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sábado, 19 de abril de 2025

Renato Frata (As cinzas dos nossos dias)


O espelho mostra que na metamorfose dos dias, o cinza restou quando o castanho se foi. Na barba, bigode, cabelos, pelos corporais.

Tudo se acinzentou! 

É como se as cores originais se escondessem nas estrias das pálpebras, da testa, da boca e das orelhas a escorrerem pelo pescoço em busca de guardar a alegria do verde, azul, vermelho, amarelo e até do preto, já que acinzentar é descolorir, é opacar, é marcar a finitude. 

O castanho virou cinza rareado na calva quase pelada, fotografia do resto que é cinza, como já disse alguém, e concordo. É neutralidade, é ausência da emoção que se não é amarga e azeda, afastam-se do doce e o salgado para restar o umami que se diz gostoso, mas existe apenas na imaginação. Umami é lembrança de como são as cores perdidas.

Cinza é sobra? É o que remanesce depois de o fogo retirar a essência do todo? A ambiguidade entre o bom e o mau, o bem e o mal? O moralmente cinzento? O conteúdo, a vontade, o desejo sendo trocados pela lamentação, transitoriedade e luto? A intermediação do branco ao preto? 

Há mais cinza nas paredes dos nossos dias do que pode avaliar nossa vã filosofia. Mas, será que o cinza nada possui de nobre e de bom? 

Se é neutra a cor, a resposta tanto pode ser sim como não; se representa ausência, é sinal de que nem veio e nem foi; se de fato é elegância, esteve e se pôs; ou se talvez, solidez e estabilidade, representa inércia. O fato é que nossos dias vão se acinzentando como o cair do sol num dia de inverno, cujos raios se recolhem friorentos em busca de um agasalho que não terá. E, nesse meio-estímulo e meia-tranquilidade, o tempo passa fomentando angústias, chiados, muxoxos despidos das emoções de outrora. 

O que se fez, está; o que não, esqueça! 

Pois os dias cinzas tendem a se negritar e, nessa perplexidade entre a vontade e a consecução, dobram os sinos a dizer a tristeza do já foi. Passou...

Mas sorte que as cinzas deixadas não morrem aí. São generosas e compreensivas. 

Como nada morre e tudo se transforma, ela se conserva quente na esperança de que um vento se aproxime e a sopre e o fazendo, alerte a brasa ali guardada de que ainda há vida na sua essência, e que deve se reavivar em uma segunda oportunidade à vida e, quem sabe, ao amor... A sublimidade do amor a viver sob o calor das cinzas.

Para validar Nietzsche que afirma: “um homem precisa se queimar em suas próprias chamas para poder renascer das cinzas!” confirmando que o cinza das nossas têmporas mostra que os dias, mesmo que nos pareçam tristes e longos, conservam em si os mesmos tictacs da juventude, e basta que os tinjamos com cores que imaginemos, para nos fazermos felizes.

Vê? As cinzas dos nossos dias guardam vida em si. Por que não as soprar e soprar?…
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RENATO BENVINDO FRATA, trovador e escritor, nasceu em Bauru/SP, em 1946, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Além de atuar com contador até 1998, laborou como professor da rede pública na cadeira de História, de 1968 a 1970, atuou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Paranavaí, (hoje Unespar), atualmente aposentado. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da paranaense Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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Monsenhor Orivaldo Robles (Crônica para Natália)


No dia 24 de abril de 1995, às 4 horas, três homens armados invadiram a casa de Roni Martin, um dos proprietários da empresa Reuter Câmbio e Turismo, em Marechal Cândido Rondon (PR) para roubar o cofre da empresa. Levaram Roni Martin, sua esposa Leina e o bebê Natália, de 9 meses, até a residência do tesoureiro da empresa, Elton Kraemer. Às 7 horas, retornaram à casa e mantiveram reféns a família Martin e a família Kraemer (Elton, a esposa e os filhos gêmeos), além das empregadas das famílias.

Seguiram-se longas horas de negociação, até que os assaltantes ameaçaram matar o bebê no sábado, dia 29. Depois de 123 horas de sequestro, às 6,45h do sábado, 21 policiais invadiram a casa e, em 35 segundos, mataram os assaltantes. Para defender a pequena Natália, Leina Reuter jogou-se sobre ela, sendo ferida com quatro tiros; três, de policiais. Operada à 8h, no hospital da cidade, seu quadro era de “franca recuperação” quando da redação desta crônica.

Ela é somente uma garotinha. Nem completou ainda um ano. Não faz ideia do que se passa à sua volta. A seu modo, ensinam os psicólogos, registra tudo o que lhe acontece. Que significa, para um bebê, sequestro, terror, disparos? Está no centro de uma tragédia. Atrai a atenção de milhões que não a veem.

Um dia vai crescer. Saberá o que aconteceu. Para não assustá-la, talvez lhe contem só o essencial.

Com certeza, quererá ver as cicatrizes da mãe. Terá então a compreensão exata do que significa amar. Todos os ensinamentos, leituras, debates vão parecer-lhe ridículos. Ela não precisará de palavras. Poderá acariciar com a mão as marcas do amor.

Talvez interesses comerciais tenham deturpado a imagem da mãe. Mas a garota não entende de comércio. Para ela, mãe é aquela que põe o filho acima da própria vida. Haveria maneiras menos dolorosas de aprender essa lição. Nenhuma tão eficaz. Mãe é quem dá a vida. Quem dá a sua vida.

Foi preciso que assistíssemos, via satélite, nos quatro cantos do País, a esse drama para compreendermos o que já deveríamos saber.

Deus se serve de pessoas inocentes para ensinar-nos aquilo que nossa dureza de coração e mente insiste em não aprender. Convivendo tanto com o amor de mãe, como ainda não o conhecíamos?  Falávamos dele, entoávamos canções a seu respeito, porém, no fundo, talvez o reduzíssemos a uma das muitas imagens vazias com que enchemos nossa vida. A um estereótipo que certos poetas tanto gostam de pintar.

Vem agora a provação de Leina Reuter e, da sua angústia, extraímos a compreensão extrema de amor materno.

Queira Deus não tenha sido inútil tanto sofrimento. Temos novo argumento, feito de sangue e de dor, para confirmar o que já sabíamos ou deveríamos saber: mãe carrega dentro de si um pouco de Deus.

Só mãe ama dessa maneira. Descobrimos que para haver amor é preciso existir heroísmo. E que heroísmo faz parte da vida humana quando Deus está com a gente.

Aprendemos também que é hora de rever conceitos. De examinarmo-nos por dentro. Sem medo de abandonar posições que julgávamos definidas.

Quantos discursos já fizemos sobre amor! Quanto já usamos, sem pensar, essa palavra!

A mãe Leina trouxe-nos um grande problema. Daqui para frente, vamos ter que pensar muito, antes de nos arriscarmos a dizer que amamos.
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Monsenhor Orivaldo Robles nasceu em Polôni (SP) em 1941. Estudou em Jales e Poloni e ingressou no Seminário Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto, em 1953. Cursou Filosofia em Curitiba (PR), graduando-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Mogi das Cruzes SP, com diploma reconhecido pela USP, São Paulo. Graduou-se em Teologia no Studium Theologicum de Curitiba, afiliado à Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma. Lecionou no Colégio Estadual Dr. Gastão Vidigal, e no Instituto de Educação, em Maringá (PR) (1967-1969). No Colégio Estadual e na Escola Normal de Paranacity (PR) (1970-1972). Por quase onze anos trabalhou como pároco de Marialva, de onde saiu no início de 1983 para assumir, por seis anos, o cargo de reitor do Seminário Arquidiocesano Nossa Senhora da Glória - Instituto de Filosofia de Maringá. Em 1989 assumiu a Paróquia Santa Maria Goretti, em Maringá, onde trabalhou por mais de 20 anos. Desde 2009, trabalhou na Catedral Metropolitana de Maringá, exercendo a função de vigário paroquial. Foi palestrante convidado a discorrer, em colégios ou outros núcleos humanos, sobre temas ligados à cidadania, formação pessoal e sobre ética pessoal ou pública. Em 2012 teve publicado o livro "Celeiro Desprovido", com 270 páginas, contendo 118 crônicas e artigos escritos desde 1995. Em 2017, foi publicado o livro dos 60 anos da Diocese de Maringá. Foi articulista mensal ou semanal, por mais de quinze anos, de jornais editados em Maringá, além de ter matérias reproduzidas em revistas ou blogs da região.Faleceu de enfisema pulmonar, em 2019, em Maringá/PR.

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quinta-feira, 17 de abril de 2025

A. A. de Assis (Quando sofrer faz bem)

Não creio que ninguém goste de sofrer. Todavia, de algum modo e em algumas  circunstâncias, o sofrimento pode fazer bem.

Tive recentemente uma experiência difícil, que envolveu hospitalização, exames laboratoriais, ultrassom, tomografia, cirurgia, UTI, injeções, uso de sonda etc.

Tendo em vista os avançados recursos da medicina moderna, meu caso nem foi dos mais graves, porém deixou marcas e lições especialmente fortes. Sobretudo me fez pensar. Comecei pensando na extrema bondade de Deus e no quanto lhe devo por todos os benefícios que me proporciona.

Em primeiro lugar pela felicidade de fazer parte de uma família unida, amorosa e solidária, que em nenhum momento me falta. É nas situações mais dramáticas que a gente melhor entende e mais valoriza esse tesouro que temos em nosso redor, incluindo (nas casas que as tenham) as funcionárias da família.

Grande felicidade, igualmente, é morar numa cidade como Maringá, que conta com serviços médicos e hospitalares da mais alta qualidade e em todas as áreas. Médicos, enfermeiras e enfermeiros (os anjos dos hospitais), laboratoristas, radiologistas e tantos outros profissionais da saúde.

Pensei também muito nessa preciosa riqueza que são os amigos. Quem os tem sente-se sempre amado e amparado. É um conforto, numa situação difícil, receber demonstrações de carinho: visitas, ofertas de ajuda, preces – centenas de amigos e amigas em correntes de orações em nossa intenção.

O sofrimento nos torna mais humildes e nos faz pensar no quanto somos dependentes de Deus, da família e de tantas outra pessoas. Sem os demais, não somos ninguém.

Tudo isso me deixou outra lição: aprendi que rezar/orar é bem mais do que fazer pedidos a meu favor ou agradecer as graças recebidas. Orar/rezar é nos irmanizarmos com as outras pessoas. Pedir a Deus por elas. Pedir que jamais lhes faltem as condições necessárias para uma vida feliz.

Aprendi, enfim, que fraternidade é viver de mãos dadas, como uma grande família, cada qual colaborando, com os seus talentos, para a formação de uma sociedade serena, amorosa, segura e livre de quaisquer carências.

Um abraço grande a todos os que de algum modo estiveram a meu lado nestas semanas de aprendizado. Paz e luz.
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Antonio Augusto de Assis (A. A. de Assis), poeta, trovador, haicaísta, cronista, premiadíssimo em centenas de concursos nasceu em São Fidélis/RJ, em 1933. Radicou-se em Maringá/PR desde 1955. Lecionou no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá (UEM), aposentado. Foi jornalista, diretor dos jornais Tribuna de Maringá, Folha do Norte do Paraná e das revistas Novo Paraná (NP) e Aqui. Algumas publicações: Robson (poemas); Itinerário (poemas); Coleção Cadernos de A. A. de Assis - 10 vol. (crônicas, ensaios e poemas); Poêmica (poemas); Caderno de trovas; Tábua de trovas; A. A. de Assis - vida, verso e prosa (autobiografia e textos diversos). Em e-books: Triversos travessos (poesia); Novos triversos (poesia); Microcrônicas (textos curtos); A província do Guaíra (história), etc.

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Silmar Bohrer (Croniquinha) 132

Tenho estado em sintonia permanente com a frase de Aristóteles - "a vida quer movimento".  Raros momentos sou sossego, sempre buscando, auscultando, acrescentando.  A nossa organização física e mental precisa de ações para conservar e acrescentar.

São momentos de dileção com exercício nas caminhadas, olhares acostumados com o ambiente, enxergando o que muitos não veem.  Caneta, papel, efervescência nas ideias, sons e imagens dos caminhos.

Longe do burburinho os pensares sintonizando detalhes, anotando o máximo, buscando o elixir dentro de mim mesmo. A ebulição interna expande vida - alegrias, otimismo, luzes no ser.

E o que dizer da movimentação matinal dos cachorrinhos, que me fazem pular cedo da cama, no "bom dia" com a primeira baguncinha da hora.  Cadê o mau humor? E a cara feia?  Ausentes!  

Mais um dia de venturas e aventuras, justificando as palavras do filósofo grego --  façanhas, trabalho, ócio e mobilidade. Dom Theo e Dona Ísis são a leveza e a catarse de cada dia.
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Silmar Bohrer nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).

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Texto enviado pelo autor.
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quarta-feira, 16 de abril de 2025

Voltaire (Os dois consolados)

O grande filósofo Citófilo dizia, certo dia, a uma dama desolada, que tinha muitas razões para estar assim:

— A rainha da Inglaterra, filha do grande Henrique IV, foi tão desventurada quanto a senhora: expulsaram-no do trono, esteve na iminência de perecer no oceano sob a fúria das tempestades e viu o seu marido no patíbulo.

— Lamento por ela — disse a dama.

E se pôs a chorar os seus próprios infortúnios.

— Lembre-se de Maria Stuart — atalhou Citófilo. — Ela amou com grande honestidade um elegante músico que tinha uma grande voz. O seu marido matou o músico em sua presença. E, depois, sua boa amiga Elisabete, que se dizia virgem, mandou-lhe cortar a cabeça sobre o cadafalso forrado de negro, após dezoito anos de cativeiro.

— Isso é muito cruel — respondeu a dama.

E novamente mergulhou em sua melancolia.

—Talvez a senhora tenha ouvido falar — disse o filósofo consolador — da bela Joana de Nápoles, que foi presa e estrangulada, não?

— Lembro-me confusamente — respondeu, aflita, a senhora.

— É preciso que lhe conte — acrescentou o outro — a aventura de uma soberana que em minha mocidade, depois de um jantar, foi destronada e faleceu em uma ilha deserta.

— Conheço toda essa história — replicou a dama.

— Pois bem: vou contar-lhe o que aconteceu à outra princesa a quem ensinei filosofia. Tinha um namorado, assim como todas as grandes e belas princesas. Seu pai penetrou na alcova e surpreendeu o namorado, que tinha o rosto ardente e os olhos resplandecentes como diamantes. A dama também tinha o rosto muito enrubescido. O rosto do jovem pareceu tão repulsivo ao pai da princesa que o velho monarca lhe aplicou a maior bofetada que se deu em sua província. O namorado, lançando mão de uma tenaz, partiu a cabeça do velho que, curada, ainda exibia a cicatriz daquela ferida. A namorada, consternada, saltou pela janela e quebrou uma perna; de maneira que, ainda hoje, coxeia visivelmente, por mais que o disfarce e a despeito de seu porte admirável. O namorado foi condenado à morte por haver quebrado a cabeça de tão alto príncipe. Imagine, agora, o estado da princesa quando levavam o seu amado à forca. Eu a visitei durante um bom tempo enquanto ele estava na prisão. Só falava nas suas desventuras.

— Por que não quer, então, que eu pense nas minhas? — disse-lhe a dama.

— É — respondeu-lhe o filósofo — porque não há razão para pensar em desventura, e porque, sendo tantas as damas infelizes, a senhora não deve desesperar-se. Pense em Hécuba, em Nicolice...

— Ah! — disse a dama. — Se eu tivesse vivido nos tempos dessas últimas mulheres,  ou na de tão formosas princesas, e se, para consolá-las, o senhor lhes contasse as minhas desgraças, acha mesmo que elas lhe dariam ouvidos?

No dia seguinte, o filósofo perdeu seu único filho e esteve na iminência de morrer de dor. A dama redigiu uma lista de todos os reis que haviam perdido os seus filhos e a levou para o filósofo. Este a leu, achou-a exata, completa e não deixou de chorar.

Três meses depois, encontram-se novamente  e ficaram surpresos de estar com tão excelente humor.

Fizeram, então, erigir uma estátua ao Tempo, com esta inscrição:

Àquele que consola.
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VOLTAIRE (François-Marie Arouet) (1694-1778) Dramaturgo e filósofo francês, foi um dos mais proeminentes pensadores do iluminismo (movimento do século XVII). Inimigo das autoridades, foi preso várias vezes e escreveu mais de 2000 obras, entre livros, peças e panfletos políticos. Politicamente ativo e criador de polêmicas, as suas ideias eram críticas ao poder do clero católico, ao fanatismo religioso da população e à injustiça dos poderosos. As ideias de Voltaire sempre criticavam de modo irônico e satírico os reis que governavam a França e a corrupção da Igreja. Após o exílio na Inglaterra, o filósofo revolucionário se tornaria um ativista na defesa da liberdade de pensamento, do direito a um julgamento justo e da tolerância religiosa, além da separação entre Igreja e Estado. Voltaire contribuiu significativamente para os eventos que levaram às revoluções políticas e sociais do final do século XVIII na Europa, mesmo após a sua morte, em 1778.

Fontes:
Voltaire. Os dois consolados. Publicado originalmente em 1756. Disponível em Domínio Público.  
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segunda-feira, 14 de abril de 2025

Monteiro Lobato (A raposinha)

Era uma vez um príncipe que saiu a correr mundo, em procura dum remédio para o rei, seu pai, que estava cego. Depois de muito andar, passou por uma aldeia, onde viu vários homens dando uma surra num defunto.

— Que é isso? — perguntou o príncipe.

— É que este homem nos devia dinheiro e morreu sem pagar. O costume da aldeia manda meter a lenha no cadáver.

O príncipe revoltou-se contra a brutalidade, e pagando a dívida do morto deu ordem para que o enterrassem.

Seguiu caminho. Adiante encontrou uma raposa que lhe perguntou para onde ia. O príncipe contou que andava atrás dum remédio para a cegueira do rei, seu pai.

— Pois sei de um remédio — disse a raposinha. — Basta esfregar nos olhos do rei um pouco de "unguento de papagaio", mas de um certo papagaio lá do reino dos Papagaios. Vá lá, meu príncipe, entre à meia-noite no lugar onde estão esses pássaros e não olhe para os bonitos, os que moram em gaiolas douradas. Pegue o mais velho de todos, o mais depenado e sujo, que está a um canto, num poleiro imundo. Esse é o bom.

O príncipe foi. Quando entrou no reino dos Papagaios, ficou de boca aberta com tantas aves lindas que viu, em gaiolas de prata e ouro, e até cravejadas de diamantes. Esquecido da recomendação da raposinha, pegou a gaiola do mais bonito e foi saindo. Mas o papagaio deu um berro. Os guardas acordaram e prenderam o príncipe.

— Que queres com este papagaio? — disseram. — Vais morrer, gatuno!

O príncipe, com muito medo, explicou do que se tratava. Os guardas então lhe disseram:

— Pois muito bem: damos-te o papagaio se fores ao reino das Espadas e nos trouxeres uma delas — e soltaram-no.

O príncipe saiu muito triste porque não sabia onde era o tal reino. A raposinha apareceu-lhe de novo.

— Então, meu príncipe, que tristeza é essa? — e depois de saber do acontecido falou assim: — Eu bem recomendei que pegasse o papagaio mais velho e feio. Agora o que tem a fazer é o seguinte: vá ao reino das Espadas (e contou onde era) e entre lá à meia-noite. Encontrará espadas de todos os jeitos, de ouro e prata, muitas cravejadas de pedras preciosas — mas não pegue nenhuma dessas. Pegue uma velhinha e enferrujada, que está num canto. Essa é a boa.

O príncipe foi, e lá no reino das Espadas ficou de boca aberta diante de tantas maravilhas que viu. Mas não teve coragem de pegar na espada mais velha e enferrujada; escolheu, ao contrário, a mais rica de todas. Quando ia saindo, fez barulho sem querer, os guardas acordaram e o prenderam. Iam levá-lo ao rei de Espadas.

O príncipe, porém, contou sua triste história de modo a comover os guardas, os quais disseram: "Bem. Perdoaremos o seu crime, se for ao reino dos Cavalos e nos trouxer um."

O príncipe saiu em procura do reino dos Cavalos. Logo adiante encontrou a raposinha. "Para onde vai tão triste o senhor príncipe?" — perguntou ela.

O príncipe contou tudo.

— Bem feito — disse a raposinha. — Por que não fez como eu disse? O remédio agora é um só — ir ao reino dos Cavalos (e contou onde era) e lá entrar à meia-noite. Encontrará muitíssimos cavalos de todas as cores e raças, cada qual mais lindo. Mas não pegue nenhum desses. Escolha o mais velho e feio. Esse é o bom.

O príncipe foi, mas tão lindos animais viu no reino dos Cavalos que não teve ânimo de pegar no mais velho e feio. Escolheu, ao contrário, o mais lindo de todos. Ao sair, o cavalo relinchou, acordando os guardas, que o prenderam.

Houve explicação e por fim os guardas disseram:

— Pois bem, nós o perdoaremos se você furtar a filha do rei.

O príncipe prometeu e saiu. Logo adiante encontrou a raposinha que lhe disse:

— Príncipe, saiba que sou a alma daquele defunto que levou a surra por causa das dívidas. Ando a protegê-lo por todos os modos, mas nada tem adiantado. Você nunca faz o que eu digo. Vamos ver se agora me atende. Arranje um cavalo e vá à meia-noite ao palácio do rei; entre, agarre a moça, ponha-a na garupa e dispare no galope. Passe pelo reino dos Cavalos e pegue o que eu disse. Depois passe pelo reino das Espadas e pegue a que eu disse. Depois passe pelo reino dos Papagaios e pegue o que eu disse. E dispare a toda velocidade para a casa de seu pai, porque o velho está morre, não morre. Mas nunca entre por veredas, nem dê atenção a coisa nenhuma antes de chegar em casa. E adeus!

O príncipe lá se foi. Chegando ao palácio do rei, furtou a moça; chegando ao reino dos Cavalos, pegou o mais velho e feio; chegando ao reino das Espadas, levou a mais velha; chegando ao reino dos Papagaios, pegou o mais feio — e seguiu a galope na direção de sua casa.

Pelo caminho, porém, encontrou seus irmãos que tinham saído à procura dele, mas que ao verem aqueles objetos ficaram com inveja e resolveram matá-lo para roubar. Para isso convenceram-no de que devia deixar a estrada e seguir por um atalho, porque indo pelo atalho estaria livre de ser assaltado por ladrões.

O moço caiu na esparrela; seguiu pelo atalho. Logo adiante os maus irmãos assaltaram-no, roubaram-no e jogaram-no num buraco, certos de que estava morto. E voltaram para casa com os despojos. 

Aconteceu, porém, uma porção de coisas. A moça não queria comer nem falar; o papagaio enfiou a cabeça sob a asa e não disse uma só palavra; a espada ficou mais enferrujada ainda e o cavalo pendeu a cabeça como se fosse morrer.

Quando o moço, lá no buraco, acordou do longo desmaio, viu diante de si a raposa, a qual o tirou dali e o botou no caminho. Ele seguiu para casa manquitolando. Assim que chegou, a espada perdeu a ferrugem, ficando novinha em folha; o papagaio criou penas novas e foi sentar-se em seu ombro; a moça deu uma gargalhada gostosa e falou pelos cotovelos; o cavalo ergueu a cabeça e engordou num instante.

O príncipe, então, dirigiu-se ao quarto do pai cego e esfregou-lhe nos olhos um pouco de "unguento de papagaio" — e o rei imediatamente recobrou a visão e a saúde.

Foi uma grande alegria na corte. O bom príncipe casou-se com a moça e os maus irmãos foram expulsos do reino. E acabou-se a história.

Fontes:
Monteiro Lobato. Histórias de Tia Nastácia. Publicado originalmente em 1937. Disponível em Domínio Público.  
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Aparecido Raimundo de Souza (Trajetória de planeio)

O TEMPO é um tecelão habilidoso, entrelaçando os fios da vida com a destreza de um mestre. Ele tece memórias, sonhos e desejos em um padrão único e nós, meros observadores, assistimos enquanto o pano de fundo se forma majestoso. Corre uma tarde bonita e calma, dessas em que o sol se esconde tímido atrás das folhas douradas. Na praça principal, aliás, a única aqui deste lugarejo, bancos de cimento acalentam histórias de amor. Lembram risos e choros. Festejam os idos de casais namorando. Os pombos esfomeados não são os mesmos, tampouco os passarinhos. Nem os bebês em seus carrinhos e babás. Eu estou sentado em um desses bancos sujos, olhando o tempo passar. 

Uma senhora de idade, ossos e células longínquas, as vestes estropiadas, os cabelos em desalinho, se aproxima. Endereça-me uma boa tarde e pergunta se pode se sentar a meu lado. Respondo com um sorriso largo no rosto fechado. Seus olhos carregam a sabedoria de quem viu muitas outras e não aproveitou nenhuma. Ela se acomoda, olha para o céu e diz: 

— O tempo se esvai, meu jovem. Por vezes, rápido demais. Em outras, devagar, quase parando, como um rio, de passos cansados, trazendo águas de muito longe... de repente, seu leito se queda preguiçoso dormitando exausto ao sabor de uma das margens.

Ela me conta, após esta introdução criativa, sobre a sua juventude. Fala dos amores perdidos. Descreve os sonhos realizados e os que ficaram pelo meio do caminho, como cachorros que por algum motivo caíram dos caminhões de mudanças e jamais foram encontrados: 

— Tudo passa – repete três vezes tais palavras, como se recitasse um mantra. As estações, como as de um trem, mudam. As pessoas embarcam ou desembarcam, se transformam.… Todavia, o que cria raízes, são as memórias póstumas. Automaticamente elas também se decompõem.  Vem e vão. As horas correm. Na verdade, voam. Perceba que os ponteiros são “incansáveis”. O que vemos estático, são as lembranças. 

Eu olho discretamente para o relógio da torre da igreja do outro lado junto ao coreto. Os ponteiros dançam marcando o compasso da vida. O vento sussurra segredos em meus ouvidos. E a senhorinha ali, falando pelos cotovelos:

— Tudo se esvai, meu prezado. As dores, as alegrias, os momentos de solidão, os abraços apertados dos que nos sãos caros. Os choros dos recém-nascidos, a voz da nossa mãe chamando para o café, o pai saindo para o trabalho... as crianças afoitas em direção a escola, em suntuosas algazarras...

De repente, do nada, ela se levanta. Sem se despedir, vira as costas e vai embora. Se afasta numa lentidão carente, como se o peso da sua idade fosse o principal motivo dos seus pés descalços se fazerem demasiadamente lentos e sem um destino pré-estabelecido. 

Naquela tarde, ao voltar para minha casa, prometi a mim que viveria cada instante com mais intensidade. Que não deixaria o tempo escorrer por entre meus dedos como a areia fina. Que abraçaria o efêmero sabendo que no fim, o que importava, o que realmente fazia a diferença não é outra coisa senão as histórias que vivemos e as almas que tocamos ou que nos abordaram. 

Na praça silenciosa, sei que o tempo continuará o seu trabalho. As folhas cairão, o vento soprará e as memórias se entrelaçarão num amplexo indescritível. Após ela ter se levantado, eu fui também. Bati a poeira da sujeira do banco. E segui. Os demais que encontrei durante o trajeto até chegar ao meu destino, eram pessoas que iam ou vinham de algum lugar. Engraçado: umas ao cruzarem comigo, educadas e gentis, resmungam um “boa noite”; outros somente um “olá” insosso. Como os passantes avulsos, segui meu trilhar. No rosto, lágrimas insistentes turvam a visão da vida que me contempla silenciosa. Sem parar, passo pela birosca do Alfredo. Sempre cheia! 

Lá dentro, uma chusma de frequentadores em pé, ou encostada às paredes, bebe com força e manda para dentro, (com sorrisos mostrando dentes cariados), uns tira-gostos acondicionados numa vitrine enorme de vidros sujos sobre o balcão repleto de garrafas, latinhas e copos vazios. Cruzo pelo salão da barbearia do Edgar, àquela hora, vazio. Ele cochila sentado na cadeira à espera de um freguês retardatário. Logo adiante, na padaria de dona Nicete, as moscas ensandecidas disputam espaços em mesas ociosas. 

Apenas a lindíssima e encantadora dra. Simária, a dentista (a única da cidade), se farta bebendo um refrigerante e comendo um sanduiche de pão dormido com mortadela. Em contíguo , o salão da Lisandra, cabelereira, se vê fechado. O mercado do Aristides Abreu (onde se vende de tudo) as três moças dos caixas esperam bater as vinte horas. Enquanto isso, fofocam em gritos pictóricos, um amontoado de estridências obscenas vividas com seus namorados em finais de noite alta na plataforma da estação de trem. Neste curso, ora riem, fazem gestos, ora tiram fotos e exibem nos celulares as filmagens, disputando competitivamente quem havia aprontado mais na noite anterior. 

Na verdade, cada uma delas, em particular, granjeia chamar a atenção para si mesma, demonstrando, na maioria, fatos que não iam além de quimeras envoltas em invenções mentirosas. Em suma, apenas o gosto saboroso de chamar a atenção. Pois bem! Antes de chegar ao portão da minha residência, prometo a mim mesmo (os dedinhos cruzados), asseverando que daquele dia em diante, sempre que saísse do meu universo particular, viveria em cada esquina, em cada pedra que topasse, em cada rosto que me endereçasse um olhar mais delongado, enfim, em cada instante que me fosse permitido, com a intensidade que recebo do Pai Maior, agradecer por estar literalmente vivo. 

Do mesmo modo, desfrutaria, saborearia, apeteceria a sucessão das graças recebidas e viveria. Viveria, viveria, viveria. Deixaria de ser um estabanado átomo fugidio, um desgostoso fantasma insone, tipo um sujeito encolhido atrás de uma muralha, negando a visão da própria realidade. Tomo consciência que preciso, sem mais delongas, me desavergonhar da sucessão dos meus janeiros vividos. Desvencilhar-me do cara quadrado, imbecil e atoleimado que eu sou agora. Desgarrar-me de uma vez por todas da consciência pesada que me subjuga, que me agrilhoa, e que me oprime aflitivamente, com uma avidez tresloucada e enlouquecedora. 

Levanto a cabeça. Sempre faço isso, quando retorno. Espio demoradamente para o infinito. Sorrio. Em seguida, faço o sinal da cruz, e entro. Ai então, não paro mais. Desembesto, afoito, direto e sem me deter em direção ao meu cantinho. No portal que acessa a minha varanda, a mãe colocou um retrato meu. Uma foto esmaecida pelo tempo. Um mimo, a bem da verdade. Ao lado dele, um enorme vaso com rosas vermelhas que ela sempre mantém colhidas do jardim do seu olhar. Eu moro, faz dez anos aqui. Meu endereço? Anota, por favor. Avenida dos Ipês, quadra dezenove, jazigo perpétuo, sepultura de número mil novecentos e cinquenta e três.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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sexta-feira, 11 de abril de 2025

Eduardo Martínez (Vida dupla)

Aureliano, minucioso que era, ficava irritado com qualquer nota fora do compasso, ainda mais porque, quase sempre, tirava o brilho do oboé, justamente o instrumento que tocava na orquestra sinfônica. O sujeito era tomado por tamanho ódio, que parecia surdo a partir de então.

— Aureliano, algum problema?

— Margô, você não viu?

— Viu o quê?

— O trompete atrasou e foi atropelado pelo trombone.

Margô, a maestrina, talvez para não provocar pendenga entre os músicos, fingia desconhecimento da falha levantada pelo colega. Este, por sua vez, não raro, enrugava ainda mais a testa, como se fossem quebra-molas na vastidão do Saara, que tomava conta da sua racionalidade, que se tornava nenhuma. Paciência, realmente, não era seu forte. 

Aureliano, empertigado quando o assunto era música clássica, parecia outro assim que se embrenhava entre os talentos da bateria da escola de samba do Cruzeiro. Ali, o gajo era conhecido como Aurê da Cuíca, justamente o instrumento que havia abraçado desde que fora fisgado pelo som da ARUC, a mais tradicional do Distrito Federal. 

Aureliano e seu alter ego, apesar das disparidades, pareciam viver em harmonia. Até mesmo a vida amorosa do gajo andava às mil maravilhas, inclusive com promessas de casamento. É que o músico acabara de firmar namoro sério com Maria Helena, violinista das mais talentosas. Ao lado do rapazola, a moça era destaque na orquestra. 

O oboé e o violino pareciam fadados a tocarem em harmonia para o resto da vida. Entretanto, sempre há um entretanto para atazanar a vida dos bem-aventurados, e, certa noite, noite de sexta-feira, durante o ensaio da ARUC, eis que a cuíca do Aurê se esbarrou no pandeiro da Lucimara. Pra quê? Os desavisados poderiam imaginar que o aconteceu na madrugada fossem gritos de socorro. Ledo engano, não passavam de urros de luxúria, cujas faíscas poderiam ser vistas na escuridão por todo Cruzeiro.

Na manhã seguinte, durante o ensaio da orquestra, Maria Helena foi a primeira a notar a desafinação do oboé. Pois é, justamente do oboé! Era como se o instrumento estivesse alheio aos caminhos da partitura.

— Aureliano!

— Oi.

— O que é isso?

— Isso o quê?

— Eu é que pergunto! 

Margô, antes que a discórdia prosseguisse, tratou de dar uma pausa. Era nítida a falta de condição do Aureliano de prosseguir. Todos ficaram boquiabertos com tamanha descompostura do mais exigente dos músicos. É óbvio que alguns possuíam mágoas por outrora terem sido humilhados pelo instrumentista. O trompetista foi o primeiro a expor a ferida aberta.

— Margô, não seria a hora de arrumar outro oboísta?

Aureliano, mesmo mais pra lá do que pra cá, quis dar uma oboezada na cabeça do desafeto. Foi impedido pelo flautista e, se o imbróglio não virou rebu, foi graças à intervenção da maestrina, que deu por encerrado o ensaio. Rusgas, entretanto, foram inevitáveis. Perfeccionista que era, Maria Helena não perdoou Aureliano, que não teve alternativa a não ser enfiar o oboé entre as pernas e ir para casa chorar suas mágoas.

O homem acabou adormecendo no sofá da sala e, já tarde da noite, despertou. Levantou-se, passou pelo oboé como se ele não existisse e se dirigiu ao quarto. Abriu o armário e se deparou com a cuíca, que o recebeu sorridente. Não teve dúvida, saiu em busca da Lucimara, que, requebrando os dedos sobre o pandeiro, já aguardava o amante.
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EDUARDO MARTÍNEZ possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
Blog do Menino Dudu
https://blogdomeninodudu.blogspot.com/2025/04/vida-dupla.html
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Eduardo Affonso (O dilema das rodas)

Estou pensando em fazer um documentário em que ex-executivos da Volkswagen, da Fiat, da Ford, da Toyota e, por que não, da Gurgel, se penitenciam diante das câmeras por terem desenvolvido automóveis.

– Eles provocam desastres – lamenta X, desviando o olhar após uma pausa dramática.

– Nós sabíamos dos riscos e, ainda assim, colocamos aceleradores – diz, enxugando uma furtiva lágrima, o engenheiro Y.

Os herdeiros de Daimler e de Benz falarão da inveja causada pelas Mercedes inventadas por seus antepassados.

– Já havia ressentimento demais no planeta. Mas vovô foi insensível e… – não conseguirá terminar o depoimento.

Sim, a indústria automobilística é perversa. Mauzona, maldosa e malvada.

– Fui alto executivo da Ferrari. Por mim, teríamos produzido apenas ambulâncias. E carros do Corpo de Bombeiros. Mas havia pessoas gananciosas e o que poderia ser um lindo projeto acabou se perdendo.

No cenário frio (este documentário pede cenários frios), com pequenos trechos do meiquinhofe (este documentário pede maquiadores tirando o brilho da pele de um, reristáilistes ajustando as mechas de outra), um a um os ex-ciiôus lavarão roupa suja, a centrifugarão e farão enxague completo com amaciante e Lysoform.

– Claro que estava nos planos, desde o início, que ladrões usariam nossos carros nas fugas – confessará K (inicial fictícia), engenheiro de produção da Nissan.

– E que agrobois tunariam nossos produtos, incluindo uma potente aparelhagem de som para ouvir dupla sertaneja no volume máximo, com o porta-malas aberto, no domingo, no Parque Barigui – continuará W (inicial mais fictícia ainda), gerente de projetos da Jeep.

– Devíamos ter resistido e abortado o Ford Bigode enquanto era tempo, mas… fomos fracos.

O documentário levantará questões sobre segurança (“Os erbegues não foram instalados nos calhambeques para não atrapalhar a estética. Eles teriam salvo a vida de milhares de melindrosas inocentes”), sobre liberdade (“Sim, o cinto de três pontos foi pensado como forma de manter as pessoas mais tempo presas dentro dos veículos, ouvindo propaganda no rádio. A JB FM e a Super Rádio Tupi injetaram muita grana nesse projeto”) e sobre manipulação (“O viagra foi adiado por décadas para que pudéssemos continuar vendendo Simca Chambords, Mavericks e Camaros amarelos”).

Alguém lembrará que carros também servem para transportar hortifrútis para o Ceasa, levar as crianças à escola, visitar a avó em Taubaté, ver corrida de submarino na Niemeyer. Será um contraponto necessário – afinal, há de ser um documentário isento, neutro e imparcial.

Se fizer sucesso, já tenho engatilhado aqui um sobre a indústria do papel (“Sabíamos que iam imprimir livros de autoajuda, e continuamos produzindo celulose assim mesmo”) e sobre a indústria fonográfica (“Larguei tudo e decidi virar monge tibetano quando saiu aquele disco da Ana Carolina e do Seu Jorge. Isso foi há 15 anos, e até hoje pratico a autoflagelação, para tentar expiar minha culpa.”).

Alguém aí tem algum contato na Netflix pra me passar?
~

[Disclêimeres: Este texto contém provocação. Sim, eu sei que a questão não é tão simples assim. Claro, o assunto é muito mais complexo. Lógico, não dá pra tratar esse tipo de coisa tão levianamente. Evidente que é impossível comparar uma coisa com a outra. Concordo que você entendeu tudo e eu não entendi nada.
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EDUARDO AFFONSO. Arquiteto mineiro de Belo Horizonte, 1950. Colunista do jornal O Globo. Coordena a Oficina Literária Eduardo Affonso, voltada para cronistas. Participa do coletivo literário Flique Nenhum livro publicado.

Fontes:
Blog do Eduardo Affonso. 20 outu 2020
https://tianeysa.wordpress.com/2020/10/20/o-dilema-dos-motores/
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terça-feira, 8 de abril de 2025

Aparecido Raimundo de Souza (Segredos ocultos)

NA CAMA DO HOSPITAL, dona Pureza do Amor Perfeito, a mulher quase a se apagar levada pelos braços frios da morte, sussurra para seu marido Pedro Antônio, companheiro de mais de trinta anos de convivência, (que aliás, num gesto de profundo pesar e lástima segura fortemente a mão gelada e sem pulso de sua consorte), um pedido de última hora, e o faz como um clamor meio estranho e inusitado para aquele momento:

— Antônio... meu grande e único amor... preciso lhe fazer uma confissão... pelo amor de Deus, não me odeie por isso...

Pedro Antônio, o rosto frio, os olhos distantes, a voz embargada procura acalmá-la e, nesse tom, aconselha:

— Não, minha princesa amada. Não há nada para confessar. Está tudo bem, tudo em paz. Olhe a sua volta. Aqui estão nossos seis filhos, suas noras e genros, seus netos e netas. Como pode ver, toda a nossa família se fez reunida para seu último adeus... 

Dona Pureza do Amor Perfeito, todavia, insiste:

— Amor, amor da minha vida, eu sei que estão todos aqui. Eu os vejo. Capturo cada rosto, sinto cair sobre as minhas faces as lágrimas de nossos filhos... percebo a agonia das netas Glorinha, Silvinha e Clarissa, bem ainda dos meninos Flavinho e Adalgiso, como você disse, nossas netas e netos.  Da mesma forma, também me invade a alma o padecimento dos demais consanguíneos que viveram ao nosso lado e fizeram a alegria contagiante da nossa honrada casa.  

A moribunda faz uma trégua, para tomar fôlego, e usando as suas forças derradeiras, insiste no tal desabafo:

— Pedro Antônio, preciso dizer o que está entalado. Não partirei sem antes lhe fazer um relato que considero importante. Me ouça...

Por conta desse tal entrave, segue a enfraquecida batendo na tecla com perseverança. Dona Pureza do Amor Perfeito, realmente, se vê às garras do precipício. 

A voz quase imperceptível, volta a protestar deixando qualquer outra coisa de lado, no esquecimento. Pedro Antônio, por seu turno, persevera para que ela se mantenha calada, compenetrada, os pensamentos voltados para os aconchegos daquele momento sem volta: 

— Não se esforce – diz ele. – Feche os olhos e curta esses minutos fascinantes. Olhe que felicidade... toda a nossa família está aqui... os amigos, vizinhos, o que mais deseja, meu amor?

Dona Pureza do Amor Perfeito, parece agarrada aos poucos minutos que lhe sopram pelas narinas. Num esforço sobre-humano tenta, num fio de voz desesperado se fazer ouvir. O som sai moído e ofegante:

— Meu príncipe, não quero partir com a consciência pesada... preciso falar... confessar um deslize... meu amor, me perdoa... chegue o ouvido mais perto... eu... eu... fui infiel a você...

Pedro Antônio teve vontade de pular na garganta de sua cônjuge, mas se conteve. Toda a família reunida, vizinhos e amigos... se partisse para a ignorância, nenhum dos que ali se achavam, o perdoaria. Finge um espanto, longe de ser real. Escarnece, mascarando uma estuporação:

— É mesmo, minha fofa? Com quem?

— Interessa agora?

— Claro que não, minha garota. Só para saber... mera curiosidade.

— Ok! Eu falo. Foi com o...   foi com o Fausto, nosso genro, esposo de nossa filha Margarida...

Pedro Antônio se mostra sereno, tranquilo e dono da situação. Por dentro, o sangue ferve de puro ódio. Sua vontade maior..., cortar a jugular da sem vergonha com uma faca bem afiada:

— Fique tranquila, minha linda e adorada esposa dona Pureza do Amor Perfeito. Eu sabia de tudo. E não se desespere. Aliás, eu sempre desconfiei dele com você, desde o início – falou também aos cochichos. Esquece. Já passou. Vá, porém, com as amarguras dos meus desencantos e repouse a sua traição nos cafundós do capiroto...

— Meu príncipe, como é que é? De quem? Repete... do ca... do ca...  o quê?  — Me diga, amor, você sabia? Fala sério? Você?! ... 

Ela faz um esforço ainda maior para conseguir chegar ao fim do que pretendia deixar esclarecido e ter a convicção se em verdade, o marido estava ou não brincando... 

— Todo esse tempo e você?  Meu Deus!

— Sim minha querida mulherzinha safada. Eu tinha pleno conhecimento – repete o cônjuge tartamudeando. 

— Meu Deus, meu amor... me perdoa? Você me perdoa?

— Está perdoada. Também tenho que lhe confessar uma ação reservada que só eu guardo dentro do coração. Você, minha doce amada, mãe de meus filhos e filhas... a senhora não está morrendo de morte natural... 

— Na... na... não...  em... enten... não enten...

Num fio de voz, o traído revela, sem piedade:

— Eu... eu... en... ve... ne... nei... você.... vá... para os quintos... 

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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segunda-feira, 31 de março de 2025

Renato Frata (Decisão)

Escrevi no quadro negro da tristeza que, a partir daquele instante eu seria outro: sorriria com os olhos apenas, se os lábios, emperrados na amargura, não ajudassem.

Quando a testa franze e a boca se fecha, sorrir com olhos é uma saída.

Ao fazê-lo, estarei como a mulher - qualquer mulher - que é fraca e forte e que sorri enquanto sua "alma se estorce amargurada," (Florbela Espanca) e segue altiva sobre os saltos a se dizer bela, a se mostrar e a se sentir como tal. A força que lhe dá a performance brota onde nascem os sentimentos, e se gadanha no espaço que sua coragem constrói.

Deve ela ser copiada, absorvida e usada, já que para lhe descobrir os sentimentos basta que olhemos em seus olhos. Se estiverem brilhantes como sol a iluminar densamente os pensamentos estará feliz, se não, como não existe meia–felicidade, sorrirá com eles marejados em opacidade.

Pois escrevi dessa maneira com o giz da consciência fincando uma a uma as letras na lousa e vi, depois, que deixei ali na decisão, uma confissão desenhada pela dor de um sofrimento que sempre senti, nunca o havia assumido.

Não sabia que a coragem da confissão eleva o valor do testemunho e que as palavras grafadas, geralmente, seriam um alerta só meu, feito para meu eu de olhadelas de queijo embolorado que servirão para quando, nesse quadro voltar a pousar os olhos comprovando que a decisão de não sofrer foi um dia tomada.

E por que a tomei?

Pela tristeza, por causa dela que compõe rostos tristes, macera-os, carcome-os com as carquilhas que riscam semblantes em acinzentado.

Não, não mais lamentarei o passado que é irmão da tristeza. Esse não mais me morderá por dentro, não deixará machucados ou cicatrizes, nem me arrancará tremores ou suores. Não deixarei que escarafunche o ontem ou que se alimente da própria comida. A partir dessa decisão o deixarei no pó da longa estrada a quem chamo esquecimento, para que fique largado num canto qualquer do coração. Será uma rastejante vaga que não fere a areia; antes, alisa-a para que a água da realidade passeie solta nos pensamentos a determinar o fim da tortura. E uso aqui, nesse fim de decisão, um ponto final do recomeço a determinar o espanto do lamento, o esquecimento de noites não dormidas que esgarçam quereres, impedem afazeres e infundem pesares...

Mas... sempre existirá um mas... conjunção ou restrição que vem contra o que se afirma. Tudo não passou de um conto de fadas - que trouxe a vontade do esquecimento nas mãos formatadas em pétalas, e que em gestos ondulantes se quebrou no crepúsculo da realidade.

Não se consegue espantar o lamento que o passado produz, nem transformar saudade em ténue lembrança: é como cinza que guarda a quentura, a ardência da brasa que o vento sopra ao desnudar o hoje, o que me leva a dizer que contra a tristeza, sim, se pode e se deve sorrir com os olhos, lábios e tez, dando á feição a melhor aparência.

Porém, é de se saber que seu efeito contra o ontem terá efemeridade de flor de mandacaru que se abre pomposa e maravilhada à lua, mas que desfalece rapidamente perante a inclemência do primeiro sol do amanhã.
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RENATO BENVINDO FRATA, trovador e escritor, nasceu em Bauru/SP, em 1946, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Além de atuar com contador até 1998, laborou como professor da rede pública na cadeira de História, de 1968 a 1970, atuou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Paranavaí, (hoje Unespar), atualmente aposentado. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da paranaense Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas.  Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
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Olavo Bilac (O recruta)

Era um rapaz de vinte e dois anos, criado à solta, no campo. Desde pequenino, habituara-se à vida ao ar livre. Mal rompia a aurora, já ele andava, ao sol e à chuva, descalço, pulando e correndo, como cabrito montês. Aos oito anos, já montava em pelo os cavalos mais bravos. Com essa existência de exercícios fortes, fizera-se um colosso. Tinha a face corada, os cabelos negros e duros, uma musculatura possante, espáduas largas, pulso de abater um touro com um soco. 

Não aprendera a ler. Fora criado para, de enxada em punho, lutar com a terra, para lidar com os bois, para arcar com os trabalhos fortes da lavoura. Nada tinha de seu. 

O pai, ao morrer, deixara-lhe, como única herança, a saúde, a força e uma enxada. E era com isso que ele vivia, indo de roça em roça, à procura de emprego. E empregos nunca lhe faltavam, porque não havia, em toda aquela redondeza, quem com mais justiça ganhasse o pão de cada dia. Era sempre o primeiro a sair para o trabalho, e o último a recolher.

Nunca ninguém o vira triste. Com o grande chapéu desabado, atirado para a nuca, ou estivesse curvado sobre a terra cavando-a, ou pela estrada, ao sol ardente, viesse, de aguilhada em punho, guiando os bois morosos, — o Anselmo cantava sempre, com a sua larga voz alegre, que animava os companheiros, e tornava mais leve a canseira da tarefa. Os velhos, quando o viam passar, perguntavam sempre:

“Como vai essa mocidade, Anselmo?” E não havia quem não o amasse.

Também, não tinha dinheiro junto. O que ganhava gastava. Ninguém como ele sabia, nas noites de festa, tirar da viola as modinhas ternas. E era feliz, sem ambições, contentando-se com tão pouco.

Quando chegou ao sertão a notícia da guerra do Paraguai, o terror ganhou toda aquela gente simples, para quem o mundo se limitava àquelas léguas de terra, de cujos limites nunca havia saído. O recrutamento! — falava-se nisso, como na morte, com espanto e medo.

Dizia-se que ninguém seria recrutado. Mas a alma desconfiada do caipira bem adivinhava que essa declaração das autoridades era uma astúcia... Soube-se um dia que chegara ao lugar um destacamento de soldados, comandados por um cabo. Houve quem fugisse. Anselmo não fugiu. Mas quando se viu recrutado, um desespero terrível lhe encheu o coração.

Não era covarde! Muitas e muitas vezes ele, sozinho, lutara contra dois e três... nas brigas de arraial, nunca fugira das facas, que alumiavam na escuridão. Não sabia de perigo que o amedrontasse. E costumava dizer que só tinha medo de si mesmo, daquele gênio arrebatado, que não aturava afrontas. Não era covarde, não: o que o desesperava era o abandono forçado daquela existência, em que nascera e crescera, o apartamento daqueles lugares amados, daquele trabalho que era um hábito velho, daquela gente toda que era a sua família, a sua gente, o seu povo.

Para a sua alma inculta e primitiva de filho da roça, a Pátria não era o Brasil: era o pedaço de terra que ele regava com o suor de seu rosto. Fora daquilo não havia mais nada. Que tinha ele com o resto do mundo? Por que havia ele de vestir uma farda, e ir morrer abandonado e desconhecido, sem uma amizade, sem uma simpatia, numa terra estrangeira, por causa de gente que nunca vira, por causa de questões que não entendia e que não eram suas?

Nunca saíra do seu sertão. Aos vinte e dois anos, ainda não imaginava o que seria o mar. Se os paraguaios viessem até suas roças, então sim: ele e os outros saberiam repelir os invasores; seria o seu dever, a defesa do seu ganha-pão, do seu trabalho, dos seus hábitos. Mas, ir defender a Corte, ir defender o Sul, ir defender o Imperador!... que tinha ele com tudo isso?

Todas essas reflexões lhe passavam pela cabeça, à noite, recolhido, com uma dúzia de outros, à cadeia do lugar, como se fosse um criminoso... e já, antes de partir, tinha saudades daquele céu querido, daqueles matos tão conhecidos, daquela gente com quem se criara. E tinha medo, — tinha medo, ele tão valente! — de morrer crivado de balas paraguaias, longe dos seus... depois, ao seu caráter independente, à sua alma livre repugnava a escravidão da vida militar. Não ter vontade própria, ser governado com uma máquina, caminhar para a morte ao simples aceno de um chefe, sem ver a utilidade desse sacrifício, — tudo lhe parecia uma grande desgraça e uma terrível injustiça.

No dia seguinte os recrutas seguiram para o Rio de Janeiro. Havia pressa. A guerra ia acesa ao Sul, e o Brasil precisava das vidas de todos os seus filhos. Os companheiros de Anselmo iam, como ele, com a alma enlutada de tristeza. Também como ele, não compreendiam a violência do recrutamento, nem reconheciam à Pátria o direito de assim se apoderar da sua mocidade, para a atirar aos horrores do campo de batalha.

Triste viagem! Alguns, homens feitos, robustos e valentes, choravam como crianças. A gente do lugar assistiu à partida.

Havia mães que amaldiçoavam a guerra, gritando, torcendo os braços desesperadamente. Havia noivas que desmaiavam. Quantos daqueles voltariam?...

A chegada ao Rio de Janeiro foi uma tortura. Os recrutas estavam tontos, com aquele barulho, com aquele movimento. Como estava longe a tranquilidade da vida rústica! E que rigor, e que tormento no quartel! Na primeira noite, quando se viu, já fardado, estendido sobre a dura tábua da tarimba, Anselmo teve uma revolta.

Sentiu desejos de fugir dali, ainda que para isso fosse preciso matar alguém. Agitava-se, sacudia-se, mordia os pulsos, afogava na garganta os gritos de cólera e as imprecações. Por fim, essa crise terminou por um choro convulsivo. Dormiu, cansado: e ainda era noite escura, quando o acordou um toque de clarim. Era a hora do primeiro exercício.

Começou então a sua aprendizagem militar. O oficial inferior, que comandava as manobras, era brutal. A sua voz tinha asperezas que ofendiam como bofetadas. Quando um dos recrutas errava, dizia-lhe palavras duras, insultos pesados. Uma vez, como Anselmo não o ouvisse, porque estava pensando na sua roça tão calma e tão bonita a essa hora de sol ardente, o oficial deu-lhe no peito, com a folha da espada, uma pranchada forte. O rapaz sentiu o sangue subir à cabeça. Mas a infelicidade já o tornara submisso. Conteve-se, e obedeceu.

Já no terceiro dia, porém, sentiu-se mais resignado com a sua sorte. Familiarizara-se com os exercícios. Já se ia habitando ao rigor da disciplina. Já se interessava pelas manobras. Já prestava atenção às vozes de comando. Já ia compreendendo que, sem a brutalidade do comandante, nada se poderia conseguir de homens como ele, que nunca tinham visto aquilo, e cuja inteligência era refratária à compreensão daquelas palavras e daqueles movimentos calculados.

Depois, no quartel, começou a conviver com os soldados antigos. Tomou parte nas conversas, que se tratavam no “corpo da guarda”. E principiou a operar-se no seu espírito uma transformação radical. A convivência fazia-o sentir por aqueles homens um afeto de irmão. E tanto ouvia amaldiçoar os paraguaios, que principiou a amaldiçoá-los também, odiando-os de longe. Via agora bem o engano em que estava, quando acreditava que a Pátria era o seu sertão, e nada mais. Aqui, tão longe do sertão, vinha achar o mesmo céu, a mesma língua, quase os mesmos costumes. Em torno dele, só se falava na guerra. Lopes era odiado. Lopes aparecia aos seus olhos como um monstro, cuja única ocupação era matar e torturar os brasileiros. E um dia, Anselmo surpreendeu-se a dizer, com os olhos brilhantes de ódio: “Ah! Quando chegará o dia de irmos dar cabo daquele malvado!...”

O dia chegou. O seu batalhão ia partir. Dia de sol. Ninguém reconheceria naquele esbelto moço que ali ia, marchando com garbo entre os outros, o bisonho caipira, que tanta repugnância tinha outrora pelas coisas da guerra.

Anselmo marchava. E, ao compasso da marcha, ia cantando baixinho, entre dentes, uma daquelas mesmas alegres modinhas da roça, que a sua voz soltava na imensa extensão dos campos, quando, curvado sobre a terra, a cavava, ou quando, pela estrada ao sol ardente, vinha, com a aguilhada ao ombro, guiando os bois morosos.

As ruas estavam cheias de povo. Das janelas, senhoras acenavam com os lenços. Uma banda de música precedia o batalhão. Tocava uma marcha de guerra. Os instrumentos de metal giravam alto, entre as pancadas secas dos tambores. Que sol! Que entusiasmo! Anselmo tremia. Parecia-lhe que o inimigo estava ali perto, ao alcance da sua espingarda: parecia-lhe que ia encontrar, ao dobrar uma esquina, os exércitos paraguaios. E ambicionava cair imediatamente em pleno combate.

No cais, a multidão abria alas. E quando o batalhão estacou, quando se calou a música, o povo prorrompeu em vivas. À espera, perfilados, muitos oficiais, cujas fardas, cobertas de galões, brilhavam ao sol, examinavam a tropa disciplinada, bem disposta, garbosa no seu fardamento novo. De repente, a música tocou os primeiros compassos do hino nacional. Um vento brando, vindo do mar, agitou a bandeira brasileira, que estava no centro do pelotão. A bandeira desdobrou-se, palpitou no ar, espalmada, com um meneio triunfal. Parecia que o símbolo da Pátria abençoava os filhos que iam partir, para defendê-la.

E, então, ali, a ideia sagrada da Pátria se apresentou, nítida e bela, diante da alma de Anselmo. E ele, compreendendo enfim que a sua vida valia menos que a honra da sua nação, pediu a Deus, com os olhos cheios de lágrimas, que o fizesse um dia morrer gloriosamente, abraçado às dobras daquela formosa bandeira, toda verde e dourada, verde como os campos, dourada como as madrugadas da sua terra.
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Olavo Bilac, nasceu em 1865, no Rio de Janeiro/RJ. Cursou Medicina, abandonou o curso, tentou estudar Direito, também não concluiu, e passou a escrever para jornais cariocas. Em 1888, publicou seu primeiro livro - Poesias. No entanto, Bilac era firme em seus posicionamentos políticos e discordava do governo de Floriano Peixoto. Por fazer críticas a ele, foi preso em 1892 e também em 1894. O início do regime republicano, portanto, não foi muito agradável para o poeta. Em 1897, fundou, com outros intelectuais, a Academia Brasileira de Letras e ocupou a cadeira de número 15, cujo patrono é o escritor romântico Gonçalves Dias. No ano seguinte, passou a trabalhar como inspetor escolar. A partir daí, o escritor empreendeu uma campanha em prol do nacionalismo, e, inclusive, escreveu a letra do Hino à Bandeira, além de ter defendido o serviço militar obrigatório. Morreu em 1918, no Rio de Janeiro, deixando certo mistério sobre sua vida íntima. Nunca se casou. Um poeta parnasiano, crítico e nacionalista, mas, ao mesmo tempo, boêmio e libertário. Um homem rigoroso e prático, mas que tinha, possivelmente, uma alma romântica. Enfim, um indivíduo complexo, detentor de uma genialidade que o consagrou como Príncipe dos Poetas.
 
Fontes:
Olavo Bilac e Coelho Neto. Contos pátrios para crianças. Publicado originalmente em 1931. Disponível em Domínio Público. 
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