domingo, 31 de dezembro de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 34

 

Mensagem na Garrafa – 68 –

Paulo Coelho
Rio de Janeiro/RJ (1947)

SOLIDÃO

Sem a solidão, o Amor não permanecerá muito tempo ao seu lado.

Porque também o Amor precisa de repouso, de modo que possa viajar pelos céus e manifestar-se de outras formas.

Sem a solidão, nenhuma planta ou animal sobrevive, nenhuma terra é produtiva por muito tempo, nenhuma criança pode aprender sobre a vida, nenhum artista consegue criar, nenhum trabalho pode crescer e se transformar.

A solidão não é a ausência do Amor, mas o seu complemento.

A solidão não é a ausência de companhia, mas o momento em que nossa alma tem a liberdade de conversar conosco e nos ajudar a decidir sobre nossas vidas.

Portanto, abençoados sejam aqueles que não temem a solidão. Que não se assustam com a própria companhia, que não ficam desesperados em busca de algo com que se ocupar, se divertir, para julgar.

Porque quem nunca está só já não conhece mais a si mesmo.

E quem não conhece a si mesmo passa a temer o vazio.

Mas o vazio não existe. Um mundo gigantesco se esconde em nossa alma, esperando para ser descoberto. Está ali, com sua força intacta, mas é tão novo e tão poderoso que temos medo de
aceitar sua existência.

Porque o fato de descobrir quem somos nos obrigará a aceitar que podemos ir muito além do que estamos acostumados. E isso nos assusta. Melhor não arriscar tanto, já que podemos sempre dizer: “Não fiz o que precisava porque não me deixaram.”

É mais confortável. É mais seguro. E, ao mesmo tempo, é renunciar à própria vida.

Ai daqueles que preferem passar a vida dizendo “Eu não tive oportunidade”!

Porque a cada dia afundarão ainda mais no poço dos próprios limites, e chegará o momento em que não terão mais forças para escapar dele e encontrar de novo a luz que brilha pela abertura acima de suas cabeças.

E abençoados os que dizem: “Eu não tenho coragem.”

Porque esses entendem que a culpa não é dos outros. E cedo ou tarde encontrarão a fé necessária para enfrentar a solidão e seus mistérios.

E para aqueles que não se deixam assustar pela solidão que revela os mistérios, tudo terá um sabor diferente.

Na solidão, ele descobrirá o amor que poderia chegar despercebido. Na solidão, ele entenderá e
respeitará o amor que partiu.

Na solidão, ele saberá decidir se vale a pena pedir para que retorne, ou se deve permitir que ambos sigam um novo caminho.

Na solidão, ele aprenderá que dizer “não” nem sempre é falta de generosidade, e que dizer “sim” nem sempre é uma virtude.

E aqueles que estão sós neste momento, jamais se deixem assustar pelas palavras do demônio, que diz: “Você está perdendo tempo.”

Ou pelas palavras, ainda mais poderosas, do chefe dos demônios: “Você não importa para ninguém.”

A Energia Divina nos escuta quando falamos com os outros, mas também nos escuta quando estamos quietos, em silêncio, aceitando a solidão como uma bênção.

E nesse momento, a Sua luz ilumina tudo o que está ao nosso redor e nos faz ver quanto somos necessários, quanto a nossa presença na Terra faz uma imensa diferença para o Seu trabalho.

E quando conseguimos essa harmonia, recebemos mais do que pedimos.

E para aqueles que se sentem oprimidos pela solidão, é preciso lembrar: nos momentos mais importantes da vida sempre estaremos sozinhos.

Como a criança ao sair do ventre da mulher: não importa quantas pessoas estejam à sua volta, cabe a ela a decisão final de viver.

Como o artista diante de sua obra: para que seu trabalho seja realmente bom, ele precisa estar quieto e escutar apenas a língua dos anjos.

Como nos encontraremos um dia diante da morte, a Indesejada das Gentes: estaremos sozinhos no mais importante e temido momento de nossa existência.

Assim como o Amor é a condição divina, a solidão é a condição humana. E ambos convivem sem conflitos para aqueles que entendem o milagre da vida.

(do livro de Paulo Coelho. Manuscrito encontrado em Accra)

Silmar Bohrer (Croniquinha) 101

Fala-se, louva-se, encanta-se com os anoiteceres, aqueles mágicos pores do sol.  

Ótimo!  E os amanheceres? 

Meia dúzia de raios do sol e a pequena menina deixa seu ninho.  Ela mesmo, a condoreira corruíra dá os primeiros trinados como que abrindo as portas com os sons do novo dia.

Logo surge uma verdadeira orquestra nas árvores, nos telhados, nas campinas, nas matas.  

E que sons!  

Canarinhos, bem-te-vis,  tico-ticos, os sabiás, as curucacas, as saracuras à beira d'água.  

O amanhecer é pura magia.
Festival da natureza.
Ela é soberana.

Fonte> Texto enviado pelo autor 

Hinos de Cidades Brasileiras (Santos/SP)


por Ernesto Zwarg e Antonio Bruno Zwarg

Santos poema, jardins pela praia
Cidade e porto de mar 
Tens a magia de barcos estranhos 
Na barra esperando adentrar 
Morros, varandas alegres 
Suspensas no arvoredo 
Santos das ruas antigas 
À beira do cais 
Que escondem segredos

Tuas paineiras floridas 
Salgueiros que choram 
Nos velhos canais 
Santos, cuidado menina 
As tuas belezas 
Não percas jamais

Os flamboiants florescentes 
Palmeiras imperiais 
Ilha Urubuqueçaba 
O verde reduto 
Nas ondas do mar

Oh! Santos 
És linda demais !

Carolina Ramos (E os meus cavalos?) parte 5, final

Segue-se, contudo, uma derradeira aventura, improvisada, que ainda envolve um cavalo,  muito embora esse cavalo trotasse em minha vida, anonimamente e por apenas algumas horas.

Para conta-la, no entanto, o salto terá que ser bastante grande. E se digo salto é por que, de repente, lá pelos meus setenta e poucos anos de idade, a vida deu-me de surpresa um derradeiro passeio a cavalo.

Foi em São Bento do Sapucaí, cidade ao pé da serra de Campos do Jordão, que a inusitada aventura aconteceu. 

Há dias, lá estávamos hospedados, meu marido, eu e a neta Mariana, que teria no máximo uns cinco ou seis anos de idade.

Às tantas, Mariana demostrou que gostaria de passear a cavalo. Algumas gotinhas do sangue da avó, estimuladas pelo contato mais íntimo com a natureza, devem ter-lhe borbulhado nas veias.

O avô Cláudio pôs-se ao largo, logo descartando a ideia. Pegando o pião na unha, aceitei a proposta com entusiasmo, esquecida até mesmo das naturais restrições impostas pela idade.

Neta e avó logo cedo, deliciavam-se a passear, sem pressa pela estrada pouco movimentada, ladeada por altas árvores que, vez ou outra, cediam espaço generoso para que a paisagem se impusesse, tépida e dourada de sol.

Em conversa animada, seguiam ambas a passo lento, em suas montarias, quando, de repente, sucedeu exatamente aquilo que em linguagem popular pode ser chamado de "repeteco" daquilo que acontecera lá em Campos do Jordão, na Lagoinha - já relatado com minúcias.

Desta vez, um gato, amoitado à beira do caminho, saltou atravessando subitamente a estrada, com risco de ser atropelado pelas patas do cavalo por mim montado que, por sua vez, "passarinhou" violentamente, erguendo-se nas patas traseiras em toda sua altura!

Para mim, motivo de júbilo! Um mata saudades delicioso que me permitiu constatar, feliz, que meus tradicionais dotes de boa amazona, embora adormecidos, ainda estavam perfeitamente em dia... E isto na casa dos setenta! - Exultei, como se de repente tivesse retornado à primavera daqueles deliciosos quinze anos... tão longínquos!

Entretanto, ao tentar casar minha emoção com a da netinha, percebi decepcionada, que, Mariana, olhos muito assustados, ameaçava chorar, implorando, urgentemente, para que a ajudasse a descer do seu cavalo.

Tentei acalmá-la.

- O que é isso, querida?! A vovó está acostumada com cavalos desde pequenininha! O meu assustou-se... mas eu não estou assustada, não! Até que gostei do que aconteceu! Desde menina, quando um cavalo se erguia nas patas, pondo-se em pé, é que eu mais gostava! E olhe... Nunca um deles me derrubou! Nunca, mesmo, querida!

- Mas eu quero descer! - choramingava Mariana inconformada, sem dar ouvidos ao discurso.

E então, desisti de acalmá-la... Fiz o que a neta pedia, uma vez que o seu derradeiro argumento me convenceu plenamente.

De olhos marejados, Mariana, enfática, fez-me uma só pergunta... E, o tom angustiado dessa pergunta atou-me de pés e mãos;

- Mas, vó... e se o MEU cavalo resolver fazer a mesma coisa que o SEU cavalo fez?!...

Acudiu-me a imagem daquele rapaz de nariz empinado estatelado no chão, embora, graças a Deus, ileso. E foi o suficiente! - Sem mais argumentos, curvei-me ao veemente pedido da neta.

Foi também naquele exato momento, que minha inesperada e derradeira aventura hípica encerrou-se em definitivo. Convenhamos, até que já era hora!

Neta e avó voltaram para casa a pé... a puxar pelas rédeas dois pangarés dóceis, sem dúvida felizes por não terem alguém a lhes pesar no lombo.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Daniel Maurício (Olhares) 2


Alma Borboleta
Nos teus olhos embaçados
Uma gota de lua
Insiste em te manter acordada
Mesmo já tão cansada
Das dores da madrugada
Agarra-se a um ponto de luz.
Ardem as veias intoxicadas...
Mas a alma borboleta
Sempre criança espoleta
Não deixa de visitar o jardim.
Beija uma flor
Colhe palavras
Como se fossem ramalhetes
Pra colorir seus versos e bilhetes
Espalhando tanto amor.
Na carona do vento plana suave
Tão leve como uma nave
Economiza energia
Pois sabe que vem outro dia
E por entre nuvens tem que atravessar.
Voa borboleta destemida
Pois meu olhar
É unguento pra tuas feridas
Uma flor desenho pra te alegrar.
Uma lágrima solitária
= = = = = = = = = 

APEDREJAMENTO

As pedras
criam asas,
nas mãos
da intolerância.
= = = = = = = = = 

A tarde
vai fechando
os olhos.
Os pardais
nos beirais
chilreiam.
Minha mãe
chuleia
uma meia.
Meus olhos
fixos
nos quadros,
no relógio
que eternamente
marca seis horas.
= = = = = = = = = 

A vida passa
menos pro velhinho
da praça
que parece ter encruado
com o tempo.
= = = = = = = = = 

Cabelo de sol
levanta as estrelas
dissipando a noite,
aquece a minha alma
calejada de solidão.
Cabelo de sol
acalma meu peito aflito
que revive o pulsar da paixão.
Cabelo de sol
queimas minha pele
num beijo desprotegido
que deseja muito mais
que um amor de verão.
= = = = = = = = = 

Com o tempo,
alguns lugares
algumas pessoas
algumas casas
ainda me olham
saudosos.
Mas a minha
Jaguariaíva
continua
ardendo
no meu peito.
= = = = = = = = = 

DESPEDIDA

Um olhar perdido
no infinito,
Casas e árvores
correm.
Meus olhos
presos no
espelho
do automóvel
e eu imóvel, 
vejo uma mão
que acena.
Minha mãe.
Meu Deus!
Eu penso.
Adeus?
Me pergunto.
O vento bate
em meu rosto,
estou indo
embora.
= = = = = = = = = 

ECLIPSE

A tímida lua
Vestiu-se
De vermelho
Sob os olhares
Curiosos
Nuamente linda
Toma banho
De sol.
= = = = = = = = = 

FOLHAS SECAS

As folhas secas
são almas
de borboletas
aprendendo
a voar.
= = = = = = = = = 

 Na memória dos tempos
Arde a fogueira improvisada
Onde causos e risadas
Se misturavam às refeições.
O cheiro gostoso de café no ar
Acorda o acampamento
Que sem nenhum lamento
Se levanta pra tocar o gado com amor.
Mas no caminho mais uma carcaça
Faz da onça o alvo da caça
Que aos poucos por aqui, quase acabou.
Mas ao se pronunciar "Jaguariaíva"
Ruge o espírito da onça altiva
Margeando o "rio da onça ruim".
= = = = = = = = = 

O ESPELHO

O espelho que há
em tuas palavras
não me deixa
mentir.
= = = = = = = = = 

o presente
voa apressado
para o futuro,
transformando- se
em passado.
Passarinho
colorido
torna-se
encantado.
= = = = = = = = = 
Daniel Maurício. Olhares. Curitiba/PR: Ed. do Autor, 2021.
Enviado pelo poeta.

Geraldo Pereira (Preciosos Alfarrábios)

Este lixo que sai assim, de meu gabinete de trabalho, em casa, na preparação para a mudança, de um velho sobrado para um apartamento novo e bem cuidado, guarda muito das minhas saudades, nostálgicas lembranças de meus ganhos e de minhas perdas! Livros que se desatualizaram na corrida do desenvolvimento da ciência e da técnica, sublinhados ainda, grifados, na importância e na valia das citações e que me serviram de roteiros definitivos, na condução profissional e no magistério. Mas, sobretudo, os meus papéis, que não cabem mais no espaço da acomodação moderna, manifestações de meu espírito, paridas nas horas de meus enlevos e de minhas dores. Aqui e ali expressões dos ardores d'alma, recordações da infância, vivida e revivida, então, da adolescência inquieta e da juventude, do mesmo jeito, irrequieta. Recordações, até, dos amores e dos desamores, de encontros e de desencontros!

Retratos, também, fotografias que o tempo marcou, descolorindo personagens e camuflando paisagens, fisionomias mudadas, agora, recantos transmudados, igualmente, crianças que cresceram e adultos que envelheceram, gente, enfim, sofrendo a metamorfose do tudo. Velhos que se foram, tangidos da vida! Cartões de todo tipo, os de Natal e os de cumprimentos, de aniversários passados e de idades vencidas ou aqueles dos sentimentos e do pesar. 

Convites, os de formatura, a do colégio e a da faculdade ou aqueles do matrimônio, que me trouxe da família a graça! E os afetos das filhas, em letras dos inícios, fazendo do pai o herói que não é, os de agosto e os de outubro, o Dia dos Pais e o natalício. Telegramas e cartas, escusas e saudações, parabéns e congratulações. Nada ou quase nada que possa reanimar traços do sofrimento, reduzido às cinzas, pois!

Mexendo e remexendo esses alfarrábios, alguns carcomidos já, identifico as primeiras de minhas crônicas, escritas à mão, antes da modernidade do hoje, do computador e do teclado, do monitor expondo palavras e juntando vocábulos, armando frases e construindo períodos. Crônicas, inclusive, de um começo tão precoce, que sequer foram publicadas, devaneios, então, dos verdes anos. Resgates, vejo agora, de meus pretéritos, nessa nostalgia de meus tempos. Reflexões daqueles antanhos! Discursos, também, que fiz nos princípios, aqui no Recife, mesmo, no Colégio Nóbrega, de tantas lembranças e em São Paulo, quando fui eleito orador da turma, representando os alunos brasileiros. Um tupiniquim falando para quatrocentões! Coragem que só a juventude deixa expor, em considerações, sobretudo, a propósito da pátria que é o Nordeste, tão injustiçado!

São quatro décadas, pelo menos, de recordações e de lembranças, coisas trazidas de casa, ainda, do sobrado azul onde nasci, onde pontificou meu pai e pontifica a minha mãe, a permearem a vida e as coisas do meu ontem mais recente, de dez ou de vinte anos pra trás, de casa, também, mas da minha do agora! Pedacinhos de saudades que se juntam, então, no grande quebra-cabeças do existir humano, dando por resultado o ganho das vitórias, que suplanta aquele das perdas experimentadas e sentidas. Um quebra-cabeça que ao final, depois de armado e completado, em parte já, mostra uma grande estrada, larga e asfaltada, mas repleta de percalços, de pedras no caminho e de enormes buracos no passeio dos andantes, nos quais os tropeços são inevitáveis e nos quais sucumbem os incautos, penitentes deste mundo de Deus e dos homens! Mas, é possível prever: "Vim, vi e venci!".

Lixo que não é lixo e luxo que não é luxo! Somente aqueles que experimentaram o deleite e o êxtase da existência, na manjedoura ou no dourado leito, mesmo que em momentos mais que efêmeros, podem se permitir o sentimento e as reminiscências. Ninguém resgata-o, inteiramente, pesaroso, senão nas horas do pranto. E ninguém recupera na memória o tempo da aflição, sem que novamente esteja sob os impulsos dos humores pessimistas. Sou assim, gosto de rebuscar o passado e sei de tudo e de todos, até os meus limites! Tenho profundo interesse pelos amigos do outrora, pela gente que comigo foi gente e se os perdi de vista, francamente, não foi pelo querer de meus afetos!

A vida é bela, afinal! Vale a pena, com tudo que é ruim e com tudo que perturba! Viva a vida, então!

Fonte> Geraldo Pereira. A medida das saudades. Recife/PE, 2006. Disponível no Portal de Domínio Público

Estante de Livros (“O arqueiro”, de Paulo Coelho)

Publicado pela primeira vez no Brasil, o novo livro de Paulo Coelho chega em edição com capa dura e ilustrações em duas cores. Uma história rica em ensinamentos sobre como ter uma vida plena e repleta de propósito.

O arco é a vida: dele vem toda energia; a flecha é o intento; o alvo é o objetivo a ser alcançado. Através de uma parábola sobre arquearia, Paulo Coelho nos ensina a persistir em nossos objetivos, buscar paz de espírito e sermos gratos pela jornada que percorremos.

Após receber uma visita inesperada, Tetsuya, o melhor arqueiro do país, transmite seus conhecimentos a um jovem da aldeia onde vive. Assim, conhecemos o caminho do arco, que nos inspira a seguir nossa intuição e a viver plenamente.

Em entrevista obtida no blog do autor, ele conta porque escreveu o livro:

Você também é arqueiro – o que o atraiu no esporte? 

Eu achava que era muito elegante quando era jovem. Eu disse a mim mesmo: Um dia farei isso. Então comecei a morar nos Pireneus, onde tinha uma pequena casa, e conheci alguém por acaso. Essa pessoa começou a me ensinar como usar o arco e flecha e me ensinou o básico do tiro com arco. É passar de uma tensão extrema a um relaxamento total, no exato momento em que você abre a mão. E é realmente elegante, porque você precisa de postura para atirar bem. Trata-se de aprender a se concentrar e fazer esse tipo de exercício não por fazer exercício, mas por fazer algo que você deseja. E assim aprendi.

Como suas experiências com o tiro com arco influenciaram a escrita deste livro?

Foi, de certa forma, um resumo da minha experiência no tiro com arco. E, claro, eu precisava de uma diretriz, uma história. Ao ler, você aprende tudo o que aprendi, tudo o que precisava. Atirar flechas não é simplesmente acertar um alvo em branco, mas realmente tentar ver o mundo através do arco. O momento de tensão total antes de você abrir a mão, a conexão. Se você atinge a meta ou não, é irrelevante. Mas o que importa é tornar-se o arco, a flecha e o alvo

Alguma experiência específica inspirou você a escrever O Arqueiro?

Um dia eu estava sentado em minha casa nos Pireneus e pensei como era incrível o tiro com arco, e quis escrever um livro sobre minha experiência. Queria escrevê-lo pelo menos para ler ou condensar para mim mesmo. Tentei ensinar a mim mesmo o que aprendi instintivamente. Às vezes, quando você aprende, você tem que sentar e entender o que aprendeu. Ao fazer isso, escrevi o livro. Está em suas mãos agora.

Como você acha que Santiago de Compostela influenciou seus livros e, especificamente, este?

A peregrinação de Santiago de Compostela é isto: você conhece o seu destino e vai em direção a ele. Isso me influenciou muito no sentido de que eu sabia que tinha que focar em um ponto e seguir em frente.

O Arqueiro fornece orientações simples para uma vida bem vivida. Você acha que uma fábula ou alegoria é o modo mais eficaz de ensinar o que você aprendeu sobre as verdades essenciais da vida?

É um livro curto, você não precisa complicar as coisas.*Risos* Na verdade, a vida é simples. Complicamos muito. E uma fábula ou alegoria fala com as partes ocultas de nós mesmos. Você aprende a essência da vida prestando atenção às coisas simples que o cercam. Esta é basicamente a ideia do ARQUEIRO. Estou falando de tudo, desde amizade e muito mais: a importância do arco, a importância da concentração. No final das contas, é a vida. Você aprende vivendo sua vida plenamente

Você já teve um mentor como Tetsuya? Se sim, que ensinamentos você aprendeu?

Não no sentido metafórico que uso em meu livro. Tive um mentor no sentido de que precisava aprender o básico de como atirar, como evitar me machucar. Sou muito grato a ele porque foi ele quem me ensinou o que sei. Mas no final das contas, como eu disse, você aprende fazendo alguma coisa. Algo que você ama. Então, realmente, você não precisa de um mentor – você só precisa das etapas. Uma vez dados os passos, você pode seguir em frente, e repetir e repetir até que um dia, não é que isso se torne automático, mas de alguma forma, seu subconsciente assume o controle de si mesmo e segue em frente.

Você tenta seguir o exemplo de Tetsuya quando orienta escritores mais jovens?

Eu não oriento escritores mais jovens. Quem sou eu para orientar alguém sobre qualquer coisa? Claro que recebo convites para Master Classes, mas nunca aceito porque não tenho nada para ensinar. Acho que escrever é uma experiência por si só.

Você pode nos contar sobre as influências espirituais e religiosas em sua escrita? Como você se sente sobre O ALQUIMISTA sendo usado por muitos leitores como um guia espiritual, e você vê os leitores recorrendo ao ARQUEIRO da mesma forma?

Claro, espero que nos passos de O ARQUEIRO as pessoas vejam a mesma jornada que existe em O ALQUIMISTA. Claro, eles são diferentes. O ALQUIMISTA é um livro de viagem e, embora O ARQUEIRO também o seja, espero que as pessoas usem O ARQUEIRO para ajudá-las a aprender o básico da vida. Eu realmente espero isso.

O que você espera que os leitores tirem de O Arqueiro?

É impossível dizer o que ele espera, porque todos os leitores vivenciam o livro de maneiras diferentes. Recebo muitas cartas sobre meus livros e, às vezes, eles veem coisas que eu não vi e me contam sobre elas. Fico muito feliz em lê-los, porque aprendo com eles. Aprendo com eles, sobre mim.

Fonte: https://paulocoelhoblog.com/2020/11/10/today-the-archer-in-english/ . 10 nov. 2020. (traduzido do Inglês por Jfeldman)

sábado, 30 de dezembro de 2023

Filemon Martins (Aquarela de Trovas) 27

 



Mensagem na Garrafa – 67 –

Içami Tiba
São Paulo/SP, 1941 – 2015

Se você abre uma porta, você pode ou não entrar em uma nova sala. Você pode não entrar e ficar observando a vida. Mas se você vence a dúvida, o temor, e entra, dá um grande passo: nesta sala vive-se! Mas, também, tem um preço... São inúmeras outras portas que você descobre. Às vezes curte-se mil e uma. O grande segredo é saber quando e qual porta deve ser aberta. A vida não é rigorosa, ela propicia erros e acertos. Os erros podem ser transformados em acertos quando com eles se aprende. Não existe a segurança do acerto eterno.

A vida é generosa, a cada sala que se vive, descobre-se tantas outras portas. E a vida enriquece quem se arrisca a abrir novas portas. Ela privilegia quem descobre seus segredos e generosamente oferece afortunadas portas. Mas a vida também pode ser dura e severa. Se você não ultrapassar a porta, terá sempre a mesma porta pela frente. É a repetição perante a criação, é a monotonia monocromática perante a multiplicidade das cores, é a estagnação da vida... Para a vida, as portas não são obstáculos, mas diferentes passagens!

A. A. de Assis (Por quem os sinos dobram?)

 Nenhum homem é uma ilha (no man is an island); todo homem é um pedaço de um continente, uma parte de um todo. Se um pequeno fragmento de terra é levado pelo mar, o continente fica menor. Assim também a morte de qualquer ser humano me diminui, leva um pouquinho de mim, porque sou parte da humanidade. Por isso, quando alguém morre, não pergunte por quem os sinos dobram (for whom the bells toll); eles dobram por mim, dobram por você, por todos nós. 


Esses versos célebres do poeta inglês John Donne (1572-1631 ) soam sempre muito fortes – e aqui em Maringá parece que mais fortes ainda –, especialmente quando nos despedimos de um pioneiro ou pioneira. Faz poucos dias foram lembrados, por exemplo, numa roda de velhos amigos, durante o velório de uma pessoa queridíssima – Dona Zaia (a poeta Maria Bastos de Carvalho), esposa do saudoso contabilista, jornalista e também poeta Benedito Moreira de Carvalho. Aliás, numa coincidência comovente: ela foi para o céu exatamente no mesmo dia (21 de abril) e na mesma hora em que Benedito partira 23 anos antes.   

Mas os sinos não dobraram somente por Dona Zaia; dobraram por todos nós, visto que com ela foi um pouquinho de cada um dos que, como ela e Benedito, ajudamos a formar esta cidade.

No princípio eram poucas famílias, depois aos poucos foram chegando outras, cada qual ajudando cada qual a dar os primeiros passos. A população cresceu muito nesse meio tempo, no entanto ainda somos bem íntimos. Claro que não conseguimos mais saber os nomes de todos/todas, no entanto de alguma forma nos conhecemos. Com frequência nos encontramos em algum lugar: na escola dos filhos, na igreja, no supermercado, no shopping, na farmácia, na fila do banco, na padaria, no estádio, na pista de caminhada, no clube.

“Não sei quem você é, mas sei que é daqui, é um dos nossos”. “Ah, sim, estivemos juntos numa festa de casamento”. “Vi sua foto no jornal”. “Você me atendeu na sua loja”. “Tive um problema no trânsito e você me ajudou”. “Conheço você pelo facebook”. “Vejo você passar quase todo dia em frente à minha casa”. “Você pode não se lembrar, mas conversamos há poucos dias na sala de espera do médico”. “Viajamos juntos uma vez”. “Você não me conhece, mas conheço seu pai há muitos anos: fomos colegas de trabalho numa imobiliária”.      

Por ser Maringá uma comunidade nova, e porque a gente vem caminhando juntos desde o comecinho, os laços se fizeram mais fortes, de modo que nos tornamos quase irmãos/irmãs.

Mas aí, num dia qualquer, a gente ouve ou lê a notícia de que fulano/fulana faleceu. Dá aquele choque. Que triste. Era uma ótima pessoa. Vai fazer muita falta. Então a gente muda a agenda e dá uma passada no velório para fazer uma oração e apresentar solidariedade aos familiares. Lá encontramos outros amigos e amigas que havia tempo a gente não via. Choramos juntos. Um pedacinho de cada um de nós está indo embora.

Nesses momentos, como Rubem Braga, “lembramos somente as coisas douradas e dizemos apenas ‘adeus’, a pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo”.  

Ou talvez nos limitemos a murmurar o que recitou Machado para Carolina: “Trago-te flores – restos arrancados da terra que nos viu passar unidos”.

Ou simplesmente fechamos por um instante os olhos e ouvimos Santo Agostinho a nos dizer: “Você que aí ficou, siga em frente; a vida continua, linda como sempre foi”.

(Crônica publicada no Jornal do Povo em 01.junho.2023)

Hinos de Cidades Brasileiras (Fortaleza/CE)


Letra: Gustavo Barroso

Junto à sombra dos muros do forte
A pequena semente nasceu.
Em redor, para a glória do Norte,
A cidade sorrindo cresceu.
No esplendor da manhã cristalina,
Tens as bênçãos dos céus que são teus
E das ondas que o sol ilumina
As jangadas te dizem adeus.

Refrão
Fortaleza! Fortaleza!
Irmã do Sol e do mar,
Fortaleza! Fortaleza!
Sempre havemos de te amar

O emplumado e virente coqueiro
Da alva luz do luar colhe a flor
A Iracema lembrando o guerreiro,
De sua alma de virgem senhor.
Canta o mar nas areias ardentes
Dos teus bravos eternas canções:
Jangadeiros, caboclos valentes,
Dos escravos partindo os grilhões.

Refrão
Fortaleza! Fortaleza!
Irmã do Sol e do mar,
Fortaleza! Fortaleza!
Sempre havemos de te amar

Ao calor do teu sol ofuscante,
Os meninos se tornam viris,
A velhice se mostra pujante,
As mulheres formosas, gentis.
Nesta terra de luz e de vida
De estiagem por vezes hostil,
Pela Mãe de Jesus protegida,
Fortaleza és a Flor do Brasil.

Refrão
Fortaleza! Fortaleza!
Irmã do Sol e do mar,
Fortaleza! Fortaleza!
Sempre havemos de te amar

Machado de Assis (João Fernandes)

Há muitos anos, o sino de S. Francisco de Paula bateu duas horas. Desde pouco mais de meia noite deixou este rapaz, João Fernandes, o botequim da Rua do Hospício, onde lhe deram chá com torradas, e um charuto por cinco tostões. João Fernandes desceu pela Rua do Ouvidor, na esquina da dos Ourives viu uma patrulha. Na da Quitanda deu com dois caixeiros que conversavam antes de ir cada um para o seu armazém. Não os conhecia, mas presumiu que fossem tais, e acertou; eram ambos moços, quase imberbes. Falavam de amores.

— A Rosinha não tem razão, dizia um; eu conheço muito bem o Miranda...

— Estás enganado; o Miranda é uma besta.

 João Fernandes foi até à Rua Primeiro de Março; desandou, os dois caixeiros despediam-se; um seguiu para a Rua de S. Bento, outro para a de S. José.

— Vão dormir! suspirou ele.

Iam rareando os encontros. A patrulha caminhava até o largo de S. Francisco de Paula. No largo passaram dois vultos, ao longe. Três tilburis, parados junto à Escola Politécnica, aguardavam fregueses. João Fernandes, que vinha poupando o charuto, não pôde mais; não tendo fósforos, endireitou para um dos tilburis.

— Vamos, patrão, disse o cocheiro; para onde é?

— Não é serviço, não; você tem fósforos?

O cocheiro esfriou e respondeu calado, metendo a mão no bolso para tinir a caixa de fósforos; mas tão vagarosamente o fez que João Fernandes a tempo se lembrou de lhe cercear o favor, bastava permitir que acendesse o charuto na lanterna. Assim fez, e despediu-se agradecendo. Um fósforo sempre vale alguma coisa, disse ele sentenciosamente. O cocheiro resmungou um dito feio, tornou a embrulhar-se em si mesmo, e estirou-se na almofada. Era uma fria noite de junho. Tinha chovido de dia, mas agora não havia a menor nuvem no céu. Todas as estrelas rutilavam. Ventava um pouco — frio, mas brando.

Que não haja inverno para namorados, é natural; mas ainda assim era preciso que João Fernandes fosse namorado, e não o era. Não são amores que o levam rua abaixo, rua acima, a ouvir o sino de S. Francisco de Paula, a encontrar patrulhas, a acender o charuto na lanterna dos carros. Também não é poesia. Na cabeça deste pobre diabo de vinte e seis anos não arde imaginação alguma, que forceje por falar e verso ou prosa. Filosofia, menos. Certo, a roupa que o veste é descuidada, como os cabelos e a barba; mas não é por filosofia que os traz assim. Convém firmar bem um ponto; a nota de cinco tostões que ele deu pelo chá e pelo charuto foi a última que trazia. Não possuía agora nada mais, salvo uns dois vinténs, perdidos no bolso do colete. Vede a triste carteira velha que ele tirou agora, à luz do lampião, para ver se acha algum papel, naturalmente, ou outra coisa; está cheia de nada. Um lápis sem ponta, uma carta, um anúncio do Jornal do Comércio, em que se diz precisar alguém de um homem para cobrança. O anúncio era da véspera. Quando João Fernandes foi ter com o anunciante (era mais de meio-dia) achou o lugar ocupado.

Sim, não tem emprego. Para entender o resto, não vais crer que perdeu a chave da casa. Não a perdeu, não a possui. A chave está com o proprietário do cômodo que ele ocupou durante alguns meses, não tendo pago mais de dois, pelo que foi obrigado a despejá-lo antes de ontem. A noite passada achou meio de dormir em casa de um conhecido, a pretexto de ser tarde e estar com sono. Qualquer coisa servia, disse ele, uma esteira, uma rede, um canto, sem lençol, mas teve boa: cama e almoço. Esta noite não achou nada. A boa fada das camas fortuitas e dos amigos encontradiços andaria tresnoitada e dormia também. Quando lhe acontecia alguma destas (não era a primeira), João Fernandes só tinha dois ou três mil-réis, ia a alguma hospedaria e alugava um quarto pela noite; desta vez havia de contentar-se com a rua. Não era a primeira noite que passava ao relento; trazia o corpo e a alma curtidos de vigílias forçadas. As estrelas, ainda mais lindas que indiferentes, já o conheciam de longa data. A cidade estava deserta; o silêncio agravava a solidão.

— Três horas! murmurou João Fernandes no Rossio, voltando dos lados da Rua dos Inválidos. Agora amanhece tarde como o diabo.

Abotoou o paletó, e toca a imaginar. Era preciso empregar-se, e bem, para se não expor a não ter onde encostar a cabeça. Em que lugar dormiria no dia seguinte? Teve ideias petroleiras. Do petróleo ao incêndio é um passo. Oh! se houvesse um incêndio naquele momento! Ele correria ao lugar, e a gente, o alvoroço, a polícia e os bombeiros, todo o espetáculo faria correr o tempo depressa. Sim, podia muito bem arder uma casa velha, sem morrer ninguém, poucos trastes, e no seguro. Não era só distração, era também repouso. Haveria um pretexto para sentar-se em alguma soleira de porta. Agora, se o fizesse, as patrulhas poderiam desconfiar, ou recolhê-lo como vagabundo. A razão que o levava a andar sempre, sempre, era fazer crer, se alguém o visse, que ia para casa. Às vezes, não podia continuar, e parava a uma esquina, a uma parede; ouvindo passos, patrulha ou não, recomeçava a marcha. Passou um carro por ele, aberto, dois rapazes e duas mulheres dentro, cantando uma reminiscência de Offenbach. João Fernandes suspirou; uns tinham carro, outros nem cama... A sociedade é madrasta, rugiu ele.

A vista dos teatros azedou-lhe mais o espírito. Passara por eles, horas antes, vira-os cheios e iluminados, gente que se divertia, mulheres no saguão, sedas, flores, luvas, homens com relógio no colete e charuto na boca. E toda essa gente dormia agora, sonhando com a peça ou com os seus amores. João Fernandes pensou em fazer-se ator; não teria talento, nem era preciso muito para dizer o que estivesse no papel. Uma vez que o papel fosse bom, engraçado, ele faria rir. Ninguém faz rir com papéis tristes. A vida de artista era independente; bastava agradar ao público. E recordava as peças vistas, os atores conhecidos, as grandes barrigadas de riso que tivera. Também podia escrever uma comédia. Chegou a imaginar um enredo, sem advertir que eram reminiscências de várias outras composições.

Os varredores das ruas começaram a dificultar o trânsito com a poeira. João Fernandes entrou a desvairar ainda mais os passos. Foi assim que chegou à praia da Glória, onde gastou alguns minutos vendo e ouvindo o mar que batia na praia com força. Seguiu abaixo; ouviu o ganir de um cão, ao longe. Na rua alguns dormiam, outros fugiam, outros latiam, quando ele passava. Invejou os cães que dormiam; foi ao ponto de invejar os burros dos tilburis parados, que provavelmente dormiam também. No centro da cidade a solidão era ainda a mesma. Um ou outro vulto começava a aparecer, mas raro. Os ratos ainda atropelavam o noctâmbulo, correndo de um lado para outro da rua, dando ideia de uma vasta população subterrânea de roedores, que substituíam os homens para não parar o trabalho universal. João Fernandes perguntava a si mesmo por que não imitaria os ratos; tinha febre, era um princípio de delírio.

— Uma, duas, três, quatro, contou ele, parado no Largo da Carioca. Eram as badaladas do sino de S. Francisco. Pareceu-lhe ter contado mal; pelo tempo deviam ser cinco horas. Mas era assim mesmo, disse afinal; as horas noturnas e solitárias são muito mais compridas que as outras. Um charuto, naquela ocasião, seria um grande benefício; um simples cigarro podia enganar a boca, os dois vinténs restantes bastavam-lhe para comprar um ordinário; mas onde?

A noite foi inclinando o rosário das horas para a manhã, sua companheira. João Fernandes ouviu-as de um relógio, quando passava pela Rua dos Ourives; eram cinco; depois outro relógio deu as mesmas cinco; adiante, outro; mais longe, outro. — Uma, duas, três, quatro, cinco, dizia ainda outro relógio.

João Fernandes correu ao botequim onde tomara chá. Alcançou um café e a promessa de um almoço, que pagaria à tarde ou no dia seguinte. Conseguiu um cigarro. O entregador do Jornal do Comércio trouxe a folha; ele foi o primeiro a abri-la e lê-la. Chegavam empregados dos arsenais, viajantes da estrada de ferro, simples vizinhos que acordavam cedo, e porventura algum vadio sem casa. O rumor trazia a João Fernandes a sensação da vida; gentes, falas, carroças, aí recomeçava a cidade e a faina. O dia vinha andando, rápido, cada vez mais rápido, até que tudo ficou claro; o botequim apagou o gás. João Fernandes acabou de ler o Jornal à luz do dia. Espreguiçou-se, sacudiu a morrinha, despediu-se:

— Até logo!

Enfiou pela rua abaixo, com os olhos no futuro cor de rosa: a certeza do almoço. Não se lembrara de procurar algum anúncio no Jornal; viu, porém, a notícia de que o ministério ia ser interpelado nesse dia. Uma interpelação ao ministério! Almoçaria às dez horas; às onze estaria na galeria da câmara. Aí tinha com que suprir o jantar.

Fonte> Publicado originalmente em A Estação, de 15/01/1894. Disponível em Domínio Público 

Benjunior (Benevides Garcia) Poemas Escolhidos 4



AUTOPLAGIA*

No meio da noite acordo
Com uma voz a sussurrar:
- Acorda porque é hora
Levanta e vai escrever...
De quem é essa voz
Que me ordena, 
Mas calma e serena
No meio da noite, sem ser um açoite?...
A quem devo o que escrevo...
Meus versos são realmente meus?
Ou já foram teus?
Tudo isso, se for, eu não nego.
Há outra vida dentro de mim?
Ou serei eu a minha sorte
A viver com minha própria morte?
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(* Autoplagia - Possivelmente um neologismo. Capacidade que o indivíduo tem de copiar a si próprio.)
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ENSAIO PARA UM PEQUENO INVENTÁRIO

Tudo o que ultimamente tenho amado
Foram apenas papéis velhos guardados
Na gaveta do criado-mudo, 
ao lado da minha cama... 

Às vezes – chuva miúda de verão
Que vem e que passa
Deixando pelos caminhos todos
Alegria para as pequenas flores
E também para as ervas daninhas
Que vicejam aqui e ali
Em todo lugar... 
 
Outras vezes me vejo maravilhado
Com toda a beleza que há
No entardecer... 
 
Depois...
Saio por aí

Vou me encontrar
Para não me perder...
E apesar, de tudo isso
Disse alguém 
Que o amor também envelhece
Com o tempo muda de cor
Não tem o mesmo ardor
Nem os prazeres de outrora...
Escrever para quê?
[Se um dia vamos morrer...]
 
Escrever para viver
Para nunca morrer
Escrever... 
Queixas
Lamentos
Sucessos
Fracassos
Alegrias
As dores
Os amores...
Escrever para quem?…
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ENTARDECER

Ir...
Partir para o outro lado...
Há tempos que me entardeço...

A cada dia minhas tardes são mais lindas!
Até penso, às vezes, 
Fugir por entre as cores da paisagem...

Entardeço...
Vou vivendo...
A vida me levando,
Escapando,
Escorrendo pelas frestas do tempo...

Entardeço...
Nem sei até quando:
Um dia, mudo de endereço…
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MEU REFÚGIO

Como se saída de um sonho, 
eu te encontrei 
a passear pelos campos floridos 
da minha infância... 
Vinhas feliz e só, 
e na tua pequenez 
mostravas a beleza 
de um mundo de paz... 
Eu te amei no teu olhar 
e nos teus passos... 
Na singeleza dos teus dias, 
construí a minha solidão 
e a minha guarida…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

NOTURNO

Não caminhes
Pela rua
Na noite escura
Há sonhos desfeitos
Pelos becos escondidos
E as lágrimas da paixão
Tua alma entristecem…

Não caminhes
Pela rua
Na noite escura
O silêncio 
Atrai fantasmas de vento
Que dançam
Entre folhas adormecidas…

Não caminhes
Pela rua
Na noite escura
Aguarda mansamente
A lua
E o brilho das estrelas 
Te dará sonhos para sonhar…
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PEQUENO ENSAIO PARA UM POEMA DE NATAL

...preciso urgentemente
escrever um poema de Natal...
Que tenha berço,
Que tenha brilho,
Que tenha estrela...
Não posso esquecer da alegria que há na festa
Reunião-de-amigos-parentes-família,
Num encontro com todos
Encontro comigo...
Um poema-menino que mostra
que o Natal não é só para fazer de conta
que a humanidade é feliz...
Um poema de presentes
Mas que, simplesmente,
esteja presente
no coração das pessoas
a Luz que veio
naquela silenciosa noite de amor...
Um poema que fala
da beleza de céu 
no chão de uma estrebaria...
Enfim, um poema de paz!
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Fonte: Facebook do poeta. https://www.facebook.com/Benjunior5