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domingo, 17 de agosto de 2025

Aparecido Raimundo de Souza (Pequenos milagres que vieram com o sorriso do teu rosto)

 Raiz e nome:
Sou a Ellen — de Aparecido vem a luz que mora em mim.
Ellen de Souza (para meu avô Aparecido)
 
Coração partido
Chuva na janela, teu nome ecoa no vento… 
O silêncio me dói.

Ausência
O café esfria só, teu lugar vazio pesa… 
O tempo não cura.

Lembrança
No lençol dobrado, o perfume ficou… 
Fere mais que um adeus.

Promessa quebrada
A lua testemunha juras feitas no escuro… 
Hoje não valem.

Reencontro impossível
Na estação vazia, te espero sem esperança… 
O trem já passou.

Amor não dito
Palavras guardadas, pesam mais que despedidas… 
Nunca te falei.

Amor que ficou
Folhas no outono, caem sem saber do vento… 
Assim fui de você: desejo e paixão.

Toque suspenso
Olhar que desliza, a pele arde sem contato… 
O tempo congela.

Fogo contido
Chama no peito, teu nome acende tudo… 
Não sei apagar.

Noite vermelha
Lençóis em batalha, suspiros rasgam o ar… 
A lua nos vê.

Desejo oculto
Entre mil palavras, teu silêncio me provoca… 
Quero o não dito.

Paixão breve
Beijo relâmpago, trovão dentro do peito… 
Restou o calor.

Vazio noturno
Lençol sem dobras, o espaço onde dormias… 
Grito sem som.

Ausência quente
Travesseiro quente, mas não é teu calor… 
O sonho me engana.

Madrugada lenta
O relógio não anda, na cama o tempo se estende… 
Sem teu abraço.

Fantasma do toque
A cama ainda cheira a ti, que já foste embora… 
Meu corpo implora.

Silêncio de lençol
Dobro o cobertor, como quem esconde o fim… 
Cama sem nós dois.

Fim suspenso
Porta entreaberta… teu passo nunca voltou… 
Adeus sem som.

Palavra engasgada
Na garganta, o “fica” morreu antes do suspiro… 
Partistes sem ver.

Olhar final
Vi-te indo embora, mas teus olhos ficaram… 
Não sei se foi o fim.

Tempo quebrado
O relógio parou no instante do quase… 
Adeus sem tempo.

Última mensagem
Escrevi “te amo”, apaguei antes de te enviar… 
Ficou no azul.

Sombra fiel
Mesmo na luz clara, ela caminha comigo… 
Não sabe partir.

Noite sem fuga
Fecho mil portas, mas o medo entra mudo… 
Dorme a meu lado.

Corpo alerta
O silêncio me grita, o medo veste meu nome… 
Sou seu abrigo.

Sem testemunha
Olho no espelho, há algo atrás do reflexo… 
Ninguém para ouvir.

Coração refém
Bate acelerado, não por amor ou desejo… 
É só o terror.

Presença sonhada
Se tu estivesses, o silêncio teria som… 
Teu riso em mim.

Espaço preenchido
A cama não seria um campo de travesseiros … 
Apenas abrigo.

Tempo gentil
O relógio sorriria, seus ponteiros dançariam… 
com tua chegada.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Renato Frata (Folha vazia)

Diante de mim jazia uma folha vazia, solta sobre a mesa escura. Parecia, no seu esplendor branco e intocado, que chamava por mim nesse pretenso abandono e refleti: talvez o exagero de sua alvura se tenha feito pelo reflexo da janela que se deita com ela no tampo. 

Luz e folha, então, compuseram algo: o contraste entre o escuro e o claro fazendo-se notar, atraiu meus olhos e, com eles, o olhar. 

Ou seria minha imaginação?

Há momentos em que a percepção dá às coisas conotação inesperada: a flor olhada todos os dias, repentinamente nos parece mais bela; os olhos dos filhos que se mostram mais brilhantes, e por que não, uma folha displicentemente largada sobre um tampo a pedir por um traço, ou uma letra.

Sim, a folha branca pedia para ser maculada. Meus dedos, olhei-os, se paralisaram para depois se contraírem em rejeição. Gesto desnecessário, já que na estante ao lado havia à disposição, uma caixa com vários lápis. 

À minha frente se estendia a casta folha retangular exposta à luz como a pedir que lhe quebrasse a pureza. Não pretendia ela ser indefinidamente folha sem vida e sem alma, como são as folhas virgens, mesmo se dispostas soltas em tampos de mesa sob o sol da manhã.

Firmei então o olhar para o conjunto do ambiente como se procurasse orientação: a sala que nos abrigava, o sol bisbilhoteiro que a janela invadia, os móveis lustrados que nos assistiam, os retratos que paralisados, nos espiavam a querer enxergar o hoje no tempo que já se foi, a lâmpada pendente em fio estático, os tapetes que riam com suas estampas floridas. O conjunto sensato de um ambiente de lar. 

Ninguém me olhava, conferi. Minhas mãos inertes aparentando incerteza, mendigavam comando de ação e então, levado por um desejo-sentimento, movi rapidamente um braço em direção à estante e peguei um lápis como se o surrupiasse e, instantaneamente, conferi sua ponta, agasalhei-o entre os dedos polegar e indicador. Baixei o punho à mesa e sobre a folha. 

Respirei quieto e compenetrado. Ergui a cabeça para bem enxergar o que iria fazer e, calmamente, risquei a meu modo o que meu veio à mente. 

Intimamente sorri, mas uma sensação de alívio me tomou por inteiro e um coração saído da minha mão para a ponta do lápis se perfez no traço, preenchendo a folha por inteiro.

Vi-o com olhos matreiros, de riso, de encanto, de missão completada. 

O desenho delicadamente traçado naquele corpo branco e desejoso da folha, deu-me a impressão – que loucura! – de vê-la feliz, tomada por igual encanto que coloriam meus olhos.

E aí, como não poderia deixar de ser, senti que meu íntimo estava tomado por aquela percepção estranha das coisas inesperadas, e me vi naquele contentamento, ter reprisado um ato delicioso e bem vivido: o descer de zíper seguido de um lento e sensual despir de vestido e, mais um pouco, um desmoçar desejado e bem realizado.    
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Adobe Firefly 

sábado, 16 de agosto de 2025

Arthur Thomaz (Roupas no varal)

Duas roupas, um traje feminino e outro masculino, penduradas no varal do quintal de uma antiga e decadente mansão, conversam. 

Ele: — Você está sentindo-se esquecida? 

Ela: – Não sei se a palavra adequada seria essa, talvez menosprezada seja a mais correta. E você? 

Ele: – Desvalorizado, inútil ou anacrônico, eu diria.

Ela: – E pensar que já tivemos dias bem melhores.

Ele: – Sem dúvidas, e hoje assim, patéticos, pendurados, secando ao sol. 

Ela: – Desprestigiados e substituídos por coloridos e grosseiros jeans. 

Ele: – Humilhante demais, para quem, como nós, já fomos assíduos frequentadores de tantos bailes de gala. 

Ela: – E tantas glamorosas solenidades.

Ele: — Fomos testemunhas de inúmeros amores, paixões irrefletidas, rompimentos e reconciliações.

Ela: – Tantas lágrimas nos molharam, às vezes, fingidas, mas outras também extremamente sentidas.

Ele: – E testemunhamos muitas furtivas traições.

Ela: – Presenciamos muitas cartas serem escritas, umas valiosas, outras vãs e algumas que sequer foram lidas.

Ele: – Quantas tramas foram urdidas em nossa presença, algumas infrutíferas e outras que destronaram reis e rainhas.

Ela: – Quantos projetos ficaram pelo caminho, guerras foram deflagradas e quantas derrotas foram amargadas.

Ele: – Vários sonhos dissiparam-se, deixando inúmeros corações destroçados e outros sem rumo.

Ela: – Demasiada ingratidão, não acha?

Ele: – Os sinais de ingratidão já começavam quando na hora suprema do sexo, arrancavam-nos, e às vezes, até nos jogavam ao chão.

Nessa hora, eles dois, em uníssono, bradaram.

– Ainda há tempo para repararmos essas injustiças.

E sem nada mais precisar dizer, aproveitaram uma lufada de um vento amigo, entrelaçaram-se e se amaram em intenso frenesi.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Arthur Thomaz é natural de Campinas/SP. Segundo Tenente da Reserva do Exército Brasileiro e médico anestesista, aposentado. Trovador e escritor, úblicou os livros: “Rimando Ilusões”, “Leves Contos ao Léu – Volume I, “Leves Contos ao Léu Mirabolantes – Volume II”, “Leves Contos ao Léu – Imponderáveis”, “Leves Aventuras ao Léu: O Mistério da Princesa dos Rios”, “Leves Contos ao Léu – Insondáveis”, “Rimando Sonhos” e “Leves Romances ao Léu: Pedro Centauro”.

Fontes:
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 
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Monteiro Lobato (O veado e o sapo)

Um veado e um sapo queriam casar com a mesma moça. Para decidirem a questão fizeram uma aposta. 

— Temos aqui esta estrada compridíssima. Vamos correr — propôs o veado. — Quem chegar primeiro, casa com a moça. 

O sapo concordou, e marcaram a prova para o dia seguinte. 

O veado saiu dali dando boas risadas. Um pobre sapo ter a pretensão de apostar corrida com quem? Justamente com ele, que era o animal de maior velocidade que existe! Ah, ah, ah!... 

Mas o sapo usou da esperteza. Reuniu cem companheiros, aos quais contou o caso, combinando o seguinte: de distância em distância, à beira da estrada, ficaria escondido um sapo, com ordem de gritar Gulugubango, bango, lê, sempre que o veado passasse por ele e cantasse Laculê, laculê, laculê. Enquanto isso, o sapo apostador ficaria, no maior sossego, esperando o veado no fim da estrada. 

Assim foi. Chegada a hora da corrida, o veado disparou que nem uma bala. Cem metros adiante cantou o Laculê, certo de que o sapo, lá atrás, nem ouviria. Mas com grande assombro ouviu a resposta adiante dele: Gulugubango, bango, lê. 

— Será possível? — pensou consigo o veado, e deu maior velocidade às canelas. Voou mais cem metros e cantou: Laculê, laculê, laculê, e ouviu adiante a resposta: Gulugubango, bango, lê. 

O veado começou a suar frio. Deu ainda maior velocidade às pernas, avançando mais duzentos metros, rápido como o relâmpago — e cantou o Laculê. Mas ouviu pela terceira vez, adiante, o Gulugubango, bango, lê. 

E desse modo até o fim da estrada, onde, mais morto que vivo, com as pernas a tremerem do grande esforço, o veado cantou pela última vez, com voz de quem não aguenta mais: Lá... cu... lê... Mas ouviu de novo a voz descansada do sapo, que respondia, adiante, sossegadamente: 

Gulugubango, bango, lê. Fora vencido. 

O veado jurou vingar-se. Na noite do casamento foi ao quintal do sapo e encheu de água fervente a lagoa onde ele nadava. Altas horas o sapo teve saudades da lagoa e veio tomar seu banho. Tchibum! — pulou dentro e morreu escaldado. 

O veado, então, muito contente da vida, casou-se com a viúva.
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Monteiro Lobato (José Bento Renato Monteiro Lobato) nasceu em 1882, em Taubaté/SP, e faleceu em 1948, em São Paulo. Foi promotor, fazendeiro, editor e empresário. Apesar de também escrever para adultos, ficou mais conhecido por causa dos seus livros infantis. Faz parte do pré-modernismo e escreveu obras marcadas pelo realismo social, nacionalismo e crítica sociopolítica. Já seus livros infantis da série Sítio do Picapau Amarelo possuem traços da literatura fantástica, além de apresentarem elementos folclóricos, históricos e científicos.Em 1900, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo. Em 1903, se tornou um dos redatores do jornal acadêmico O Onze de Agosto. Escreveu também para periódicos como Minarete, O Povo e O Combatente. Se formou em Direito no final do ano de 1904. Em 1908, se casou com Maria da Pureza. Com a morte do avô, em 1911, o escritor recebeu como herança algumas terras. Assim, decidiu morar na fazenda do Buquira. Ele passou a ser conhecido quando, em 1914, sua carta “Uma velha praga” foi publicada n’O Estado de S. Paulo. Em seguida, o autor criou o personagem Jeca Tatu. Três anos depois, desistiu da vida de fazendeiro e se mudou para São Paulo. Nesse ano, publicou o polêmico artigo Paranoia ou mistificação?, que critica as tendências modernistas. No ano seguinte, comprou a Revista do Brasil. Em 1920, fundou a editora Monteiro Lobato & Cia. Cinco anos depois, vendeu a Revista do Brasil para Assis Chateaubriand (1892–1968) e decretou a falência da editora Lobato & Companhia, que, a essa altura, já se chamava Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato. Ele se tornou sócio da Companhia Editora Nacional. Se mudou para o Rio de Janeiro, em 1925. Dois anos depois, foi para Nova York, onde assumiu o cargo de adido comercial. Em 1929, devido à crise econômica, vendeu suas ações da Companhia Editora Nacional. No final de 1930, quando Getúlio Vargas (1882–1954) subiu ao poder, o escritor perdeu seu cargo de adido comercial. Retornou ao Brasil no ano seguinte. Em 1932, foi um dos fundadores da Companhia Petróleo Nacional. Anos depois, em 1941, o autor ficou preso, durante três meses, por fazer críticas ao regime ditatorial de Getúlio Vargas. Se tornou sócio da Editora Brasiliense, em 1946, ano em que decidiu morar na Argentina, onde foi um dos fundadores da Editorial Acteón. Voltou ao Brasil em 1947 e fez críticas ao governo de Eurico Gaspar Dutra (1883–1974). Em 1922, decidiu concorrer à cadeira número 11 da Academia Brasileira de Letras. Porém, desistiu da candidatura por não querer “implorar votos”. Já em 1926, voltou atrás e, novamente, concorreu a uma vaga na ABL, mas não foi eleito. Por fim, em 1944, recusou indicação para a Academia, em protesto por Getúlio Vargas ter sido eleito à Academia Brasileira de Letras em 1941

Fontes:
Monteiro Lobato. Histórias de Tia Nastácia. Publicado originalmente em 1937.
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sexta-feira, 15 de agosto de 2025

A. A. de Assis (Seu Ciço versus seu Efe)

Primeiro que tudo será de bom proveito deixar explicado que Seu Ciço era de batismo Cícero, tal que nem Seu Efe era, de batismo, Filisberto. Porém carece um adendo: é que na porteira da fazenda de Seu Filisberto havia um “F” enorme, daí que o povo achou por graça chamá-lo assim – Seu Efe. 

Eram os dois fazendeiros mais importantes do município, além de chefes políticos. Mais ainda: rivais em tudo, desde garotos, quando disputavam a preferência da mesma menininha, a qual contudo no final preferiu um terceiro. Pra botar mais pimenta na polenta, um dos filhos de Seu Ciço se apaixonou por uma das filhas de Seu Efe, pra desgosto e espanto da parentada toda.

Seu Ciço era fidelíssiimo seguidor do então presidente Getúlio Vargas, do qual Seu Efe era ferrenho opositor. Metade da população acompanhava Seu Ciço, a outra metade seguia Seu Efe.

Só que no meio de um entrevero mais acalorado o clima chegou a tal ponto que os dois chefões se desmiolaram de vez e acabaram por se desafiar para um duelo (mais exatamente uma briga) na praça central da cidadezinha. Representados por emissários, combinaram detalhes e regras. Seria num sábado, às 10 horas da manhã, mediante chicotes.

Chegado o dia, o local da refrega encheu de gente. Na horinha porém do acerto de contas, se deu uma grande surpresa: apareceu alvoroçante na esquina uma banda de música, vindo logo atrás dois carros de bois, um trazendo a noiva, outro o noivo – a filha e o filho dos velhos rivais.

Foi tudo um engenhoso arranjo do padre Nel, que, caprichosamente paramentado, subiu num caixote e falou ao povo: “Caríssimos e caríssimas, vocês vieram ver um espetáculo de brutalidade; no entanto, ao contrário, vão testemunhar uma belíssima cena de amor. Serão aqui sacramentadas as núpcias de duas pessoas muito queridas: o jovem Cicerinho e a senhorita Morgada”.

Dirigiu-se em seguida diretamente aos pais irosos: “E vocês, seus velhos cabeçudos, parem com essa birra idiota, joguem fora esses relhos ridículos e venham os dois aqui abraçar e abençoar os noivos”.

Deu certo. Os dois homões se debulharam em lágrimas... e em ata se pôs a fábula.

Bem talqualzinho o meu avô me contou uns muitos anos depois.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 14-8-2025)
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A. A. DE ASSIS (Antonio Augusto de Assis), poeta, trovador, haicaísta, cronista, premiadíssimo em centenas de concursos nasceu em São Fidélis/RJ, em 1933. Radicou-se em Maringá/PR desde 1955. Lecionou no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá, aposentado. Foi jornalista, diretor dos jornais Tribuna de Maringá, Folha do Norte do Paraná e das revistas Novo Paraná (NP) e Aqui. Algumas publicações: Robson (poemas); Itinerário (poemas); Coleção Cadernos de A. A. de Assis - 10 vol. (crônicas, ensaios e poemas); Poêmica (poemas); Caderno de trovas; Tábua de trovas; A. A. de Assis - vida, verso e prosa (autobiografia e textos diversos). Em e-books: Triversos travessos (poesia); Novos triversos (poesia); Microcrônicas (textos curtos); A província do Guaíra (história), etc.
Fontes: 
Texto enviado pelo autor. 
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quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Renato Frata (Raízes, segredos...)

Vez ou outra dona Quitéria, parteira e benzedeira, parava no portão para conversar com minha mãe, e entrava para um café com bolinhos. A prosa seguia na troca de amenidade e receitas. Eu não ficava bisbilhotando, mas a chuva fina da tarde me carregou para dentro, de modo que mesmo elas falando baixo na cozinha, e estando eu na sala com meus brinquedos, fiapos de conversa vazavam chamando-me à atenção, e o assunto girava sobre ervas de benzimentos como arruda, guiné, jurema, comigo-ninguém-pode, espadas de São Jorge, eucalipto, pimenta, mamona, fumo de corda, casca-cebola, manjericão, sálvia, alecrim, manjerona, hortelã, calêndula, pitanga, camomila, alfavaca, anis estrelado, boldo, canela pau, louro, entre outras utilizadas raspadas, quentes, frias, em forma de chás ou banhos equilibradores, os de busca da energização do corpo, alinhamento de órgãos, defesa contra energias ruins e até contra quebranto e fuxicos de vizinha.

A conversa fluiu em meio a causos de espinhela caída, bucho encarangado,  frieiras brabas, pescoço duro, bebedeiras e até de marido fujão que saía para comprar cigarro e se perdia pelo mundo. Ou se achava... encontrando outras e outras pessoas mais interessantes do que a havia deixado.

Minha mãe ouvia calada, estatelava os olhos diante da força que Dona Quitéria demonstrava possuir, na sua maneira de contar, nos gestos finos e nobres de parteira com a decisão de curandeira. Para ela, os médicos estudavam só para se enricarem, mas não curavam bulhufas. Não fossem as suas ervas espalhadas pela comunidade, elaboradas com amor e carinho e ministradas na dosagem correta, metade daquele povo já teria morrido... a depender dessas drogas que mal aplicavam injeção.

De repente minha mãe mexeu na cadeira arrastando-a para perto e cochichou. Vi pela fresta e esse cochichar me aguçou a curiosidade fazendo-me aproximar e aquietar, preso em casa quando poderia estar no barro a fazer estripulias. Mas ali, naquela hora, olhar pela fresta e aguçar ouvidos às conversas das duas foi o programa escolhido... claro, sem ser chamado a elas. Minha mãe falava, parava e olhava pelos cantos desconfiada. Até que a visitante disse; - Liga não, mulher! Tò cansada de ouvir isso... os homens se cansam mais cedo...mas não se arrelie... eu tenho solução para esse caso, e não vai lhe custar nada...

- Nada, nada? 

Ela balançou a cabeça, enfiou a mão na sacola e retirou dali um pedaço de pau, dizendo: - Ele bebe suco?

- Não, só água. Bebe cerveja, pinga... no boteco. Aqui, só água.

- Pois a senhora vai ralar essa madeira mole até encher uma colher, depois vai ferver bem, mas bem mesmo, e vai coar e deixar esfriar no tempo. Tem que ser no tempo, viu? Depois de fria, pode guardar. Quando ele pedir água, dê essa a ele e deixe que beba tudo. Depois, espere. Espere c'oas coisas preparadas - e riu colocando os dedos sobre os lábios... para afogar a vergonha... E espere. Preparada, viu? Seu homem vai virar um touro... Desses valentes, que fungam a mais ouvir. E atacam mesmo...

- Virgem mãe! - respondeu ela assustada, ao tempo que, ligeiro, enfiava o pedaço de pau no bolso do avental, a bem guardá-lo, passando a se abanar com as próprias mãos. 

Não a vi sorrir, mas sua face mudou. Seus olhos ganharam cor de esperança, seu semblante se rejuvenesceu perdendo as rugas e sua respiração se afogueou como se pimenta tivesse sido espremida... com a sensação de se dar bem a lhe cutucar o coração. 

Lembro que meu pai, depois dessa chuva ficou caseiro, chegava mais cedo em casa e ia também dormir mais cedo e, com gestos meigos, passarinhando passos, a chamava: - Vem descansar... vem... você trabalhou muito hoje... - ao que ela de sorriso estampado, tomava com força o cabo da caneca, enchia-a da água mantida no guarda-comida e o seguia...

Seus chinelos de pano deslizavam rápidos e arteiros pelo assoalho como se desconfiassem que alguma coisa incomum iria acontecer...

- Dona Quitéria sabia mesmo das coisas...
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.
Fontes:
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas.  Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
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quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Artur da Távola (O Pródigo do Jardim)

Um bom jardineiro morre anônimo porém não morre sozinho. Com ele se vão zínias, calêndulas, miosótis, margaridas, gramados, pés de caqui, de manga e abacate, tumbérgias, orquídeas, trevos de quatro folhas, agapantos, rosas, rabos de gato, petúnias, marias sem-vergonha, hortaliças, camarões magoados, capuchinhas, ah quantas flores morrem com o jardineiro.
Não mais sua boa mão, o saber plantar e esperar, tempos certos, esta dá de galho, aquela de estaquia, esta outra só semeando.

Seu Fernando Mayworm era magro, alto, origem alemã, tinha mais de setenta e oito anos. Seco, altivo e resistente como um bambu. Chegava cedinho em seu fusca velho que ainda dirigia. Subia, descia, abaixava-se, levantava, ordenava aos auxiliares; às onze e meia nem um copo d’água pedia. Recolhia-se ao fusca, abria a marmita quentinha e a garrafa térmica. Educado. Estirpe. Homem discreto e educado oriundo de alemães antigos de Petrópolis de quem herdara a seriedade e a disciplina.

“Esta não vai pegar aí!”, sentenciava. E a planta obedecia. “Vamos ver se salvamos esta”. O caule se recuperava. Se pedíamos alguma bobagem ele fazia a nossa vontade. E onde a gente não palpitava ele operava na moita e plantava algo mais belo.

Quantas vezes me comovi, desejando para meu envelhecer a paz daquele homem calado e severo, que cumpria seu dever com as mãos, honrado, sereno, já sem ilusões mas silencioso enamorado das reações da terra, a felicidade por ver algo brotar, o riso raro na contemplação da flor que “vingou” graças a ele! Era a paz de quem não cobiça, vivia para criar e elegera a flor e o fruto como objetos sagrados do seu existir.

Sem quase nada dele saber. Sempre recatado. Sem reclamar (salvo dos cachorros que fazem pipi em hortas baixas), sem proclamar. Sem nada contar de sua vida, qual seu time de futebol ou preferência política, aprendi a gostar à distância daquele homem idoso, cuja vida foi prodigalizar mudas e sementes e mudo morreu a trabalhar, na beleza serena e serrana de Petrópolis.
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Artur da Távola, pseudônimo de Paulo Alberto Moretzsonh Monteiro de Barros nasceu no Rio de Janeiro em 1936 falecendo nesta cidade em 2008. Foi professor, advogado, escritor e político brasileiro um dos fundadores do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Pelo Rio de Janeiro, foi senador e deputado federal e estadual, ambos por dois mandatos. Pela capital homônima, foi secretário da Cultura.  Cassado pela ditadura militar, viveu na Bolívia e no Chile entre 1964 e 1968. Como jornalista, atuou como redator e editor em diversas revistas, notavelmente na Bloch Editores e foi colunista de televisão nos jornais Última Hora, O Globo e O Dia, sendo também diretor da Rádio Roquette-Pinto. Publicou diversos livros de contos e crônicas. Teve livros com prefácios escritos por diversos famosos, tais como: Fernanda Montenegro, Pedro Bial, Carlos Vereza e Beth Faria. Apresentava o programa Quem tem medo de música clássica?, na TV Senado onde demonstrava sua profunda paixão e conhecimento por música clássica e erudita. No encerramento de cada programa, ele marcou seus telespectadores com uma de suas mais célebres frases:: “Música é vida interior, e quem tem vida interior jamais padecerá de solidão.” Em 1995, como senador, Távola foi admitido já no grau de Grã-Cruz à Ordem do Infante D. Henrique, de Portugal. No ano seguinte, foi admitido pelo presidente Fernando Henrique Cardoso à Ordem do Mérito Militar no grau de Comendador especial. Ordem do Rio Branco Grau de Oficial Brasília, em 1994. Ordem de Bernardo O'Higgins Grau de Gran Cruz Santiago do Chile, em 1995. Ordem do Mérito Naval Grau de Grande Oficial Brasília, em 1995. Em 16 de junho de 2007 o antigo Palacete Garibaldi, na Tijuca, passou a acolher o Centro Municipal de Referência da Música Carioca Artur da Távola.

Fontes:
Enviado pelo autor. Disponível em http://www.arturdatavola.com/ (site desativado)
Biografia = https://pt.wikipedia.org/wiki/Artur_da_Távola 
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Fábio Pestana Ramos (Por mares nunca dantes navegados)

A árdua conquista dos mares. Há mais de quinhentos anos, os portugueses iniciaram um processo que mudaria a face do mundo: lançaram-se à empreitada marítima. A coragem de desbravar e encontrar novas rotas era marca dos aventureiros portugueses, que se lançavam à árdua conquista dos mares. Há mais de quinhentos anos, os portugueses iniciaram um processo que mudaria a face do mundo: lançaram-se à empreitada marítima. A coragem de desbravar e encontrar novas rotas era marca dos aventureiros portugueses, que se lançaram em águas tão inóspitas quanto as terras que descobriram nos séculos XV, XVI e XVII. A Editora Contexto iça as velas da história e apresenta o livro Por mares nunca dantes navegados: a aventura dos Descobrimentos, escrito pelo historiador Fábio Pestana Ramos. Ele leva o leitor a uma fantástica viagem pelos oceanos, a bordo de naus e caravelas, passeando ao lado de passageiros e marujos, prostitutas e religiosos, oficiais e degredados, comerciantes e escravos. Portanto, Ramos buscou documentação manuscrita inédita, coletada nos arquivos portugueses.

O que os motivava? Como era o cotidiano a bordo? O que encontraram no trajeto? Chegariam? Realizariam seus sonhos? Em Por mares nunca dantes navegados, o leitor acompanhará os dramas pessoais e coletivos da gente embarcada nos navios lusitanos, no tempo dos Descobrimentos e das Grandes Navegações. Conhecerá as ambições de Portugal e dos portugueses, explicadas dentro do contexto da época.

O inferno podia se instalar durante tempestades, calmarias e naufrágios. Mas o inferno também podia se instalar dentro das embarcações. O 'marinheiro' convidado a ler esse livro sentirá na pele, dos outros, as privações, os perigos e os invariáveis conflitos sociais enfrentados em alto mar. As doenças, provindas da falta de higiene e a alimentação, quase sempre insuficiente para todo o trajeto, eram constantes. Mulheres e crianças embarcadas muitas vezes não escapavam da 'sede' dos marujos, já que violações eram práticas comuns. As leis da terra não eram empregadas no mar. Os oficias faziam vistas grossas para os abusos, isso quando não participavam deles.

E se a travessia marítima não era fácil, o desembarque, na África, na Ásia ou na América, também podia reservar surpresas e situações perigosas. Deparando-se com realidades totalmente diversas da vivida no Velho Mundo, esses viajantes tornaram-se os principais protagonistas de encontros e desencontros culturais, violências e conflitos com nativos, em cenários de destruição, exploração e extermínio. E ao mesmo tempo em que foram desenvolvidas relações comerciais, surgiram povoados e cidades, e a paisagem foi modificada.

A paisagem brasileira começou a ser modificada oficialmente em 1500, mas hoje quase ninguém contesta a presença portuguesa antes dessa data. Entre os navegadores Bartolomeu Dias (1488) e Vasco da Gama (1497) existem diversas possibilidades de um possível Descobrimento ou 'achamento' como preferem alguns, que só não foi anunciado porque havia um entrave diplomático entre Espanha e Portugal. Fábio Pestana Ramos conta em detalhes a manobra política feita para garantir tal feito. Com a parte jurídica acertada, coube a Pedro Álvares Cabral oficializar o 'achado', antes de cumprir a sua verdadeira missão: acertar um tratado de paz com os governos indianos. Com o Brasil oficialmente descoberto, Cabral partiu para as Índias, onde não obteve muito sucesso, o que acabou frustrando toda a missão e o rei D. Manuel. Depois disso, nunca mais esse fidalgo comandou sequer um navio.

Indicada a todos os interessados em embarcar nesta jornada recheada de aventuras, a obra é uma leitura divertida e muito bem fundamentada historicamente. Paraíso ou inferno? É o que veremos em Por mares nunca dantes navegados. Todos a bordo!
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FÁBIO PESTANA RAMOS possui Bacharelado e Licenciatura Plena em Filosofia pela Universidade de São Paulo e Doutorado em Ciências (História Social) também pela USP. Atuou como docente no curso de história da PUC de Campinas e como professor titular na Uniban, onde, além de lecionar nos cursos de história, pedagogia e administração de empresas, entre outros, exerceu o cargo de coordenador dos cursos de letras e pedagogia e fez parte do corpo docente do mestrado em educação; tendo também exercido atividade de ensino em outras grandes universidades particulares e como pesquisador da FAPESP. Professor na graduação e especialização, em universidades privadas como colaborador e docente concursado na autarquia municipal Fundação Santo André. Experiência docente na área de Educação, História, Filosofia, Sociologia e Antropologia; com intensa atividade de pesquisa e passagens por arquivos históricos no Brasil e em Portugal, tal como a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o Arquivo Público do Estado da Bahia, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Arquivo Histórico Ultramarino, Biblioteca Nacional de Lisboa e Biblioteca Central da Marinha Portuguesa. Recebeu pelos seus trabalhos de pesquisa uma menção honrosa da USP e, na qualidade de co-autor, o prêmio Jabuti e o prêmio Casa Grande e Senzala. Possui farto volume de publicações, em revistas Acadêmicas e na mídia impressa de grande circulação, tal como Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e as Revistas Superinteressante e Aventuras na História; participou, como co-autor, de vários livros, como, por exemplo, a obra clássica História das Crianças no Brasil ; é autor dos livros "Por mares nunca dantes navegados", "No tempo das Especiarias" e "Naufrágios e Obstáculos", amplamente citados pela mídia e utilizados como material didático em nível superior.
Fonte:
Colaboração de Douglas Lara. http://www.sorocaba.com.br/acontece 05.12.2008
Curriculo Lattes.

Machado de Assis (O Califa de Platina)

O califa Schacabac era muito estimado de seus súditos, não só pelas virtudes que o adornavam, como pelos talentos que faziam dele um dos varões mais capazes de Platina. Os benefícios de seu califado, aliás curto, eram já grandes. Ele iniciara e fundara a política de conciliação entre as facções do Estado, animava as artes e as letras, protegia a indústria e o comércio. Se havia alguma rebelião, tratava de vencer os rebeldes; em seguida perdoava-lhes. Finalmente, era moço, crente, empreendedor e patriota.

Uma noite, porém, estando a dormir, apareceu-lhe em sonhos um anão amarelo, que, depois de o encarar silenciosamente alguns minutos, proferiu estas palavras singulares:

— Comendador dos crentes, teu califado tem sido um modelo de príncipes; falta-lhe, porém, originalidade; é preciso que faças alguma coisa original. Dou-te um ano e um dia para cumprir este preceito: se o não cumprires, voltarei e irás comigo a um abismo, que há no centro da Tartária, no qual morrerás de fome, sede, desespero e solidão.

O califa acordou sobressaltado, esfregou os olhos e reparou que era apenas um sonho. Contudo, não pôde dormir mais; levantou-se e foi ao terraço contemplar as últimas estrelas e os primeiros raios da aurora. Ao almoço, serviram-lhe peras de Damasco. Tirou uma e quando ia a trincá-la, a pera saltou-lhe das mãos e saiu de dentro o mesmo anão amarelo, que lhe repetiu as mesmas palavras da noite. Imagina-se o terror com que Schacabac as ouviu. Quis falar, mas o anão desaparecera. O eunuco que lhe servira a pera estava ainda diante dele, com o prato nas mãos.

— Viste alguma coisa? perguntou o califa, desconfiado e pálido.

— Vi que Vossa Grandeza comeu uma pera, muito tranquilo, e, ao que parece, com muito prazer.

O califa respirou; depois recolheu-se ao mais secreto de seus aposentos, onde não falou a ninguém durante três semanas. O eunuco levava-lhe a comida, com exclusão das peras. Não lhe aproveitou a exclusão, porque no fim de três semanas, apetecendo-lhe comer tâmaras, viu sair de dentro de uma o mesmo anão amarelo, que lhe repetiu as mesmíssimas palavras de intimação e ameaça. Schacabac não se pôde ter; mandou chamar o vizir.

— Vizir, disse o califa, logo que este acudiu ao chamado, quero que convoques para esta noite os oficiais do meu conselho, a fim de lhes propor alguma coisa de grande importância e não menor segredo.

O vizir obedeceu prontamente à ordem do califa. Naquela mesma noite, reuniram-se os oficiais, o vizir e o chefe dos eunucos; todos estavam curiosos de saber o motivo da reunião; o vizir, porém, mais curioso ainda que os outros, simulava tranquilamente achar-se na posse do segredo.

Schacabac mandou vir caramelos, cerejas, e vinhos do Levante; os oficiais do conselho refrescaram as goelas, avivaram o intelecto, sentaram-se comodamente nos sofás e cravaram os olhos no califa, que depois de alguns minutos de reflexão, falou nestes termos:

— Sabeis que tenho feito alguma coisa durante o meu curto califado; contudo, ainda não fiz nada que verdadeiramente se possa dizer original. Foi o que me observou um anão amarelo, que me apareceu há três semanas e ainda hoje de manhã. O anão ameaçou-me com a mais afrontosa das mortes, em um abismo da Tartária, se no fim de um ano e um dia, eu não tiver feito alguma coisa positivamente original. Tenho cogitado dia e noite, e confesso que ainda não achei coisa que merecesse essa qualificação. Por isso vos convoquei; espero de vossas luzes o concurso necessário à minha salvação e à glória da nossa pátria.

O conselho ficou boquiaberto, ao passo que o vizir, a mais e mais espantado, não movia um único músculo do rosto. Cada oficial do conselho fincou a cabeça nas mãos, a ver se descobria uma ideia original. Schacabac interrogava o silêncio de todos, e sobre todos, o do vizir, cujos olhos, fitos no magnífico tapete da Pérsia que forrava o chão da sala, parecia ter perdido a vida própria, tal era a grande concentração dos pensamentos.

Ao cabo de meia hora, um dos oficiais, Muley-Ramadan, encomendando-se a Allah, falou nestes termos:

— Comendador dos crentes, se quereis uma ideia extremamente original, mandai cortar o nariz a todos os vossos súditos, adultos ou menores, e ordenai que a mesma operação seja feita a todos os que nascerem de hoje em diante.

O chefe dos eunucos e diversos oficiais protestaram logo contra semelhante ideia, que lhes pareceu excessivamente original. Schacabac, sem a rejeitar de todo, objetou que o nariz era um órgão interessante e útil ao Estado, porquanto fazia florescer a indústria dos lenços e ministrava anualmente alguns defluxos à medicina.

— Que razão poderia levar-me a privar o meu povo desse natural ornamento? concluiu o califa.

— Saiba Vossa Grandeza, respondeu Muley-Ramadan, que, fundado na predição de um sábio astrólogo de meu conhecimento, tenho por certo que, daqui a um século, há de ser descoberta uma erva fatal ao gênero humano. Essa erva, que se chamará tabaco, será usada de duas formas — em rolo ou em pó. O pó servirá para entupir o nariz dos homens e prejudicar a saúde pública. Desde que os vossos súditos não tenham nariz serão preservados de tão pernicioso costume…

Esta razão foi triunfalmente combatida pelo vizir e todo o conselho, a tal ponto que o califa, aliás inclinado a ela, deixou-a inteiramente de mão. Então o chefe dos eunucos, depois de pedir licença a Schacabac para exprimir um voto, que lhe parecia muito mais original que o primeiro, propôs que dali em diante o pagamento dos impostos passasse a ser voluntário, clandestino e anônimo. Desde que assim for, concluiu ele, estou certo de que o erário regurgitará de sequins; o contribuinte crescerá cem côvados ante a própria consciência; algum haverá que, levado de legítimo excesso, pague duas e três vezes a mesma taxa; e afinado deste modo o sentimento cívico, melhorarão, e muito, os costumes públicos.

A maioria do conselho concordou em que a ideia era prodigiosamente original, mas o califa achou-a prematura, e aventou a conveniência de a estudar e pôr em execução nas proximidades da vinda do Anticristo. Cada um dos oficiais propôs a sua ideia, que foi julgada original, mas não tanto que merecesse ser aceita de preferência a todas. Um propôs a invenção da clarineta, outro a proscrição dos legumes, até que o vizir falou nestes termos:

— Seja-me dado, comendador dos crentes, propor uma ideia que vos salvará dos abismos da Tartária. É esta: mandai trancar as portas de Platina a todas as caravanas que vierem de Brazilina; que nenhum camelo, se ali recebeu mercadoria ou somente bebeu água, que nenhum camelo, digo eu, possa penetrar as portas da nossa cidade.

Espantado com a proposta, o califa ponderou ao vizir:

— Mas que motivo… sim, é preciso que haja um motivo… para…

— Nenhum, tornou o vizir, e nisto consiste a primeira originalidade da minha ideia. Digo a primeira, porque há outra maior. Peço-vos, e ao conselho, que acompanheis atentamente o meu raciocínio…

Todos ficaram atentos.

— Logo que a notícia de semelhante medida chegar a Brazilina, haverá grande reboliço e estupefação. Os mercadores ficarão pesarosos com o ato, porque são os que mais perdem. Nenhuma caravana, nem ainda as que vêm de Meca, quererá mais parar naquela cidade maldita, a qual (permita-me o conselho uma figura de retórica) ficará bloqueada pelo vácuo. Que acontece? Condenados os mercadores a não mercar para cá, serão obrigados a fechar as portas, ao menos aos domingos. Ora, como há em Brazilina uma classe caixeiral, que suspira pelo fechamento das portas aos domingos, para ir fazer suas orações nas mesquitas, acontecerá isto: o fechamento das portas de cá produzirá o fechamento das portas de lá, e Vossa Grandeza terá assim a glória de inaugurar o calembour (trocadilho) nas relações internacionais.

Apenas o vizir concluiu este discurso, todo o conselho reconheceu, unânime, que a ideia era a mais profundamente original de quantas tinham sido propostas. Houve abraços, expansões. O chefe dos eunucos disse poeticamente que a ideia do vizir era “. O califa manifestou o seu entusiasmo ao vizir, dando-lhe de presente uma cimitarra, uma bolsa com cinco mil sequins e a patente de coronel da guarda nacional.

No dia seguinte, todos os cádis leram ao povo o decreto que mandava fechar as portas da cidade às caravanas de Brazilina. A notícia excitou a curiosidade pública e causou certa estranheza, mas o vizir tivera o cuidado de espalhar pela boca pequena a anedota do anão amarelo, e a opinião pública aceitou a medida como um sinal visível da proteção de Allah.

Daí em diante, por espaço de alguns meses, um dos recreios da cidade era subir às muralhas a ver chegar as caravanas. Se estas vinham de Damasco, de Jerusalém, do Cairo ou de Bagdá, abriam-se-lhe as portas, e elas entravam sem a mínima objeção; mas se alguma confessava que tocara em Brazilina, o oficial das portas dizia-lhe que passasse de largo. A caravana voltava no meio dos apupos da multidão.

Entretanto o califa indagava todos os dias do vizir se constava que em Brazilina se houvesse procedido ao fechamento das portas aos domingos; ao que o vizir invariavelmemte respondia que não, mas que a medida não tardaria a ser proclamada como consequência rigorosa da ideia que havia proposto. Nessa esperança, iam voando as semanas e os meses.

— Vizir, disse um dia Schacabac, quer-me parecer que estamos enganados.

— Descanse Vossa Grandeza, retorquiu friamente o vizir; o fato vai consumar-se; assim o exige a ciência.

Pela sua parte, o povo cansou de apupar as caravanas e começou a notar que a ideia do vizir era simplesmente amoladora. Não vinham da Brazilina as mercadorias do costume, nem o povo mandava para lá as suas cerejas, os seus vinagres e os seus colchões. Ninguém ganhava com o decreto. Começou-se a murmurar contra ele. Um boticário (ainda não havia farmacêutico) arengou ao povo, dizendo que a ideia do vizir era simplesmente vã; que jamais o trocadilho das portas fechadas chegaria a ter a mínima sombra de realidade científica. Os doutores eclesiásticos não acharam no Corão um só versículo que pudesse justificar tais induções e esperanças. Lavrava a descrença e descontentamento; começava a soprar uma aragem de revolução.

O vizir não teve só de lutar contra o povo, mas também contra o califa, cuja boa fé começou a desconfiar do acerto do decreto. Três dias antes de chegar o prazo fatal, o califa intimou o vizir a dar-lhe notícia do resultado que prometera ou a substituí-lo por uma ideia verdadeiramente original.

Nesse apertado lance, o vizir chegou a desconfiar de si, e a persuadir-se que aventara aquela ideia, levado do único desejo de desbancar os outros oficiais. Disso mesmo o advertiu Abracadabro, varão exímio na geomancia, a quem consultou sobre o que lhe cumpria fazer.

Esperar, disse Abracadabro, depois de traçar algumas linhas no chão; esperar até o último dia do prazo fatal marcado ao califa. O que há de acontecer nesse dia, não o pode descortinar a ciência, porque há muita coisa que a ciência ignora. Mas faze isso. No último dia do prazo, à noite, tu e o califa deveis recolher-vos ao mais secreto aposento, onde vos serão servidos três figos de Alexandria. O resto lá saberás; e podes ficar certo de que será coisa boa.

Deu-se pressa o vizir em contar ao califa as palavras de Abracadabro, e, fiados na geomancia, aguardaram o dia último. Veio este, e depois dele a noite. Sós os dois, no mais secreto aposento de Schacabac, mandaram vir três figos de Alexandria. Cada um dos dois tirou o seu e abriu-o; o do califa deu um pulo, subiu ao teto e caiu logo no chão, sob a forma do famoso anão amarelo. Vizir e califa tentaram fugir, correndo às portas; mas o anão os deteve com gesto amigo.

— Não é preciso fugir, disse ele; não venho buscar-te; venho somente declarar, que achei verdadeiramente original a ideia do fechamento das portas. Certo é que não deu de si tudo o que o vizir esperava; mas nem por isso perdeu de originalidade. Allah seja convosco.

Livre da ameaça, o califa mandou logo que todas as portas se abrissem às caravanas de Brazilina. O povo aquietou-se; o comércio votou mensagens de agradecimento. E porque o califa e o vizir eram homens instruídos, práticos e dotados de boas intenções, e apenas tinham cedido ao medo, sentiram-se contentes com repor as coisas no antigo pé, e não se encontravam nunca sem dizer ao outro, esfregando as mãos :

— Aquele anão amarelo!
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Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), mais conhecido como Machado de Assis, foi um dos maiores escritores brasileiros, um gênio literário que revolucionou a literatura brasileira e deixou um legado imenso para as gerações futuras. Ele nasceu no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839, e faleceu na mesma cidade, em 29 de setembro de 1908. De família humilde, com um pai pintor e uma mãe portuguesa. Sua infância foi marcada por dificuldades e pela fragilidade de sua saúde, sendo gago e epilético. Apesar das dificuldades, ele demonstrou grande talento para a escrita desde cedo, publicando seu primeiro soneto, "Ela", aos 15 anos. Trabalhou em diversos cargos, incluindo revisor, tipógrafo e funcionário da Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. No entanto, sua paixão pela literatura era inegável, e ele dedicou-se à escrita de romances, contos, crônicas, poesias e peças de teatro. É conhecido por suas obras de profunda análise psicológica, crítica social e escrita elegante e irônica. Algumas de suas obras mais famosas incluem: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881): Um dos seus romances mais emblemáticos, que marcou o início do Realismo no Brasil; Dom Casmurro (1899): Uma obra que explora a infidelidade e a obsessão de Bento em relação a sua esposa, Capitu; Esaú e Jacó (1904): Um romance que aborda a questão da raça e da identidade brasileira; Memorial de Aires (1908): Um romance que traz um tom mais melancólico e reflexivo, explorando a nostalgia e a solidão; Quincas Borba (1891): Um romance que critica a hipocrisia e a falsidade da sociedade; Helena (1876): Um romance que retrata a vida amorosa de uma mulher que se apaixona por um homem casado; A Mão e a Luva (1874): Uma peça teatral que aborda a questão do casamento arranjado. 
Machado de Assis foi o primeiro diretor da Academia Brasileira de Letras, instituição que ele ajudou a fundar. Sua obra foi traduzida para diversas línguas e é considerada uma das mais importantes da literatura brasileira e mundial. Ele é reverenciado como um dos maiores escritores brasileiros, um gênio literário que deixou um legado imenso e duradouro. Era um mestre na análise psicológica de seus personagens, explorando seus sentimentos, pensamentos e motivações. Sua obra fazia uma crítica mordaz à sociedade brasileira do século XIX, expondo as desigualdades sociais e as contradições da elite burguesa. Usava uma linguagem refinada, com um tom irônico e cheio de sutilezas, que o tornava um escritor único. Sua escrita era marcada por uma linguagem ambígua, que permitia diferentes interpretações e leituras da sua obra. Machado de Assis foi um dos primeiros a se aproximar do Realismo, mas com um toque próprio, criando um estilo único e original.
Fontes:
Publicado originalmente em O Cruzeiro, 9 de abril de 1878. In Machado de Assis. Páginas recolhidas. 1899. Disponível em Domínio Público.  
Imagem criada com Microsoft Bing 

Bisa Maith (O Patinho Perdido)

A pata saiu do ninho com seus filhotes recém-nascidos. Estava feliz como toda a mãe que acaba de ter um filho.

Saiu pelo terreiro com sua prole mostrando-lhes a beleza do mundo onde iam viver, o grande quintal, as árvores, a relva verdinha. Levou-os depois ao lago para ensinar-lhes a nadar.
  
Os pimpolhos adoraram a água e nem foi preciso a mãe ensinar, num instante já estavam todos nadando.

De repente a pata levou um susto. Contando os patinhos a sua volta, constatou que faltava um. Eram doze a ali só estavam onze.

Onde estaria o outro? Será que afogou-se?

Impossível! Os patos já nascem sabendo nadar. Nunca se ouviu contar de um pato que se afogasse num lago tranquilo como aquele.

Desesperada a pata chamou os patinhos e saiu correndo para procurar o filhinho perdido.

Encontrando o pato disse-lhe:

- Querido, sumiu um de nossos bebês! Vamos procurá-lo juntos.

Mas o pato, displicente, respondeu:

- Ora, deixe disso. Com certeza o gato o pegou. Não adianta nada continuar procurando.

- Você é um pato sem coração! Onde já se viu falar assim do seu filho?

- Nos ainda temos onze, meu amor, prá que precisamos de mais um?

Vendo que nada adiantava ficar ali discutindo com o pato a pata continuou seu caminho.
Encontrou, pouco depois, o galo:

- Bom dia, seu galo! Eu perdi o meu patinho! Será que você podia me ajudar a procurá-lo?

- Eu? Imagine! Está pensando que não tenho nada mais importante para fazer do que caçar patos perdidos?

Mais adiante, o peru respondeu ao seu cumprimento com um glu-glu de pouco caso e um orgulhoso arrepiar de penas.

Nem adiantava pedir ajuda a ele. A pata estava só com a sua dor e ainda preocupada com os outros patinhos, tão novinhos, que ela estava obrigando a uma exaustiva correria.

E, então, encontrou a galinha choca que acaba de sair de seu ninho com os pintainhos;

Vendo a pata, amável, lhe disse;

- Vejo que também está com os filhinhos novos, eles são lindos.

A pata contou-lhe rapidamente a sua odisséia e ela, solícita, ofereceu-se:

- Deixe os patinhos comigo enquanto vai continuar a sua busca. Tomara que você encontre logo o seu filhinho!

A pata, agora desembaraçada correu por todo lado, examinou todos os cantos até que ouviu um piadinho muito fraco vindo de uma moita.

Achara o patinho! Ele se enroscara em um ramo e não conseguira sair sozinho.]

Vendo que ele estava bem a mãe respirou aliviada, foi buscar os outros filhotes e, todos juntos, foram ao ninho para o merecido descanso noturno.

No dia seguinte a Dona comentou com o marido:

- Aconteceu uma coisa estranha ontem. Quando fui tratar dos animais a galinha choca veio comer e os patinhos estavam junto com os pintinhos. Ela alimentou-os do mesmo modo que fez com os seus. Não sei para onde tinha ido a pata, mas hoje de manhã ela já estava com os patinhos e a galinha com os pintinhos.

O dono deu uma risada:

- Você e suas histórias! Esta galinha deve ser muito idiota para não saber distinguir um pinto de um pato! E a pata então, uma irresponsável que larga os patinhos por ai e vai passear.

- Não fale assim! Achei tão bonito! A galinha parecia uma mãe adotiva. Não sabemos o porquê do sumiço da pata. Tenho certeza de que ela não abandonou os patinhos. Eu, ás vezes penso que os animais não são tão irracionais como pensamos.

-Você é mesmo uma romântica!

LIÇÕES
A PATA = Uma mãe é capaz de qualquer sacrifício para salvar um filho.
O PATO: Um pai omisso como muitos.
O GALO: Indiferente e preguiçoso
O PERU: Vaidoso, cheio de empáfia, mas inútil.
A GALINHA: Prestativa e boa. Uma mãe que entende a aflição de outra e procura ajudar.
O DONO: Olhe lá os julgamentos ....!
A DONA: O romantismo é a realidade em traje de festa!

Fonte:
Publicado em 1 de julho de 2006 na Ciranda das Flores e dos Bichos, no Sorocultinho, 
da Academia Sorocabana de Letras.
Imagem: Microsoft Bing