O papai e a mamãe e os irmãos tinham ido ao teatro. Só ficaram em casa a Ana, que era muito pequena, e o avô.
Mas o avô disse:
- Nós também havemos de ter uma comédia. E vai começar já, já.
- Mas nós não temos teatro - disse a menina.- E não temos ninguém para representar... A minha boneca velha não pode, porque ela é muito feia; e a nova, a nova não há de amarrotar assim o vestido, que é tão fino...
- Ora, atores a gente arranja: é só contentar-se com o que tem. Vamos construir o teatro. Aqui vai este livro de pé, lá outro, e mais outro...uma fila oblíqua. Agora outros três do outro lado, assim. Pronto: já temos os bastidores. Aquela caixa velha pode servir de fundo: é só virar o fundo para cima. O cenário representa uma sala, isso logo se vê. Precisamos agora arranjar os personagens. Vejamos o que há nesta caixa de brinquedos... Primeiro, os personagens, depois faremos a comédia: uma coisa depois outra, e tudo sairá bem. Aqui está um fornilho de cachimbo, e ali uma luva sem par: serão pai e filha.
- Pois sim, vovô! Mas são só dois...Oh! Aqui está o colete velho do meu irmão... Ele poderá também desempenhar um papel?
- Tem tamanho suficiente para isso... Pode fazer o galã. Não tem nada nos bolsos, e isso não deixa de ser interessante: é a metade de um namorado infeliz... E aqui temos um quebra-nozes em forma de bota, e com espora. Arre! Como a bota se pavoneia, e pisoteia tudo... Pois ela vai ser o pretendente antipático, que a mocinha aborrece... E agora que gênero de peça preferes? Uma tragédia, ou um drama de família?
- Um drama de família, sim, vovô? Todos gostam tanto disso... O senhor conhece algum?
- Sim, centenas! Os que o público preferem são traduzidos do francês, mas esses não convém para uma menininha como tu... Mas a gente pode escolher um mais conveniente. No fundo, todos são iguais. Pois bem! Vamos lá! Entrem por aqui, senhoras e senhores... O drama de família mais novo! Quinhentas representações, com a casa lotada! Vejamos agora qual é o elenco.
E o avô pegou o jornal, fingindo que lia:
" O FORNINHO E O BOM RAPAZ"
- Drama familiar em uma ato -
Personagens:
Senhor Fornilho - pai.
Senhorita Luva - filha.
Senhor Colete - galã.
Senhor de Bota - pretendente.
– Vamos começar. Levanta-se o pano - como não temos pano, já está levantado. Todos os personagens estão presentes, não nos falta nada. Agora vou falar, como se eu fosse o Senhor Fornilho. Ele está muito zangado hoje... Bem se vê que foi feito de espuma-do-mar, e amarelada!
Fala então, como se fosse o Fornilho:
- Que tolice! Tudo isso é asneira, ora essa! Quem manda nesta casa sou eu! Sou o pai da minha filha! Ouçam, pois, o que estou dizendo: o Senhor da Bota é uma pessoa em que a gente pode mirar-se como em um espelho. Por cima é de marroquim, e embaixo tem espora. Ora essa! É ele quem há de casar com a minha filha!
- Agora, Aninha, presta atenção ao que diz o Colete; agora é o Colete quem fala. Ele tem a gola virada e é muito modesto, mas sabe o que vale, e tem toda a razão quando diz:
- Sou imaculado! E devem tomar também em consideração a fazenda! Fui feito de legítima seda, e tenho galões.
A isso acudiu logo o Senhor Fornilho:
- Mas é só no dia do casamento! Depois, acabou-se! A sua cor não se mostrou muito firme na lavagem. Agora o Senhor de Bota é a prova d'água, é feito de couro forte, e muito macio. Sabe ranger, sabe fazer a espora tinir! E tem feições italianas.
- Mas eles deviam falar em verso! - exclamou a Aninha. - Dizem que é a coisa mais linda que há...
- Pois sim, podem falar em verso, podem. Se o público assim o determina, fala-se em verso... Olha para a Senhorita Luva, vê como estende as mãos... e diz:
" Hei de me empenhar, hei de me empenhar,
Hei de ter um par!
Mas não o consigo... não posso alcançar...
Já sinto meu couro, de dor, estalar!"
O Senhor Fornilho:
- Asneiras...
– Agora é o Colete quem fala:
"Luva, minha bem-amada!
Oponha-se a quem quiser;
Eu aqui declaro a todos:
Hás de ser minha mulher!"
Aqui o Senhor de Bota começa a dar pontapés, e derruba três bastidores, enquanto Aninha grita:
- Mas que maravilha!
- Silêncio! Silêncio! - brada o avô. - O aplauso silencioso mostra que o público que está na plateia - porque tu estás na plateia - é um público culto. Agora a Senhorita Luva vai fazer uma mesura, e depois cantará a sua grande ária, acompanhada de castanholas:
" E quem não tem boa voz,
E não canta de verdade,
Cantará ' coricocó!'
Na frente da sociedade.”
- E agora é que chega o momento mais empolgante, Aninha! O que há de mais importante, em uma comédia . Olha, o Senhor Colete entreabriu-se; vai falar. E é a ti que ele se dirige, para que batas palmas no fim. Mas... não, não batas palmas; é mais distinto. Repara... ouve o ruge-ruge da seda... Ele começa:
- Estou extraordinariamente exasperado! Cuidado! Começa agora a intriga! O senhor é o Fornilho, bem sei: mas eu sou o bom rapaz... Zás-trás! Pronto! Sumiu-se o Fornilho!
- Vês, Aninha, como o cenário e a mímica são perfeitos? O Senhor Colete pega no velho Fornilho e mete-o no bolso... O Fornilho lá fica escondido, e o Colete diz:
- Agora está o senhor dentro do meu bolso, e não poderá sair daí enquanto não me prometer em casamento a sua filha, a Senhorita Luva da Esquerda, a quem darei a minha Direita!
- Mas é extraordinário! - gritava Aninha.
- Ouve agora o que responde o velho Fornilho:
" Eu ouço perfeitamente,
Mas...parece que estou tonto...
Que é do meu antigo espirito,
Que dantes era tão pronto?
Meu tubo onde foi parar?
Se saio desta armadilha,
Prometo; Com minha filha,
Irás depressa casar!"
- Acabou-se a comédia? - perguntou Aninha.
- Qual! Acabou somente para o Senhor de Bota. Agora os namorados ajoelham, e ela canta:
" Ó meu pai!"
E o namorado canta também:
" ...sai escondido!
Vem teus filhos abençoar!"
Ambos recebem a benção, celebra-se o casamento. Os móveis cantam em coro;
"Tilintintim! Tilintintim!
Já se acabou a comédia!
Tilinrintim!"
- Agora sim, vamos bater palmas; vamos chamar todos os atores, e os móveis também, porque são de acaju!
- Vovô, a nossa comédia não foi tão boa como a que eles foram ver lá no teatro de verdade?
- A nossa é muito melhor! É mais curta, não custa nada, e serviu para nos entreter até a hora do chá.
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Hans Christian Andersen foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.
Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente em 1859. Disponível em Domínio Público
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