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sábado, 27 de abril de 2024

Carolina Ramos (Página Aberta)

Fruto de terna conversa, nasceu este conto não alheio à temática, porque envolve, como veículo de abertura, um casal de cães. A tal conversa aconteceu entre mãe e filha. A primeira redige estas linhas e, a segunda, na história por ela relatada, aparece, simplesmente, como: - "a moça dos cachorrinhos".

Mais realidade do que ficção, o conto leva o nome de "Página Aberta", que outra coisa não é, uma vez que, à mercê do imprevisível, as reticências substituem com maior propriedade o que deveria ser um ponto final.

PÁGINA ABERTA
(inspirado na narrativa da "moça dos cachorrinhos")

O céu, encapotado de cinza, ranzinzava um trovão, com cara de poucos amigos.

Juvenal desviou os olhos do mar e fixou-os nas nuvens carrancudas, a pressentir ser hora de voltar para casa. Não tinha relógio, mas vários indícios à sua volta mediam o tempo com precisão. Deveriam ser quase seis da tarde, afirmava o rabo-de-cavalo a pendular de lá para cá, ao ritmo dos passos da moça que "pastoreava" os dois cãezinhos sortudos, resgatados da rua pelo bom coração da futura dona. Dois cãezinhos bastante simpáticos – brancos, com manchas negras espalhadas pelo corpo – incontestável RG de "viralatice" explícita. Pedigree de ambos: - cão vaquinha ou paulistinha. Origem: - uma rua qualquer.

Ela: - Teca, a cadelinha - Olhos expressivos, baixinha, gordinha, meiguinha, merecedora de todos os inhas possíveis, de fato e de direito

Ele: - Nino, mais alto, mais magro, sempre tenso, sempre alerta, resmunguento, pouco afeito a carinhos - dentes pontiagudos, prontos a demonstrar a preferência pelas canelas de alguém surpreendido em descuido.

- Vale a digressão, porque Juvenal já conversara com a "moça dos cachorrinhos", por várias vezes, chegando mesmo a confidenciar-lhe algumas passagens de sua vida, tendo, também, oportunidade de conhecer de perto a história do festejado casal canino.

Naquela tarde, embora conhecendo o mau humor do Nino, Juvenal sentia, mais do que nunca, a necessidade de trocar ideias com alguém sensível. Precisava partilhar com a outrem a festa interior que o envolvia. A moça era receptiva. Aproximou-se dela.

" 0i! O Nino, hoje, ainda não atacou nenhum calcanhar? - A "moça dos cachorrinhos" sorriu: - Hoje ele está em paz com o mundo! A briga é com ele mesmo. Tomou banho com shampoo perfumado e perdeu as referências. Estranha o próprio cheiro! Por isso, está quieto, confuso... indiferente a quem passa.

Só então a moça prestou mais atenção no homem que, naquele dia, demonstrava apuro incomum - cabelos penteados, barba feita... e um brilho especial no olhar.

- E o senhor... como vai?

- Menina... amanhã vou ter um encontro muito importante! O mais importante encontro de toda minha vida!

- Soraya?!

- Isso mesmo, Soraya... a mulher da minha vida!

Nos encontros anteriores o nome Soraya já se fizera familiar. Para a "moça dos cachorrinhos", era nome bastante significativo. Sabia bem o que ele representava para aquele homem tenso, de emoções à flor da pele e de consciência pesada. Alguém que já lhe dera acesso espontâneo ao "site" de sua vida, onde estavam inclusos o casamento com Soraya, a felicidade curtida por algum tempo e, aquela separação absurda, que já se prolongava por, nada mais nada menos, que trinta e cinco longos anos!

Naquela infeliz tarde, distante e inexplicável, depois de uma rusga banal, tão comum entre pessoas que se querem bem, ele, homem impulsivo, num rompante, passara a mão nos pertences e deixara tudo para atrás! E, nesse tudo, incluía-se "a mulher da sua vida".

Juvenal fora cruel com Soraya e, mais ainda, consigo mesmo. Tão logo chegado o arrependimento, chegaram também o pudor e o medo do retorno. Como seria recebido? Teria direito ao perdão? Como reagiria a esposa, a sua "moleca", agora talvez de cabelos brancos? E os familiares?! Seria aceito?!

- Retorno abortado! - O que, sem mais palavras, explicam os trinta e cinco anos de separação.

Nesse meio tempo, muitas mulheres haviam tentado ocupar o lugar de Soraya no coração daquele homem arrependido, sem o conseguirem. Celeste até que chegou perto, mas, logo fora chamada à pátria que o próprio nome insinuava.

Uma vez mais, Juvenal resvalara para o abismo. Aos poucos, seus parcos valores se diluíram. Deu de beber. Bebeu muito! Degradou-se. Para quem se entrega a qualquer vício, o caminho da descida é por demais conhecido e bastante escorregadio. Desceu degrau por degrau. Perdeu o emprego, perdeu os documentos, perdeu os amigos e a própria identidade.

Chegara à mendicância! Só não conseguira ser desonesto! Seu anjo da guarda não estava de todo adormecido, salvara-o dessa fase terrível, por meio de uma bondosa assistente social, que não só lhe pôs os papéis em dia como lhe conseguiu até uma aposentadoria - modesta, mas suficiente para que recuperasse a dignidade. E ele - que em sua mocidade colecionara troféus conquistados no esporte em algumas maratonas - voltara, afinal, a acertar o passo.

Foi quando Soraya, a esposa abandonada, na impossibilidade de vender a casa, sem a assinatura do marido fujão, acabara por descobri-lo, após tantos anos de tenaz procura.

O primeiro encontro estava para acontecer no dia imediato.

A "moça dos cachorrinhos" entendeu, num relance, o tamanho da emoção e do conflito interior daquele homem inseguro, temente do que estava por vir e que ele era incapaz de adivinhar.

Uma semana depois, viriam à tona os pormenores daquele encontro.

Juvenal chegara ao endereço que o aguardava, mal contendo o nervosismo.

Ao toque da campainha, a porta fora aberta por uma mulher de mela idade, bonita ainda, cabelos tintos, ligeiramente aloirados e com aqueles olhos, meigos e tristes, que Juvenal tão bem conhecia.

Olhos tristes, sim... contudo, não acusadores. No instante em que os dois se fitaram, a ternura do olhar daquela mulher casou-se com a ansiedade do olhar recém-chegado.

- Jú! - murmurou ela, quase num sussurro.

- Soraya... Soraya, minha moleca!

Apesar da mútua ternura, Soraya evitou o beijo. Fugiu a contatos mais íntimos e deixou Juvenal cheio de grilos, sentindo-se rejeitado, apesar do bom acolhimento por parte da família.

Ao final do dia, após muita insistência e rejeição, a verdade veio à tona sob a forma de tristíssima revelação: - foi-lhe apresentado o resultado de um exame de laboratório. Em resumo; Soraya contraíra Aids mercê de um curto relacionamento. O parceiro unira-se a ela sem saber do mal que portava. Falecera há dois anos. Fato consumado!

Soraya botou para fora o drama do qual era protagonista, como um vulcão que vomitasse as próprias entranhas. Sentia a felicidade escapar-lhe novamente das mãos, como água a fugir-lhe por entre os dedos.

E as cinzas e lavas candentes, desse vulcão reativado, desabaram com violência sobre a alma aturdida daquele homem sacudido pelos soluços.

Juvenal acovardou-se. Não sabia o que dizer, nem tampouco o que pensar. Uniu suas lágrimas às de Soraya e, como bom desportista, acabou por pedir tempo. Precisava pensar! Pensar profundamente, longe de tudo e de todos... Antes de qualquer resolução!

Quinze dias bastaram para que aquele homem se decidisse:

- Por motivo algum, renunciaria ao amor de Soraya pela segunda vez! A ciência, evoluindo a cada dia... Os recursos multiplicando-se com ela... Deveria haver uma solução! A curto ou a longo prazo... deveria, sim! Mas... que espera duvidosa e cruel!

- Para aquele homem, contudo, uma coisa era absolutamente certa; - Sem dúvida alguma, queria a sua "moleca" de volta! A qualquer preço! Fosse como fosse! Para o que desse e viesse... e até que a morte os separasse! Igual ao que haviam prometido, num certo dia, à frente ao altar!

Mal ou bem, Juvenal escrevera a história de sua vida. Chegava, agora, ao capítulo decisivo!

As últimas e definitivas linhas deste relato ficam em branco... a serem completadas pelo próprio destino.

Deus pingará o ponto final na derradeira página. E a Sua misericórdia, então, a assinará…

Fonte> Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Carolina Ramos (Mundo Cão)

O mundo cão, que nomeia a crônica, refere-se ao mundo restrito de um determinado cão vira-latas que, talvez, nem o hábito de virar latas tenha.

Neguinho é o cachorro mais estranho que já vi! Ninguém, por mais amor que lhe dedique, poderá acha-lo bonito.

-Perdão! Ante a veemência dos protestos cá de casa, volto atrás. Há quem o ache bonito, sim... E gosto não se discute! Ponto final!

Carinhosamente chamado por todos de Neguinho é ele qualquer coisa assim como fruto híbrido de cão e javali, caso isto fosse possível.

Pelagem preta e rala, fiapos brancos aqui ali, topete espetado a descer-lhe pelo dorso, dão-lhe por vezes o aspecto de um cavalinho nanico a trotar solitário pelas ruas, crina arrepiada como crista de moicano.

Mistura braba! Por conta daquele topete, é conhecido também, por Punk, Supla, Elvis e até Vovozinho, mas o nome oficial e carinhoso, concedido pela maioria, é mesmo - Neguinho.

Neguinho vive na rua. Não digo qual delas, para não lhe devassar o endereço. Deve ter dono, mas, prefere a liberalidade das calçadas. E se não é de alguém, é porque é de todos.

Certo é não lhe faltarem carinho e alimento, já que de índole mansa e sem ser magro nem gordo, dá provas de não passar fome. A quem lhe estale os dedos, Neguinho acompanha, com gosto, em curtos passeios, voltando sempre ao ponto de partida, ainda que só.

Todos os portões são seus. Guarda-os, sem discriminação, com igual zelo e sem agressividade ou preferências. O brilho úmido dos olhos escuros cativa simpatias e gera defensores, mesmo entre os que lhe negam total ausência de atributos físicos.

Aceita afagos e os retribui com sobriedade. Por outro lado, mostra total indiferença a quem por ele passe sem lhe destinar um simples olhar.

De boa paz, Neguinho não lesa, não trai, não rouba, não agride.

Necessário dizer que nem sempre colabora para o asseio da rua que lhe serve de lar. Mas por que acusar-lhe a displicência, fruto de sua "viralatice" praticamente imposta?! – Cachorrinhos bem nascidos e bem cuidados, frequentadores assíduos de lojas pet, comportam-se da mesma maneira, em seus passeios diários, com direito às mesmas paradinhas sob as mesmas árvores das calçadas, ou frente aos mesmos postes, que, impassíveis, recebem sem protestos a costumeiras regas!

O agravante é que, aqueles cachorrinhos vips, na maioria das vezes, passeiam acompanhados por gente que nem liga para o estrago feito na sola dos sapatos do público passante. E quem reclama gasta seu latim sem encontrar eco, porque as coisas continuam do mesmíssimo jeito, embora com sadias ressalvas. Por isso mesmo, palmas e cumprimentos para quem, civilizadamente, vem munido com aquele discreto saquinho plástico.

Neguinho é cão dócil e inteligente. Não se sabe porque, até bem pouco, era poupado pelo laço cruel da famigerada "carrocinha", hoje motorizada, terror dos cães sem coleira e abominada pela criançada do mundo inteiro, desde tempos remotos.

Mas... a sorte tem os seus dias de cochilo. E, num certo dia, lá se foi o cãozinho em questão dar um passeio até o depósito, exposto ao risco de enfrentar o corredor da morte. E sem culpa alguma! Arrepia imaginar quanta gente muito menos digna, anda solta por aí, aprontando barbaridades! E, o meigo Neguinho, preso!

Na verdade, a rua ficou mais pobre com a ausência dele. Ficou bem mais sem graça, sem a ronda solitária daquele animalzinho meio-cão-meio-javali, com topete moicano e trote de cavalinho nanico.

Contudo... foi por pouco tempo! Logo, a mão caridosa da dona de um daqueles portões vigiados por Neguinho, foi busca-lo, trazendo de volta ao convívio do bairro aquele estranho exemplar, não muito primoroso, do "melhor amigo do homem" para gáudio dos que tanto o estimam – seja ele o Punk, o Supla, o Elvis ou, simplesmente, o Vovozinho!

Resta ainda um receio plenamente justificado: - tudo, depois da primeira vez, parece ficar mais fácil. E não será surpresa se, enquanto estas linhas são escritas, Neguinho, esse cãozinho querido, ande de novo a driblar funcionários da Prefeitura, confundido como cão vadio - o que, na realidade, nunca foi!

E o receio é plenamente justificado! - Afinal, neste mundo cão, em que o mais sagrado direito de viver em paz é profanado pelos próprios homens, mesmo um pacato e inofensivo cachorrinho, fiel e espontâneo guardador de portões, calmo amante da liberdade, bem pode não ter vez, enquanto, paradoxalmente, tantos outros, cujos atos estão bem longe de serem recomendáveis, gozam de plena liberdade para dar curso aos seus mais degradantes instintos.

Mas... o fecho, desta vez é bastante otimista: - Notícias recém-chegadas contam que Neguinho finalmente foi adotado e, há algum tempo, curte sua feliz velhice, junto à bondosa família que o retirou das ruas.

Que assim seja!!!

Fonte> Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

sexta-feira, 29 de março de 2024

Carolina Ramos (Redenção)

Se por estas páginas já passaram, cães, gatos, cavalos e até uma borboleta, quem diz que uma águia não pode entrar, sutilmente, no contexto de uma vida, viabilizada por uma página impressa? - Provo que sim, neste miniconto.

REDENÇÃO

A revista chegou-lhe às mãos por acaso, escolhida, entre muitas, numa sala de espera qualquer. O artigo era encimado por apenas uma palavra - Curiosidade. E o que poderá haver de mais oportuno para atrair as atenções do que essa palavra chave?!

Aquela página contava que a águia é uma ave longeva. A mais longeva de todas as aves - chegando a viver cerca de setenta anos! Os primeiros quarenta, representam o seu apogeu, seguido de um período bastante sério que põe à prova o poder de decisão dessa potente criatura.

Chegada ao período crítico, aquela águia sente que suas garras não são mais as mesmas, agora demasiado longas, maleáveis, sem mais lhe oferecerem forças necessárias para segurara presa indispensável à própria manutenção. O bico, agora mais longo, encurvado na ponta, cada vez mais se torna um verdadeiro estorvo, na hora de alimentar-se. E assim, também, as penas volumosas e pesadas – empecilhos evidentes para largos voos.

Da soma de tudo, agiganta-se o impasse revelador: - Deixar-se morrer, ou tentar reverter o problema?!

Bem curto, no entanto, o período de indecisão, antes que a águia se lance ao espaço e ganhe altura, a valer-se, dos parcos recursos que suas asas, já bastante pesadas, ainda lhe oferecem.

Chegada ao alto da montanha, resoluta, a águia bate o bico, forte e seguidamente, contra uma parede de pedra qualquer, até conseguir despedaça-lo. Sem jamais desistir e sem deixar-se abater pela dor lancinante!

- A partir de então, corajosa e dona de uma tenacidade inacreditável, aguarda por cerca de cento e cinquenta dias, até que novo bico torne a crescer, para com ele arrancar, uma a uma, as longas e tortas unhas, permitindo que novas e potentes garras voltem a nascer também, a garantir-lhe defesa e futura subsistência.

Como se isto não bastasse, também as penas velhas e pesadas, que a impediam de voar, são extraídas com estoicismo, complementando a reforma perfeita.

Revigorada, afinal, aquela águia, sem tardança, lança-se ao espaço num autêntico voo de redenção que lhe facultará mais trinta anos de vida intensa e produtiva!

Perplexa, a moça fechou a revista, desinteressada de tudo mais que a mesma pudesse lhe oferecer, além daquele fabuloso artigo.

Ninguém, naquela sala de espera. Ajeitou o corpo cansado na poltrona como em colo de mãe, deixando que as pálpebras descessem devagarinho. Chegava a duvidar daquilo que lera! Seria mesmo possível? Ou... mera ficção?!

Sofrida, por instantes, permitiu que sua vida inteira perpassasse por detrás das pálpebras fechadas, tal como retrocesso de filme de curta mensagem, mostrando-lhe, sem pausas, o quanto vivera e o quanto mais poderia viver se... liberta do peso das asas e das limitações impostas aos próprios voos.

Logo, como num milagre, a nova criatura, meio águia, meio mulher, ergueu-se decidida, atirando-se, de peito aberto, contra as paredes de pedra do seu frágil ego, agora valorizado ante si mesmo.

Arrebentou-se toda! Sofreu o que pensou não suportar!

Mas, estóica, a partir daquele instante, libertou corajosamente aquela ave cativa e triste, há tanto tempo engaiolada dentro dela mesma.

Sem mais sentir nos ombros o peso daquelas tão pesadas "penas", lançou-se no espaço, ao encontro de horizontes promissores, mais amplos, mais ciaros... E muito mais sadios do que aquele que nublava o seu olhar sofrido e que, de-fi-ni-ti-va-men-te, ousava ultrapassar.

Fonte> Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

domingo, 3 de março de 2024

Carolina Ramos (Ming)

Devagarinho… chego ao último cãozinho que encantou a existência de quem muitas vezes o abraçava, a enxugar naquele pelo macio algumas lágrimas, em fuga aos inevitáveis desacertos da vida, calados por conveniência.

Testemunhos espontâneos, como este, comprovam que, os animaizinhos que acompanham nossos passos, vida afora, fazem parte do maravilhoso acervo que não apenas consola, mas também enfeita o dia a dia de quantos, por saberem amá-los, conseguem o privilégio de por eles também muito serem amados.

O último "bichinho" de estimação desta narrativa, é um cãozinho pequinês. Chamava-se Ming, graças ao nariz arrebitado, que nada tinha a ver com a personagem de Lobato, mas fazia lembrar distantes terras chinesas e suas dinastias milenares, de acordo com a origem da sua raça.

Ming foi comprado em Riacho Grande, cidadezinha à beira da represa Billings, entre São Paulo e Santos. Era o menor cãozinho da ninhada. Por isso mesmo, o escolhido, passando a ser meu companheiro inseparável, a partir daquela data!

Em 1965, a ciática apanhou-me de jeito agudíssimo. Engessada de meio corpo, fiquei presa ao leito por três dias, entre ais e uis de intensidade alarmante. Foi então que o meu querido Ming perdeu a noção de tudo, inclusive do próprio tamanho!

Ao ouvir-me gemer, postava-se de guarda no corredor, à entrada do meu quarto, latindo desesperadamente para impedir que alguém se aproximasse de mim.

Sua veemência sempre foi maior que o porte! Mais tarde, o mesmo aconteceria, quando trocada a casa pelo apartamento fronteiro ao mar.

Eu descia com ele para passear a fim de que não sentisse falta do amplo quintal a que estava acostumado. E então as coisas mais se complicavam!

Era só ver pelas imediações um cão qualquer, geralmente três ou quatro vezes maior do que ele, meu minúsculo defensor, o Ming, agigantava-se, atirando-se ao pretenso adversário com ímpeto de alarmar!

Naqueles instantes, que me apavoravam, eu procurava salvar aquela desvairada "formiguinha" da sanha das feras que encontrava pelo caminho e contra as quais se atirava desafiante, como se nunca tivesse visto a própria imagem num espelho!

Temendo vê-lo estraçalhado por algum "pitbul" adversário, eu o erguia, pelo peitoral, até onde meu braço podia alcançar, enquanto aquela "coisinha" minúscula e esperneante, lembrava pequena aranha pendente de um fio, a esbravejar e a desafiar canzarrões que simplesmente o ignoravam, quando poderiam calar aquele valente escarcéu com uma só dentada.

Ming... Que saudade desse cãozinho querido - único modelo que posou ao vivo para uma de minhas telas. E como era difícil conseguir que aquele irrequieto cachorrinho permanecesse imóvel, por instantes, em cima de uma cadeira, para que meus pincéis, pouco destros, pudessem captar o brilho dos seus olhos, o tom da sua pelagem cor de mel e a rebeldia daquele narizinho arrebitado que o destacava dentre os demais cãezinhos já citados.

Apesar dos percalços, o retrato conseguiu ficar bastante fiel, merecedor de elogios da consagrada pintora Guiomar Fagundes, que, ao ver a tela, enviou-me um recado, muito especial, afirmando que me queria para sua aluna.

Embora, naquela ocasião, isto fosse absolutamente impossível, segui à risca o sábio conselho que ela graciosamente acrescentou: - "dê uma leve pincelada branca na ponto do nariz do seu cãozinho" - o que, fielmente executado, acrescentou um brilho úmido e muito especial àquele narizinho petulante.

E aquela pincelada especial, que acrescentou vida ao retrato do meu Ming, sempre me reportará à grande Guiomar Fagundes e, também, à preciosa oportunidade por mim perdida, de não poder aceitar, momentaneamente, aquele seu espontâneo convite, bastante significativo quanto honroso e que, lamentavelmente, não teve ocasião de ser repetido, já que a mestra partiu, em definitivo, não muito depois.

A foto da tela que retrata o Ming enfeita a capa deste livro. E a pincelada sugerida pela grande Guiomar Fagundes, lá está, valorizando-a.

Sigo a discorrer sobre o meu pequenino-grande amigo, lembrando o enorme susto que um dia ele meu deu! Morávamos ainda na Ponta da Praia, quando, num fim de tarde, eu abrira o portão com cuidado, com o Ming trançando meus pés, como sempre. E foi quando, de repente, aquele cãozinho indisciplinado viu um gato qualquer saltar no passeio oposto. Sem perda de minuto, Ming agilizou suas perninhas curtas saindo-lhe ao encalço e atravessando intempestivamente a rua.

Tudo aconteceu rápido demais! Gritei... e, desesperadamente, cobri os olhos com as mãos, ao vê-lo sumir sob as rodas de um caminhão, que sequer tivera ocasião de ter o freio acionado.

Desalentado, o motorista deteve o veículo um pouco adiante, vindo ao meu encontro gaguejante, a desfazer-se em desculpas. - "Me perdoe… pelo amor de Deus! Eu nem cheguei a ver o seu cachorrinho... não sei como isto foi acontecer! Me perdoe... Me perdoe, por favor!" - o pobre homem estava arrasado!

A esse tempo, entretanto, eu já sorria... apontando-lhe o Ming, que atravessara a rua entre as rodas do caminhão e, apesar do susto, lá estava, no passeio oposto, a desacatar o gato que sumira ressabiado por detrás de um muro! Ming fazia o seu escarcéu costumeiro, sem a mínima noção do susto que nos pregara. E nem, tampouco, do tremendo risco que enfrentara! São Francisco, naquele instante, estaria tão feliz, quanto eu, com certeza! E quanto o pobre caminhoneiro, também!

E uma reflexão impõe-se, fazendo saltar a pergunta, ainda que tardia:

- Será que em tempos atuais, tão diversos quanto adversos, aquela cena seria a mesma? Será que alguém, certo de ter atropelado um animalzinho de estimação em frente à sua dona, e, tendo possibilidade de escapar, acelerando o carro e fugindo à responsabilidade, teria, em vez disso, sensibilidade e coragem suficientes para estacionar seu caminhão e enfrentar, cara a cara, o desespero de quem, com os próprios olhos, vira o seu querido cãozinho desaparecer sob as rodas do veículo por ele dirigido?!

Não seria bem mais fácil calcar o acelerador, deixando tudo para trás, sem mais problemas?!

Pois é... admiravelmente, não foi isso o que aquele homem simples fez! E, se, displicentemente, agora o chamei de simples, que se leia nobre, sem favor algum. Que Deus tenha recompensado a sensibilidade daquele motorista - é o que pede minha tardia admiração.

E  o tempo passou... Como sempre, depressa demais!

Os filhos cresceram. O Ming, não... Mas, isto não quer dizer que tenha sido poupado pelo implacável peso da idade. Mudamos para o bairro do Boqueirão, Tínhamos, agora, à frente, aquele mar de Vicente de Carvalho, nem sempre verde como cantado pelo poeta, mas sempre encantadoramente lindo!

Mas... O que não é lindo vem agora... a constatar que a vida por vezes é carrasca. E até mesmo bastante cruel.

Apesar de querer muitíssimo bem àquele cãozinho, que tanta ternura trouxe a minha vida, coube, justamente a mim, ter de aceitar, tão só por piedade e sem outra qualquer alternativa, os argumentos do veterinário que garantiu, compungido, que nada mais seria possível fazer para aliviar o sofrimento daquele cãozinho que ganira de dor, por uma noite inteira, sob os olhos atônitos da família que o tentava confortar.

Já bastante velhinho e quase que totalmente cego, nosso tão querido Ming fraturara o maxilar inferior, o que, dolorosamente, o impedia de se alimentar. E sofria demasiado! - Suplício que aquele valente e querido cãozinho estava longe de merecer.

Nada mais poderia ser feito! - A sentença, implacável: - Ming, aquele heroico e fiel companheiro de longa data, precisava ser sacrificado.

Sem mais me alongar na descrição que ainda hoje me faz sofrer, digo que, embora de coração sangrando, eu mesma tive que dar o sim para que tudo fosse consumado.

Drama acontecido no tristíssimo janeiro de 1977 – podendo ser somado ainda como angústia menor, às demais acumuladas nas proximidades daquela mesma data. Mas... esta é uma outra história que não cabe aqui.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Carolina Ramos (Histórias da Bisa)

Certo dia… a Bisa espiou pela janela e viu um bando de passarinhos a revoar ali por perto e pensou. Esses pássaros são parte de uma grande família que se espalhou por aí.

- Papai, mamãe, filhos, netos e até bisnetos...

Será que aquele casal de pássaros que gerou todo esse belo clâ alado, teria chegado mesmo até os bisnetos?!... Difícil saber!

O espaço é imenso!... E também imenso é o mistério que envolve esse espaço, não permitindo imaginar qual o parentesco existente entre aqueles pássaros e aquela outra avezinha pousada num galho, que de longe observava, quase que indiferente, o voo daquelas asas ligeiras a se afastarem dela cada vez mais, sem sequer imaginar se voltariam ou não, algum dia.

E, então, Bisa olhou os bisnetos que brincavam alegremente à sua volta.

Lembrou-se de que: - Logo, logo... ela mesma é que estaria de partida, deixando para trás, um total sempre crescente de algumas criaturínhas que dividiam com ela as alegrias de viver!

Alegrias que não conseguiam ficar caladas dentro deles. E, por isso mesmo, enchiam a casa toda de uma algazarra que não deixava dormirem em paz nem o gato preguiçoso e muito menos aquele cãozinho estabanado que tudo fazia para participar das brincadeiras infantis.

Continuava a pensar: - Quando chegasse a sua vez, ao contrário do que acontecia agora com aqueles pássaros vistos da janela, era ela que, em definitivo, iria embora! E logo seria esquecida por aqueles pequeninos travessos, que desde já, mal tinham tempo para lembrar-se de que ela existia. A não ser quando lhe entregavam, de surpresa, um ligeiro abraço. Um abraço tão rápido, que nem dava tempo para ser retribuído com a mesma espontaneidade e com o dobro de amor.

Seria esquecida, sim! E, com certeza, bem depressa! Já que a vida é assim mesmo, tem pressa para chegar ao Além. 

E foi justamente aí que o plano começou a brotar na cabeça daquela Bisa, que, só não era branca, porque ela era vaidosa e não deixava que assim ficasse.

Contudo, não era nada agradável àquela bisa saber que logo mais seria esquecida. - Mas... Como alguém poderia ser lembrado, depois do derradeiro adeus?!

Retirou, ao acaso, um livro da estante. E, por acaso, o livro era de sua autoria. Folheou-o sem ler. Sabia o que lá estava escrito. Seu pensamento estava longe, porém... Voava junto àqueles pássaros vistos lá da sua janela.

E foi quando, de repente, aquela ideia surgiu tomando posse dela, e acendendo uma luz faroleira no horizonte!

- Sim... Por que não escrever um livro especialmente para aquelas cinco criaturinhas – três bisnetas e dois bisnetos? Os cinco teriam tempo de ter acesso ao que esse livro lhes pudesse contar - dois daqueles pequeninos ainda sequer sabiam ler!

A Bisa já tentara fazer isso, certa vez, escrevendo para os filhos… e depois, para os netos... Não dera certo! O livro que pretendera ser para crianças, falava sobre bichinhos, mas... a linguagem evoluíra sem querer, indo além do pretendido.

Mais autobiográfico do que infantil, o texto fugira praticamente à finalidade. A linguagem não era adequada às crianças, tal como acontecera naquela aventura extraterrestre narrada em seu livro "Um Amigo Especial" - que agradara a tantos leitores, porém... Leitores adultos, não propriamente juvenis, como objetivara.

Desta vez, haveria de ser diferente. Tinha o respaldo das palavras do poeta luso, Fernando Pessoa, uma vez que ele assim se manifestara: 

“Nenhum livro para crianças deve ser escrito para crianças."

-Êpa!... Um caso para pensar!

E a decisão acabou por chegar, sem muita espera:

– Aquela bisa resolveu que: - Contaria uma série de histórias edificantes, perfeitamente acessíveis às crianças, mas... teriam que ser histórias verdadeiras! Completamente isentas de fantasia ou ficção! Histórias vividas por alguém bastante importante e que pudessem ser úteis pela vida inteira, contribuindo, positivamente, para a formação do caráter dos seus bisnetinhos, não apenas na infância propriamente dita, mas principalmente, na adolescência, fase perigosa e de capital importância.

Bisa suspirou fundo para ganhar fôlego. Estava pronto o canteiro, ou seja, a decisão fora tomada.

Faltava ainda o ingrediente principal, ou seja, aquela semente viva, a alma do livro. Tão somente aquele enredo a ser carinhosamente escolhido, plantado e cultivado até virar uma história concreta, com base na verdade e digna do mais absoluto crédito.

Tudo bem... Mas, que história deveria ser essa, dentre tantas dignas de serem escolhidas?

Importante que fosse uma história bonita! Bastante bonita! E não somente bonita... edificante, também!

Uma História real! E, melhor ainda, se vivenciada em nossos dias. Uma história que comprovadamente merecesse ser contada! Não uma historinha inventada ou simplesmente uma verdade desvirtuada e enfeitada para agradar.

A decisão não tardou: - O assunto precisava ter fôlego transcendental. E méritos comprovados que justificassem a sua passagem à posteridade!

Foi o que decidiu aquela Bisa ao conversar consigo mesma, ternamente disposta a plantar a semente do bem no coraçãozinho daqueles seus cinco bisnetos: - Ângela e Sara - quase duas mocinhas. E seus três priminhos, os irmãos – Hosni, Lina e Tarik. Este último, ainda bem novinho. Conhecido pela bisa apenas por fotos, já que residiam em São Paulo e aquele ano, 2021, em que viera à luz, dificultava contatos, com suas restrições e pandemias.

A ideia literalmente caiu do céu, naquela tarde em que a Bisa leu na internet que Carlo Acutis, jovem adolescente de origem italiana, falecido há alguns anos, seria beatificado. O resumo da História de sua edificante vida foi aprovado no ato, pelo coração alvoroçado daquela bisa.

Carlo Acutis!... Perfeito! Personagem ideal para iniciar uma conversinha amena, e a um tempo séria.

Mas, afinal... Quem seria mesmo Carlo Acutis?! Quem?!...

Precisava informar-se melhor, antes de apresenta-lo às suas crianças!

Bisa colocou os óculos sobre o nariz e saiu apressada, em busca dos pormenores indispensáveis àquele caso que tanto a encantara e que pretendia repassar aos seus pequeninos, com precisão e carinho muito especiais.

- Bem... É aqui e agora, que esta história realmente começa.

E que siga adiante, contada pela voz emocionada desta Bisa aos seus cinco netinhos quando, de ouvidos prontos, desejassem ouvi-la.
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continua…

Fonte: Carolina Ramos. As histórias que a Bisa conta. Santos: Ed. da autora, 2022.

domingo, 31 de dezembro de 2023

Carolina Ramos (E os meus cavalos?) parte 5, final

Segue-se, contudo, uma derradeira aventura, improvisada, que ainda envolve um cavalo,  muito embora esse cavalo trotasse em minha vida, anonimamente e por apenas algumas horas.

Para conta-la, no entanto, o salto terá que ser bastante grande. E se digo salto é por que, de repente, lá pelos meus setenta e poucos anos de idade, a vida deu-me de surpresa um derradeiro passeio a cavalo.

Foi em São Bento do Sapucaí, cidade ao pé da serra de Campos do Jordão, que a inusitada aventura aconteceu. 

Há dias, lá estávamos hospedados, meu marido, eu e a neta Mariana, que teria no máximo uns cinco ou seis anos de idade.

Às tantas, Mariana demostrou que gostaria de passear a cavalo. Algumas gotinhas do sangue da avó, estimuladas pelo contato mais íntimo com a natureza, devem ter-lhe borbulhado nas veias.

O avô Cláudio pôs-se ao largo, logo descartando a ideia. Pegando o pião na unha, aceitei a proposta com entusiasmo, esquecida até mesmo das naturais restrições impostas pela idade.

Neta e avó logo cedo, deliciavam-se a passear, sem pressa pela estrada pouco movimentada, ladeada por altas árvores que, vez ou outra, cediam espaço generoso para que a paisagem se impusesse, tépida e dourada de sol.

Em conversa animada, seguiam ambas a passo lento, em suas montarias, quando, de repente, sucedeu exatamente aquilo que em linguagem popular pode ser chamado de "repeteco" daquilo que acontecera lá em Campos do Jordão, na Lagoinha - já relatado com minúcias.

Desta vez, um gato, amoitado à beira do caminho, saltou atravessando subitamente a estrada, com risco de ser atropelado pelas patas do cavalo por mim montado que, por sua vez, "passarinhou" violentamente, erguendo-se nas patas traseiras em toda sua altura!

Para mim, motivo de júbilo! Um mata saudades delicioso que me permitiu constatar, feliz, que meus tradicionais dotes de boa amazona, embora adormecidos, ainda estavam perfeitamente em dia... E isto na casa dos setenta! - Exultei, como se de repente tivesse retornado à primavera daqueles deliciosos quinze anos... tão longínquos!

Entretanto, ao tentar casar minha emoção com a da netinha, percebi decepcionada, que, Mariana, olhos muito assustados, ameaçava chorar, implorando, urgentemente, para que a ajudasse a descer do seu cavalo.

Tentei acalmá-la.

- O que é isso, querida?! A vovó está acostumada com cavalos desde pequenininha! O meu assustou-se... mas eu não estou assustada, não! Até que gostei do que aconteceu! Desde menina, quando um cavalo se erguia nas patas, pondo-se em pé, é que eu mais gostava! E olhe... Nunca um deles me derrubou! Nunca, mesmo, querida!

- Mas eu quero descer! - choramingava Mariana inconformada, sem dar ouvidos ao discurso.

E então, desisti de acalmá-la... Fiz o que a neta pedia, uma vez que o seu derradeiro argumento me convenceu plenamente.

De olhos marejados, Mariana, enfática, fez-me uma só pergunta... E, o tom angustiado dessa pergunta atou-me de pés e mãos;

- Mas, vó... e se o MEU cavalo resolver fazer a mesma coisa que o SEU cavalo fez?!...

Acudiu-me a imagem daquele rapaz de nariz empinado estatelado no chão, embora, graças a Deus, ileso. E foi o suficiente! - Sem mais argumentos, curvei-me ao veemente pedido da neta.

Foi também naquele exato momento, que minha inesperada e derradeira aventura hípica encerrou-se em definitivo. Convenhamos, até que já era hora!

Neta e avó voltaram para casa a pé... a puxar pelas rédeas dois pangarés dóceis, sem dúvida felizes por não terem alguém a lhes pesar no lombo.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Carolina Ramos (E os meus cavalos?) parte 4

Balão encerraria a lista dos cavalos que enfeitaram minha juventude, mas... ainda há um outro cavalo, cujo nome rima com o dele, e que não pode deixar de ser mencionado: - o Avião.

E, ao cita-lo, humilde e antecipadamente confesso: – o Avião foi o único cavalo que, em qualquer tempo, cheguei a temer!... Foi ele que quase roubou a fama de boa amazona que me era atribuída desde pequenina!

Por quê? - Bem... É que o Avião tinha fama de bicho bravo... coisa que seus antecedentes confirmavam de sobejo.

Fora rejeitado pela Força Pública, por indisciplinado.

- Depois disto, algo mais precisará ser dito?!

Mesmo aquele que tivera a ousadia de compra-lo para explora-lo comercialmente, somente o alugava para rapazes que comprovassem saber montar... e muito bem!

Mesmo assim, o seu proprietário fazia questão de, antecipadamente, eximir-se de qualquer responsabilidade, em caso de possível acidente.

E bastou que eu tomasse conhecimento disto, para que o Avião entrasse no rol de minhas juvenis utopias. A irresponsabilidade dos meus catorze anos sentiu-se desafiada. Embora guardasse segredo, eu queria porque queria dar uma voltinha naquele mal afamado "avião"!

Mas... como e quando poderia isso acontecer?!

Para a adolescência, barreiras praticamente não existem. O perigo induz ao desafio. E a irresponsabilidade, em geral, é quem comanda as ações!

As férias daquele ano terminavam dali a alguns dias. Com apenas catorze anos, eu aparentava ser já uma mocinha - embora com miolo de menina. O que, em última análise, poderia significar que juízo e senso de responsabilidade talvez não tivessem acompanhado, palmo a palmo, o desenvolvimento daquela meninota, que, embora tímida, não tirava do rol de suas ambições um passeio, ainda que ligeiro, naquele calamitoso Avião proibido. 

Mas... o que fazer para vencer tantas barreiras?!

Sábado. A turma jovem preparava-se para nova cavalgada no dia seguinte. Cada um escolhia a sua montaria, reservando-a, de véspera, pelo telefone.

- Não tive dúvidas! Seria agora, ou nunca! - Pedi o Avião!

A resposta, como de esperar, veio bastante responsável, do outro lado da linha: - Esse cavalo é perigoso! Só o alugamos para quem saiba montar... E muito bem! E também não nos responsabilizamos pelo que possa acontecer.

Apesar do aviso, confirmei:

- Pode mandar o Avião - "a pessoa" sabe montar...

Creio ter sido essa uma das raríssimas vezes em que desmenti as palavras de minha mãezinha, que sempre afirmava com orgulho: - Minha filha não mente... nem quando sabe que a verdade a prejudicará! - palavras que procuro honrar, até hoje, apesar daquela exceção.

Contudo, em última análise, eu não mentira, sabia montar mesmo, com destemor, com técnica e até mesmo com certa experiência, desde garotinha, o que me levava àquela audácia, dando preferência aos cavalos rejeitados por serem fogosos, ariscos, ou velozes em demasia. Coisas de jovem - quem já o foi me entenderá.

Meu pai havia chegado a Campos do Jordão na véspera, para levar de volta minha mãe e eu. Seria a minha última chance.

Cedo, na manhã seguinte, lá estavam os cavalos no pátio, prontos para o passeio à espera dos respectivos cavaleiros.

Sem perda de tempo, cheguei-me ao Avião. Embora com certa dificuldade, consegui monta-lo sem ajuda. Não houve tempo hábil para que aquele que trouxera os cavalos vencesse o pasmo, ao notar a minha imprudência. Muito menos, para tentar corrigi-la.

- Assim que se sentiu cavalgado, o fogoso Avião provou logo quem era. - Arremeteu "voo", num galope aceso, sem respeitar sequer o que tinha à frente, e, muito menos quem tinha no lombo.

Surpresa geral! Ante o ímpeto do animal, todos se afastaram dando-lhe passagem. E, em galope aceso, aquele Avião, "a jato", ganhou a estrada.

Foi o início do Deus nos acuda! Quem disse que aquela garota atrevida colada ao lombo daquele cavalo doidão, tinha força suficiente para domar o dorso de um ciclone?!

Entreguei-me a Deus e, a única coisa que consegui, com a ajuda d'Ele, foi não permitir que aquele cavalão maluco me atirasse ao chão e me pisoteasse sem dó (castigo até que merecido!).

No mais, o tal Avião fez o que bem quis! Foi por onde bem entendeu e fez o que lhe deu na telha, enquanto aquela moleca irresponsável, nele grudada como um carrapato, prometia a si mesma que só sairia de cima daquele cavalão doido, se lhe levasse o couro junto.

Não sei quando... e não sei como, mas... depois de dar as voltas que bem quis, o Avião resolveu ceder ao meu empenho para que retomasse a mesma estrada que nos levaria de retorno ao ponto de partida, embora mantendo sempre aquele galope infernal que não permitia a menor tentativa de ser freado.

Creio mesmo que Deus teve pena de mim! Apenas por interferência divina, aquele cavalão indomável acataria afinal, minha derradeira tentativa de comando, dignando-se a dar aquela meia volta de retorno, pondo a salvo, assim, os brios de quem, a esse tempo, apenas aspirava por manter-se na sela.

À chegada, pude ver, de longe, uma corrente de mãos formada por várias pessoas, inclusive meu pai. Tentavam fechar a estrada a ver se o corcel desvairado diminuía a marcha. Tudo inútil! A corrente foi rapidamente desfeita, antes que o brutamontes a rompesse e atropelasse todo o mundo com sua audácia.

Ao entrar no pátio da pensão, o Avião como que desligou os "motores". Parou, resfolegante, naquele mesmíssimo lugar de onde atabalhoadamente partira. 

Eu ainda estava como que grudada nele, quando meu pai chegou junto a nós, rosto suado e lívido. Nos seus olhos severos, havia uma expressão indefinida, que me assustou... Mais, talvez, do que o medo causado pelo desvario do Avião!

Não o consegui encarar. Ele já estaria a par de toda a história daquele cavalão. Meu sentimento de culpa era grande! Bem maior do que eu!

Entretanto, para surpresa minha, apesar do seu gênio forte, meu pai não me dirigiu uma palavra sequer de reprimenda.

Com certeza, naquele espaço de tempo, ele já tomara conhecimento da fama daquele cavalo indisciplinado, e, intuíra o perigo que a filha enfrentara, concluindo que as proporções do susto bastariam como lição.

Por minha vez, depois de tantos anos passados, analiso, com olhos de hoje, aquela situação. O que pretenderia aquela garota adolescente, com a audaciosa atitude que lhe poderia ter roubado a vida?!

Questiono-me, invadindo retroativamente meus próprios sentimentos, procurando entender o que teria movido àquela menina tímida que eu realmente era, a expor-se perigosamente de tal forma?!

A conclusão uma só: - Necessidade de afirmação, coisa inerente às ações de qualquer adolescente. Não para mostrar a alguém do que é capaz, mas, tão somente, para provar a si mesmo que é alguém.

Perante os demais, entretanto, tudo não passou, certamente, de mera traquinagem e de um susto merecido, que pedia em resposta alguns petelecos paternos, já que, naquele tempo, palmadas corretivas, quando merecidas, eram válidas.

Contudo, ao relembrar, hoje, a cena e o consequente susto, eu ironicamente reconheça que, no final de tudo e apesar dos pesares, no fundo da alma daquela menina-moça, mais menina do que propriamente moça, deveria persistir aceso, ainda por muito tempo, o rastilho daquela vitória, a suplantar tudo o que de negativo acontecera, E que fora justificado pela realização de tão ousado sonho!

Embora tímida, e apesar do susto, aquela menina provara a si mesma que, mesmo com todo antagonismo à sua volta, lograra por si só dar um passo à frente, rumo à conquista daquele equilíbrio e confiança indispensáveis para chegar ao amanhã à sua espera. E que já lhe batia à porta.

Aprendera a assumir e a defender-se dos próprios erros. Aprendera a enfrentar com coragem os riscos criados por ela mesma. Ciente de que o êxito absoluto depende, principalmente, da confiança em sua própria competência, mesmo que seu valor não seja ainda reconhecido pelos demais. Mas aprendera também que é preciso não subestimar os riscos, para chegar ao sucesso absoluto, com senso de responsabilidade indispensável para dosar impulsos e alcançar a vitória sem traumas.

Afinal, apesar do susto, aquela jovem conseguira o que queria, amparada pela própria determinação, mas, também, com a proteção da Fé, que jamais a abandonou. Como saldo positivo, entendera também, que algumas atitudes podem conter certa aura de vitória, mesmo que o verdadeiro sentido dessa aura tão somente venha a ser reconhecido e usufruído por quem a conquistou.

- Assim sendo, ao tecer estas considerações, embora hoje desaprove aquele ato imprudente, concluo, com um pouco mais de tolerância e até mesmo com benevolente sorriso de vitória, que aquela garota, (tão distante do que sou agora), tinha, sim, certa razão para comemorar tal feito!

Afinal, apesar do susto e com o amparo de Deus, voltara daquela perigosa aventura, não apenas inteira e muito mais amadurecida... E também, o que não pode ser esquecido, literalmente, "sem cair do cavalo!"

Continuando a garimpar no terreno das hipóteses, arrisco ainda uma pergunta para desvendar outro dilema: – Será que aquele olhar significativo de meu pai não incluiria, lá bem no fundo, não apenas susto, mas também, quem sabe, uma pitadinha de surpresa ou, arrisco ir além, até mesmo uma secreta admiração pela façanha da filha?!

Façanha, sim, uma vez que, dentre tantos que a testemunharam, quem se aventuraria a repeti-la?!

Não teria essa pontinha de orgulho sustado os cascudos e também o sermão que aquela inconsequente garota sabia merecer?!

Não indago gratuitamente. Note-se. Meu pai, homem de ação e de poucas palavras, naquela ocasião, não aplaudiu e nem recriminou o acontecido, sem que se pretenda insinuar que o tenha aprovado. Mas... aquele pai bastante severo, agiu como se, de certa forma, minimiza-se a imprudência da filha, que não ouviu dele a reprimenda esperada e, sem dúvida, bastante merecida!

E o peso desta afirmação escuda-se num fato conclusivo:

- Tudo aquilo acontecera num janeiro. Dois meses depois, ou seja, em março, aquela mesma adolescente teria conhecimento de que um dos seus presentes de aniversário de 15 anos, data emblemática, seria, nada mais nada menos, que um lindo cavalo, de nome Expresso, cuja história foi antecipada na crônica - Férias na Fazenda – páginas atrás.

O pretendido presente, embora frustrado pelas circunstâncias já reveladas, não fora cancelado com base no incidente - o que seria o óbvio a acontecer. E mais...As responsabilidades inerentes àquele presente traziam consigo providências a serem tomadas por quem o recebia. Logo, a doação de um cavalo não poderia deixar de ser fruto de um acordo entre os doadores e meu pai. - Sendo que meu pai, por sua vez, já garantira até uma baia para o Expresso, no Clube Hípico de São Vicente. 

Assim, as evidências validam as suspeitas de que havia um complô bastante afetivo, que certamente incluía meu pai, e que, apesar do acontecido, não fora desfeito por ele, como seria lógico esperar.

A própria vida, por si, acabou por decidir o contrário. 

Ou... quem sabe a previdência Divina?!

E aqui fique o registro: - Em minha juventude, foi aquela a última vez, em que banquei a amazona.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Carolina Ramos (E os meus cavalos?) parte 3

Voltando aos cavalos - já que o capítulo lhes pertence. A fazer jus à simpatia que a autora tem por eles, mais três episódios vêm à tona, tendo-os como principais atores.

Campos do Jordão - Dois desses episódios vieram à luz nessa linda região paulista, alvo principal de férias anuais, em minha juventude.

Um daqueles deliciosos janeiros, guardião das férias, aconteceu quando minha adolescência cursava ainda o ginásio, lá pelos idos de 1938.

A adolescência, todos sabemos, é fase bastante importante para os jovens, a incluir urgência de firmação da personalidade e, também, uma certa audácia, como se a vida fosse a cada passo nova conquista. Um tremendo desafio a ser enfrentado com desassombro e ausência total de medos.

O preâmbulo faz-se necessário. Para um adolescente, ter medo é símbolo de derrota. Algo constrangedor e inadmissível. Caso esse medo não seja dominado, e se agravado pela timidez, atrapalhará seus passos por toda vida.

Precisamente, isto é o que se constata após franca e corajosa autoanálise. E é preciso lembrar que era precisamente esse, o período enfrentado nos episódios que ora serão rememorados.

A Pensão de dona Eulah, em Campos do Jordão, depois da Vila de Capivari, encostava-se ao morro que fecha a estrada, tendo, à direita de quem ia, o desvio que leva à Lagoinha.

Geralmente, essa pensão, bastante familiar, cômoda e simples, recebia os mesmos hóspedes a cada janeiro, na maioria ingleses, como a proprietária, ou, alemães, como seu marido. E, também, alguns brasileiros - minha mãe e eu entre eles.

Vez ou outra, aparecia também por lá gente nova. O que aconteceu, no ano em foco. E quem chegou daquela vez, dentre outros, foi um rapazote de nariz empinado que - com base no que dizia, considerava-se superior aos demais que não tinham a sua nacionalidade. Gabava-se, entre outras coisas, de ser um bom cavaleiro.

Não raro, seus apartes irônicos chegavam a ser constrangedores, a ponto de Dona Eulah, certa vez, ter-lhe dado, veladamente, um chega pra lá, em plena mesa do café matinal - o que, na surdina, deliciou muita gente.

Mas... por que, acontece este comentário desairoso, fora dos moldes de quem narra? - Simplesmente, porque, como diz o povo - "o castigo vem a cavalo!" - E foi exatamente isso que aconteceu:

Numa daquelas manhãs campesinas, frescas, apesar de douradas de sol, a turma jovem dos hóspedes de Dona Eulah resolveu programar um passeio a cavalo. Claro, que eu fazia parte dessa turma... E também, o tal jovem petulante.

E lá fomos nós, jovialmente, passear pelas bandas daquele recanto belo, já citado, que estende a exuberância do seu paisagismo através de amplos gramados adornados, aqui e ali, por tufos de digitalis - campânulas bastante decorativas, cor lilás, dispostas entre espelhos d'água, a justificar o nome- Lagoinha. 

E foi, justamente, dentro da placidez daquele passeio matutino, que tudo aconteceu:

Cavalgávamos em grupo. Éramos seis... (com permissão da nossa romancista Leandro Dupré), dois rapazes e quatro moças. E eu, a mais jovem delas.

Tudo calmo, até que um pássaro qualquer, pousado à margem esquerda do caminho, espantou-se com o vozerio chegado, que quebrava a placidez ambiental. E, num voo súbito e rasteiro, cortou a frente da pequena tropa. Fato mais do que suficiente para que se descubra se um cavalo é "passarinheiro", ou não.

Para quem desconheça o termo "passarinheiro", que se diga ser ele atribuído àquele cavalo assustadiço, que estranha e reage a qualquer movimento brusco que lhe perturbe os passos. Fato que poderá colocar em situação de risco a quem, incauto, ou menos destro, o cavalgue - candidato a beijar o chão, a qualquer momento, ao menor descuido.

Aquele episódio provou que o Balão era um desses cavalos "passarinheiros", por excelência. E, quem o montava? Justamente aquele jovem de narizinho empinado que se dizia um ótimo cavaleiro - logo, nada a temer.

Mas... o que terá acontecido? 

- Um flash da cena:

Subitamente, aquele pássaro saído da beira da estrada, voou, quase a raspar os cascos do Balão. Este, assustado, desviou o corpo e ergueu-se nas patas traseiras, enquanto o nosso vaidoso herói, atirado ao chão, foi, humildemente provar o gosto que tem a abençoada terra brasileira!

Graças a Deus, tudo não passou de valente susto, sem maiores consequências.

Perplexidade geral! Embora a figura do cavaleiro, irado, a sacudir as roupas e a injuriar a montaria, logo acabasse por provocar reação contrária.

Os risos discretos não tardaram, embora disfarçados em nome da boa educação. Logo depois, quase incontidos, quando cavaleiro frustrado resolveu, quixotescamente, rejeitar "aquele cavalo desastrado!", decidindo-se a voltar para casa a pé, puxando a montaria pelas rédeas - muito embora todos lembrassem termos hora marcada para o almoço - à exceção dele.

E foi aí que entrou a atitude solidária, (que hoje considero ingênua), daquela adolescente, (que era eu) e que, solícita, ofereceu ao jovem de orgulho abatido a possibilidade de ambos trocarem de montaria.

Quem leia este relato, poderá pensar que o dono daquele narizinho em pé, poderia ostensivamente recusar a oferta. Ou, até mesmo sentir-se humilhado com a proposta feita por aquela meninota, julgando-a irônica, embora ainda hoje eu possa garantir que jamais me ocorreria tal indignidade, já que, na maior inocência, pretendi, tão somente, ser útil tentando resolver o impasse.

Com certeza, eu jamais humilharia quem quer que fosse. E, muito menos, quem já deveria estar bastante humilhado pelas circunstâncias.

A surpresa, entretanto, foi o oposto. E deveu-se ao fato daquele cavaleiro vaidoso ter aceito, de pronto, e sem qualquer objeção, o que lhe fora proposto por aquela garota solícita. Muito embora, num rasgo de responsabilidade, ele fizesse questão de alertar: - "Mas... este cavalo é perigoso!" - Ao que a ingenuidade daquela garota prontamente retrucou, com base na "larga experiência" dos tempos da fazenda:

- Não é perigoso, não... Ele é apenas "passarinheiro"... É preciso estar sempre muito atento, ou ele derruba, de surpresa, quem o monte.

Afinal, tudo acabou bem. Trocamos de montaria e o grupo chegou de volta para o almoço, sem qualquer problema, nem atraso. 

E o Balão? Balão comportou-se de maneira impecável - um verdadeiro gentleman.

O melhor de tudo, entretanto, foi constatar que, a partir daquele incidente, não mais ouvimos à mesa, ou em lugar algum, as bravatas deselegantes e as depreciações constrangedoras, por parte daquele que, de repente, ao cair do pedestal, virou um simpático amigo. E o saldo foi ainda mais lucrativo - pois acabamos por ganhar um companheiro cordato, nada arrogante, o que tornou os passeios seguintes muito mais agradáveis e proveitosos.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.