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sábado, 27 de abril de 2024

Carolina Ramos (Página Aberta)

Fruto de terna conversa, nasceu este conto não alheio à temática, porque envolve, como veículo de abertura, um casal de cães. A tal conversa aconteceu entre mãe e filha. A primeira redige estas linhas e, a segunda, na história por ela relatada, aparece, simplesmente, como: - "a moça dos cachorrinhos".

Mais realidade do que ficção, o conto leva o nome de "Página Aberta", que outra coisa não é, uma vez que, à mercê do imprevisível, as reticências substituem com maior propriedade o que deveria ser um ponto final.

PÁGINA ABERTA
(inspirado na narrativa da "moça dos cachorrinhos")

O céu, encapotado de cinza, ranzinzava um trovão, com cara de poucos amigos.

Juvenal desviou os olhos do mar e fixou-os nas nuvens carrancudas, a pressentir ser hora de voltar para casa. Não tinha relógio, mas vários indícios à sua volta mediam o tempo com precisão. Deveriam ser quase seis da tarde, afirmava o rabo-de-cavalo a pendular de lá para cá, ao ritmo dos passos da moça que "pastoreava" os dois cãezinhos sortudos, resgatados da rua pelo bom coração da futura dona. Dois cãezinhos bastante simpáticos – brancos, com manchas negras espalhadas pelo corpo – incontestável RG de "viralatice" explícita. Pedigree de ambos: - cão vaquinha ou paulistinha. Origem: - uma rua qualquer.

Ela: - Teca, a cadelinha - Olhos expressivos, baixinha, gordinha, meiguinha, merecedora de todos os inhas possíveis, de fato e de direito

Ele: - Nino, mais alto, mais magro, sempre tenso, sempre alerta, resmunguento, pouco afeito a carinhos - dentes pontiagudos, prontos a demonstrar a preferência pelas canelas de alguém surpreendido em descuido.

- Vale a digressão, porque Juvenal já conversara com a "moça dos cachorrinhos", por várias vezes, chegando mesmo a confidenciar-lhe algumas passagens de sua vida, tendo, também, oportunidade de conhecer de perto a história do festejado casal canino.

Naquela tarde, embora conhecendo o mau humor do Nino, Juvenal sentia, mais do que nunca, a necessidade de trocar ideias com alguém sensível. Precisava partilhar com a outrem a festa interior que o envolvia. A moça era receptiva. Aproximou-se dela.

" 0i! O Nino, hoje, ainda não atacou nenhum calcanhar? - A "moça dos cachorrinhos" sorriu: - Hoje ele está em paz com o mundo! A briga é com ele mesmo. Tomou banho com shampoo perfumado e perdeu as referências. Estranha o próprio cheiro! Por isso, está quieto, confuso... indiferente a quem passa.

Só então a moça prestou mais atenção no homem que, naquele dia, demonstrava apuro incomum - cabelos penteados, barba feita... e um brilho especial no olhar.

- E o senhor... como vai?

- Menina... amanhã vou ter um encontro muito importante! O mais importante encontro de toda minha vida!

- Soraya?!

- Isso mesmo, Soraya... a mulher da minha vida!

Nos encontros anteriores o nome Soraya já se fizera familiar. Para a "moça dos cachorrinhos", era nome bastante significativo. Sabia bem o que ele representava para aquele homem tenso, de emoções à flor da pele e de consciência pesada. Alguém que já lhe dera acesso espontâneo ao "site" de sua vida, onde estavam inclusos o casamento com Soraya, a felicidade curtida por algum tempo e, aquela separação absurda, que já se prolongava por, nada mais nada menos, que trinta e cinco longos anos!

Naquela infeliz tarde, distante e inexplicável, depois de uma rusga banal, tão comum entre pessoas que se querem bem, ele, homem impulsivo, num rompante, passara a mão nos pertences e deixara tudo para atrás! E, nesse tudo, incluía-se "a mulher da sua vida".

Juvenal fora cruel com Soraya e, mais ainda, consigo mesmo. Tão logo chegado o arrependimento, chegaram também o pudor e o medo do retorno. Como seria recebido? Teria direito ao perdão? Como reagiria a esposa, a sua "moleca", agora talvez de cabelos brancos? E os familiares?! Seria aceito?!

- Retorno abortado! - O que, sem mais palavras, explicam os trinta e cinco anos de separação.

Nesse meio tempo, muitas mulheres haviam tentado ocupar o lugar de Soraya no coração daquele homem arrependido, sem o conseguirem. Celeste até que chegou perto, mas, logo fora chamada à pátria que o próprio nome insinuava.

Uma vez mais, Juvenal resvalara para o abismo. Aos poucos, seus parcos valores se diluíram. Deu de beber. Bebeu muito! Degradou-se. Para quem se entrega a qualquer vício, o caminho da descida é por demais conhecido e bastante escorregadio. Desceu degrau por degrau. Perdeu o emprego, perdeu os documentos, perdeu os amigos e a própria identidade.

Chegara à mendicância! Só não conseguira ser desonesto! Seu anjo da guarda não estava de todo adormecido, salvara-o dessa fase terrível, por meio de uma bondosa assistente social, que não só lhe pôs os papéis em dia como lhe conseguiu até uma aposentadoria - modesta, mas suficiente para que recuperasse a dignidade. E ele - que em sua mocidade colecionara troféus conquistados no esporte em algumas maratonas - voltara, afinal, a acertar o passo.

Foi quando Soraya, a esposa abandonada, na impossibilidade de vender a casa, sem a assinatura do marido fujão, acabara por descobri-lo, após tantos anos de tenaz procura.

O primeiro encontro estava para acontecer no dia imediato.

A "moça dos cachorrinhos" entendeu, num relance, o tamanho da emoção e do conflito interior daquele homem inseguro, temente do que estava por vir e que ele era incapaz de adivinhar.

Uma semana depois, viriam à tona os pormenores daquele encontro.

Juvenal chegara ao endereço que o aguardava, mal contendo o nervosismo.

Ao toque da campainha, a porta fora aberta por uma mulher de mela idade, bonita ainda, cabelos tintos, ligeiramente aloirados e com aqueles olhos, meigos e tristes, que Juvenal tão bem conhecia.

Olhos tristes, sim... contudo, não acusadores. No instante em que os dois se fitaram, a ternura do olhar daquela mulher casou-se com a ansiedade do olhar recém-chegado.

- Jú! - murmurou ela, quase num sussurro.

- Soraya... Soraya, minha moleca!

Apesar da mútua ternura, Soraya evitou o beijo. Fugiu a contatos mais íntimos e deixou Juvenal cheio de grilos, sentindo-se rejeitado, apesar do bom acolhimento por parte da família.

Ao final do dia, após muita insistência e rejeição, a verdade veio à tona sob a forma de tristíssima revelação: - foi-lhe apresentado o resultado de um exame de laboratório. Em resumo; Soraya contraíra Aids mercê de um curto relacionamento. O parceiro unira-se a ela sem saber do mal que portava. Falecera há dois anos. Fato consumado!

Soraya botou para fora o drama do qual era protagonista, como um vulcão que vomitasse as próprias entranhas. Sentia a felicidade escapar-lhe novamente das mãos, como água a fugir-lhe por entre os dedos.

E as cinzas e lavas candentes, desse vulcão reativado, desabaram com violência sobre a alma aturdida daquele homem sacudido pelos soluços.

Juvenal acovardou-se. Não sabia o que dizer, nem tampouco o que pensar. Uniu suas lágrimas às de Soraya e, como bom desportista, acabou por pedir tempo. Precisava pensar! Pensar profundamente, longe de tudo e de todos... Antes de qualquer resolução!

Quinze dias bastaram para que aquele homem se decidisse:

- Por motivo algum, renunciaria ao amor de Soraya pela segunda vez! A ciência, evoluindo a cada dia... Os recursos multiplicando-se com ela... Deveria haver uma solução! A curto ou a longo prazo... deveria, sim! Mas... que espera duvidosa e cruel!

- Para aquele homem, contudo, uma coisa era absolutamente certa; - Sem dúvida alguma, queria a sua "moleca" de volta! A qualquer preço! Fosse como fosse! Para o que desse e viesse... e até que a morte os separasse! Igual ao que haviam prometido, num certo dia, à frente ao altar!

Mal ou bem, Juvenal escrevera a história de sua vida. Chegava, agora, ao capítulo decisivo!

As últimas e definitivas linhas deste relato ficam em branco... a serem completadas pelo próprio destino.

Deus pingará o ponto final na derradeira página. E a Sua misericórdia, então, a assinará…

Fonte> Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Geraldo Pereira (Um Pierrô Apaixonado)

Onde estão os antigos pierrôs apaixonados, que nas ruas estreitas deste Recife de todos os amores cantavam e decantavam os sentimentos e os desejos pelas colombinas de seus devaneios? Ou que protagonizaram: “Histórias de amor assim/Assim!/...”. Encantaram-se, certamente, desapareceram nas brumas do tempo, nas nuvens de todas as folias, levando na face, sem a máscara já, a lágrima pendente das saudades e das lembranças! Indefinido semblante daqueles que amam e que não merecem mais, da idolatrada musa da paixão desesperada, um olhar sequer, capaz de aplacar os sonhos nunca oníricos. Não há remédio pra essa cura, não há unguento suficiente para sarar a ferida das frustrações do amor, aberta sempre com o aflorar das lembranças. Basta um acorde que seja, uma nota de Nelson, reavendo “Felinto/Pedro Salgado/Guilherme/Fenelon/...” para fazer aflorar na memória imagens ainda guardadas a sete chaves, momentos de intensidade rara, minutos, às vezes, de muitos afetos. Afagos rarefeitos nas nuvens do ontem, declarações paridas em rompantes do coração em fogo, incêndio das paixões.

“Agora chora pierrô/É tua sina/A sina de pierrô é chorar por colombina/...” E por certo os fantasmas desses apaixonados, nostálgicos sofredores em perpetuidades das lembranças, vagam ainda nas noites de Carnaval, perseguindo roteiros de antigos corsos em automóveis de fumaça, buscando aqui e ali, como alhures, ósculos perdidos da amada no éter das ilusões! Levantam as mãos, fluidas quase, para captar mensagens assim, de beijos jogados, roubados também, lançados no estirar lúdico das serpentinas que se desfazem, estirando-se em longos vínculos das fragilidades dos amores. Ou baixam a cabeça, esperando confetes coloridos das esperanças de todos os reatamentos, impossíveis já! 

Nada mais resta, nem pode restar, senão as asas do imaginário que refazem convívios! Vivências e convivências da fantasia, felicidades do efêmero! E nos sulcos que marcam as faces dos fantasmas, caminhos dos desesperos, rolam silentes solitárias lágrimas, lentamente.

E os palhaços, vestidos de branco ou de amarelo, com as bolas da negritude, que simbolizavam por certo o luto das irreparáveis perdas, dançavam nas ruas o passo das ilusões, fazendo a coreografia das alegrias, quando estavam de coração dilacerado, escondendo nas máscaras o semblante das angústias e a fisionomia das ansiedades! Aquele rítmico tocar das castanholas, pungente como a despedida dos amantes, era o pranto derradeiro do estabelecido adeus! Faziam de conta que gostavam do alvoroço das crianças, dos meninos e das meninas fazendo o coro da alegria, mas por dentro sofriam loucamente, como os largados pela vida e pelos amores. 

Quando a quarta-feira das ingratidões chegava, tiravam a máscara de pano, como se estivessem fechando a grande cortina do palco e voltavam para as coxias, condenados a mais um ano de realidades, nuas e cruas, como tem sido a vida de tantos! E a colombina encantou-se, também, desapareceu da roda, dos amores e das alegrias.

Fonte: Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Antonio Brás Constante (Sozinho em casa...[Liberdade ou prisão?])

Ficar sozinho em casa nem sempre é muito fácil para quem já constituiu uma família. A esposa e os filhos vão para praia e você fica inteiramente sozinho em sua morada, já que a temporada de praias é maior que suas férias. Muitos dizem que este é um momento de liberdade. Mas às vezes, os fatos dizem outra coisa.

A pior parte de se ficar sozinho é o nosso “eu” interior, que teima em querer ter conosco os tais “papos cabeça”, justamente quando sentamos na frente da televisão com nosso copo de cerveja. Você tenta convencê-lo a esperar a hora dos comerciais, mas ele conhece-o muito bem, afinal está dentro de você. E não lhe deixa em paz até pararem para conversar. Uma auto-reflexão indesejada sobre sua vida. Fazendo-o pensar que morar sozinho consigo mesmo, é uma tortura.

Além de ter que dividir o espaço com sua “consciência”, ainda tem as tarefas do lar para executar. Por exemplo: Todo dia passa várias vezes pela pia, e a encontra cada vez mais cheia de louça suja. Você faz uma carranca para aquele amontoado de copos, pratos, panelas e talheres. Na esperança de intimidá-los e persuadi-los a se lavarem sozinhos, e depois irem se alojar em suas devidas gavetas. Com seus filhos esse procedimento quase sempre funciona. Uma olhada séria é o suficiente para eles irem tomar banho e se deitar. Mas a louça não parece muito incomodada com suas rugas de preocupação e fica ali como se o assunto não fosse com ela.

Outro problema é a TV. Não consegue ficar mais do que dez segundos olhando um mesmo programa. Nestas horas sua esposa funcionava como um moderador, que após a terceira mudança de canal lhe xingava e mandava por na novela. Agora sozinho você fica resmungando para si mesmo, mas não adianta. Viaja por todos os canais umas dez vezes e desiste da televisão.

Resolve procurar seus chinelos, mas as coisas ao seu redor parecem se esconder de você. Não encontra nada. Só achou o controle remoto porque sua esposa conseguiu convencê-lo a deixa-lo sempre em um mesmo lugar. Tal ideia lhe faz pensar se isto não seria o mesmo processo de adestramento utilizado em cães, mas acha melhor esquecer essa linha de pensamento.

No caso da comida a situação é bem mais tranquila, já que inventaram as tele-entregas. Sua dieta alimentar passa a ser à base de pizza, xis e cachorro-quente. O vestuário também é escolhido de forma casual. Você vai passando pelas roupas jogadas pelo chão, e as que ficarem presas aos seus pés acabam sendo escolhidas para vestir.

E assim as noites vão passando (já que os dias são propriedade de sua empresa). Fica a perambular pela casa feito uma alma penada, procurando imaginar que espécie de liberdade é esta que lhe torna escravo da solidão. Por fim sua família volta, ou suas férias chegam, e você parte alegre e feliz ao encontro de sua prisão.

Eduardo Martínez (Tempos de menino)

Ainda me lembro de quando passava meus dias de menino no sítio do tio Joca, em Carolina, no Maranhão. Após tantos anos, eis que aqui estou defronte daquela largo e profundo rio que banhou minha infância e, para meu espanto, deparo-me com um riacho. Para onde teria ido aquela enormidade de água? 

— Mas, Cássio, é o mesmo córrego - tio Joca tenta me convencer.

Incrédulo, olho ao redor. Até as árvores não me parecem tão grandes. Nem mesmo o jequitibá logo adiante. Tudo parece querer me impor uma realidade que não é a que guardo na memória. Teimoso que sou, fecho os olhos e volto a ouvir o som da correnteza, enquanto meus pés, agora novamente descalços, correm pela sua margem.

Cato uma pedra lisa e a arremesso. Ela, quase disco voador, rente à superfície, toca a água uma, duas, três, quatro vezes, até que, lá bem no fundo daquela imensidão, se torna submarino. Ao seu redor, piabas se fazem de tubarão.

Ouço o ronco de um bugio. Viro o rosto e meus olhos de menino avistam um enorme gorila no topo da árvore logo atrás. Magnífico, magnânimo. Nem o grupo de macacos-prego adiante podem com ele. Assustados, fogem saltando de galho em galho, até se perderem na vastidão da floresta. 

— Cássio?

— O quê, tio?

— Você está bem?

— Sim.

— Já te chamei três vezes.

— Desculpe.

— Vamos, que já estou sentindo o cheiro do almoço daqui. 

Acompanho meu tio, mas meu pensamento ainda está bem distante. Que saudade que sinto do menino que fui, repleto de imaginação.

Fonte> Blog do Menino Dudu – 24.04.2024

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Newton Sampaio (Noite quente, noite quieta, da cidade inútil)

Noite quente, noite boa, caminhando no silêncio, desaparecendo num céu forrado de estrelinhas piscantes, inumeráveis, longínquas.

Noite quente gostosa, na cidade sem personalidade, de casas fechadas, de ruas penumbrentas, sem vira-latas melancólicos nem boêmios incorrigíveis.

Noite quente, noite quieta, noite gostosa. Na cidade inútil, na cidade triste, na cidade decadente...

Juquita acorda assustado, perseguido pelos mesmos sonhos ruins.

Escuta o relógio, que é medroso e bate duas vezes, e o pai roncando num sono de felicidade profunda.

Fica de barriga pra cima. Mas não descansa. Porque despeja na consciência, sem parar, as imagens da Estela. Imagens fugidias, sujas, intensamente sujas.

Vira pro lado direito. É pior. A coisa aumenta.

Aperta os olhos pra chamar o sono. Aperta bem. Mas o sono não vem. O que vem é um barulhinho esquisito, indefinido. Presta atenção. O barulhinho aumenta, se distingue. É um estralejamento, a modo de graveto se queimando.

O medo toma conto do corpo. O corpo treme inteirinho. E os dentes fazem coro.

— Minha Nossa Senhora!

Deita-se de bruços. E reza baixinho:

— Padre nosso que estais no céu...

Nem chega ao “venha a nós o vosso reino”, porque o estralejamento fica forte de repente. Bota-se de pé. Foge pra sala. E sente um cheiro. Um cheiro de queimado.

Pelas frinchas da janela da sala percebe uma claridade que vem de fora. E treme. Treme apavorado.

Adelaide é que acorda. Fala meio inconsciente.

— Jesus!

Acende a luz. O filho se joga chorando no quarto grande.

— Menino!

— Ali! É ali!

Henrique desperta, estremunhado. E se espanta logo com a barulheira. Corre à janela amarfanhando a camisola meio encardida. E o rosto se lhe ilumina com o clarão medonho.

Fica estatelado. A cabeça se desgoverna, no pasmo imenso. Sobe um calor nos olhos. “Sente” que é preciso fazer qualquer coisa. Mas não consegue “pensar” nada.

Quando toma conta de si, a casa é um só reboliço, uma gritaria desenfreada. A casa e a vizinhança. Que a vizinhança também era uma única emoção e estava toda ali reunida.

Tenta-se desesperadamente qualquer salvação. Inútil.

Encontraria material excelente o fogo. Por isso o fogo fica lambendo tudo, vitorioso, impressionante.

Arde todinho o paiol. Por sorte ele se construíra isolado, na margem da grota. Se não, nunca que teria fim o desastre.

Clareada pela chama se extinguindo, alheia ao pandemônio sem altura, a figura de Henrique se recorta, trágica, no fundo da noite morna.

Camisolão amarrotado, cabelos desfeitos, fundas rugas se acentuando na cara descarnada, o velho caminha de um lado a outro, rondando, rondando a ruína de seus fardos, recolhendo, recolhendo a cinza de seu grande sonho inútil.

O riachinho do fundo da grota reflete uns últimos clarões perdidos. Mas o riachinho do fundo da grota não é muito certo. Porque riachinho confunde a luz do paiol com a luz das estrelas piscantes, inumeráveis, longínquas. Das estrelas que se multiplicam na noite quente, na noite longa da cidade inútil, da cidade triste…

(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 22/07/1936.)

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (Um dia, o amor)

SEM MEDO DE ERRAR, aquele se fazia um coração que batia descompassado, como se dançasse tresloucado ao som de uma música envolvente, porém, que só ele conseguia ouvir. Esse coração pertencia a Lafaiete que amava profundamente, mas cujo amor, por algum motivo desconhecido, não se fazia retribuído. Assemelhava, sem tirar nem por, a um amor unilateral, tipo essas paixões doidivanas que ardem como fogo em um dos lados e permanecem frios e gélidos no outro.

Lafaiete por conta desse vazio terrificante, vivia batendo cabeça entre as estrelas e a melancolia. Entre o sonho não vivenciado e uma realidade não palpável. Nas noites mais escuras, olhava demoradamente para o céu e imaginava que cada estrela representava uma quimera não decantada, um desejo não correspondido, um tempo incerto e não vivenciado. Cada brilho distante se esboçava como uma lembrança dolorosa; um eco daquilo que poderia ter sido; mas nunca se fez palpável.

Por conta disso, “trocentas” vezes mergulhava em pensamentos ociosos, relembrando os momentos cavernosos, em que a pessoa amada estava por perto, sem estar. Cada sorriso, cada olhar, cada toque, eram guardados como preciosidades raras em seu coração. Contudo, ao mesmo tempo, essas lembranças e regalos também se transformavam em punhais perfurando a sua alma com a certeza de que nunca seriam mais do que isso: lembranças.

O amor não correspondido, para ele, se assemelhava a uma ferida que não cicatrizava. Se fazia pesado numa dor que não se resolveria com remédios ou palavras de consolo. Tudo se agigantava numa sensação estranha e densa de estar desabrigado, de não ter um lar para o aconchego do coração. Lafaiete se perguntava: “Como poderia algo belo e intenso, causar angústia tão degradante”?

Todas as noites, depois que chegava do trabalho, se trancava em seu quarto. Sentava na escrivaninha e escrevia cartas. Compunha missivas longas que nunca seriam enviadas. Poemas que jamais seriam declamados. Redigia para exorcizar a dor, para dar voz e forma aos sentimentos que o sufocavam interiormente. Assim, meio que abrupto, nasceu um poeta dentro dele. Cada verso, uma lágrima transformada em palavra, cada linha uma saudade eternizada na tinta de sua caneta esferográfica.

Mas o tempo passou, e Lafaiete aprendeu, a trancos e barrancos, que o amor não correspondido não mostrava o fim do mundo. Ele descobriu que a amargura poderia se transformar em algo mais suportável. Que as mágoas, em uma série de versos, os seus pensamentos dariam lugar à aceitação. Afinal, o amor não é apenas sobre ser amado ou ter alguma compensação em troca. É sobre sentir, assimilar, viver, usufruir, gozar, mesmo que num determinado ponto, alguma coisa descambe para a dor causticante e importuna na sua maior forma de expressão.

Assim, entre as estrelas e a melancolia, a consternação e a repugnância, Lafaiete se deparou com um novo caminho a ser seguido. Percebeu que o amor não correspondido não o mataria, ao contrário, o transformaria num novo ser. Um corpo de concepções vivificadas. Quem sabe, talvez um dia, encontrasse alguém de verdade. Uma criatura que olhasse para o mesmo céu e visse as mesmas estrelas. Alguém de olhos deslumbrantes que igualmente tivesse um coração descompassado, dançando ao som de uma música elegantemente invisível, contudo, maviosa e fruitivamente sonora.

Quem sabe, outro lado da mesma moeda, nesse encontro de almas solitárias, oxalá o amor finalmente se tornasse recíproco, mútuo e equivalente. Até lá, enquanto a esperança não bate definitivamente em sua porta, Lafaiete continuará a grafar as suas crônicas, suas poesias e cartas não enviadas. Afinal, o amor não correspondido ou não galardoado, também tem a sua beleza, a sua amenidade, a sua magia e a sua profundidade.  

Um dia (sempre há um dia), ele, Lafaiete, se torne o protagonista único de uma história de amor marcante, chique, saliente e infinita, tipo um conto perpétuo e, que não caiba apenas entre as estrelas... também se coadune nos braços de uma jovem elegante que o ame de volta, com a mesma intensidade e deleite. E cujo amor ardente e garboso será incondicionalmente palpável até o final de seus dias.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Eliana Palma (Microcontos) – 1

Sempre se sacrificara para dar presentes, que parentes e amigos desdenhavam. Fez diferente: cantou um "Parabéns pra você" para o aniversariante e usou a grana para renovar o próprio guarda-roupa.
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Levou o filhinho ao circo. Enquanto isso, a esposa acamada ria das gracinhas, e fazia mil acrobacias com o palhaço do vizinho.
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Era ótima cozinheira. Em transe, perfurava o pernil profundamente com a enorme faca. Foi sacudida pela patroa; o porco era o patrão abusador.
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Não sabia descansar. Não podia perder qualquer oportunidade. Driblava o cansaço e a idade com novas empresas. Foi interditado pelos herdeiros, que se cansaram de esperar o tempo de gastar!
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Só redigia textos de grande violência. Um dia foi encontrado morto: as letras agressivas o asfixiaram.
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Cismava. Olhos baixos nos pés rachados, e o filho do patrão a fazer dele o alvo de intermináveis chacotas... Quando o fazendeiro aflito perguntou pela mimada cria, respondeu: 
—"Sei não," com olhar distante no turbulento rio.
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Chorava na cobertura. Via aviões passarem e queria voar. Um dia, o salto, o sorriso e o baque. Hoje voa, leve, em outra dimensão.
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Não queria engordar. Muitas fórmulas e drogas depois come, hoje, feliz, grama pela raiz!
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Sua solidão tinha a halitose por companhia. Quando o último dente se perdeu viu-se obrigado a encarar o dentista. O sorriso voltou, e com ele, amigos e amores.
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Sabia que o pitbull era temperamental, mas insistia em manter o animal. Um dia, o ataque e a desfiguração do rosto: o sacrifício do cão e um novo relacionamento, com o cirurgião plástico.
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Habituado a projetar arranha-céus, construiu castelos nas nuvens. Por falta de alicerce, todos os sonhos ruíram.
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Estava apaixonada. A futura sogra exigiu o fim do noivado: "filho meu não se casa com doméstica". Foi à luta! Fez faculdade de moda e tomou-se renomada estilista. Rica, famosa e feliz, inverteu as letras e trocou o amor por Roma!
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Era muito rica. Criava um filhote de leão apenas para ser exótica. Anos depois, o animal foi encontrado ao lado da jaula arrebentada, tendo ainda na boca um osso do qual pendia valioso solitário.
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Parabenizava-se! Olhava as mãos bem feitas: parara de roer as unhas; o cinzeiro limpo: parara de fumar; o barzinho transformado em biblioteca; parara de beber; o calo no dedo: finalmente acabara de escrever seu primeiro "best seller"!
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Era Natal, e cadê dinheiro para presentes? Cortou cartões em cartolina verde, marcou-os com beijos em batom vermelho e escreveu uma trova para cada presenteado. Foi o ano que proporcionou as maiores alegrias aos amados!
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Ano Novo chegando. Queria novidades, mudança de panorama. Encheu-se de coragem e virou a cama para a janela!
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Separou-se do noivo marginal. O que vertia não era choro por amor despedaçado, mas chorume do lixo emocional acumulado.
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Encontrou lagarta na salada. Rodou a baiana! Chega! Vegetariana nunca mais!!! 
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Depois de trinta chopes, um bom mergulho para desaguar na piscina do cunhado esnobe. A mulher, afogando-se na cama, acordou-o aos berros!
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Fonte> Maria Eliana Palma. Momentos em prosa e verso. Maringá, 2016. Entregue pela autora.

Beatrix Potter (O Conto de Dois Ratos Maus)


Era uma vez uma linda casa de bonecas; era de tijolos vermelhos com janelas brancas, cortinas de musselina de verdade, porta da frente e chaminé.

Pertenceu a duas bonecas chamadas Lucinda e Jane; pelo menos era de Lucinda, mas ela nunca pedia comida.

Jane era a cozinheira; mas ela nunca cozinhou, porque o jantar foi comprado pronto, em uma caixa cheia de aparas.

Havia duas lagostas vermelhas e um presunto, um peixe, um pudim e algumas peras e laranjas. Eles não saíam dos pratos, mas eram extremamente bonitos.

Certa manhã, Lucinda e Jane tinham saído para passear no carrinho de bebê da boneca. Não havia ninguém no berçário e estava muito quieto. De repente, houve um pequeno ruído de arranhões em um canto perto da lareira, onde havia um buraco sob o rodapé.

O Pequeno Polegar colocou a cabeça para fora por um momento e depois a colocou de novo.

O Pequeno Polegar era um rato.

Um minuto depois, Hunca Munca, sua esposa, também colocou a cabeça para fora; e quando ela viu que não havia ninguém no berçário, ela se aventurou no oleado sob a caixa de carvão.

A casa de bonecas ficava do outro lado da lareira. Pequeno Polegar e Hunca Munca atravessaram cuidadosamente o tapete da lareira. Eles empurraram a porta da frente – não era rápido.

Pequeno Polegar e Hunca Munca subiram e espiaram a sala de jantar. Então eles gritaram de alegria!

Um jantar tão adorável foi colocado sobre a mesa! Havia colheres de estanho, facas e garfos de chumbo e duas cadeirinhas – tudo tão conveniente!

Pequeno Polegar começou a trabalhar imediatamente para cortar o presunto. Era de um lindo amarelo brilhante, com listras vermelhas.

A faca amassou-se e feriu-o; ele colocou o dedo na boca.

“Não está cozido o suficiente; é difícil. Você tem que tentar, Hunca Munca.”

Hunca Munca levantou-se da cadeira e cortou o presunto com outra faca de chumbo.

“É tão duro quanto os presuntos do queijeiro”, disse Hunca Munca.

O presunto se desprendeu do prato com um solavanco e rolou para debaixo da mesa.

“Deixa pra lá”, disse o Pequeno Polegar; “me dê um pouco de peixe, Hunca Munca!”

Hunca Munca experimentou cada colher de estanho; o peixe estava colado ao prato.

Então o Pequeno Polegar perdeu a paciência. Ele colocou o presunto no meio do chão e bateu com a pinça e com a pá – bang, bang, smash, smash!

O presunto voou em pedaços, pois por baixo da tinta brilhante era feito apenas de gesso!

Então não houve limites para a raiva e decepção de Pequeno Polegar e Hunca Munca. Partiram o pudim, as lagostas, as pêras e as laranjas.

Como o peixe não saía do prato, puseram-no no fogo de papel crepom em brasa da cozinha; mas também não queimaria.

O Pequeno Polegar subiu pela chaminé da cozinha e olhou para o topo – não havia fuligem.

Enquanto Pequeno Polegar subia pela chaminé, Hunca Munca teve outra decepção. Ela encontrou algumas latas minúsculas sobre a cômoda, rotuladas – Arroz – Café – Sagú – mas quando as virou de cabeça para baixo, não havia nada dentro, exceto contas vermelhas e azuis.

Então aqueles ratos começaram a fazer todo o mal que podiam – especialmente Pequeno Polegar! Ele tirou as roupas de Jane da cômoda do quarto dela e as jogou pela janela do último andar.

Mas Hunca Munca tinha uma mente frugal. Depois de tirar metade das penas do travesseiro de Lucinda, lembrou-se de que ela mesma precisava de um colchão de penas.

Com a ajuda do Pequeno Polegar, ela carregou a almofada escada abaixo e cruzou o tapete da lareira. Foi difícil espremer o travesseiro no buraco de rato; mas eles conseguiram no final das contas.

Então Hunca Munca voltou e trouxe uma cadeira, uma estante, uma gaiola de passarinho e várias pequenas bugigangas. A estante e a gaiola recusaram-se a entrar na toca dos ratos.

Hunca Munca deixou-os atrás da caixa de carvão e foi buscar um berço.

Hunca Munca acabava de voltar com outra cadeira, quando de repente ouviu-se um barulho de conversa lá fora no pátio. Os camundongos correram de volta para a toca e as bonecas entraram no berçário.

Que visão encontrou os olhos de Jane e Lucinda!

Lucinda sentou-se sobre o fogão virado da cozinha e ficou olhando; e Jane encostou-se na cômoda da cozinha e sorriu – mas nenhuma das duas fez qualquer comentário.

A estante e a gaiola foram resgatadas debaixo da caixa de carvão – mas Hunca Munca ficou com o berço e algumas roupas de Lucinda.

Ela também tem algumas panelas e frigideiras úteis e várias outras coisas.

A garotinha a quem pertencia a casa de bonecas disse: “Vou comprar uma boneca vestida de policial!”

Mas a enfermeira disse: “Vou preparar uma ratoeira!”

Então essa é a história dos dois Ratos Maus, mas eles não eram tão travessos afinal, porque o Pequeno Polegar pagou por tudo que quebrou.

Ele encontrou uma moeda de seis pence torta sob o tapete da lareira; e na véspera de Natal, ele e Hunca Munca o enfiaram em uma das meias de Lucinda e Jane.

E todas as manhãs bem cedo – antes que alguém acordasse – Hunca Munca vinha com sua pá de lixo e sua vassoura para varrer a casa das Bonecas!

Fonte: Beatrix Potter (escritora e ilustradora). O conto de Dois Ratos Maus. Publicado originalmente em 1904 como “The Tale of Two Bad Mice”. Disponível em Domínio Público

domingo, 21 de abril de 2024

A. A. de Assis (Abaixo a Gravata!)

Seu Neco Bombocado era fiscal da prefeitura na cidade dele. O apelido “Bombocado” vinha dos tempos em que, como bico, abrira uma lojinha de doces caseiros, depois fechada porque só dava movimento no mês da festa do padroeiro.

Solene figura aquele Seu Neco Bombocado, sempre de terno, gravata e chapéu, fiscalizando as ruas em cima de uma bicicleta. Dizia-se que não tirava a gravata nem para dormir, tão fundamental era para ele o nobre adorno.     

Imaginem, pois, a aflição do elegante servidor no dia em que um novo prefeito decidiu abolir o uso da gravata na função pública. Homem de hábitos radicalmente informais, criado em fazendas e zeloso de sua condição de líder popular, o novo burgomestre a primeira coisa que fez foi baixar decreto acabando com o chamado “traje oficial”. Nisso recebeu total apoio do seu secretário, um irreverente poeta, famoso pelas suas camisas extravagantes.

Abaixo o paletó! Abaixo o colete! Abaixo a gravata! E o decretado estripitise deveria começar pelos fiscais, que conviviam mais de perto com o povo. Governo de portas e camisas abertas, liberto das burocracias e afinado com os hábitos descontraídos da operosa população municipal. Abaixo a elegância padronizada!

Inconformado, Seu Neco Bombocado pediu audiência ao prefeito. Queria que lhe fosse permitido ser a exceção, pois que toda regra tem alguma. Ele não saberia viver sem o terno e a gravata, complementos indispensáveis de sua imagem pública e privada.

O alcaide lamentou, mas não podia abrir precedente. O secretário reforçou a firmeza do chefe: “Dura lex sed lex”. Seu Neco tivesse paciência, fizesse um sacrifício, mas aposentasse a gravata e o paletó imediatamente. Afinal, regras são regras.

O fiscal chegou a pensar em pedir demissão. Segurou o pedido na ponta da língua, mas somente porque precisava demais do emprego, despesa grande em casa, os filhos na escola, tinha que engolir o desaforo.

A que humilhações se submete um chefe de família… Imagine ele, o famoso Neco Bombocado, sair às ruas de peito aberto e braços nus.

Foi a uma loja, comprou sua primeira camisa-esporte. “Mas sem frescuras de estampas e bordadinhos, porque sou homem sério”, exigiu.

Porém no primeiro dia de fiscalização desengravatada Seu Neco adoeceu: o pescoço desabituado ao vento, e justo naquele dia um vento sul traiçoeiro…  Foi pra cama curar o resfriado, que virou bronquite, e de bronquite virou pneumonia. O prefeito soube do caso, ficou comovido, resolveu visitar o honrado servidor. Encontrou-o todo encolhido, embrulhado num pijama de flanela. Ah, sim… e de gravata.

Fonte> Portal do Rigon. 18/04/2024

sábado, 20 de abril de 2024

Francisca Júlia (O açude)


Viviam duas velhinhas em duas cabanas vizinhas, construídas num campo extenso e cobertas de um colmo tão verde que, de longe, se confundiam na cor geral da vegetação.

Ali elas passavam sua existência humilde, longe de toda a convivência importuna,, preocupando-se apenas com o cultivo da sua horta e com o trato dos seus bacorinhos.

À tarde sentavam-se juntas à soleira da porta, com o fuso na mão para distraírem-se, e conversavam horas inteiras sobre a sua vida passada, rememorando episódios antigos, velhas recordações da mocidade.

Eram felizes na sua miséria; não lhes faltavam ervas para a alimentação e orações para a purificação da alma.

Uma delas. porém, a que parecia mais moça, tinha um defeito — a preguiça. Abandonava-se durante o dia à preguiça, dormindo pelos cantos, esquecida do trabalho, de modo que muitas vezes era a sua vizinha quem lhe trazia o sustento.

Suas casas tinham sido feitas por elas mesmas numa planície rasa, muito plana, por onde os ventos passavam livremente, refrescando a atmosfera.

Do lado do poente havia uma coluna de certa elevação, regada por um arroio fresco e límpido, que nascia no alto e escorregava pelo dorso da colina em pequenas catadupas.

Do lado oposto, um rico proprietário tinha construído um grande açude, onde se acumulavam as águas de um rio próximo, cercado por uma represa de pedras. Essas águas serviam nas secas do estio para a rega das plantações.

Um dia um caminhante que atravessava a campina veio abrigar-se dos ardores do sol numa das cabanas onde as duas velhas estavam reunidas, a fiar.

E ele disse-lhes:

— Minhas velhinhas, é urgente que mudeis vossas habitações para o alto daquela colina, porque o açude está-se esboroando aos poucos, pode partir-se a represa e a água inundar este campo, matando-vos. Fugi daqui, velhinhas.

A mais velha, que era solícita e prudente, respondeu:

— Amanhã me mudarei.

A outra, que era, preguiçosa, contentou-se com sacudir os ombros, incrédula, e disse:

— Veremos.

De fato, no dia seguinte, mal a manhã tinha despontado, já a velhinha estava tratando da sua mudança, arrancando os batentes das portas, a palha do telhado, e pouco a pouco ia levantando, não sem pequeno esforço, sua nova habitação sobre a colina.

Depois de colocado tudo em seus lugares, feita a cerca grosseira que prendia as suas aves e bacorinhos, instalou-se descansadamente, livre de todo o perigo.

A outra, apesar das instâncias da primeira, deixou-se ficar embaixo, e, preguiçosa como era, ia adiando a mudança.

Uma tarde, quando o crepúsculo descia e espalhava um aspecto de tristeza religiosa sobre a verdura dos campos, a velhinha, que estava sentada na soleira da sua casa, no alto da colina, viu com espanto a represa de pedras que segurava as águas do açude romper-se com estrondo, cair, dando passagem a uma enorme massa d'água. A água caiu, desceu e veio galopando pelo campo, espumando e roncando, com uma força e ímpeto a que nada poderia resistir. Tudo que encontrava na frente ia torcendo e arrancando.

A velhinha preguiçosa deitou a correr, os cabelos soltos, gritando de desespero. Coitada!

A água alcançou-a logo, envolveu-a com a sua espuma, arrastou-a nas ondas e levou-a, morta já, até à outra extremidade do campo.

Sua companheira, que tinha ficado ao abrigo do perigo, por ser cuidadosa e prudente, elevou as mãos ao céu num resignado gesto de súplica.

Fonte> Francisca Júlia. Livro da infância. 1899. Disponível em Domínio Público  

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capitulo 30: “Mãe Menininha do Gantois"

O passeio atípico da prenda ao lado de seu novo amigo pelas ruas de Salvador prossegue. João a leva para conhecer o elevador Lacerda, e a praia do farol da Barra. Dois pontos turísticos famosos. E Isadora tem seu primeiro contato com o mar. Ela sente o coração pulsar forte e se deixa levar pela energia do mar que estava calmo. E pensa em sua mãe que morreu sem conhecer aquela maravilha.  Ao entardecer, eles retornam à casa de dona Branca.

Isadora sentia-se feliz, acolhida e agradecida por estar junto daquelas mulheres batalhadoras, sobreviventes de uma sociedade de política desigual. E se impressionou ao notar o quanto aquelas mulheres sorriam, apesar das tristezas que tinham guardadas no peito.

Sentiu-se privilegiada perante as injustiças do mundo, praticadas por pessoas insensíveis, ambiciosas e egocêntricas.

- Obrigada pelo acolhimento, dona Branca.

- Não tem do que agradecer, Isadora. É como dizia minha finada mãezinha: quem não vive para servir, não serve para viver – disse a dona da casa. Mas tá toda molhada, menina. Vá trocar essa roupa. Deixei um vestido lá no armário de seu quarto.

Enquanto Isadora se preparava para ir ao terreiro, João proseava com as meninas ou “quengas” como eram chamadas pelas madames da alta sociedade.  

“Na vida, a coisa mais verdadeira é que nem tudo o que parece ser, realmente é...

Existe gente boa, mas também há muita gente ruim. E que nunca deixará de ser, porque considera a bondade um sinal de fraqueza. Na verdade, gente má é má porque não sente atração pelas virtudes das coisas que são de Deus, as quais é preciso merecimento para possuir. Amor, compaixão, alegria, não fazem morada em casa sombria. Até podem se aproximar, mas logo partem, porque coração de gente ruim não cultiva flores, e sim erva daninha, espinhos. Gente ruim gosta é das coisas do Capeta. E tem como diversão fazer o seu semelhante sofrer.

Quem vai dizer que Isadora, fugida do marido carrasco, seria acolhida pelas chamadas “mulheres da vida"? Se alguém perguntasse por seu paradeiro não poderia imaginar...

Por certo diria a maioria:  – Numa casa de família. Rica, bem distinta e caridosa. Mas não. Ela foi parar onde ninguém ousaria prever. E isso poderia servir de lição para alguns hipócritas. E serve. Porém, quem escolhe trilhar o caminho das sombras, fecha os olhos perante a luz.

Mas a prenda dos Pampas estava gostando de absorver a luz e as lições que a vida estava lhe proporcionando naquela fuga maluca.  

E por falar em luz, uma das lâmpadas mais acesas a iluminar a aura da cidade estava dentro de um terreiro de cultos afros. E era chamada pelo codinome: “Menininha do Gantois".

João e Isadora tomaram um táxi. E ao se aproximarem do terreiro, no bairro Gantois, e ao ouvirem o ressoar dos atabaques, Isadora, feito criança curiosa, põe a cabeça pro lado de fora da janela do carro para ouvir melhor aquele som do qual Vó Gorda já havia comentado ser comum também nas regiões do Rio Grande do Sul, mas que ela, pessoalmente, não conhecia. Era um ressoar forte que fazia sua alma tremer.

Na entrada do portão havia a imagem de um homem negro, vestido de vermelho, capa preta e um tridente na mão. Era Exu, o guardião de todas as porteiras e caminhos.

Foram bem recebidos pelos cambonos* da casa, que com alegria disseram se tratar de um ritual muito especial, pois uma filha de Iansã havia sido salva de uma doença de pele muito rara. E que os amigos e familiares que estavam fazendo novena a seu favor, estavam presenteando o terreiro com uma imagem de Iansã que tinha a mesma altura de sua protegida. Mas que a festa também era para Omolu, senhor das pestes, porque sem a intervenção dele não há cura.

O cenário era mágico. Havia cânticos na língua de Queto e Iorubá, médiuns recebendo a iluminação de seus Orixás, cada um com suas respectivas vestes.  

Explicaram que o homem com o rosto coberto por palhas, era de Omolu, que a moça vestida de azul e espelho na mão, era filha de Iemanjá, que a outra moça vestida de vermelho e branco, segurando uma espada, era a filha de Iansã, que havia sido curada; que o homem com uma machadinha na mão está com Xangô. E num cantinho do salão do Templo, estava ela, Mãe Menininha, uma mulher de aura doce, vestida de amarelo, com sua Oxum. Orixá do amor, da riqueza e da família.

A energia intensa do lugar fez com que Isadora sentisse vontade de sorrir e de chorar.   

Mãe Menininha acena. E ela vai na sua direção. João ficou do lado de fora, junto de Exu. Tinha respeito, mas também muito medo dos Orixás. 

A Yalorixá, sem dizer nada, olhou nos olhos de Isadora. E jogou os búzios numa peneira de palhas.   

- Você é filha de Iansã – disse ela.

Fico feliz em ver a filha aqui, mas aqui não é seu lugar. Só você pode se roubar de sua missão. Ninguém mais tem esse poder. E não precisa temer nada e a ninguém. Volte para os braços do seu amor. E ajude as mulheres e as crianças de sua terra. Pois essas são suas tarefas neste mundo.  A moça é filha de uma santa guerreira. E nasceu para vencer as batalhas impostas no seu caminho. Vai ser feliz, mulher!

Isadora agradece. E impressionada, vai ao encontro de João. E os dois resolvem passar a noite caminhando pelas ruas de Salvador, bebendo cerveja e conversando.

- Sei que a moça não tá acostumada. Não exagera na bebida.

- Preciso comemorar. Estou me sentindo tão feliz.

- É... Tua conversa com Mãe Menininha te fez bem.

- Por que não quisestes entrar? 

- Eu não. Vai que tenha alguma desgraça inevitável no meu caminho. Prefiro não saber de nada.

- É bom saber das coisas futuras para que possamos estar preparados para quando chegarem.

- Ôxe, prefiro não saber de nada. Mas gosto de Mãe Menininha. Ela tem uma vida dedicada à fé e à caridade ao próximo.  Ela tem uma grande alma. 

Conversa vai, conversa vem, ao raiar do sol, os dois sentados na ladeira do pelourinho, Isadora toma uma decisão.

- João.

- Fale.

- Vou para o Rio Grande do Sul. 
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continua…
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* Cambono = na umbanda e em outros cultos de influência banta, ajudante do pai ou mãe de santo, ou assistente dos médiuns incorporados ou, ainda, auxiliar para várias finalidades rituais no terreiro ou centro.

Fonte: Texto enviado pela autora 

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Humberto de Campos (A Surpresa)

Educada no tumulto das rodas elegantes. cujas festas mundanas frequentava desde criança, Mademoiselle. Altair havia se tornado, aos dezessete anos, uma das moças mais em evidência na sociedade do Rio de janeiro. O pai, médico ilustre, mais devotado à família da ciência do que, talvez, à ciência da família, descurava, em absoluto, as pequenas coisas do lar. E era de tal forma, nesse ponto, a sua despreocupação, o seu descaso ingênuo, mas prejudicial ao próprio conceito, que Mlle. Altair se tornou notável, em breve, na cidade, pelo exagero escandaloso dos seus vestidos.

As suas "toilettes" eram, realmente, clamorosas, e em inteiro desacordo com a inocência da sua idade. Trajando sempre as fazendas mais leves, a sua preocupação, sugerida por figurinos inadequados, consistia em deixar à mostra a perna, até o joelho, e o colo, até o estômago. Quanto ao resto do corpo, não havia quem não o adivinhasse na transparência indiscreta do crepe da China ou da seda lavável, que lhe modelavam sensualmente, num abraço voluptuoso, os seios túrgidos, a cintura flexível, as ancas ondulantes, patenteando, como num desafio à bestialidade humana, o conjunto harmonioso das formas.

Um dia, foram os círculos elegantes surpreendidos com uma notícia sensacional: o Dr. Edmundo Figueira, um dos espíritos mais equilibrados e vigorosos da nova geração de juristas brasileiros, havia pedido em casamento Mlle. Altair Sobreira, formosíssima e conhecidíssima filha do Dr. Peixoto Sobreira!

Realizado o casamento, em que a noiva se apresentou mais nua do que nunca, e despedidos os convidados, penetraram os noivos, felizes, na alcova nupcial. Envolta, de leve, na seda finíssima, ou, antes, na névoa imperceptível do vestido, a recém-casada fazia lembrar as estátuas de mármore, veladas convencionalmente para o momento da inauguração. Anfitrite, com os pés mergulhados na espuma e vestida, apenas, pela bruma fugitiva do Arquipélago, não seria, talvez, mais nua, e mais bela!

Entreolhavam-se, os dois, na alcova silenciosa, ninho de ouro e seda armado para um casal de pombos amorosos, quando o noivo se adiantou, e, sorrindo, anunciou a moça, tomando-lhe, carinhoso as mãos geladas e brancas:

- Sabes, meu amor, que eu te preparei uma novidade?

- Tu? Que é? - indagou a noiva, casando, de repente, a curiosidade à aflição.

O noivo suspendeu os travesseiros da cama, e, tirando dali uma camisa de noite, trabalhada em seda branca, e opaca, afogada até o pescoço e descendo até o tornozelo. pediu:

- É para que me faças uma surpresa, dando-me uma sensação inédita nesta noite de casamento.

E entregando-lhe a camisa:

- Eu nunca te vi... vestida!...

Fonte> Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. 
Disponível em Domínio Público.