Vez ou outra dona Quitéria, parteira e benzedeira, parava no portão para conversar com minha mãe, e entrava para um café com bolinhos. A prosa seguia na troca de amenidade e receitas. Eu não ficava bisbilhotando, mas a chuva fina da tarde me carregou para dentro, de modo que mesmo elas falando baixo na cozinha, e estando eu na sala com meus brinquedos, fiapos de conversa vazavam chamando-me à atenção, e o assunto girava sobre ervas de benzimentos como arruda, guiné, jurema, comigo-ninguém-pode, espadas de São Jorge, eucalipto, pimenta, mamona, fumo de corda, casca-cebola, manjericão, sálvia, alecrim, manjerona, hortelã, calêndula, pitanga, camomila, alfavaca, anis estrelado, boldo, canela pau, louro, entre outras utilizadas raspadas, quentes, frias, em forma de chás ou banhos equilibradores, os de busca da energização do corpo, alinhamento de órgãos, defesa contra energias ruins e até contra quebranto e fuxicos de vizinha.
A conversa fluiu em meio a causos de espinhela caída, bucho encarangado, frieiras brabas, pescoço duro, bebedeiras e até de marido fujão que saía para comprar cigarro e se perdia pelo mundo. Ou se achava... encontrando outras e outras pessoas mais interessantes do que a havia deixado.
Minha mãe ouvia calada, estatelava os olhos diante da força que Dona Quitéria demonstrava possuir, na sua maneira de contar, nos gestos finos e nobres de parteira com a decisão de curandeira. Para ela, os médicos estudavam só para se enricarem, mas não curavam bulhufas. Não fossem as suas ervas espalhadas pela comunidade, elaboradas com amor e carinho e ministradas na dosagem correta, metade daquele povo já teria morrido... a depender dessas drogas que mal aplicavam injeção.
De repente minha mãe mexeu na cadeira arrastando-a para perto e cochichou. Vi pela fresta e esse cochichar me aguçou a curiosidade fazendo-me aproximar e aquietar, preso em casa quando poderia estar no barro a fazer estripulias. Mas ali, naquela hora, olhar pela fresta e aguçar ouvidos às conversas das duas foi o programa escolhido... claro, sem ser chamado a elas. Minha mãe falava, parava e olhava pelos cantos desconfiada. Até que a visitante disse; - Liga não, mulher! Tò cansada de ouvir isso... os homens se cansam mais cedo...mas não se arrelie... eu tenho solução para esse caso, e não vai lhe custar nada...
- Nada, nada?
Ela balançou a cabeça, enfiou a mão na sacola e retirou dali um pedaço de pau, dizendo: - Ele bebe suco?
- Não, só água. Bebe cerveja, pinga... no boteco. Aqui, só água.
- Pois a senhora vai ralar essa madeira mole até encher uma colher, depois vai ferver bem, mas bem mesmo, e vai coar e deixar esfriar no tempo. Tem que ser no tempo, viu? Depois de fria, pode guardar. Quando ele pedir água, dê essa a ele e deixe que beba tudo. Depois, espere. Espere c'oas coisas preparadas - e riu colocando os dedos sobre os lábios... para afogar a vergonha... E espere. Preparada, viu? Seu homem vai virar um touro... Desses valentes, que fungam a mais ouvir. E atacam mesmo...
- Virgem mãe! - respondeu ela assustada, ao tempo que, ligeiro, enfiava o pedaço de pau no bolso do avental, a bem guardá-lo, passando a se abanar com as próprias mãos.
Não a vi sorrir, mas sua face mudou. Seus olhos ganharam cor de esperança, seu semblante se rejuvenesceu perdendo as rugas e sua respiração se afogueou como se pimenta tivesse sido espremida... com a sensação de se dar bem a lhe cutucar o coração.
Lembro que meu pai, depois dessa chuva ficou caseiro, chegava mais cedo em casa e ia também dormir mais cedo e, com gestos meigos, passarinhando passos, a chamava: - Vem descansar... vem... você trabalhou muito hoje... - ao que ela de sorriso estampado, tomava com força o cabo da caneca, enchia-a da água mantida no guarda-comida e o seguia...
Seus chinelos de pano deslizavam rápidos e arteiros pelo assoalho como se desconfiassem que alguma coisa incomum iria acontecer...
- Dona Quitéria sabia mesmo das coisas...
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Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs: Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.
Fontes:
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas. Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
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