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quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Luís da Câmara Cascudo (Almofadinha de Ouro)

Era uma vez uma menina muito bonita e graciosa, filha única, e que teve a infelicidade de ficar órfã de mãe. Seu pai ficou ainda moço e casou novamente, com uma viúva que tinha uma filha, pondo-se mocinha e muito feia e orgulhosa. 

A madrasta, na presença do marido, tratava a enteada bem, mas como esse vivia viajando, vingava-se, obrigando-a em trabalhos pesados, como lavar roupa, limpar a estrebaria, o galinheiro, a casa inteira, etc. A mocinha começou a viver amargurada e sofrendo toda a espécie de privações e insultos. De tanto padecer, perdeu a paciência e achou que o remédio era fugir daquele purgatório.

Antes de tomar essa decisão, a moça rezava todas as noites à Nossa Senhora, que era sua madrinha, pedindo que lhe ensinasse os caminhos do bom proceder. 

Nossa Senhora virou-se numa velhinha e falou com ela no caminho do rio, explicando tudo. Abençoou-a e lhe deu uma almofadinha de ouro que era encantada. Quando precisasse de alguma coisa, pedisse à almofadinha de ouro, que fora dotada por Deus com poderes.

Deixando a casa, a moça andou muitos dias, com fome e sede, e acabou encontrando uma ocupação num palácio vistoso, residência de um príncipe solteiro e muito agradável.

A moça, para não causar suspeitas e despertar maldades, sujou o rosto e andava tão imunda que só lhe deram o serviço de tratar das galinhas e dos porcos, dormindo no fundo do quintal, num quartinho escuro e isolado do palácio.

Dia vai e dia vem, anunciaram três dias de festas e toda a gente ficou influída para esse divertimento preparando as roupas novas, encomendando os arranjos e fazendo cálculos. O príncipe era um dos mais alegres e as moças da cidade desejavam que ele se engraçasse de uma delas e casasse, por ocasião das festas.

Chegando o primeiro dia, o príncipe foi para o baile e os empregados do palácio fugiram para ver as luzes e a entrada das pessoas que iam dançar. A princesa velha, mãe do príncipe, foi também.

Ficando sozinha, a moça tomou banho, penteou-se e pediu à almofadinha de ouro que lhe desse um vestido cor do campo com suas flores e uma carruagem com criados.

Apareceu, incontinenti, o pedido, e a moça vestiu-se e compareceu à festa, causando um assombro pela sua formosura e beleza do traje. O príncipe largou todas as outras e só dançou com ela. 

Como lembrança do encontro, fez-lhe presente de um anel. Perto da meia-noite a moça desapareceu, fugindo para casa onde trocou a roupa; o vestido e o carro sumiram.

No segundo dia aconteceu a mesma coisa. A moça levou um vestido cor do mar com todos os seus peixinhos e o príncipe ficou encantado por ela, dançando, servindo-a e conversando. Deu-lhe uns brincos. Antes da meia-noite a moça não foi encontrada em parte alguma. Já estava em casa, suja e feia como habitualmente parecia aos olhos de todos.

No terceiro dia, o mesmo sucedido. Desta vez o vestido era da cor do céu com todos os seus astros, e a moça encandeava (deslumbrava) a vista pelo brilho das joias. O príncipe só faltava gritar de contente. Presenteou-lhe com um colar e ficou triste quando ela desapareceu, antes da meia-noite.

Passados os três dias, só se falava na cidade naquele assunto da moça desconhecida, com os três vestidos mais bonitos do mundo. O príncipe procurou-a como um cego procura a luz e não a encontrou em parte alguma. 

Estava tão apaixonado que adoeceu de cama, trancou-se no quarto e só deixava entrar sua mãe. Todo mundo lastimava a doença do príncipe e os médicos não tinham mais remédio para aconselhar nem receita que servisse. O príncipe nem queria comer e a princesa velha fazia as maiores promessas para que o filho se alimentasse, fosse como fosse.

Um dia a moça disse à princesa velha que queria fazer um bolo para o príncipe doente. A princesa achou graça no atrevimento, mas tanto a moça pediu e rogou que obteve o consentimento. Preparou-se, foi para a cozinha e fez um bolo dourado, colocando dentro da massa o anel que o príncipe lhe dera na primeira noite do baile.

O príncipe nem queria ver a comida, mas sua mãe tanto pediu que ele cortou um pedaço do bolo e, ao levar à boca, reparou num objeto que aparecia na parte restante no prato. Puxou com o bico da faca e reconheceu o anel. 

Comeu todo o bolo, melhorando, e declarou que queria outro bolo feito pela mesma pessoa. 

A moça fez o outro bolo e neste mandou o brinco, que o príncipe achou e ficou certo de que a moça estava por perto. 

Pediu outro bolo e neste veio o colar. Então, sem ter mais dúvida, disse à princesa velha que mandasse ao seu quarto quem fizera os três bolos. 

A princesa obrigou a moça a mudar de roupa, perfumar-se para tirar o mau cheiro do galinheiro, e disse que se apresentasse ao seu filho.

A moça subiu a escada, com a almofadinha de ouro na mão, e, assim que bateu na porta, pediu que lhe aparecesse no corpo o vestido do terceiro dia da festa, dos pés à cabeça. Quando a porta se abriu e ela entrou, o príncipe deu um grito de alegria, levantou-se da cama bonzinho de saúde, chamando pela mãe e mostrando a moça que estava mais bonita do que nas noites passadas.

Casaram-se imediatamente, contando a moça sua história, e foram felizes até a morte.
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Luís da Câmara Cascudo nasceu em Natal/RN, em 1898 falecendo na mesma cidade em 1986. Foi um historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado, jornalista e escritor brasileiro. Passou toda a sua vida em Natal e dedicou-se ao estudo do folclore e da cultura brasileira. Foi professor da Faculdade de Direito de Natal, hoje Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), cujo Instituto de Antropologia leva seu nome. Deixou obra volumosa e de grande relevância, em particular sobre história, folclore e cultura popular. Recebeu o Prêmio Machado de Assis pela Academia Brasileira de Letras, em 1956, pelo conjunto de sua obra.

Fontes> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.
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sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Figueiredo Pimentel* (A velha feiticeira)

Tendo adoecido gravemente o lavrador Bernardo, foi preciso que alguém fosse à cidade procurar um remédio receitado pelo médico. Na única botica da vila não havia aquela droga, difícil e cara, que só se encontrava nas mais importantes drogarias.

Bernardo morava afastado da vila, e longe, muito longe da capital. Para se ir até lá, era mister atravessar extensa floresta, onde costumavam reunir-se vários salteadores, e povoada de animais ferozes.

Vendo que só o tal medicamento poderia salvar o pobre velho, seu filho Heitor, que tinha apenas quinze anos, resolveu buscá-lo.

Era cedo, escuro ainda, quando saiu de casa, em companhia do seu cachorro Leão – um animal fiel e dedicado.

Caminhou o dia inteiro, sem parar. Ia anoitecendo, mas ainda o dia não morrera de todo, quando avistou no meio da floresta uma pequena choupana. Resolvido a passar a noite aí, bateu à porta. Abriu-se uma janela, aparecendo uma velhinha, feia e magra, devendo ter mais de oitenta anos.

Pediu-lhe hospitalidade, e ela mandou-o entrar, recomendando primeiro:

— Amarre o seu cachorro, moço, que parece um animal muito bravo, e eu tenho medo de cães.

— Nada receie, minha velha, respondeu Heitor, porque Leão me obedece cegamente, e só ataca a quem me quiser fazer mal.

— Pode ser que seja verdade, replicou a velha, mas é que eu já fui mordida uma vez, e não o quero ser segunda. Amarre-o, senão ficará de fora.

— Mas é que eu também não tenho com que amarrá-lo.

— Isso não seja a dúvida. Basta que lhe passe ao pescoço um fio de cabelo meu...

A velhinha arrancou um fio branco, e deu-o ao moço, que se riu daquela corda de nova espécie.

Quando viu o cão amarrado, a dona da choupana mais que depressa atirou-se sobre Heitor. Ninguém diria ao ver aquela criatura já prestes a morrer, que tinha tanta força como qualquer ferreiro.

O mancebo, meio admirado, tentou lutar com ela, e sentindo-se fraquejar, chamou o auxílio do cachorro, bradando:

— Avança! Avança, meu Leão!...

— Engrossa bem, meu cabelão!... gritou a velha.

O fio de cabelo que prendia o animal engrossou àquelas palavras, tornando-se pesada e forte corrente de ferro.

Tendo subjugado Heitor, a feiticeira amarrou-o solidamente, encerrando-o num quarto a fim de engordá-lo e comê-lo mais tarde.
***

Passados três dias, vendo que Heitor não regressava, Lauro, seu irmão, segundo filho do velho Bernardo, planejou ir em busca do remédio, e ao mesmo tempo procurar saber o que sucedera ao outro.

Saiu de casa, levando por companheiro único um valente cachorro que possuía, e ao qual denominara Capitão.

Seguindo o mesmo trajeto de Heitor, foi parar na mesma choupana, onde a velhinha o recebeu como recebera o primeiro, recomendando que amarrasse o cão com o fio de cabelo.

Lauro, vendo-se ameaçado por ela, chamou em seu auxílio o fiel companheiro, que por mais de uma vez experimentara:

— Avança! avança! Capitão...

Do mesmo modo que procedera quando prendeu Heitor, a megera berrou:

— Engrossa, engrossa, cabelão!...

O pobre animal, ligado por uma corrente grossa, não pode desta vez socorrer seu amo.

A velha feiticeira prendeu Lauro num quartinho escuro, até que chegasse a sua vez de ser comido.
***

Só restava no sítio do bom e digno Bernardo sua mulher e seu terceiro filho Raul.

Não obstante ter somente onze anos, Raul era um menino animado e ousado. Quis ir buscar o medicamento receitado, que devia salvar o velho, e procurar os irmãos, e foi.

Pela madrugada saiu de casa, despediu-se de seus pais, e partiu resolutamente. Também ele chegou à cabana da velhinha, e pediu pousada naquela noite.

Ao ouvir a recomendação para prender o cachorro que levava, disse consigo mesmo:

— Para que quer esta mulher ver o meu fiel Plutão amarrado? Um fio de cabelo não é corda, e se ela na verdade tem tanto medo dos cães, como diz, dar-me-ia outra corda. Aqui há algum mistério.

Fingiu, todavia, que amarrava o animal, mas apenas pousou o cabelo no pescoço, sem dar nó.

A feiticeira, julgando o cão preso, segurou Raul pelo braço, e disse:

— Tu ainda és muito pequeno para eu estar com cerimônias. Vamos para o quarto escuro, até que chegue a vez de te comer ensopado.

— Não, minha velhinha, disse-lhe Raul, dando-lhe um sopapo.

A bruxa correu para pegá-lo, e o menino gritou:

— Avança! avança! Bom Plutão!

— Engrossa bem, meu cabelão!... bradou a velha.

 O cabelo transformou-se em uma corrente, mas como não se achava amarrado, caiu no chão.

O fiel cachorro de um salto atirou-se ao pescoço da velhinha, e estraçalhou-a.

Raul percorreu a cabana, e encontrou seus irmãos, bem como muitos outros viajantes, que haviam caído sob as garras da miserável feiticeira.

Soltou toda a gente, e ateou fogo à choupana.

Os presos, agradecidos, deram-lhe dinheiro, e os três irmãos tiveram tempo de ir à cidade e comprar a droga que salvou o velho Bernardo.
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*Alberto Figueiredo Pimentel nasceu e morreu em Macaé/RJ, 1869 — 1914 foi além de poeta, contista, cronista, autor de literatura infantil e tradutor. Manteve por muitos anos, desde 1907, uma seção chamada Binóculo na Gazeta de Notícias. Publicou novelas, poesia, histórias infantis e contos. Um de seus grandes êxitos foi o romance O Aborto, estudo naturalista, publicado em 1893, e por mais de um século completamente esgotado. Como poeta, participou da primeira geração simbolista chegando a se corresponder com os franceses. Era amigo de Aluísio Azevedo, com quem trocou cartas, enquanto o autor de O Cortiço estava fora do país como diplomata. Poeta, romancista, escritor de literatura infantil, ganhou destaque e se perpetuou nos compêndios da literatura brasileira. A coluna Binóculo, assinada pelo autor na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, de 1907 até 1914, obteve grande sucesso entre leitores e leitoras, ditando moda, o que faz de Figueiredo Pimentel o primeiro cronista social da capital. Era ele quem tratava das novidades da moda, do bom gosto, do chique em voga em Paris e que deveria ser aqui aclimatado. Obras: Fototipias, poesia, 1893; Histórias da avozinha, conto - somente em 1952; Histórias da Carochinha; Livro mau, poesia, 1895; O aborto, 1893; O terror dos maridos, romance e novela, 1897; Suicida, romance e novela, 1895; Um canalha, romance e novela, 1895.

Fontes:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.
Biografia =https://pt.wikipedia.org/wiki/Figueiredo_Pimentel
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domingo, 24 de novembro de 2024

Sílvio Romero (O Sargento Verde)


Havia um homem rico que tinha uma filha muito formosa. Apareceu uma vez um moço que também era muito bonito, que quis casar com ela. Combinaram o casamento. Mas Nossa Senhora, que era madrinha da noiva, lhe apareceu e disse:

 — Minha filha, tu vais te casar com o cão. Quando for no dia do casamento, depois da festa acabada, teu marido há de querer te levar para casa dele; tu, então, deves dizer a teu pai que só queres ir no cavalo mais magro e feio de todos, e quando chegares a um lugar da estrada onde faz cruz, teu marido há de tomar pela esquerda, tu deves tomar pela direita e mostrar-lhe o teu rosário para ele estourar e sumir-se para o inferno.

Passou-se o tempo. Quando foi no dia do casamento houve muita festa e divertimento, mas a moça estava sempre triste.

Quando chegou a hora da partida veio um cavalo muito bonito e muito bem arreado para a moça se montar. Ela disse ao pai que não queria aquele, e só o mais feio e magro. O pai se espantou muito e não quis concordar, mas afinal foi obrigado a fazer os gostos da filha. Partiram os noivos e quando estavam longe da casa havia no caminho uma encruzilhada, aí o cão quis botar a moça adiante pelo lado esquerdo. Mas a moça disse:

 — Vá o senhor adiante que sabe do caminho de sua casa e não eu que nunca lá fui.

O cão se zangou, mas a moça tomou pela estrada da direita, mostrando-lhe o rosário. O cão estourou, e foi cair nas profundezas, e a moça seguiu a toda velocidade. 

Mais adiante ela cortou os cabelos e vestiu-se de homem, toda de verde. Chegando a um reino, foi servir na guarda do rei com o posto de sargento. Todos a chamavam de Sargento Verde. 

O rei tomou-lhe muita amizade, tanto que quase todas as tardes o convidava para ir passear com ele no jardim. A rainha ficou, em poucos dias, apaixonada pelo Sargento Verde. 

Uma tarde, depois de jantar, tendo-o o rei convidado para passear no jardim, ao passar ele pela rainha, ela lhe disse:

 — Olha, Sargento Verde, que lindos olhos, e que lindo corpo para me divertir contigo!

O Sargento respondeu:

 — Não sou falso a meu rei.

A rainha despeitada levantou-lhe uma injúria ao rei:

 — Saberá Vossa Real Majestade que o Sargento Verde disse que se atrevia a subir e a descer as escadas de palácio montado no seu cavalo a toda a brida, dançando e atirando para o ar três limas, e todas três a caírem num copo.

O rei ficou muito admirado e mandou chamar o Sargento Verde, e contou-lhe o caso. 

O Sargento respondeu:
 
 — Saberá rei meu senhor que eu não disse tal; mas como a rainha minha senhora disse, eu vou fazer.

Saiu muito triste, e foi ter com o seu cavalo e lhe contou tudo. O cavalo disse que ele não se importasse, que no dia marcado fosse sem medo. 

No dia marcado, o Sargento Verde apresentou-se e andou pelas escadas a cavalo, correndo para cima e para baixo, dançando e atirando para o ar três limas e aparando todas três num copo. Houve muitos vivas, e a rainha ficou desesperada. 

Passaram-se vários dias, indo o rei passear de novo com o Sargento Verde no jardim, ao passar ele pela rainha, ela lhe disse:

 — Olha que lindos olhos e que lindo corpo para divertir contigo!

— Não sou falso a meu rei — foi o que ele disse.

A rainha, despeitada ainda mais, levantou-lhe outro acinte, que foi:

 — Saberá Vossa Real Majestade que Sargento Verde disse que era capaz de plantar na hora do almoço uma bananeira no chão do palácio, e, quando fosse na hora do jantar, estar ela deitando cachos com bananas maduras.

O rei mandou chamá-lo e perguntou-lhe se ele se atrevia a tanto, e ele deu igual resposta à primeira e saiu vexado e foi ter com o seu cavalo, que o animou muito. 

No dia seguinte, na hora do almoço do rei, o Sargento Verde levou um broto de bananeira, que plantou e na hora do jantar estava caindo de carregado de bananas madurinhas. 

Houve muitos vivas e muita saúde, e a rainha ficou ainda mais desesperada. 

Passados mais alguns dias, houve novo passeio do rei e do sargento no jardim, e novo oferecimento da rainha, e igual resposta do moço. A rainha armou-lhe novo acinte, que foi:

 — Saberá Vossa Real Majestade que o Sargento Verde disse que se animava a andar montado no seu cavalo no largo do palácio, por cima de duas fileiras de ovos sem quebrar um só.

Segue-se outra cena igual às precedentes. 

No dia seguinte o Sargento Verde caminhou diante de muita gente, por cima das fileiras de ovos sem quebrar nenhum. Houve muita festa. A rainha ainda mais apaixonada ficou. 

Passados alguns dias, ela armou-lhe nova falsidade, que foi:

 — Saberá Vossa Real Majestade que o Sargento Verde disse que se atrevia a ir buscar no fundo do mar a sua irmã, a princesa encantada.

Chamado pelo rei, o Sargento Verde ficou triste, mas não negou, e foi falar com o seu cavalo que lhe disse:

 — Não tema nada, muna-se minha senhora de um garrafão de azeite doce, de um punhado de sal e de uma carta de alfinetes, monte em mim, chegue na praia, e com a sua espada corte as ondas em cruz, que as águas se hão de abrir; entre, bote a moça na garupa, e largue para trás a toda a pressa e bote sentido nas três palavras que a moça disser no caminho. Tenha cuidado com o bicho feroz que guarda a princesa, porque ele há de persegui-la atrás, largue-lhe o sal e a carta de alfinetes.

Chegado o dia, o Sargento Verde preparou-se e se pôs a caminho montado no seu cavalo, fez tudo como lhe disse o cavalo, servindo-se da espada para abrir, e do azeite para clarear o mar. Tirou a moça e largou-se para trás a toda a brida. Ao sair do mar a moça disse "Já!" — e o Sargento tomou nota. Estando um pouco adiante olhou para trás e avistou o bicho que vinha danado correndo, largou o sal e logo gerou-se no mundo um nevoeiro tamanho que o bicho não pôde romper. Continuou; adiante a moça encantada disse: "Bela!"


E ele tomou nota. Olhando para trás, lá vinha o bicho outra vez; largou a carta de alfinetes e gerou-se uma mata serrada de espinhos e a fera não pôde passar. Já perto do palácio a moça disse:

 — Tudo! — ele de novo tomou nota, e chegaram ao fim da viagem, havendo muita alegria e muitas festas, e a rainha ainda mais perdida ficou pelo Sargento Verde.

No entanto a princesa encantada não falava, estava muda. 

Em pouco tempo a rainha levantou um quinto acinte ao Sargento Verde, e foi dizer ao rei que ele se atrevia, segundo dissera, a dar fala à muda. O Sargento Verde foi, como sempre, ter com o seu cavalo, que lhe disse:

 — Não tenha medo, na hora do almoço dê com uma corda na moça, até ela dizer qual foi a primeira palavra que disse ao sair do mar, e o que ela quer dizer. No jantar faça o mesmo, e indague pela segunda e na ceia o mesmo e indague pela terceira, e a princesa ficará falando.

Assim fez ele. No almoço do dia seguinte meteu a corda na princesa com as palavras:

 — Fale, moça! Qual a palavra que disse ao sair do mar?

A moça calada, e ele a dar-lhe, até que ela disse "Já!"

— O que quer dizer?

A muito custo ela disse:

 — Já quer dizer “já estou livre de tantos trabalhos.”

No jantar houve o mesmo, e a princesa disse:

 — Bela! quer dizer “são duas donzelas, ela e o Sargento Verde que se chama Lucinda.”

Na ceia o mesmo, e ela disse a última palavra, que quer dizer:

 — Tudo! Se Lucinda fosse homem, há muito el-rei, meu irmão, seria logrado.

Houve muito espanto de tudo aquilo. 

O Sargento Verde voltou aos trajes de moça, a princesa ainda ficou no palácio e falando, e o cavalo do Sargento desencantou-se num lindo moço. 

Este se casou com a princesa desencantada, o rei se casou com Lucinda, porque a rainha morreu amarrada em dois burros bravos, por ordem de seu marido.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado em 1883.
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sábado, 7 de setembro de 2024

Luís da Câmara Cascudo (A Princesa do Sono Sem Fim)

Havia um reinado em que a rainha velha tinha a sina de correr de lobisomem, matando gente para beber o sangue. O príncipe seu filho era um moço sem tacha, bom e valente, e vivia triste com o destino da mãe. Sua distração era ir conversar com um velho, muito velhinho, que morava fora da cidade, perto de uma floresta sombria, na qual ninguém ia caçar nem passear.

O velhinho armava uma rede no alpendre para o príncipe descansar e este passava horas e horas ouvindo as histórias do tempo antigo, esquecendo-se da rainha velha e da sua doença de beber sangue de gente.

Vez por outra, quando o vento passava mais forte e levantava os galhos do arvoredo, o príncipe enxergava, lá ao longe, uma pequena mancha vermelha, parecendo um telhado de casa.

Um dia ele perguntou ao velhinho que telhado ao longe era aquele. O velho, então, contou:

– Aquilo é um palácio encantado, príncipe meu senhor. Meu avô contou a meu pai e este contou a mim que, há cem anos, está ali dormindo uma princesa, com todos os seus criados, pajens e mordomos, por via de umas fadas. No reinado Fulano, o rei e a rainha, nesse tempo, não tinham filhos e só faltavam morrer de vontade. Apresentou-se a rainha grávida e descansou uma menina bonita como o sol. Todo o dia era uma festa no palácio. Para o batizado o rei convidou todas as fadas que existiam por perto do reinado. Só não convidou a fada mais velha porque ninguém sabia da morada dela e julgavam que tivesse morrido.

As fadas vieram todas e já estava na mesa do banquete quando a fada velha apareceu resmungando e dando de corpo como uma condenada. A fada mais moça botou reparo na zanga da fada velha e mais do que depressa escapuliu-se da mesa e se escondeu sem que ninguém notasse sua falta. Depois do banquete as fadas foram fadar, dando as sinas e os dons. Cada uma dizia a coisa mais bonita.

– Eu te fado que sejas linda como a luz do sol.

Outra dizia por aqui assim:

– Eu te fado que sejas boa como o amor de mãe. Eu te fado que sejas rica como um tesouro. Eu te fado com a ciência de Salomão. E assim foram dizendo, e o rei, todo satisfeito, ao lado da rainha que tinha a princesinha nos braços. No fim, a fada velha se levantou, com a fala grossa, e disse:

– Nem vale a pena tanta sina boa para essa menina. Ela será tudo isto mas durante pouco tempo. Quando se puser moça, irá visitar a quinta do seu pai e aí furará a palma da mão com um fuso de fiar algodão e morrerá logo, sem remédio nem jeito.

As fadas, que já tinham fadado e não podiam desmanchar o que a fada velha tinha feito, choravam, quando a fada mais moça saiu de trás de uma cortina e disse:

– Não posso desmanchar o que foi fadado porque não tenho poderes mas, como ainda não fadei, fado esta menina para que, quando o fuso lhe ferir a palma da mão, não morra, mas fique dormindo cem anos, acordada que seja por um príncipe, case e seja feliz.

Acabou-se a festa e o rei proibiu, sob pena de morte, que alguém fiasse com o fuso no seu reinado. Apesar de todo cuidado, quando a princesinha inteirou os quinze anos, foram todos visitar outro palácio que o rei possuía dentro de umas matas mais bonitas do mundo. A menina andava, para cima e para baixo, corrigindo tudo, e, lá num quarto esconso da casa, encontrou uma velha ama que estava fiando. Pediu logo para ver o que era e desejou imitar. Assim que pegou no fuso, este saltou e varou sua mão.

Nem marejou sangue mas a princesinha caiu para trás, como morta.

Correram todos e deitaram a menina numa cama, num quarto preparado de um tudo, espelhando de bonito. A fada moça veio voando e bateu a varinha de condão na cumeeira do palácio. Todo mundo que estava dentro, tirando o rei e a rainha, pegou no sono profundo. Os músicos ficaram com os instrumentos na boca e a mesma cozinheira agarrou a dormir com a mão segurando uma galinha que estava assando no fogo.

O rei e a rainha, como aquilo era sina permitida por Deus, beijaram a filha, abençoaram e foram embora, com a fada, para o reinado. Por lá morreram e o reinado deles acabou-se. Só ficou o palácio dentro do arvoredo, com a princesa dormindo o sono sem fim. Era o que meu avô contava a meu pai e este me contou quando eu era menino.

O príncipe ficou alvoroçado com a história que o velho contou e não dormiu pensando na princesa encantada. Pela manhã pegou um facão bem afiado e tocou-se para a mata, perto da casinha do velho. Chegou e meteu o facão, abrindo uma picada, porque era tudo fechado, fechado. Ia abrindo e entrando, e, assim trabalhando, foi andando, até que deu numa roda de árvores enormes e no meio estava o palácio coberto de cipós, sem nenhum rumor, parecendo morto. O príncipe entrou pela porta principal e foi vendo soldados, músicos, damas e senhores, até cozinheiras e meninos, até os bichos, tudo parado, dormindo a sono solto.

Depois de subir as escadas e passar as salas cheias de gente roncando, viu deitada numa cama, forrada de seda, a moça mais bonita que a terra havia de comer, profundamente adormecida. O príncipe chegou para perto e pegou na mão da princesa e esta logo abriu os olhos, dizendo:

– Oh príncipe! Como demoraste em vir!...

O palácio estremeceu e todo mundo acordou. O príncipe ouviu as cornetas tocando, bichos berrando, as pisadas dos soldados, gritos, a música, enfim o barulho de gente viva.

Veio um mordomo muito bem-vestido anunciar que o jantar estava na mesa e o príncipe comeu a galinha que estava sendo assada há cem anos.

Ficou aí como num céu aberto. Veio o padre e casou os dois sem perder tempo. Os dias voavam e a princesa era feliz. O príncipe, sabendo a mãe que tinha, ia ao palácio dar ordens e voltava, dizendo que estava caçando. Não queria que ninguém o acompanhasse. 

No fim de um ano a princesa teve um filho lindo que se chamou Belo-Dia; e no outro ano nasceu uma menina, batizada por Bela-Aurora. 

Apareceram umas guerras e o príncipe não podia deixar de ir com as tropas. Como não queria deixar a mulher e os filhos naquele ermo, resolveu levar todos para casa. Foi na frente e contou o que se passara a sua mãe. A rainha velha só fazia pigarrear, com a cara fechada como o rei Herodes, imaginando coisas ruins.

Antes de ir embora, o príncipe dividiu o palácio em duas partes. A rainha velha ficaria num canto e a mulher com os filhos noutro, todos com criados e conforto. Chamou o príncipe ao mordomo que era muito seu amigo, de toda confiança, e pediu que vigiasse a família e tivesse cuidado com a rainha velha.

Assim que o príncipe montou a cavalo e viajou, a rainha velha começou a ter vontade de beber sangue e comer carne humana. Ficou mesmo bruta e, não podendo passar o desejo, chamou o mordomo e mandou que lhe servisse Belo-Dia, com bom molho, no almoço do dia seguinte.

O mordomo só faltou morrer. Pensou, pensou, procurou a princesa, contou tudo, levou Belo-Dia para sua casinha, longe do palácio e escondeu-o. 

Na manhã  do outro dia matou uma lebre, guisou-a bem e avisou que o almoço estava na mesa. A rainha velha comeu a fartar lambendo os beiços e gabando tudo.

Dias depois, veio o desejo e ela mandou que o mordomo matasse Bela-Aurora. O mordomo levou a menina para casa e assou uma paca. A rainha achou o prato gostoso por demais.

Dias passados, exigiu que a princesa fosse refogada em molho de tomate e cebola, para o jantar, porque tinha a carne dura. O mordomo levou a princesa para sua casa, juntou-a aos filhos, bem escondidos, e matou uma veadinha, refogando-a e preparou o jantar, com molho de tomates e cebolas. A rainha velha comeu, saboreando.

Os dias iam passando e a velha tornou a ter a cisma da carne humana de cristão e saiu de noite, como uma desesperada, farejando quem mandar matar para saciar sua sina. Ia passando por uma rua longe do palácio, tarde da noite, quando ouviu a voz da princesa sua nora e a dos netos, conversando dentro de uma casa. Subiu na calçada, encostou o ouvido e soube que era ali a casa do mordomo e que a princesa estava fazendo Belo-Dia dormir, porque este perdera o sono e acordara Bela-Aurora, todos com saudades do pai.

A rainha velha, feia como uma coruja, nem coração tinha para essas coisas, saiu babando de raiva e pela manhã mandou prender a nora, os netos e o mordomo. Uma fogueira enorme foi feita diante do palácio, e quando o braseiro estava escandeando de quente, a rainha velha veio para a varanda assistir à morte da mulher e dos filhos do seu filho e do pobre mordomo.

Já vinham todos amarrados, no sol pegando fogo, quando ouviram a fortaleza salvar e o tropel de cavalaria. Era o príncipe que vinha voltando com os seus soldados, morto de saudades da mulher e dos filhos. Chegando na praça e vendo aquele horror, o príncipe voou do cavalo embaixo, puxou a espada e livrou a esposa e os filhinhos e o mordomo das cordas, e, bufando de raiva, gritou perguntando quem se atrevera a pôr a mão no que ele queria demais em cima do Mundo.

A rainha velha saltou do sobrado para o fogo das fogueiras, com medo do castigo, e aí morreu, queimada, estorricada, virada cinza e pó preto. 

O príncipe foi para o palácio com a princesa, Belo-Dia e Bela-Aurora, abraçando-os e chorando de alegria. Nomeou o mordomo para vice-rei num reinado que ganhara na guerra. E morreram todos de velhos, bem felizes.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Sílvio Romero (O irmão caçula)


(Folclore do Pernambuco)

Havia um homem que tinha três filhos: João o mais velho, o outro Manoel e o caçula José. 

Todos eles se revoltaram contra o pai. Fugiram João e Manoel e ficou José. 

O pai o botou à procura dos irmãos. José ganhou o mundo e foi ter à casa de uma velha, que lhe disse: “Meu netinho, você o que anda fazendo por estas alturas?” 

— “Minha avó”, respondeu ele, “venho buscar meus irmãos que fugiram de casa de meu pai e ele quer que eu os descubra.” 

— “Pois dorme, meu netinho, que eu os farei te acompanhar.” 

No outro dia a velha, depois de lhe dar de comer, disse que ele fosse ao Reino das Três Pombas, onde encontraria os dois irmãos, porque havia ali uma grande festa para se tirar por sorte quem devia desencantar as três pombas, que estão dentro do mar. “Leva”, disse a velha, “esta vara e esta esponja com muito cuidado para que ninguém veja, porque teus irmãos te hão de caluniar ao rei, dizendo que tu te gabaste de ir ao fundo do mar quebrar a pedra e desencantar as três princesas. O rei te há de chamar, e tu deves sustentar que sim. Vai então à praia do mar e atira nele a esponja, a esponja há de boiar e a seguir, tu deves acompanhá-la; vai com a varinha e toca na pedra, que se partirá pelo meio, há de te aparecer uma serpente, toca com a varinha nela e ela há de adormecer; entra pela pedra adentro e tira de lá uma caixa, toca com a vara na caixa que há de se abrir, tira de dentro um ovo, este ovo tem três gemas, quando o quebrares dá a clara à serpente.” 

José foi e fez tudo quanto a velha lhe ensinou. Chegando ao reino viu lá a grande festa: por estar mal pronto os irmãos fingiram que o não conheciam, e trataram de intrigá-lo, dizendo ao rei que ele se atrevia a desencantar as princesas. O rei o mandou chamar e lhe perguntou. 

“Saberá, rei, meu senhor, que eu não disse tal, mas se o rei, meu senhor, assim o ordena, eu estou pronto.” 

Todos ficaram admirados e duvidavam. No outro dia apresentou-se ele para seguir, e o rei mandou pôr navios à sua disposição. Ele disse que não os precisava, porque iria a nado. Todos acharam impossível ir nadando até à pedra. Mas o José largou no mar a esponja e seguiu com ela até a pedra. Bateu nela com a varinha e ela se abriu, apareceu a serpente, bateu também nela e ela adormeceu. Bateu na caixa e ela se abriu, tirou o ovo e partiu, botou a clara na boca da serpente e as três gemas no chapéu e largou-se para trás. Chegando na praia bateu com a varinha nas três gemas, que se transformaram nas três moças mais bonitas do mundo. 

Chegando a palácio todos se admiraram da sua coragem. Ainda lhe levantaram os irmãos nova cal[unia, dizendo que o José tinha dito que era capaz de ir buscar no mar a própria serpente. Ele foi, fez o mesmo com a esponja e a varinha e trouxe a serpente. Como ainda quisessem mangar com ele, tocou com a vara em todos a começar pelo próprio rei, e os fez adormecer.

Mandou então agarrar os irmãos e levá-los a seu pai. 

O rei, quando voltou a si, mandou casar o José com a mais bonita das princesas. Ele tocou com a vara em todos os presentes e os fez adormecer. Mandou buscar o pai e os irmãos, casou estes com as outras duas princesas, e ficaram todos vivendo juntos.

Fonte: Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1885. Disponível em Domínio Público.

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Figueiredo Pimentel (A casa mal-assombrada)

Isolada de outras habitações havia uma casa onde ninguém morava, porque se dizia que era mal-assombrada. À meia-noite ouviam-se ruídos de correntes, gritos, gemidos e suspiros, e uma luzinha brilhava, ora numa janela, ora em outra. O proprietário não achava locatário, e mesmo não queria saber dela, que ia se arruinando pouco a pouco.

Um dia procuraram-no duas mulheres – mãe e filha – muito pobres, que acabavam de ser expulsas da casinha em que moravam. Pediam-lhe licença para ocupar a casa mal-assombrada.

O homem admirou-se daquele pedido, e depois de avisá-las dos perigos que corriam, consentiu sem dificuldade.

As duas mulheres no mesmo dia mudaram-se.

Eram onze horas da noite quando foram se deitar, nada tendo visto nem ouvido de extraordinário. A mãe, como já era velha, e se sentia cansada das arrumações, dormiu logo. A filha, porém, ficou acordada, rolando na cama, sem conseguir adormecer.

Uma hora depois, ouviu o sino da matriz bater meia-noite. No mesmo instante a moça escutou um ruído estranho, enquanto uma voz gemia:

— Eu caio!... Eu caio!...

Ela olhou para cima, de onde parecia vir a voz. Nada viu, mas disse:

— Pois caia, com Deus e a Virgem Maria!

Do teto do quarto caíram duas pernas.

A mesma voz assim falou mais três vezes, e a rapariga dando sempre a mesma resposta, viu cair sucessivamente o tronco, os braços e a cabeça de um homem.

Os quatro pedaços reuniram-se, e apareceu uma criatura humana, tão pálida como um cadáver, que lhe falou:

— Se não tens medo, vem comigo.

Adelaide acompanhou-o atravessando toda a casa, até chegarem ao quintal.

Então debaixo de um tamarindeiro, o morto mandou-a cavar a terra, encontrando uma lata com dinheiro, que transportaram para dentro.

Chegando ao quarto, disse-lhe o defunto:

— Eu sou uma alma penada, que ando sofrendo por causa deste dinheiro. Quando era vivo, roubei-o de uma pobre viúva, desgraçando-a, bem como aos órfãos, seus filhos. Deste dinheiro, a metade é para você e sua mãe, e a outra metade é para distribuir para os pobres, e mandar dizer cem missas por minha alma.

Acabando de falar, a alma penada desapareceu.

Adelaide fez tudo o que ele havia mandado, e ficou rica para o resto de sua vida.

Fonte: Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896. Disponível em Domínio Público.

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Luís da Câmara Cascudo (O bem se paga com o bem)

A onça caiu numa armadilha preparada pelos caçadores e, por mais que tentasse escapar, ficou prisioneira. Resignara-se a morrer, quando viu passar um homem. Chamou-o e lhe pediu que a libertasse.

— Deus me livre! — disse o transeunte. – Se você ficar solta, devorar-me-á.

A onça jurou que seria eternamente agradecida, então o homem desatou as cordas que seguravam a tampa do alçapão e ajudou a onça a deixar a cova. Logo que esta se encontrou livre, agarrou seu salvador por um braço, dizendo:

— Agora você é o meu jantar.

Debalde o homem pediu e rogou. A onça, finalmente decidiu:

— Vamos combinar uma coisa. Ouvirei a sentença de três animais. Se a maioria for favorável ao meu desejo, comê-lo-ei.

O homem aceitou e saíram os dois. Encontraram um cavalo, velho, doente, abandonado. A onça narrou o caso. O cavalo disse:

— Quando eu era moço e forte trabalhei e ajudei o homem a enriquecer. Qual foi o meu pagamento? Largaram-me aqui para morrer, sem um auxílio. O bem só se paga com o mal.

Adiante depararam com um boi. Consultado, opinou pela razão da onça. Contou sua vida de serviços ao homem e, quando julgava que ia ser recompensado, soube que fora vendido para ser morto e retalhado pelo açougueiro. O bem só se paga com o mal.

O homem, triste, acompanhava a onça que lambia o beiço, quando viram um macaco. Chamaram o macaco e pediram o seu parecer. O macaco começou a rir. A onça ia-se zangando:

— Por que tanta risada, camarada macaco?

— Não é fazendo pouco, — explicou o macaco — é que eu não acredito que o homem caísse na armadilha que ele mesmo preparou.

— Ela não caiu. Quem caiu foi eu. — contava a onça.

— Foi você? Então como é que esse homem fraquinho pôde libertar um bicho tão grande e forte como a camarada onça?

A onça, despeitada pelo macaco julgá-la mentirosa, foi até o alçapão e saltou para o fundo do fosso, gritando lá de baixo:

— Está vendo? Foi assim!

Mais que depressa o macaco empurrou o engradado de varas pesadas que fazia de tampa e a onça tornou a ficar prisioneira.

— Camarada onça! - sentenciou o macaco — O bem só paga com o bem. E como você fez o mal, receba o mal.

E se foi embora com o homem, deixando a onça para morrer de fome na armadilha.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público. in Jangada Brasil, Abril 2011 - Ano XIII - nº 146 . acesso em 20 de dezembro de 2012. 

sábado, 29 de junho de 2024

Luís da Câmara Cascudo (Os Compadres Corcundas)

Era uma vez dois corcundas, compadres, um rico e outro pobre. O povo do lugar vivia mangando do corcunda pobre e não reparava no rico. O pobre andava triste e de mais a mais o tempo estava cruel e ele era caçador.

Numa feita, esperando uns veados, já tardinha, adormeceu no jirau e acordou noite alta. Ficou sem querer voltar para casa. Ia se acomodando para pegar no sono de novo quando ouviu uma cantiga ao longe, como se muita gente cantasse ao mesmo tempo.

“Deve ser alguma desmancha de farinha aqui por perto. Vou ajudar!”

Desceu da árvore e botou-se no caminho, andando, andando, no rumo da cantiga que não descontinuava. Andou, andou, até que chegando perto de um serrote, onde havia uma laje limpa, muito grande e branca, viu uma roda de gente esquisita, vestida de diamantes que espelhavam ao luar. Velhos, rapazes e meninos, todos cantavam e dançavam de mãos dadas, o mesmo verso, sem mudar.

Segunda, terça-feira,
Vai, vem!
Segunda, terça-feira,
vai, vem!

O caçador ficou tremendo de medo. As pernas nem deixavam ele andar. Escondeu-se numa moita de mofundos* e assistiu sem querer àquela cantoria que era sempre a mesma, horas e horas.

Com o tempo, foi-se animando, ficando mais calmo e, sendo metido a improvisador e batedor de viola, cantou, na toada que o povo esquisito estava rodando.

Segunda, terça-feira,
Vai, vem!
E quarta e quinta-feira,
Meu bem!

Boca para que disseste! Calou-se tudo imediatamente e aquele povo todo espalhou-se como rebaçã (bando de pombos) procurando, procurando. Acharam o corcunda e o levaram para o meio da laje como formiga carrega barata morta. Largaram ele e um velhão, brilhando como um sacrário, perguntou, com uma voz delicada:

– Foi você quem cantou o verso novo da cantiga?

O caçador cobrou coragem e respondeu:

– Fui eu, sim senhor!

O velhão disse:

– Quer vender o verso?

– Quero sim, senhor. Não vendo, mas dou o verso de presente porque gostei do baile animado.

O velho achou graça e todo aquele povo esquisito riu também.

– Pois bem – disse o velhão –, uma mão lava a outra. Em troca do verso eu te tiro essa corcunda e esse povo te dá um bisaco (alforje) novo!

Passou a mão nas costas do caçador e este tornou-se esbelto como um rapaz, sem corcunda nem nada. Trouxeram um bisaco novo e recomendaram que só abrisse quando o sol nascesse.

O caçador meteu-se na estrada, andando, andando e assim que o sol nasceu abriu o bisaco e o encontrou cheio de pedras preciosas e moedas de ouro. Só faltou morrer de contente.

No outro dia comprou uma casa, com todos os preparos, mobília, vestiu roupa bonita e foi para a missa, porque era domingo. Lá na igreja encontrou o compadre rico, também corcunda. Este quase cai de costas, assombrado com a mudança. Perguntou muito e mais espantado ficou reparando no traje do compadre, e ao saber que ele tinha casa e cavalo gordo e se considerava rico.

O pobre contou tudo; e, como a medida do ter nunca se enche, o rico resolveu arranjar ainda mais dinheiro e livrar-se da corcunda nas costas. 

Esperou uns dias pensando no que ia fazer e largou-se para o mato no dia azado. Tanto fez que ouviu a cantiga e botou-se na direção da toada. Achou o povo esquisito dançando de roda e cantando:

Segunda, terça-feira,
Vai, vem!
Quarta e quinta-feira,
Meu bem!

O rico não se conteve. Abriu o par de queixos e logo berrando:

Sexta, sábado e domingo!
Também!

Calou-se tudo rapidamente. O povo esquisito voou para cima do atrevido e o levaram para a laje onde estava o velhão. Esse gritou, furioso:

– Quem lhe mandou meter-se onde não é chamado, seu corcunda besta? Você não sabe que gente encantada não quer saber de sexta-feira, dia em que morreu o Filho do Alto; sábado, dia em que morreu o Filho do Pecado, e domingo, dia em que ressuscitou quem nunca morre? Não sabia? Pois fique sabendo! E para que não se esqueça da lição, leve a corcunda que deixaram aqui e suma-se da minha vista senão acabo com seu couro!

E quando falava os outros iam dando empurrão, tapona e beliscão no rico. O velho passou a mão no peito do corcunda e deixou ali a outra, aquela de que o compadre pobre se livrara.

Depois deram uma carreira no homem, deixando-o longe, e todo arranhado, machucado, roxo de bofetadas e pontapés.

E assim viveu o resto de sua vida, rico, mas com duas corcundas, uma adiante e outra atrás, para não ser ambicioso.
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* Mofundo = lugar de repouso do gado ou esconderijo de animais

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Figueiredo Pimentel (A alma do outro mundo)

Zeneida tinha um namorado com quem queria a todo o modo casar-se. Sendo ele, porém, um homem do povo, conquanto honrado e trabalhador, a família dela, orgulhosa, com fumaças de fidalguia, e rica, não o consentiu, e tratou de lhe arranjar outro casamento.

Apresentando-se como pretendente um velho, que enriquecera no comércio, o pai obrigou-a a aceitá-lo por noivo. A moça obedeceu, a seu pesar, não gostando daquele marido que lhe ofereceriam, e não se tendo esquecido do seu apaixonado.

Realizadas as bodas, os noivos partiram para uma longa viagem que devia durar três meses.
***

Uma vez estavam jornadeando, e tiveram que passar um rio, largo e fundo, sobre uma estreita ponte de madeira. Zeneida, alegando muito medo, fez o marido passar adiante, e, quando se viram no meio, atirou-o à água.

Na ocasião em que estava prestes a se afogar, o velho ricaço, antes de desaparecer submergindo, exclamou:

– Deixe estar malvada, que minha alma te há de perseguir!...

Desde esse dia, uma voz invisível acompanhou-a sem cessar, noite e dia repetindo todas as palavras que ela pronunciava.

A rapariga foi obrigada a se fingir muda, receosa que viessem a descobrir o seu crime.
***

Continuando a viagem sozinha, Zeneida foi ter a um grande país, a cuja capital chegou.

Aí, passeando pelos arredores, foi vista por um príncipe, que dela se apaixonou, dirigindo-lhe declarações de amor, e terminando por pedi-la em casamento.

Por meio de gestos mímicos, ela fez compreender que aceitava, mas que não podia falar por ser muda.

O príncipe ficou sentidíssimo, porque a lei vedava-o casar com qualquer moça que não fosse absolutamente perfeita. Todavia mandou levá-la para o paço, confiando-a aos cuidados dos mais notáveis médicos do reino, que a examinaram, desenganando-se de curá-la.

Quando se achava a sós, Zeneida tentava falar. Mas, à menor palavra, que pronunciasse, a alma do seu marido a repetia, e mesmo conversavam.

Um dia soube que o príncipe ia casar-se, vendo que ela não ficava boa. A noiva devia chegar nessa manhã, e todos os criados do palácio tinham ido ver o seu desembarque.

Zeneida, ficando sozinha, dirigiu-se à cozinha real, também abandonada, onde se preparava o banquete. Destampou uma panela, e provando o guisado, exclamou:

– Oh! como está gostoso!

– Oh! como está gostoso, repetiu a alma.

– Queres um bocadinho?

– Quero.

– Então, chega-te aqui, para a ponta de meu dedo!

A alma chegou-se, e, assim que a sentiu bem na extremidade do indicador, Zeneida estalou o dedo no fogão.

Ouviu-se um grande estrondo, e ela disse com um suspiro de alívio:

– Uff! Felizmente estou livre!

Falou, cantou, recitou, e não ouviu mais a voz da alma que a importunava.

Foi se vestir deslumbrantemente.

O cortejo da nova princesa já havia chegado ao palácio.

Zeneida dirigiu-se para o salão, onde viu a noiva sentada num trono, junto ao príncipe.

Ao avistá-la, a noiva, querendo fazer espírito, perguntou:

– Esta é muda mudona?

A outra retorquiu:

– E esta é a noiva noivona, que já está tão sabichona?

Admirado de ouvi-la falar, o príncipe desmanchou o casamento com a primeira, vindo a se casar com Zeneida.

Fonte: Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896. Disponível em Domínio Público.