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quinta-feira, 3 de julho de 2025

Wallace Leal V. Rodrigues (O boneco)


Um dia vovó comentou que os doces feitos por ela e minha mãe naquela manhã haviam desaparecido do armário. E não sabia o que tinha sido feito deles.

Embora nenhuma das duas parecesse de qualquer forma preocupada com a ocorrência, eu imediatamente disse:

- Foram roubados.

Elas me olharam surpreendidas, mas foi vovó quem estabeleceu conversação comigo.

- Você tem certeza? Ela perguntou.

- Tenho! sustentei. E foi o Pedrinho.

Pedrinho era um dos meus irmãos. Vovó insistiu:

- Você tem certeza?

- Se tenho! Foi o Carlucho quem me contou.

- Minha filha, disse ela tranquila, passando o seu braço pelo meu, venha até o meu quarto. Quero lhe mostrar uma coisa.

No quarto ela abriu a gaveta de uma cômoda e tirou, lá de dentro, um boneco que eu nunca tinha visto.

- Veja como está bem vestido!

Eu não estava entendendo. Aquilo nada tinha a ver com o caso dos doces. Ela prosseguiu:

- Vá dizendo o que mais lhe chama a atenção neste boneco.

- Tem uma bonita roupa, uma camisa linda! Respondi ao observar os punhos, o peitilho e o colarinho impecáveis.

Assim que terminei de falar, minha avó tirou o paletó do boneco. Cai na gargalhada quando vi que da impecável camisa só havia os punhos, o peitilho e o colarinho.

Mas, de súbito, compreendendo, me tornei muito séria.

E vovó, abraçando-me a sorrir, disse concluindo:

- Veja você como são as coisas. A gente só pode crer naquilo que vê. E do que se vê, muitas vezes é preciso acreditar apenas na metade. Você percebeu por que?

Já se passaram muitos anos... Mas, sempre que sou levada, por certa irreflexão tão comum nos seres humanos, a julgar fatos ou pessoas pelas aparências, vem-me à lembrança a impecável camisa daquele boneco da vovó...
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Wallace Leal Valentin Rodrigues nasceu em 1924, em Divisa/ES, foi para Araraquara, SP na década de 30. Estudou Ciências Econômicas em Ribeirão Preto. Foi ator e diretor de teatro, diretor de cinema, escritor, jornalista. Realizou seu primeiro filme em 1953: o documentário Aurora de uma Cidade. Foi diretor e ensaiador do TECA (Teatro Experimental de Comédia de Araraquara). Acompanhou e colaborou com a primeira escola de ballet da cidade: Escola de Ballet Mímica de Araraquara, desde sua fundação maquiando, e apoiando nos figurinos e cenários das apresentações por longo tempo. Coordenou, compôs, criou, orientou jovens e crianças em desfiles de modas ensinando como andar, sentar, colocação de mãos e pés, comportamento e postura de corpo e porte em passarela, um trabalho de alta qualificação, ensinamento europeu. Como escritor tem livros publicados no Brasil e no Exterior. Era poeta, compunha música e além do teatro, atuava junto ao grupo de rádio teatro. Em 1958 teve a ousadia de escrever, produzir e dirigir um filme: Santo Antonio e a vaca, rodado na região, sobre o folclore regional. Para tanto criou a Arabela Filmes. Além do indiscutível talento de Wallace para as artes culturais, merece nota seu trabalho na divulgação do Espiritismo, doutrina que ele assumiu aos 16 anos e divulgou por toda a sua vida. Se destacou como Redator-Chefe do jornal O Clarim e da Revista Internacional de Espiritismo. Na literatura espírita; foram dezenas de livros, uns de sua própria autoria, outros que ele traduziu e organizou. Em 1973,: passou a integrar o quadro de colaboradores da revista Planeta. Em 1973, lançou, na sede da Federação Espírita do Estado de São Paulo, seu livro Remotos cânticos de Belém, No enredo da obra, Wallace juntou histórias e personagens e os colocou num avião que é sequestrado na véspera do Natal. A mensagem que ele passa é a de que a suave melodia do Natal faz-se sentir e abranda até mesmo situações extremamente graves, como a vivida pelos passageiros. Como autor: Remotos cânticos de Belém; Meimei; Vida e mensagem; A esquina de pedra; E, para o resto da vida; Katie King. Considerado pela crítica especializada como uma das pessoas mais cultas dos últimos anos em nosso país, aos 62 anos, Wallace teve seu estado de saúde comprometido e faleceu em 1988.

Fontes: 
Biografia = Federação Espírita do Paraná
Jornal Mundo Espírita - Abril de 2000.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Laé de Souza (Viagem do Armindalino)


Armindalino chegara em casa com a notícia de que estava tudo acertado para a viagem, no fim de semana, com os patrões para a praia. Chamou o Júnior e encheu a cabeça do garoto de conselhos e ameaças, desde corte de mesada a palmadas, se aprontasse alguma ou, então, irritasse o filho do patrão com pirraças, como era do seu feitio. Juanita saiu em defesa do moleque, avisando ao Armindalino que não era porque se tratava do filho do patrão que iria pisar no seu filho.

Aproveitou para comunicar que tinha de fazer uns gastos por conta de roupas de banho, bronzeador, protetor solar e algum vestido para sair à noite, ao que o Armindalino pediu que fosse devagar, mesmo porque os patrões eram pessoas simples e não gostavam de esnobar. 

Juanita irritou-se: “Não são? Pensa que eu não notei que as duas fulanas, no dia da festa de fim de ano, estavam em cochichos e reparando em tudo que era mulher e não tiravam os olhos de mim? Te aviso, Armindalino, que não vou que nem tonta e empregadinha, não.” 

Armindalino consentiu, mas que não exagerasse como da vez que saíram com amigos, em que ela se encheu de parafernália, numa exibição só, que deixou as coitadas das mulheres dos amigos envergonhadas diante de tantos badulaques e ostentação. Além do que, se a sua mulher estava com ouro para todo lado, o aumento pretendido por ele poderia ir por água abaixo. 

A mulher, que não era de engolir calada, retrucava, se era por isso, ele que esquecesse o aumento, porque ela não iria se apresentar para a viagem de qualquer jeito. Igual, ou melhor que as fulanas; abaixo, nem em sonho. Armindalino manifestou, levemente, a vontade de recusar o convite diante das circunstâncias, no que recebeu uma bronca da Juanita: “Nem pensar. Para depois elas ruminarem que eu estou dando uma de esnobe, recusando ou até pensarem que estou com vergonha e que me acho inferior a elas? De jeito nenhum, nós vamos nessa viagem, nem que seja toda a despesa por sua conta.” 

De nada adiantava Armindalino dizer que o motivo da viagem era somente diversão. “Fica quieto, que você não entende de society. Conheço bem esse pessoal”, dizia ela.

Ainda, ao colocar as malas no carro, Armindalino reclamava do peso e que, certamente, estava exagerando nas roupas que seriam usadas em um fim de semana e não em um mês. Melhor levar demais do que faltar ou passar constrangimento, resmungou Juanita.

Não demorou muito para Armindalino confirmar que fizera uma burrada e que aquele passeio não traria nenhum benefício ao seu pretendido aumento. A mulher não era de colaborar com os seus planos e parecia sentir prazer em mostrar-se superior e irritar as mulheres dos patrões.

Maldita hora em que resolveram jogar buraco. Juanita, nervosa por estar perdendo, não manteve a pose, quando percebeu que a mulher do patrão do marido dava uma roubadinha (coisa normal no jogo de buraco). Fez o maior escarcéu, deixando o pessoal atônito. Para ajudar, Júnior abriu um berreiro e chutou o filho do patrão que saía em defesa da mãe. O que salvou o emprego do Armindalino foram os pitos que deu na mulher, na vista de todo mundo, não dando bola para uma feminista. Embora não vá ter o pretendido aumento, por muito tempo, deu-se por feliz por ficar só nisso, porque, nestes tempos, não é hora de se perder o emprego.
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Laé de Souza é cronista, poeta, articulista, dramaturgo, palestrante, produtor cultural e autor de vários projetos de incentivo à leitura. Bacharel em Direito e Administração de Empresas, Laé de Souza, 55 anos, unifica sua vivência em direito, literatura e teatro (como ator, diretor e dramaturgo) para desenvolver seus textos utilizando uma narrativa envolvente, bem-humorada e crítica. Nos campos da poesia e crônica iniciou sua carreira em 1971, tendo escrito para "O Labor"(Jequié, BA), "A Cidade" (Olímpia, SP), "O Tatuapé" (São Paulo, SP), "Nossa Terra" (Itapetininga, SP); como colaborador no "Diário de Sorocaba", O "Avaré" (Avaré, SP) e o "Periscópio" (Itu, SP). Obras de sua autoria: Acontece, Acredite se Quiser!, Coisas de Homem & Coisas de Mulher, Espiando o Mundo pela Fechadura, Nos Bastidores do Cotidiano (impressão regular e em braille) e o infantil Quinho e o seu cãozinho - Um cãozinho especial. Projetos: "Encontro com o Escritor", "Ler É Bom, Experimente!", "Lendo na Escola", "Minha Escola Lê", "Viajando na Leitura", "Leitura no Parque", "Dose de Leitura", "Caravana da Leitura”, “Livro na Cesta”, "Minha Cidade Lê", "Dia do Livro" e "Leitura não tem idade". Ministrou palestras em mais de 300 escolas de todo o Brasil, cujo foco é o incentivo à leitura. "A importância da Leitura no Desenvolvimento do Ser Humano", dirigida a estudantes e "Como formar leitores", voltada para professores são alguns dos temas abordados nessas palestras. Com estilo cômico e mantendo a leveza em temas fortes, escreveu as peças "Noite de Variedades" (1972), "Casa dos Conflitos" (1974/75) e "Minha Linda Ró" (1976). Iniciou no teatro aos 17 anos, participou de festivais de teatro amador e filiou-se à Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Criou o jornal "O Casca" e grupos de teatro no Colégio Tuiuti e na Universidade Camilo Castelo Branco. 

Fontes:
Laé de Souza. Nos bastidores do cotidiano. SP: Ecoarte, 2018
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segunda-feira, 30 de junho de 2025

Eduardo Martínez (A treta do amigo do meu amigo)

 
  Tenho alguns amigos muito próximos, que conheço há décadas. No entanto, vou falar aqui de um que, apesar do pouco tempo de amizade, já o guardo em alta estima. As circunstâncias que nos aproximaram são tão esdrúxulas, que prefiro deixar para um futuro improvável se falarei como nos conhecemos. Seja como for, para a história que vou contar, esse detalhe é irrelevante. Mas adianto que ele nasceu em Visconde do Rio Branco, pequena cidade da Zona da Mata, mas mora em São Paulo desde o final dos anos 1970, além de ser palmeirense quase tão chato que nem a minha mulher, a Dona Irene. Seu nome? Isso posso lhe dizer: Cleidson.

    Estávamos conversando um dia desses em Porto Alegre, na casa da Dona Irene. Aliás, falar que estávamos conversando é força de expressão, pois o Cleidson parece que tem o DNA do Fidel Castro, já que, quando começa a discursar aqueles falas longas, somos, literalmente, só ouvidos. Às vezes, nos perdemos em pensamentos paralelos, tamanhos são os causos contados por ele. Mas uma nos chamou a atenção, que era sobre uma aventura em que ele praticamente foi desafiado a enfrentar: rapel em uma cachoeira muito alta. 

    Mas antes que você imagine que o meu amigo é um indivíduo que adora esportes radicais, vou logo avisando: o Cleidson é do tipo que prefere passar o dia inteiro no sofá jogando paciência no celular. E, quando deseja sentir mais emoção, ele busca um filme de terror tipo B, desses que você não sabe se fica com medo ou se ri, de tão absurda que é a história. Ou seja, o meu amigo é provavelmente o último ser vivo que poderíamos esperar que se aventurasse descer pendurado por uma corda em uma cachoeira, com sério risco de despencar e se esborrachar todo nas pedras e, por conseguinte, virar comida de piranhas assassinas. Mas lá foi ele!

    Enquanto descia pela corda, que rangia como se fosse partir a qualquer momento, o nosso quase herói se deparou com um vão na cachoeira, que o obrigava a ficar de ponta-cabeça. No entanto, a água, que descia muito forte, antes na sua cabeça, passou a atingir as partes mais sensíveis do Cleidson, que começou a gritar de dor. Com a boca aberta, acabou bebendo forçosamente litros de água. 

    Desesperado e sem ar, ele voltou a ficar na posição quase em pé, o que provocou uma forte batida da sua testa numa pedra. O sangue, obviamente, escorreu por seu rosto, tampando ainda mais a sua visão. Desesperado, o meu amigo já imaginou que aquele seria o seu adeus deste mundo, quando, após vários minutos, que pareceram séculos, foi socorrido por um amigo que estava nas proximidades.

    Logo após terminar essa história, a Dona Irene e eu notamos que o Cleidson tremia e suava, como se tivesse passado novamente por essa situação tão perigosa. Ficamos em silêncio não sei por quanto tempo, até que a minha esposa se virou para ele e perguntou: "O que esse seu amigo tinha contra você?”
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Eduardo Martínez possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
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Leandro Silva (A vida me quebrou)


NÃO FOI de uma vez — foi aos poucos.

Fui me rachando em silêncios não ouvidos, em promessas quebradas, em noites longas sem respostas.

As rachaduras começaram como pequenas linhas no reboco da alma.

Quase invisíveis.

Mas profundas demais para serem ignoradas.
 
E eu? Eu era como um muro.
Feito para proteger.
Feito para sustentar.
Feito para ser firme.
 
Mas que começou a ceder com o tempo… com o peso… com a chuva.
 
No começo, eu temi as rachaduras.
Achei que eram sinal de fraqueza.
Achei que significavam o fim da minha força.
 
Mas o que eu não sabia…
É que através delas, a luz começou a entrar.
 
Aquelas fissuras viraram janelas para a esperança.
O sol passou a bater onde antes era sombra.
Pássaros fizeram ninho nas fendas que o tempo abriu.
Aqueles pequenos — os que ninguém vê — encontraram abrigo em mim.
E, quando percebi, flores começavam a nascer ali.
 
Não flores raras, nem premiadas.
Mas flores reais, como a erva-de-passarinho ou a samambaia-de-muro,
que se agarram às fendas, se enraízam nos espaços tortos
e ajudam o muro a respirar, a sustentar-se de novo,
a reencontrar equilíbrio com a própria imperfeição.
 
“O Senhor está perto dos que têm o coração quebrantado
e salva os de espírito abatido.”
(Salmo 34:18)
 
A vida me quebrou…
Mas não me derrubou.
Porque Deus me fez assim:
com estrutura de barro,
mas fundamento de graça.
 
Foi ali — no concreto rachado da alma — que descobri um Deus que não me reconstruiu de imediato,
mas me deixou florescer primeiro.
Me ensinou que algumas flores nascem justamente onde ninguém esperava beleza.
 
E se hoje alguém olhar para mim e disser:
“Você está cheio de marcas.”
Eu respondo:
Sim. Mas estou de pé.
E minhas rachaduras contam história.
Histórias de luta, de acolhimento, de transformação.
Histórias de um muro que não caiu.
Histórias de quem aprendeu que há vida —
até mesmo onde a estrutura parecia ruir.
 
Hoje entendo:
Deus não usou cimento pra me tampar.
Ele usou flores, ninhos e luz.
Porque Ele sabia que a reconstrução mais sólida
é aquela feita de dentro pra fora.
 
Se você se sente rachado, inseguro, instável…
Não desanime.
Flores podem nascer aí também.
Deus ainda usa muros marcados para proteger.
E rachaduras… para semear graça.
 
A vida me quebrou…
Mas eu floresci nas rachaduras.
E hoje, sou abrigo.
Sou muralha viva.
Sou testemunho.
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Leandro Silva é de Vila Velha/ES

Fontes:
Enviado por Aparecido Raimundo de Souza
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Aparecido Raimundo de Souza (A tristeza da lâmpada queimada)


EM UM CANTO esquecido da sala enorme, jogada dentro de uma caixa de papelão cheia de bugigangas, a pobre e indefesa lâmpada queimada se flagra derreada, totalmente entristecida, o coração repleto de lembranças imorredouras. Até pouco tempo, coisa de um mês, pendurada no bocal no meio da sala gigantesca, a belezura iluminava o ambiente deixando-o totalmente claro, onde uma agulha, se caísse no chão, seria achada com a maior facilidade. Hoje, queimada, à mercê das garras do abandono e a sanha do “salve-se quem puder,” espera pelo fatídico de uma partida sem adeus, sem as alacridades dos aplausos dos seres humanos que nunca, em nenhum momento, deixou ficassem nas edacidades (voracidades) das trevas do menosprezo. 

A lâmpada (ou melhor, a fluorescência que dela restou) relembra com tristeza as histórias de quando a sua robustez se fazia viril, não permitindo que nenhum canto da peça tivesse um tantinho assim que fosse, de obumbração (sombras). Ela foi, por muito tempo, o sol de um universo doméstico, iluminando histórias e aquecendo corações. Foi testemunha de amores que vingaram, de corações apaixonados que se entrelaçaram, bem ainda partícipe de brigas acirradas, de xingamentos descomedidos e lágrimas derramadas em vão pelo amor de um parente doente que partiu. Cada filamento de seu corpo, tinha seu destino traçado e o dela, fora feito para brilhar, fulgurar, reluzir sobressair, chamejar, raiar, ascuar (chamejar), até o fim. 

De repente, do nada, com um estalo sutil, num último lampejo de vida, ela se reduziu à obscuridade de um apagão inexorável, interminável, vitimada por uma pancada quase imperceptível como se a companhia de luz lhe apunhalasse, sem motivos aparentes, a caixa de barramento de todo o prédio. Sua chama se fez extinta, suprimida, eliminada, apagada, como se o dedo de uma mão invisível apertasse o interruptor de forma irrefletida e impulsiva. Desde esse instante, a pobre lâmpada não mais se viu altaneira, com a sua fonte de luz plena e percuciente (penetrante), apenas um lembrete (ainda assim muito vago) de que a mais brilhante estrela poderia, num piscar de olhos, desvanecer. Agora, a coitadinha jazia numa casca de vidro repletas de memórias. 

A repetidoria disturbiada (perturbada) de um ontem não totalmente fora de foco, ainda se faz prisioneira na imensidão da sua dor. Um grito tênue e abafado, retido e sentido, a todo momento insiste em desanimá-la e deixa-la para baixo, não permitindo que descanse em paz. Assim que foi esquecida e atirada dentro daquela caixa de papelão até o pescoço de escumalhas (escória) sem valor, a sua alma se empobreceu. Ela sabe que foi empurrada escadas abaixo para o mais infame das misérias, ou seja, aquele patamar inglório que Marx rotulou de lumpesinato (marginalizado). A espera do fim, sem forças para voltar a ser o que outrora a colocou no auge, a pobre lâmpada se vê martirizada às calamidades de uma camada social sem forças de ocupar o seu antigo estado de destaque e postura. 

Com seus botões, pensa se tivesse forças, possivelmente se quebraria, fosse se atirando de cabeça no piso daquele ambiente que tantas alegrias lhe propiciou, ou se esmagaria até se ver em pequenos estilhaços em face de um daqueles objetos que lhe serviam de companhia à espera, possivelmente, de um saco de lixo a ser atirado de qualquer jeito num desses caminhões recolhedores de entulhos. Se pararmos para avaliar o que o presente texto tenta focar, chegaremos à conclusão que assim somos nós. Sem tirar, nem por, nós, humanos, nos assemelhamos a uma lâmpada colocada num bocal em meio a um teto da sala ou de uma cozinha. Não importa. Enquanto alimentamos com a luz que vem de dentro de nossa alma, todos nos querem por perto. 

Ao perdermos o viço, a vida, ou seja, ao nos pegarmos queimada, seremos arremessados aos rebotalhos (refugos) do desuso.  Não podemos nos esquecer, jamais, que viramos, em questão de segundos, em algo obsoleto e sem valor. Somos também, sem tirar nem pôr, como essas lâmpadas em postes espalhadas pelas ruas da cidade. Até o dia em que qualquer coisa não prevista, o nosso corpo se deteriorará e apagaremos. E ao nos tornarmos ultrapassados, superados, antiquados, nos postaremos à mercê de um simpático latão de lixo que nos levará para algum lugar desconhecido, um futuro negro que nos espera. A nossa luz é como a vida humana. Passageira, embora a esperança seja eterna e não desfaleça. 

O que acontece, dia após dia, é que vem um engraçadinho com uma lâmpada nova em folha e nos deixa, por conta, jogado num canto, “e agora?!”, enquanto uma outra ofuscação incandescente tomará nosso lugar e fará com que o bocal que se entrelaçava mavioso, se torne um objeto ainda mais cobiçado e, pior, de rara beleza e esplendor.  A tristeza de uma lâmpada queimada talvez esteja em sua incapacidade de fazer aquilo para o qual nasceu, isto é, iluminar, tornar tudo às claras. Mas a lâmpada queima porque cumpriu a sua função, ainda que brilhara enquanto pôde. E assim somos nós, inquestionavelmente, na nossa jornada cotidiana. 

Se a grosso modo pensarmos em nossas vidas como lâmpadas, talvez o importante não seja evitar o momento em que deixemos de clarificar ou engalanar, mas sim aproveitar ao máximo o tempo em que a nossa luz brilhou. Cada um de nós, humanos, como seres viventes, deixamos nosso brilho de forma única, impactando os espaços ao redor. E, quando queimamos, nada mais justo que sejamos trocados. Lembrem que até os defuntos enterrados, são nos cemitérios substituídos por novos, de cinco em cinco anos. Nesses momentos meio que trágicos, poderemos até servir de inspiração para novas ideias — assim como a nossa essência e legado podem continuar subsistindo, mesmo quando não estivermos mais aqui.
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

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Texto enviado pelo autor.
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sábado, 28 de junho de 2025

A. A. de Assis (Nos outroras, em junho)


Nos antigamentes da vida, a vida era alegre e franca. Em junho bem mais, numa bem-humorada homenagem a Santo Antônio, São João e São Pedro.

A festança no terreiro. A fogueira no meio. O mastro com a estampa do santo na ponta. As barraquinhas de vender batata doce, caldo de cana, beijo de moça. As danças. As fantasias. A recitação.

Os casais formavam uma grande roda e cantavam modas. Após cada moda  faziam uma parada, jogavam um dos participantes no centro e o obrigavam a dizer um versinho. Como estes:

O meu pai é Juca Caco, 
minha mãe Caca Maria; 
ajuntando os cacos todos, 
sou filho da cacaria!

O meu chapéu tem três bicos, 
três bicos tem meu chapéu; 
se não tiver os três bicos, 
então não é meu chapéu!

Quando Deus moldou o homem, 
não precisou cerimônia: 
deu-lhe o corpo de um boneco 
e a cara de um sem-vergonha...

Fecha bem tua janela 
quando te fores deitar... 
No quarto de uma donzela, 
nem a lua pode entrar!

Não é por andar com livros 
que a gente fica doutor. 
As traças vivem com eles, 
devem sabe-los de cor.

Eu não canto por cantar 
nem por ser bom cantador. 
Canto pra matar saudades 
que tenho do meu amor.

Senhora tão bonitona, 
tira a roupa da janela... 
Vendo a roupa sem a dona 
penso na dona sem ela!

Machado de Assis proclama, 
e eu tenho que concordar: 
“É melhor cair de cama  
do que do terceiro andar”...

Cuidado, mocinha ingênua, 
com o que  diz o garotão. 
Discurso fácil nos lábios, 
mentira no coração!

O invejoso xinga e picha, 
mas de nada adianta o estrilo: 
– Quem nasceu pra lagartixa 
nunca chega a crocodilo!

– Viva São Pedro!

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 26-6-2025)
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A. A. DE ASSIS (Antonio Augusto de Assis), poeta, trovador, haicaísta, cronista, premiadíssimo em centenas de concursos nasceu em São Fidélis/RJ, em 1933. Radicou-se em Maringá/PR desde 1955. Lecionou no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá, aposentado. Foi jornalista, diretor dos jornais Tribuna de Maringá, Folha do Norte do Paraná e das revistas Novo Paraná (NP) e Aqui. Algumas publicações: Robson (poemas); Itinerário (poemas); Coleção Cadernos de A. A. de Assis - 10 vol. (crônicas, ensaios e poemas); Poêmica (poemas); Caderno de trovas; Tábua de trovas; A. A. de Assis - vida, verso e prosa (autobiografia e textos diversos). Em e-books: Triversos travessos (poesia); Novos triversos (poesia); Microcrônicas (textos curtos); A província do Guaíra (história), etc.

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Texto enviado pelo autor. 
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Renato Benvindo Frata (Tempo que flui...)


Quando me lembro, mesmo sem querer, eu solto um palavrão. Desses cabeludos, que saem da boca, ricocheteiam nas paredes, para levantarem telhas. Geralmente começam com a letra P e, curiosamente, terminam com uma palavra começada também por outra letra P.

Eu sou do tempo do mata-borrão! Preciso dizer mais?

O mata-borrão, invariavelmente, nos levará às canetas de pau.

Sim, aquelas cilíndricas, feitas de madeira branca, que continham em uma das suas pontas um encaixe para as penas de aço. Mergulhava-se a pena em um tinteiro e estava aí o instrumento de escrita nas mãos das crianças do terceiro ano escolar.

As carteiras eram duplas, de sorte que ambos os colegas usavam o mesmo tinteiro, esse regularmente abastecido pela zeladora que vinha com um bule grande e despejava a tinta no pequeno recipiente.

Pois quem usou as benditas canetas de pau, também se serviu, necessariamente, do mata-borrão. Havia uma técnica – que só aprendemos com a prática – ao molhar a pena na dita tinta.

Bastava que enfiássemos apenas a ponta dela, uns 4mm, se muito, mas nunca ninguém nos falou, de sorte que a pena por inteiro ia no tal tinteiro, para sair pingando na carteira, na roupa e no papel.

Daí o uso do tal, cuja lembrança me arrepia.

Não, por tê-lo usado, afinal, era o suprassumo do chique com a absorção do excesso de tinta que a pena soltava, mas, pelo tempo que isso se deu: há uns sessenta e oito anos, época em que os primeiros fios ralos de bigode passavam por melhores tratos.

Caramba, meu! – Eu diria com sincera exclamação – o tempo passou! E estamos ainda aqui...

Da caneta de pau à caneta tinteiro foi um pulo, e possuir uma simbolizava duas coisas: que já havíamos aprendido a bem escrever e que podíamos carregá-la no bolso externo do paletó a mostrar posse, mesmo porque, embora faça tanto tempo, a vaidade – esse mal que persegue os humanos – é bem mais velha que nós. É cabeluda também! Como são os palavrões.

Por falar em vaidade, possuir hoje uma caneta dessas, ou se é colecionador, ou acumulador de quinquilharia, mesmo porque a escrita manual está se tornando escassa, em desuso a partir do quarto ano primário, substituída pelos teclados ou mensagens fonadas que, de certa forma, retira do ser humano sua humanidade. 

Vai-se o tempo, perde-se a simbiose entre as pessoas e infelizmente, entre professores e alunos.
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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segunda-feira, 23 de junho de 2025

Geraldo Pereira (Velhos Corredores da Juventude)


Velhos corredores estes, os de minha escola, os da antiga Faculdade de Medicina. Corredores de minha juventude, sacrários dourados da prata da vida, de quem como eu continua sendo um corredor de obstáculos, saltando-os a intervalos incertos de tempo. Há sempre mais um, no dia-a-dia da gente! Não os posso percorrer – os corredores – encorpado agora pelo peso da beca e os encargos da função. Adulto, amadurecido no carbureto da existência, trago o cabelo pintando e o corpo vergando; são as marcas brancas das horas difíceis e o sinal incolor, translúcido, da responsabilidade vivida. Vivida com a própria vida, mas vivida também com sofreguidão, com vidas por outros vividas. Ah, momentos de tanta tensão!

Ando um por um os corredores todos, analisando cada recanto: aqui se fiava conversa e ali, numa tarde morna de abril, um amor restou fiado em juras que foram desfeitas e promessas nunca cumpridas. Entro e saio das salas de aula, como se fora, pelo menos em espírito, aqui e agora, o adolescente quase de vinte anos de idade. Faço dessa manhã ensolarada a moldura de uma melancolia consentida. Há tempo pra tudo: tempo de amar o presente e tempo de querer bem ao passado. Não importa que vá a uma reunião – mais uma – dentre tantas de meu ofício. Dispenso hoje, somente hoje, o direito à palavra e ao aparte, como dispenso a questão de ordem e o dever do voto a cada ponto da pauta. Antes, desejo a democracia de meu interior, deixar o pensamento vagar em devaneios, preenchendo esses etéreos e bucólicos espaços, limitados, simbolicamente limitados, por paredes que aprisionam as minhas saudades. Eis o pranto do meu sentido silêncio.

A escola é a amante dos tempos de menino, imaginária, às vezes, como tantas outras coisas neste mundo de Deus, mas bela de rosto e bonita de corpo. Inesquecível, mesmo que envelheça a face e quebre o desenho das formas. O amante que se entrega, depois se desintegra, porém a amada fica no mesmo lugar, impávida, plantada com a força do concreto, assistindo a todos e a tudo em sua volta. Outros amantes chegam e do mesmo jeito, furtivos, se vão! Continuam, à distância quase sempre, cantarolando-lhe versos de amor, que são poemas da saudade. Vez ou outra, como agora, vivem a fantasiosa ilha do reencontro.

Mas, os meus professores, em grande maioria, estão na tumba, dormem o sono do imponderável. Um ou outro cruza comigo neste caminho do devaneio. Trazem as fisionomias sulcadas de tantas e tantas lutas no cotidiano da vida. Os funcionários também sofreram a estranha metamorfose da existência, envelheceram implacavelmente. Até alguns colegas se foram no éter do desconhecido! Gente nova, ainda, pra entregar ao Criador a alma nascida e criada no dia após dia do sofrimento dos outros.

Corredores repletos estes, movimentados de gente que vai e vem. São alunos que cumprem a transitoriedade acadêmica da vida universitária ou são mestres de gerações recentes, jovens, dinâmicos e apressados, no permanente mister de transmitir o conhecimento. Corredores repletos, mas vazios para mim! Não circulam mais os professores do meu tempo e não há aquela algazarra conhecida do alunato de tantos anos atrás.

Velhos corredores estes, os de minha juventude.
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Geraldo José Marques Pereira nasceu em Recife/PE, em 1945 e faleceu na mesma cidade em 2015, formou-se em Medicina na UFPE em 1986. Fez o mestrado no Departamento de Medicina Tropical da instituição, do qual se tornou coordenador posteriormente. Foi diretor do Centro de Ciências da Saúde e fundou o Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social (Nusp) da universidade. Vice-reitor da instituição de 1996 a 2004 e, quando o reitor precisou se afastar entre março e novembro de 2003, foi reitor em exercício. Fora da universidade, integrou a Comissão Estadual de Saúde, a Comissão Científica de Combate à Dengue do Governo do Estado e a Comissão de Cólera da UFPE e da Cidade do Recife, além de participar do Conselho Científico do Espaço Ciência da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco. Por conta dos inúmeros artigos científicos publicados, ainda foi membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores e do Conselho Estadual de Cultura e presidente da Academia Pernambucana de Medicina. Escrevia crônicas e, em março de 2011, assumiu a cadeira de número 16 da Academia Pernambucana de Letras, que já havia sido ocupada pelo seu pai, o escritor Nilo Pereira.

Fontes:
Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público
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Aparecido Raimundo de Souza (Reencantamento do cotidiano)


A LAPISEIRA ELISANJA, olhou para o relógio e conferiu as horas. Dezoito em ponto.  Saiu da sua mesa de trabalho com o espírito alegre. Estava radiosa e feliz. Mais um dia. Sem perceber que logo atrás dela, apenas alguns passos, alguém a seguia de cara fechada. Sem notar a presença da amiga Eloá Vitória, a Lapiseira Elisanja falou, como se conversasse consigo mesma.

Lapiseira Elisanja:
— Que maravilha! Cada pensamento meu, cada ideia, cada traço que eu crio... nossa, é a expressão mais pura da minha mente imaginosa... 

Ao contrário dela, trepada nos cascos, a Borracha Eloá Vitória, atrelada em sua sombra, se manifestou, duas pedras nas mãos. Atacou. 

Borracha Eloá Vitória: 
— Você disse pura? Por favor! A maioria dessas ideias que saem de dentro de você se fazem erradas, tortas ou pior, desajeitadas. Sem mim, você, sua tonta, seria um caos! 

Lapiseira Elisanja, sem perder a esportiva, se virou para a amiga e rebateu:
— Pelo menos eu crio algo! Você, ao contrário, só destrói. Apaga como se nunca tivesse existido! 

Borracha Eloá Vitória: 
— Eu não destruo porcaria nenhuma, sua mal-agradecida. Apenas dou a chance de você recomeçar sem erros “para te arrastar.” Só lhe concedo espaço para melhorar. 

Lapiseira Elisanja:
— E quem disse que um erro não pode ser belo? Às vezes, o improviso é a alma do criativo! Noutras, o improviso é só um desastre esperando para acontecer. Saiba que o prazer de deslizar no papel, desenhando cada pensamento que emerge da minha mente criativa é como se fosse uma dádiva. Mesmo norte, cada risco, cada curva, nasce como um sussurro de minha avidez imaginativa. Sou a ponte entre o abstrato e o concreto, ou seja, sua invejosa, me transformo no objetivo dos sonhos que logo em seguida, ganharão forma.

A borracha Eloá Vitória não deixa por menos. Alfineta:
— Sonhos que, na maioria das vezes, nascem imperfeitos, borrados, sem direção. Eu sou a guardiã da ordem, a restauradora da clareza. Sem mim, sua convencida, o mundo seria um caos de ideias inacabadas e garatujas confusas.

Lapiseira Elisanja:
— Que crueldade! Você olha para os meus traços e só enxerga defeitos? Cada imperfeição é prova de autenticidade.  É a alma da criação! Por que destruir aquilo que tem vida própria?

Borracha Eloá Vitória:
— Não é destruição, é oportunidade. Eu dou espaço para o aprimoramento, para o que é melhor. Não podemos crescer sem apagar o que está errado, sem dar um passo atrás para repensar e recomeçar.

A Lapiseira Elisanja se abre num sorriso amarelo e forçado. 

Lapiseira Elisanja: 
— E quem decide o que é errado? Às vezes, o erro é apenas um caminho diferente. Um gatafunho (garatuja) fora do planejado pode levar a uma descoberta inesperada, algo único e magnífico.

Borracha Eloá Vitória:
—Talvez. Mas eu observo os erros como manchas: elas podem ser belas, mas não deixam de ser máculas. Meu papel é suavizar essas imperfeições, dar ao artista a chance de criar algo mais limpo e mais refinado.

Lapiseira Elisanja:
—Refinado, talvez. Mas nunca tão espontâneo. Você pode apagar meus traços, mas nunca destruirá a essência do que eu trago à vida.

Essa troca de palavras entre as duas, a bem da verdade, reflete as suas personalidades ao tempo em que invoca uma profundidade maior para um conflito que nem deveria existir. 

Vindo de algum lugar perto do estojo, aparece a Régua Eduarda e ao ver as duas amigas trocando palavras ríspidas, espera a oportunidade para entrar no diálogo.

Enquanto isso, a Lapiseira Elisanja, continua soltando fogo pelas ventas. Desabafa:

Lapiseira Elisanja 
— Você pode apagar as minhas linhas, mas não denigre o talento inventivo que flui através de mim! 

Borracha Eloá Vitória, ainda meio enfezada:
— Talento inventivo, ou caos? Sem um pouco de ordem, o papel seria apenas um campo de batalha de ideias confusas.

(De repente, a Régua Eduarda enxerga uma brecha e interrompe com sua voz firme e equilibrada). 

Régua Eduarda:
— Olá queridas amigas. Vocês duas, parem com isso! Não percebem que só conseguem criar algo grandioso quando trabalham juntas?

Lapiseira Elisanja solta uma resposta ao acaso:
— E o que a sua amável pessoa entende de criação, dona Régua? Você é só –  como eu diria – uma linha reta!  

Nesse ponto da discussão, a Borracha Eloá Vitória, sem perceber, esquece as rusgas e acode em socorro da amiga:

Borracha Eloá Vitória:
— Isso mesmo, sua bobona. Todo mundo sabe que você só serve para traçar limites. 

Régua Eduarda:
— Limites, sim. Mas também direção e propósito. Eu sou quem dá forma ao caos e transforma linhas soltas em desenhos, ou melhor, em estruturas.  Sem mim, as suas desavenças não passariam de tapas e beliscões.

Lapiseira Elisanja: 
— Humm... talvez você tenha razão Régua Eduarda. Concordo que as minhas ideias precisem, vez em quando, de um pouco mais de direção... 

Borracha Eloá Vitória, esperta, dá o braço a torcer:
— Admito que apagar sem um propósito claro também não faz muito sentido.

A Régua Eduarda, em meio a essa confusão, passa a ser, do nada, uma personagem sábia, pragmática e talvez até um pouco sarcástica, entretanto, colocando as duas companheiras em seus devidos lugares. 

Lapiseira Elisanja ponderando um pouco as palavras:
— Sabe, Borracha Eloá Vitória. A Régua Eduarda não deixa de ter razão. Sem você, eu não seria, vamos dizer, precisa e meus traços vez outra ficariam sem propósitos definidos. Acho que posso “te valorizar mais.” 

A borracha Eloá Vitória se abre num sorriso espontâneo de canto a canto da boca. 

Borracha Eloá Vitória:
— E eu admito, sem sombra de dúvidas, que, sem você, não teria nada para apagar. Quem sabe consigamos ser mais importantes juntas do que imaginamos.

(De repente, o Papel Pedro Simão, até então calado e só assistindo a briga de camarote, interrompe com um tom dramático):

Papel Pedro Simão: 
Ah, que bonito! Vocês duas se entendendo, enquanto eu fico aqui sofrendo! É linha por toda parte, apagões sem fim... um dia, vou acabar rasgado nesse caos criativo!

Lapiseira Elisanja vindo em socorro do Papel Pedro Simão. 

Lapiseira Elisanja:
— Relaxa, meu amigo Papel Pedro Simão. Fica frio. Você é forte, aguenta tudo.  Não se esqueça, que é em você que nos espelhamos! 

A Borracha Eloá Vitória fortifica a tese, concordando.

Borracha Eloá Vitória:
— Isso mesmo, só não passa perto, pelo amor de Deus, da Tesoura Vandeca! Ele pode transformar você num monte de tirinhas. 

(Entra, inesperadamente a Tesoura Vandeca, cara fechada, boca afiada, acompanhada de um sorriso cortante).

Tesoura Vandeca:
— Escutei, sem querer, meu nome.  Não se preocupem! Somente quero esclarecer um ponto. Deixar claro um assunto que me incomoda, toda vez que ele vem à tona.  Serei breve. A amiga Borracha Eloá Vitória acabou de falar para o Papel Pedro Simão tomar cuidado comigo. Não tenho instintos assassinos. Além do mais, o Papel Pedro Simão é meu amigo de muitos anos. Aliás, como todos por aqui. Não tenho motivos para transforma-lo em tirinhas... e isso vale para os demais que pensam o contrário. Era o que precisava deixar esclarecido. A propósito, Papel Pedro Simão, que tal darmos uma volta por aí?

Papel Pedro Simão:
— “Demorô,” amiga Tesoura Vandeca. Vamos nos divertir um bocadinho... daqui a pouco, vem o melhor da festa...

(Com a saída da Tesoura Vandeca e do Papel Pedro Simão, os “sem modos” começaram a gritar e falar ao mesmo tempo. O Estojo se voltou para seu canto com a intenção de tomar conta de seus afazeres, levando em conta que dentro em pouco teria muito serviço à sua espera.) 

Lapiseira Elisanja:
— Sabe de uma coisa, Borracha Eloá Vitória. Apesar de tudo, eu admiro a sua determinação em mandar para o espaço alguns de meus traços. Só tem uma coisa que me deixa com pulga atrás da orelha... 

Borracha Eloá Vitória franzindo cenho: 
— O quê? Minha eficiência impecável? 

Lapiseira Elisanja mudando o rumo da prosa: 
— Não, é que... depois de tanto apagar, percebo que você está ficando – desculpe trazer isso à baila –, mas essa situação está cada dia mais visível. Você se faz mais pequena, tão minúscula e derreada que acredito, dentro em pouco, sumirá do mapa antes de mim!

(A Borracha Eloá Vitória engoliu o que iria dizer. Olhou para si mesma e só então percebeu o seu tamanho reduzido e respondeu com um toque de desespero dramático.)

Borracha Eloá Vitória: 
— Pequena?! Eu prefiro o termo... compacta! Mas é verdade, amiga Lapiseira Elisanja. Estou realmente, encurtando, decrescendo... logo serei uma coisinha anã, virarei um trocinho nanico.  

Lapiseira Elisanja tentando apaziguar um problema futuro: 
— Relaxa Borracha Eloá Vitória. Enquanto você encolhe, eu no mesmo trilho, me verei sem meu material de trabalho, o grafite. Até que isso ocorra, obviamente vou traçar e você apagará um milhão de vezes. No final, com a chegada da nossa velhice, estaremos no mesmo barco... ou melhor, no mesmo estojo.

As duas, de repente, caíram na risada enquanto o Lilico Tilibra, apelidado carinhosamente de “Estojo Guardião,” se retirou para dentro de seu casulo, se  mantendo alheio e só ouvindo. A Régua Eduarda, voltou a se manifestar e comentou sarcasticamente). 

Régua Eduarda: 
— Meninas, escutem o que vou dizer. Tudo o que estamos vendo e vivenciando aqui, não passa de um drama comum de estoque de papelaria... tenho para mim que não existe borracha igual a Eloá Vitória. Do mesmo modo, nem grafite para uma vovozinha linda na qual a Lapiseira Elisanja vem se transformando... eu também, como todos que aqui vivemos e trabalhamos, cairemos num poço sem volta do nefasto desábito. O que precisamos fazer, com urgência é nos preparamos para quando esse momento desditoso e maléfico chegar, estarmos de cabeças erguidas e em paz. 

A lapiseira Elisanja, a régua Eduarda, a borracha Eloá Vitória e até o estojo Lilico Tilibra nesse momento, vendo que a paz voltara a reinar, foi atrás da geladeira, se benzeu e rezou um Pai Nosso. Estava saltitante, já que seus chegados se confraternizavam, se abraçavam, e se uniam, irmanamente, em vista do tempo que algum dia (ou em breve, nunca se saberia ao certo), atracaria no cais do destino de cada um deles, como um barco negro para levar para o desconhecido de um futuro sem volta.  E o pior de tudo: sem aviso prévio.  

Diante desse quatro apresentado, que lição poderíamos tirar para usar no nosso dia a dia dessa história com sabor de quero mais?  A lapiseira, a Régua, a Borracha e o Estojo se uniram, e passaram a refletir, em vista do tempo que seguiria adiante, enquanto uma ficaria pequena, ou seja a Borracha e a Lapiseira, sem grafite. Quem daria uma palavra amiga, para que todos eles encarassem o porvir sem receios de se quedarem velhos e inoperantes? Imaginemos que a régua pudesse ser a voz da razão e da estabilidade, dizendo algo como: “Não se preocupem, amigos. Embora o tempo transforme a nossa aparência e função, a essência do que fomos, nunca desaparecerá. O que fizemos juntos, tipo medir, corrigir, criar, cortar, apagar, refazer, permanecerá em cada linha e traço que ajudamos a formar.”

Talvez a borracha, amiudada e gasta, seguiria cumprindo seu propósito. Apagaria para dar espaço ao novo.  Mesmo capenga, seu tamanho não definiria a sua utilidade, mas sim, o impacto que continuaria causando. “Embora depauperada, ainda — diria, lisonjeira — poderei mandar para as cucuias, um bocado de erros e dar espaço para prósperos recomeços. O que nos une e nos mantém com os nossos corações pulsando, é que continuaremos sendo úteis, cada um à seu jeito.” E a lapiseira, sem grafite, encontrará consolo ao lembrar que não importa como... de onde menos se espera haverá um jeito de recarregar e seguir criando.  

O importante, berrou num dado momento espavorido, a Régua Vitória, como se tivesse lido os pensamentos do estojo Lilico Tilibra: 
— SOMOS UMA GRANDE FAMÍLIA. E DEVEREMOS CONTINUAR ASSIM... UNIDOS... HAJA O QUE HOUVER...

Com a chegada do curto passeio feito pelo casal Papel Pedro Simão e a Tesoura Vandeca, os demais pularam apressados para dentro do refúgio Lilico Tilibra, o “Estojo Guardião” que, radioso e contente, anunciou:

— Hora do jantar. Venham saborear as guloseimas que preparei para nós. Em confraternização a esse chamado, os partícipes se uniram radiantes e famintos em volta da enorme mesa oval. 
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Aparecido Raimundo de Souza, natural de Andirá/PR, 1953. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal “Municípios em Marcha” (hoje “Diário de Osasco”). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista ”QUEM” (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal “O Dia, no Rio de Janeiro.” Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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sábado, 21 de junho de 2025

Renato Benvindo Frata (Um quintal, um mundo)


Quando se é criança, a dimensão das coisas como as vemos se agigantam aos nossos olhos, em relação ao nosso próprio tamanho. Tudo é grande, alto, comprido, gordo, balofo.

Minha mãe era alta, espadaúda, ligeira e silente. Pisava manso enquanto cantava com os cochichos a si própria, hinos sacros à Santa Maria. Ligava-se o rádio em casa apenas para notícias e novelas.

Ela assoprava o ferro a brasa com as músicas saídas de seu íntimo e eu a olhava sem a distrair. Admirava-a e permanecia ao redor de seus pés.

Na sala e, envolto com búricas e papéis, assistia aos movimentos de braços, e aos chiados do ferro quente sobre o pano respingado de água, que se sobrepunha à peça de roupa sendo passada.

Quando me ponho a lembrar, ainda o escuto e, se bem apurar o olfato, saberia distinguir o cheiro peculiar do tecido ao ser secado à força pelo ferro quente, até que a fumaça fosse bambeada pra aqui e pra li pelo vento da janela.

Nosso quintal de esquina era enorme e tomado por pés de chuchu, bucha, horta, galinheiro, araticum, santa bárbara frondosa e um enorme forno a lenha, onde ela assava os pães. Embaixo dele, achas de lenhas, gravetos e até ninho de galinha.

Nesse quintal eu era o Zorro. Eu era o Tarzan. Eu era o Randoph Scott, o mais rápido no gatilho, e vivia meu mundo de moleque magrelo e barrigudo, a cavalgar um cabo de vassoura com rédeas de trapo, cuja montaria tanto poderia ser o ‘Stardust’ do Randolph, ou o ‘Silver’ do Zorro. E tudo era tiros, gritos de “mãos ao alto” e relhadas sob estalos imaginados.

Os caroços de Santa Bárbara enchiam-me os bolsos a fazerem do meu estilingue o revolver o mais certeiro, e o quintal se transformava nas pradarias replicadas do Grand Canyon, das matinés dos domingos, tendo o mocinho a dominar índios e bandidos. E eu gritava.

Lá pelas tantas, minha mãe chegava e, sem muito falar, tomava-me pela mão para o banho. A passada de bucha nos encardidos doía, o mercúrio cromo nas machucaduras amenizava, para terminar com um beijo na testa roupa limpa e uma tapinha na bunda.

Não sei se cresci ou se meus olhos perderam aquela extensão que avolumava as coisas, mas minha mãe envelheceu e ficou menor, arcada, lenta e calada. 

Seus braços, antes fortes, já não aguentavam o ferro agora elétrico, pequeno, leve e nem tanto quente, e de sua boca não saíam mais os cânticos religiosos, mas sim pedidos também em forma de assoprares.

Sopros entrecortados pelo esforço de seus olhos em me reconhecendo, se comunicarem pedindo: - eu quero minha casa, a minha casa…
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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