqui maçar com uma pergunta a que responderia do mesmo modo o primeiro chofer que soubesse a diferença entre um automóvel e uma lata de sardinhas».

«Perfeitamente...», respondi eu.

«Como quer você pintar um carro...», continuou o Bastos sem me ligar importância, «...senão com um esmalte que seja ao mesmo tempo brilhante e permanente? E, ainda por cima fácil de aplicar... Isto do fácil de aplicar é comigo, mas é uma virtude, e as virtudes citam-se... Vá-se embora!...»

«Bom...», disse eu.

«Isto de esmaltes de nitrocelulose», prosseguiu o Bastos, dando-me um encontrão, não é um assunto de marcenaria a retalho. Há uma coisa importuna a que se chama ciência. Sabe o que é? Mas é importuna para quem prepara as coisas; para nós, que as recebemos preparadas para as aplicarmos, é um alívio e uma alegria. Este Barryloid é o produto de longos cuidados feitos no primeiro laboratório de tintas, lacas e vernizes. Percebeu? Não é o primeiro produto do gênero que apareceu; porque o ser primeiro está bem se se trata de estar numa fila, mas não se trata de tintas ou de coisas que metam estudo e provas. Não! Nas tintas e na prática, a última palavra é que é a primeira.»

«Meu caro Bastos...», quis eu interromper.

«Só Barryloid», respondeu o Bastos, virando-me as costas.

«Eu queria agradecer...», prossegui.

«Traga o carro», disse o Bastos.

Levei-lhe o carro e ele pintou-o com Barryloid. E não há camurça, nem chuva, nem poeira da pior estrada, que consiga envergonhar esse esmalte de aço. Sim: o Bastos tratou-me mal, mas tratou bem a verdade. Não há nada como o Barryloid.

... Tanto assim que, quando comprei o meu segundo carro, tratei logo de saber se ele vinha já pintado com Barryloid. Ele aí está na base da página e no fim da minha história. Passa-se a camurça, mas é preciso usar óculos fumados: o brilho deslumbra. E, o que é mais, deslumbrará, porque dura.

A minha camurça dura eternamente. O que se tem gasto muito são os óculos fumados; e os elogios dos amigos que veem os meus carros pintados com Barryloid.
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Fernando Pessoa (1888-1935) foi um dos mais importantes poetas e escritores da língua portuguesa e uma figura central do modernismo em Portugal. Sua obra é notável pela criação de heterônimos — personalidades literárias distintas com biografias, estilos e filosofias próprias — que assinaram grande parte de sua produção. Fernando António Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa, Portugal, em 13 de junho de 1888. Após a morte de seu pai e o novo casamento de sua mãe, a família mudou-se para Durban, na África do Sul, em 1896. Ele viveu lá até 1905, onde recebeu uma educação em inglês e começou a escrever seus primeiros poemas nesse idioma. Ao voltar a Portugal, ele se matriculou no curso de Letras, mas logo o abandonou, dedicando-se à literatura e trabalhando em várias empresas como correspondente comercial. Pessoa estreou como crítico literário em 1912, na revista Águia. Introduziu o modernismo em Portugal e tornou-se um símbolo da cultura portuguesa. Apesar de sua importância, Pessoa publicou poucas obras em vida. Seu reconhecimento pleno veio após sua morte, com a descoberta de um grande número de textos inéditos em um baú. 
A criação de diferentes identidades literárias é a característica mais marcante de sua obra. Os mais conhecidos são: Alberto Caeiro: O "mestre" dos outros heterônimos, poeta bucólico e simples, que valorizava a natureza e o empirismo, com uma filosofia antirreflexiva; Ricardo Reis: Poeta clássico e neoclássico, com referências à mitologia greco-romana e uma busca pela tranquilidade interior; Álvaro de Campos: Engenheiro naval, poeta vanguardista e futurista, caracterizado pela exaltação da vida moderna e da velocidade, mas também pelo tédio e pessimismo; Bernardo Soares: Considerado um "semi-heterônimo", autor do Livro do Desassossego, que reflete sobre a vida, o existencialismo e a solidão. 
Embora tenha tido uma vida amorosa intensa, Fernando Pessoa nunca se casou ou teve filhos. Declarava-se um cristão gnóstico, mas não se filiou a nenhuma instituição religiosa, explorando a temática religiosa em seus escritos. Faleceu em Lisboa, em 30 de novembro de 1935, aos 47 anos, devido a uma cólica hepática. 
Fontes:
Fernando Pessoa, O banqueiro anarquista e outros contos filosofais. Disponível em Domínio Público.  
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segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Aparecido Raimundo de Souza (O Sofrimento da Alma. Será que ele é eterno?)

HÁ DORES que não se veem. Elas não deixam marcas na pele, não sangram, não gritam. Mas estão lá, silenciosas, persistentes, alojadas no fundo mais profundo da alma. O sofrimento da alma é aquele que nasce da perda, da ausência, da solidão, da incompreensão. É o vazio imenso que se instala quando os sonhos se desfazem, quando o amor não encontra abrigo, quando a esperança parece ter se perdido no caminho.

É uma dor que não se cura com analgésicos, que não se explica com palavras simples. Ela exige escuta, tempo, acolhimento. Às vezes, tudo o que a alma precisa é de um olhar que compreenda, de um abraço que não julgue, de um silêncio que respeite. Mas há também beleza nesse sofrimento. Porque é nele que a alma se revela, se transforma, se fortalece. É na travessia da dor que descobrimos quem somos, o que importa, o que nos move. A alma sofre, mas também aprende, cresce e renasce.

Que possamos apesar dos prós e contras da vida, cuidar da nossa alma com a mesma atenção que damos ao corpo. Que possamos, igualmente, reconhecer as nossas dores, sem aquela pecha (vício) de vergonha, sem medo e sem atropelos. Porque toda alma que sofre carrega em si a semente da cura. O sofrimento da alma é uma espécie de campo vasto e pode ser explorado sob diferentes perspectivas. 

A alma sofre em silêncio, perguntarão meus leitores e amigos? Sim. Sofre. Não por falta de voz, mas porque a sua dor é sutil, invisível, muitas vezes incompreendida. É o tipo de sofrimento que não se explica com palavras, pois nasce de sentimentos profundos: saudade, culpa, vazio, angústia. Se apresenta como uma tempestade interna que não molha a pele, mas afoga o espírito. Literalmente.

Vejamos, agora, o que diz o filósofo Nilo Deyson Monteiro Pessanha, “o sofrimento pode ser um espelho que nos obriga a encarar o ego, a refletir sobre nossas escolhas, crenças e valores”. Nesse tom, ele propõe que a dor seja vista como um convite à crítica e ao autoconhecimento, e não como uma espécie de punição. Para muitos pensadores espirituais, como Divaldo Franco, “o sofrimento é um portal”. Concordo plenamente. A meu entender, ele rasga o véu das ilusões e nos empurra para dentro, para uma jornada de despertar. 

Bato na tecla que é no colapso, ou seja, na perda, na doença, na ruptura que a alma se rende e começa a buscar o verdadeiro sentido. Essa busca pode levar ao reencontro com o sagrado, com o propósito, e também, com a essência. Na doutrina espírita, por exemplo, agora citando Léon Denis, o sofrimento é visto como uma oportunidade de evolução. Para Herculano Pires, “muitas dores são reflexos de escolhas passadas, e outras são instrumentos de aprendizado”. Na visão de Camille Flammarion, “a dor moral, pode ser terapêutica. Ela nos tira da zona de conforto e nos obriga a mudar, a reparar e a perdoar”.

Chico Xavier dizia que “a alma que sofre também pode iluminar. Quando a dor é acolhida, e compreendida”. Particularmente, eu asseveraria que a dor pode ser a qualquer tempo, “ressignificada” (guardem bem essa palavra), cuja sentido seria, como pesquisa feita via Internet, “algo a que se deu um novo sentido, tipo  valor, função ou forma geralmente com  o intuito de superar padrões estabelecidos ou de se enxergar uma situação sob uma nova perspectiva mais positiva e construtiva”. O sofrimento não precisa ser fim. Pode ser começo. Pode ser, e de fato é, o solo fértil onde brota a cura, onde predomina a arte, e sobretudo, onde se vivifica grandemente a FÉ.

Aproveitando o gancho, darei “uma palhinha” rápida sobre duas figuras ilustres. Fernando Pessoa e Clarice Lispector. Ambas  gigantes da literatura que mergulharam fundo na alma humana, cada um à sua maneira, com estilos distintos, mas igualmente intensos. Suas reflexões atravessaram temas como identidade, solidão, sentido da existência e o mistério do ser.

Fernando Pessoa, no dizer do saudoso gaúcho Luiz Fernando Veríssimo, “não era apenas um poeta, era muitos”. Verdade. Fernando Pessoa criou heterônimos como também o fizeram Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, cada um com uma visão de mundo própria. A obra de Fernando Pessoa é marcada por fragmentações  do “eu”. “Tenho em mim todos os sonhos do mundo”, diz ele em “o Livro do Desassossego”, revelando um sujeito dividido, múltiplo, em busca de sentido.

“O Livro do Desassossego” seu livro mais “espetaculoso” se tornou uma espécie de canção de introspecção radical, onde o autor asseverava que “A heteronímia é como uma resposta à complexidade”. Pois bem. Fernando Pessoa não se contentava com uma só voz, pelo contrário, ele se “outrava”, ou dito de forma mais simples, criava uma série de outros personagens que pensavam diferente dele.

Clarice Lispector seria outra que considero uma “fera  insuperável”. Ela escrevia como quem escava a alma. Ia fundo. Seus textos são densos, líricos, e muitas vezes desconcertantes. Sua literatura nos convida a sentir antes de entender a busca do “eu”. Em “A Paixão Segundo G.H”, a protagonista vive uma epifania ao encarar uma barata. Transborda em nós, uma espécie de mergulho profundo e quase sem volta no que descreveria como “abismo do ser”. 

Assim como Fernando Pessoa, segundo estudos comparativos, ambos problematizavam a identidade e o “eu” moderno. Nessa senda, o português Fernando Pessoa fragmentou o sujeito em múltiplas vozes, ao passo que a ucraniana de origem judaica Clarice Lispector dissolveu a criatura em sensações e silêncios. No geral, os dois revelaram que “o ser humano é um mistério e que a literatura é uma forma de tocá-lo”. 

Entre tapas e beijos, pescoções e pernadas, juntando Fernando Pessoa e Clarice Lispector, aprendemos que o sofrimento da alma é aquele como já disse acima, no início desse texto, “é o que nasce da perda, da ausência, da solidão e da incompreensão. É o vazio que se instala quando os sonhos se desfazem, quando o amor não encontra abrigo, ou quando a esperança parece ter se perdido no caminho”. 

Resumindo, é uma dor que não se cura com analgésicos, que não se explica com palavras simples. Ela exige escuta, tempo e acolhimento. Às vezes, tudo o que a alma precisa é de um olhar que compreenda o não visto, de um abraço apertado e afetuoso que não julgue, de um silêncio puro que respeite o que não foi dito. Não devemos nos esquecer que há também beleza nesse sofrimento. Porque é nele que a alma se revela, se transforma e se fortalece. É na travessia da dor, como o cruzamento de uma ponte imensa, que descobrimos quem somos, o que nos importa e o que nos move. 

Repetindo a pergunta: a alma sofre? Sim, sofre e muito. Mas percebam, também com esse sofrimento aprendemos, crescemos, renascemos. Que possamos, pois, cuidar da nossa alma com a mesma atenção que damos ao corpo. Que tentemos reconhecer nossas dores, sem vergonha, sem as máscaras do medo. Toda alma que sofre ou que padece, ou que se estropia, carrega em si a semente da cura. A alma sofre porque PENSA demais, como diria Fernando Pessoa. 

A alma sofre porque SENTE demais, como asseverava Clarice Lispector. E entre o PENSAR e o SENTIR, ela se DESFAZ, e se REFAZ. O sofrimento não é o fim, é apenas um caminho longo para a travessia. É o lugar onde o “eu” se encontra com o mistério. E ali, no fundo da dor em sua melhor forma de expressão, é ali que nasce a poesia. 

Para mim, em particular, a alma que sofre, sobrevive. Sobrevive sempre. E mais: ela não apenas sobrevive, ela se remodela, e se transforma. Se refresca. O sofrimento da alma é como o vento forte que dobra a árvore, mas não a quebra. Ele testa as raízes, desafia a estrutura, mas, como um todo, também ensina como passar por tudo com perseverança e paciência.  

A alma que sofre, vista agora por outra ótica, aprende a escutar o silêncio, a valorizar o instante e a reconhecer a beleza escondida nas pequenas coisas. Ela se torna mais sensível, mais profunda, mais verdadeira, mais dona de si. É como o barro que, ao ser moldado pela dor, vira arte. A dor, portanto, não é o fim. É o processo. E a alma, mesmo ferida, como diz o escritor moçambicano Mia Couto, ela carrega dentro de si uma força ancestral que a empurra para frente. Confiram:  “A alma não tem cicatrizes. Tem memórias que brilham.”

Eu, como mero “escrevinhador”, me acho, como uma espécie de Mia Couto vivendo os tempos de hoje. A minha alma não sofre. O sofrimento da minha alma é a base, o alicerce, a estrutura do meu amanhã que ainda nem chegou, todavia, acreditem, ele, o meu porvir, ainda está por chegar. E chegará. Respondendo à pergunta embutida no título: Será que ele, o Sofrimento, é eterno?  Não, meus caros. O sofrimento é  um ser PASSAGEIRO. 
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras (Floresta/PR). Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 

Renato Benvindo Frata (Na intimidade)

Do meu canto ouço um cantar conhecido. E lindo!  Será corruíra, será garrinchão? Meus ouvidos, velhos ouvidos, já não o discernem mais se um, se outro. São tão parecidas as vozes... a corruíra, mais sensível, o garrinchão, melódico.

Um ou outro? As mãos em conchas abraçam o que pode o belo som, mas são insuficientes a possibilitarem o discernimento. Encosto-me à parede a auscultar na insistência de ouvir e bem diferenciar, mas os ouvidos reclamam em não o identificar.

Nesse ficar, cismo, como cisma em cantar o passarinho de voz de corruíra. Ou será de garrinchão? Dúvida que me aguça, estimulando.

— Que bom que ainda ouço. — Que bom que ainda ouço — repito na reflexão, no repetir de velho metódico com as mãos fazendo conchas.

A melodia melada, saída molhada da siringe da corruíra – ou será garrinchão? – penetra pela veneziana, expande-se pelo aposento a me pôr em pé a alimentar os sentidos. Bons são os sons que esta manhã de segunda me concebe. Não será terça?

A certeza do dia da semana escorreu da minha folhinha...

Mas esse som, esse do cantar que me põe os ouvidos a ouvir com imaginação, esgravata inspirando meus tímpanos endurecidos, e os cutuca a mexer nas suas membranas para que também acordem e ouçam! É um pássaro que canta... É a beleza da voz a embelezar a manhã.

Já ouviu corruíra? Ouviu garrinchão? Não? Que pena! Eles me dão, sabe o quê? Avivamento da atenção; é como me enlevar em sublimidade, tal qual é a voz do pássaro liberto a cantar, encantando.

Em silêncio ouço que do outro lado, quiçá sobre um ramo qualquer, a vida voa por meio da voz que continua a fervilhar. A liberdade, por si só, já é uma bela canção...

Lá ele canta. Aqui, encantado, escuto. E calo. Calado, não corto os seus sons.

Não consigo vê-lo, nem ele a mim, mas só a voz me basta: minhas asas envelheceram a só permitirem voos de passos... curtos, imprecisos, como os primeiros gorjeios da corruíra. Ou seria do garrinchão?

E o canto faz meu dia.

Tão pouco e tão rápido, mas tão comum e extraordinário que me liberta do pijama de velho para me acordar para a vida nesta manhã de segunda — ou terça, seja o que for.

A emoção da liberdade, apenas ela, pule meus ouvidos a colocar luz nos olhos. E sede de vida, de muita vida em minha garganta.                                  
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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