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sábado, 6 de dezembro de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Agora, Inês é morta”


A frase se tornou um ditado popular que expressa uma decisão já foi tomada, uma ordem expedida, um fato consumado, uma oportunidade perdida ou um erro grave cometido, sem possibilidade de retorno. Quando é utilizada, reflete de imediato uma situação irreversível do ponto de vista fático, perante a qual qualquer ação no sentido de modificá-la, revela-se inútil. 

Por incrível que pareça, essa expressão se originou numa tocante história de amor entre D. Pedro I, príncipe herdeiro de Portugal e dona Inês de Castro, nos idos do século XIV. A partir da tragédia que permeou esse relacionamento amoroso, seu significado é apenas um – de que não adianta fazer ou tentar fazer coisa alguma ou chorar pelo leite derramado, pois a situação não se reverte, o estrago já está feito, o que era possibilidade virou certeza, restando induvidoso ser tarde demais para resolver ou mitigar o problema.

A charmosa Inês de Castro era a dama de companhia predileta da esposa do príncipe D. Pedro I. Era filha de D. Pedro Fernandes de Castro, mordomo-mor do rei D. Afonso XI de Castela e da dama portuguesa Aldonça Lourenço de Valadares. Seu pai era neto, por via ilegítima, de D. Sancho IV de Castela, um dos fidalgos mais poderosos do Reino de Castela.  

D. Pedro, herdeiro do trono português, casou-se com dona Constança, porém foi pela sua mais bela dama de companhia que ele viria a se apaixonar perdidamente, ficou por ela, como dizem vulgarmente, “arriado dos quatro pneus”. E esse proibitivo romance obviamente não foi aceito pela Corte, na conservadora Europa daquele tempo. E tamanho foi o incômodo daquele romance de alcova, que o Rei de Portugal mandou exilar dona Inês de Castro num distante castelo, situado nos limites da fronteira com a Espanha, esperando que o proposital isolamento operasse o efeito do esquecimento entre os dois, tentativa vã - diga-se de passagem - pois apesar nos limitados meios de comunicação daquele século, os amantes continuavam a se corresponder frequentemente, como de resto acontece nas melhores famílias da atualidade.

Com a morte de dona Constança, surgiu para D. Pedro a oportunidade de ouro de finalmente realizar seu sonho e desposar dona Inês, mesmo contra a vontade paterna. Por isso fez gestões no sentido de providenciar seu imediato regresso à Corte para com ela se unir, desta vez sem impedimentos, o que não foi suficiente para deixar de escandalizar a nobreza de Portugal, fazendo surgir  aberta hostilidade entre pai e filho, pois era intenção do rei realizar o casamento do seu primogênito com uma dama da nobreza, de sangue azul, iniciativa solenemente repudiada por D. Pedro, que recusou incisivamente esse novo casamento de fachada, com alguém que não amava.

Do relacionamento dos dois amantes, visto pela nobreza como absurdamente irregular, resultou intensa prole (4 filhos), o que serviu para agravar ainda mais as já deterioradas relações entre o Rei e o Príncipe, exacerbada pela boataria da ameaça política dos fofoqueiros de plantão, que se dedicavam a especular quem seria desses rebentos o futuro herdeiro do trono, todos torcendo para que o Rei D. Afonso IV tomasse uma posição mais firme, drástica se fosse necessário, no sentido de pôr fim àquela incômoda e instável situação.

Essa oportunidade surgiu quando o Rei, aproveitando a ausência de D. Pedro em rápida viagem, foi pessoalmente com alguns fiéis escudeiros até onde se encontrava dona Inês e sem mais delongas, a executaram sem piedade, provocando sua morte, como era de se esperar, a profunda fúria e justificada revolta de D. Pedro contra D. Afonso IV, situação que perdurou até o falecimento deste último, quando então D. Pedro se tornou de fato e de direito o oitavo rei de Portugal em 1357, com o título de D. Pedro I.  

Vendo-se legitimado no trono, fez o novo monarca o que toda pessoa vingativa faz com seus adversários, ontem ou hoje: perseguiu e matou de forma particularmente cruel e sofrida cada um dos assassinos de D. Inês, arrancando-lhes o coração antes do golpe fatal, escapando ileso apenas um deles, que conseguiu fugir para a França e já em seu leito de morte, anos depois, conseguiu ser perdoado pelo seu abominável crime.   Consumada a vindita, D. Pedro mandou construir um imponente túmulo para D. Inês de Castro no mosteiro de Alcobaça, para onde trasladou o corpo de sua amada. 

Reza a lenda que antes da inumação do corpo para sua definitiva morada, Dom Pedro I promoveu uma macabra cerimônia de coroação do cadáver, obrigando todos os nobres da corte, que antes a hostilizavam, a beijarem a mão sem vida do cadáver, como forma de submissão, desagravo e público reconhecimento de que ela fora um dia a verdadeira rainha de Portugal. 

Outra lenda, tão improvável quando essa, diz que as lágrimas de D. Inês, vertidas quando estava prestes a ser assassinada pelo Rei e seus asseclas, formaram a Fonte das Lágrimas em Coimbra, no interior da Quinta das Lágrimas belo sítio cercado por jardins exuberantes e matas históricos (onde também existe a Fonte dos Amores) à margem esquerda do Rio Mondego, que nasce na Serra da Estrela e deságua no Atlântico junto à Figueira da Foz.. 

Com um tema propício a tantas especulações e usado popularmente para definir situações irremediáveis, a música popular brasileira não deixou por menos e a banda CE-040, concebeu uma música com essa temática, cuja letra se inspira no controvertido episódio da história portuguesa, aqui narrado:

“Agora é tarde, Inês é morta...
Cedo ou tarde, pouco me importa.
Depois, quem era essa Inês?
E o que foi que ela fez?
Ao menos não dessa vez,
Não quero ouvir clichês. 
Sou eu que vou dizer,
Querer pra mim é poder.
Posso chorar no leite derramado (...)”.

A expressão popular “AGORA, INÊS É MORTA” tornou-se também o nome de banda de punk paulista, que com sucesso, lançou um EP de 6 músicas e outro de 2 denominados INÊS É MORTA (em 2018); os EPs “Abismo” (em 2019); “Mentir” (em 2020), “Sozinha” (2021), “Espectro do Tempo” (em 2021), “Quarta Parede” (também 2021) e “Apogeu”, já no ano de 2022, quando felizmente foi superada a fase mais aguda da pandemia do Covid 19, de triste, sofrida e desagradável memória para todos nós.
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana, da Academia de Letras e Artes da Polícia Militar do Pará e da Confraria Brasileira de Letras, no Paraná. Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro efetivo do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados, é coautor de outros quatro e recebeu três prêmios literários.

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
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segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Mário Rodrigues ( Nosso português de cada dia) “Cabra”

Etimologicamente, cabra significa, segundo todos os dicionários da língua portuguesa, a fêmea do bode.

No dicionário prático ilustrado (Novo dicionário enciclopédico luso-brasileiro publicado sob a direção de Jaime de Seguier, edição atualizada e aumentada por José Lello e Edgard Lello, Porto, 1960), lemos: "Cabra - s. f. (lat. capra) Animal mamífero, da ordem dos ruminantes. Fêmea do bode. Guindaste. Espécie de pequeno peixe avermelhado, também conhecido por cabrita de cabrinra. Fig. Mulher de mau gênio ou que berra muito. Pé de cabra, pequena alavanca de ferro, com uma extremidade bifendida. Cabra-cega, jogo de rapazes em que um deles com os olhos vendados, procura apanhar os outros. Coimbra — Sinete da Universidade. Brasileirismo — mestiço, filho de mulato e negra, ou vice-versa.

Registra o dicionário referido, apenas, o brasileirismo de cabra significando mestiço, mas os nosso dicionaristas definem o termo com inúmeros significados: cangaceiro; guarda-costas; valentão; indivíduo insignificante; mau; imprestável; ordinário; falso; desonesto; bom; leal; de confiança; trabalhador; sabido; enfim, o cabra, tanto pode ser um sujeito da pior espécie como um homem direito no sentido exato do termo.

Cabra bom, diz ainda hoje o "coronel" nordestino ao se referir ao seu "homem" de confiança, pau pra toda obra, capaz de matar e morrer defendendo a própria vida ou a de seu chefe. "Cabra ordinário", diz o mesmo coronel amargurado, quando constata que o capanga em quem depositava tanta confiança, não passava de um medroso ou desleal, que se evadiu à vista do inimigo, deixou de cumprir o "serviço" encomendado, ou passou-se para o adversário, por maior paga, proteção, na hora exata em que seus préstimos eram mais reclamados.

Na região do Nordeste, dependendo do tom em que se emprega o termo, pode a palavra significar homenagem, injúria gravíssima ou adulação e carinho. É muito comum o pai chamar o filho, menino ou rapaz carinhosamente: “cabra, venha cá. Pegue esse dinheiro e vá comprar o que você me pediu”, ou então, encolerizado, carregando a voz, gritar-lhe: “— Cabra, tome jeito, senão dou-lhe uma surra que até o diabo vai ficar com pena de você!”

Mas... qual a origem do termo para significar capanga e mestiço?

Diz-nos o historiador Gottfried Heinshich Handelmann, "doutor em filosofia e docente privado de História Contemporânea na Universidade de Kiel", em sua História do Brasil escrita em 1859, que a chamada "Divisão Auxiliar mandada de Portugal para o Brasil em 1821, com o intuito de forçar o príncipe dom Pedro a obedecer as ordens emanadas das cortes portuguesas, era muito orgulhosa, e, convencida de sua superioridade sobre as tropas do Brasil tudo fazia para provocar os brasileiros e demonstrar-lhes sua condição de inferiores". Acrescenta: "Em parte alguma eram essas relações tão poucos amigáveis como no Rio de Janeiro onde as tropas, de ambos os lados em maior número, se enfrentavam, e onde de contínuo se provocavam reciprocamente com alcunhas. Vangloriavam-se os portugueses de serem os "heróis de Talavera" (Nova Castela), por sua participação naquela batalha; também os brasileiros queriam ser chamados "Pernambucanos" porque haviam auxiliado a abafar a Revolução de Pernambuco; ainda mais usualmente eram os portugueses, por causa de seu modo pesado de andar, chamados "pés de chumbo", contra o que os brasileiros, de andar saltitante, eram escarnecidos com a alcunha de "pés de cabra", ou, como mulatos, com o de "cabrada".

Ora, se sabe que as tropas brasileiras que se bateram pela nossa independência, era composta em sua quase totalidade de "forças irregulares", aliciadas, principalmente entre a gente de cor, que formava o grosso da soldadesca. Os brancos, de "boa família", como se dizia, eram os oficiais e não se misturavam muito com os inferiores, isto é, soldado rasos.

Terminada a guerra de independência, desmobilizada em grande parte a tropa, os "soldados" passaram ao serviço dos políticos e fazendeiros, e, daí, talvez, começasse a ser chamado de "cabra", para diferenciá-lo do soldado regular. É possível que as autoridades do interior hajam aproveitado, como aliás, aproveitaram os serviços desses soldados desmobilizados para formarem milícias, polícias e guardas municipais encarregados de manterem a ordem, chamados pelo povo de "cachimbo" ou "manichupas", termos pejorativos para demonstrar o desprezo do povo a tais indivíduos. O fazendeiro que no Brasil sempre teve homens armados em seu redor, desde os tempos coloniais, para a defesa contra a indiada rebelde; acrescendo que essa tropa particular era composta exclusivamente de mestiços, deve ter achado apropriado o termo para designar sua gente, generalizando-se então a palavra "cabra" como significado de capanga, guarda-costas, cangaceiro. Convém salientar, que Domingos Jorge Velho, o bandeirante vencedor de Palmares, designava sua gente mestiça como tapuias e em carta ao rei, reclamando recompensas pela redução do famoso quilombo, dizia que não havia no mundo soldados mais valentes do que seus "tapuias", desde que comandados por brancos.

Outra hipótese para a origem do termo com o significado referido é a seguinte: Era comum, o indivíduo encarregado de armar uma tocaia para assassinar alguém, espreitar sua vítima de cima de uma pedra a beira do caminho. Avistado o infeliz, essa mesma pedra servia de trincheira e de apoio da arma para a segurança da pontaria.

Então, poderia alguém dizer: "estava em pé numa pedra feito uma cabra" — por analogia ao costume desta andar trepada em pedras.

Assim, talvez, haja surgido o termo, antes mesmo da alcunha atribuída aos divisionários portugueses.

Fontes:
Mário Rodrigues, in sessão “Palhoça”, Revista Jangada Brasil. Outubro 2010 - Ano XIII - nº 141. http://www.jangadabrasil/revista/pa14110.asp.htm. Acesso em 28.12.2012 (site desativado)
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quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Pernas, pra que te quero?”


As expressões idiomáticas estão presentes em todas as línguas e culturas. Como tal, caracterizam-se por não ser possível identificar seu significado pelo sentido literal das palavras que as compõem, e sim pelo que querem dizer ou o que significam, após a consolidação do uso no nosso português de cada dia. 

Nesse passo – e sem intuito de trocadilho - "PERNAS, PRA QUE TE QUERO?" é uma delas, tipicamente brasileira que significa correr, se mandar, se colocar a salvo, fugir de algo ou alguém ameaçador ou perigoso, para um lugar seguro.

Sua origem não é clara, permanecendo do campo do indefinido, mas a frase se tornou popular ao longo do tempo, como uma forma de dizer: "me ajudem a fugir", "me ajudem a correr" ou ainda, “se eu tenho pernas, é para correr”. 

Não há um registro específico que aponte um autor ou um momento exato da sua criação ou como teria ela surgido, que ao longo do tempo passou a ser repetida por jovens, adultos e idosos, para evidenciar que “vazaram” da cena que se mostrava perigosa, sinistra ou potencialmente ameaçadora. 

A ideia central é de que as pernas, úteis e indispensáveis para caminhar, também servem para a fuga, para correr em direção a um lugar onde alguém não se sente vulnerável. É uma forma de traduzir o valor da agilidade, a necessidade de se locomover, para livrar-se de algo incômodo ou arriscado.

Dúvida não resta que é uma forma coloquial e humorística de dizer que alguém precisa se afastar rapidamente de uma situação embaraçosa. A expressão é frequentemente usada em contextos como “ele viu o meliante e saiu correndo!”, ou “pulei o muro da prisão e pensei: pernas, pra que te quero?”...

Além de chistosa, ela pode ser usada em diferentes situações, com a mesma conotação de fuga, de evasão. Em relatos de medo ou exigindo retirada estratégica, às vezes ela está subentendida, nem precisando ser pronunciada: “De volta a Belém e morando na CEUP (...), presidida à época pelo notável santareno José Gumercindo Rebelo, por 3 anos fui mais um entre os 75 universitários que batalhavam em busca da graduação, precariamente albergados naquele conhecido endereço da Av. 16 de Novembro, de muitos cômodos e um grande incômodo - pois o casarão era tido como mal assombrado. Encerrado o “FANTÁSTICO” da Rede Globo a cada domingo, todos corriam desarvorados, atropelando-se, para se confinar nos dormitórios, deixando ligada a TV da sala de estar. Era o invariável momento da aparição de uma diáfana figura feminina, envolta numa túnica alvacenta e com fama de “saliente”, pois surgia da penumbra dos corredores tentando sofregamente abraçar os retardatários. Eu nunca tive receio das coisas do além, mas... pelo sim pelo não, ficava trancado no meu quarto...” (APL, meu discurso de posse).

A capital paraense é conhecida por suas lendas, e o saudoso escritor Walcyr Monteiro as abordou exaustivamente em seu livro “Visagens e Assombrações de Belém” (Smith Editora, 2007) verdadeiro repositório de crenças, lendas e mitos urbanos, incorporadas ao acervo da cultura da Amazônica. Nesse clássico da assombração, a cada arrepiante episódio narrado por Walcyr, vem à mente o quão oportuno se mostra essa expressão, considerando que ninguém é suficientemente corajoso para as coisas do além. 

A língua é o maior legado cultural de um povo e reflete, além de seus traços comportamentais, o modo de viver da sociedade onde é cultivada. Sabemos que alguns aspectos linguísticos estão arraigados ao vernáculo e fazem parte da maneira de falar da população. Não existe possibilidade, ainda que remota, de tentar modificá-los em busca de uma adaptação ao chamado “padrão culto”. 

“PERNAS, PRA QUE TE QUERO?” ultraja a gramática porque não existe concordância entre o vocativo “pernas” e o pronome que o retoma (te). Imagine-se em informal roda de conversa, alguém dizendo “PERNAS PRA QUE VOS QUERO?” (ou, “PERNAS, PARA QUE QUERO VOCÊS”?) como seria gramaticalmente correto. Restaria evidente a arrogância intelectual, senão o esnobismo do infeliz interlocutor. Falando nisso, o único que pode usá-la sem medo de errar é o Saci-Pererê, pois tem somente uma perna, conforme a icônica imagem popularizada por Monteiro Lobato, nos idos de 1918.

“Bahia Batuque Orixá”, de Saulo Fernandes, exalta o orgulho de ser da Bahia e a vibração singular do carnaval soteropolitano. A canção passeia por bairros emblemáticos de Salvador e, pelo título e pelo refrão, ressalta sua carga espiritual ao invocar o “batuque” e os “orixás”, referências históricas e religiosas da tradição africana no Brasil. Em alguns trechos da música o autor enfatiza a expressão “PERNAS, PRA QUE TE QUERO?”, importante para pular o carnaval.

“Sou da Avenida Sete Portas
Pernas, pra que te quero?
Pra pular, balançar
Pra ferver
Sou da Avenida Sete Portas
Pernas, pra que te quero?
Pra pular, balançar
Pra ferver”

É patente que essa expressão do nosso cotidiano não poderá jamais ser modificada para o “falar culto”, produto raro ao alcance de requintada minoria, pois ela se consolidou exatamente desse modo trivial, destoante das regras e dos círculos literários, fulcrada no linguajar falada pelo povo em geral. Mas não deixa de ser uma curiosidade gramatical merecedora de registro, haja vista que para a maioria, ela passa completamente despercebida. 
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.
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quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Do Arco-da-Velha”

Atualmente essa expressão serve para qualificar uma narrativa ou alguma coisa que é extemporânea, absurda, improvável, extraordinária e que não parece verdadeira. Quem não conhece as histórias do “arco-da-velha” ou as coisas do “arco-da-velha", para indicar algo remoto, muito antigo, do tempo do ronca. Mas como surgiu essa expressão tão corriqueira? 

Ainda do século XIX, “arco-da-velha” era empregado para descrever o arco-íris. E a própria Bíblia narra como surgiu o primeiro arco-íris. Em Gênesis 9:16, Deus afirma que o arco-íris “serve como lembrança de uma aliança feita por Deus com o homem, aliança que indicava que Ele não voltaria a enviar um dilúvio para destruir a vida na Terra”. 

E “velha”, qual seria o motivo? O que uma senhora em idade provecta tem a ver com esse fenômeno meteorológico? Ainda é a Bíblia que subentende que o termo “velha” representa a velha e indissolúvel aliança que Deus firmou com o homem, razão pela qual o arco-íris também é conhecido como arco-da-aliança. 

Em suas origens portanto, “arco-da-velha” não queria dizer que algo ou um episódio é muito antigo, mas que é incrível, fantástico, surreal, pois abstraindo sua explicação bíblica, o arco-íris, com sua incrível e multifária (multiforme) beleza, sempre se cercou de fabulações delirantes, como a do pote de ouro, ou que ele está bebendo água - quando seus extremos tocam a superfície do mar, de um rio ou de um lago - ou até a suposta e fantasiosa mudança instantânea de sexo de quem o vê bem de perto, resultando dessa última assertiva, sua utilização como símbolo mundialmente aceito das opções sexuais do ser humano.

Há quem especule no sentido de que o correto seria “arca-da-velha” porque “arca” e “baú” possuem o mesmo significado, bastando lembrar que nossas avós e bisavós guardavam seus pertences, suas relíquias e os seus tesouros pessoais ou familiares em suas arcas de madeira, “fechadas a sete chaves”. 

Uma história do arco-da-velha seria, portanto, uma narrativa tirada “do baú de uma anciã”. O conhecido “conto da carochinha” era usado com essa mesma intenção, neste caso, derivado de “carocha”, expressão do regionalismo português que significa feiticeira, uma mulher velha e assustadoramente feia. Daí o sentido de muito antigo, com que se invoca “Arco-da-Velha”, que oscila entre a Bíblia e o paganismo, sem que se possa atribuir a sua origem a um, com exclusão completa do outro. Mas é induvidoso que ambas as fontes contribuíram no decorrer do tempo, para o absoluto sucesso dessa expressão.

Existe uma copiosa produção literária, principalmente de livros infantis, contando as histórias do “arco-da-velha”, sendo uma das mais antigas o livro editado em 1913 pela Quaresma e Cia. Livreiros Editores, do escritor Viriato Padilha, assim como denominações em músicas, livrarias, brechós, antiquários, cafés e demais estabelecimentos comerciais onde se vendem antiguidades, encontrados em qualquer cidade brasileira.

Arco da Velha dá nome a uma das melhores bandas de fado portuguesas e isso demonstra a popularidade da expressão, aqui e na terra de Camões. Mas o que melhor se extrai da expressão são mesmo as muitas histórias “do arco-da-velha” que contam por aí, algumas com pouca ou nenhuma verossimilhança com a realidade. 

Quem já foi a Caxias do Sul teve a possibilidade de visitar a excelente Livraria e Café “Do Arco da Velha” um local muito bonito, famoso pelo atendimento impecável e pela infinita variedade de livros, temas e gêneros, tudo isso com a possibilidade de saborear um excelente café, desses ambientes acolhedores e convidativos, onde o cliente é capaz de passar o dia todo.

Na música, o Grupo Arco da Velha é um sucesso com seu repertório de consagrados cantores da MPB com o CD do mesmo nome e a playlist da Kboing com famosos interpretes internacionais. É algo que vale a pena ouvir. Finalmente, o livro infantil da escritora Elida Ferreira denominado “Histórias do arco-da-velha” (Bagaço, 3.ª edição, ano 2019), ricamente ilustrado, dá conta que dona Iaiá, que transformava tudo que chegava às suas mãos em brinquedo, encantava a todos contando lindas e antigas histórias. Quem de nós não ouviu tantas delas, na nossa saudosa infância? 
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras (Floresta/PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Puxa-Saco”


No uso doméstico, é um equipamento de tecido com formato de biruta de aeroporto, que na vertical serve para guardar sacos plásticos, nele inseridos pela parte de cima e retirados por baixo. Geralmente fica pendurado na copa ou cozinha e serve até de elemento decorativo, com vários desenhos, frases, bordados e estampas diferentes, dependendo do gosto das donas de casas e podem ser comprados em lojas de utilidades domésticas ou de artesanato. 
 
Sem qualquer alusão ao puxa-saco domiciliar, velho refrão proclama também que “O cordão dos puxa-sacos cada vez aumenta mais...”. Esse sim e não aquele, é objeto da crônica de hoje, para que fique aclarada a sua origem e em que sentido é usado no nosso português de cada dia. 

É de sabença geral que “puxar saco” é a atitude de bajular (do latim bajulare) servilmente a outrem. Não é difícil encontrar quem pratique abertamente a bajulação, pelo vezo compulsivo de entregar elogios excessivos e derramados, que visam afagar o elogiado, seja para conseguir recomendar-se, buscar aprovação, conseguir prebendas ou merecer aplausos dos circunstantes.  

Eles medram em todos os ambientes. Nos escritórios, escolas do ensino fundamental ou superior, empresas, quartéis, clubes, redações dos jornais, nas associações civis e comerciais, nada escapa à nefanda presença dos aduladores. Os chamados “mãos-de-seda” são exemplos rematados de subservientes à cata de simpatias, da sonhada promoção funcional ou do recebimento de alguma outra vantagem, que a falta de talento lhes sonega.

A televisão tirou proveito da sabujice, quando na “Escolinha do Professor Raimundo” liderada pelo genial Chico Anísio, divertiu o público com a figura de Rolando Lero, imortalizada pelo ator Rogério Cardoso, que antes de responder a qualquer pergunta, derretia-se num preâmbulo que virou sua marca inconfundível: “Amado Mestre, meu Incontestável Guru, quisera eu ser um escravo fugitivo, para poder abrigar-me com seguridade, no quilombo do vosso coração”. 

Armando Volta, o “Sambarilove”, também aluno da “Escolinha”, protagonizado pelo ator David Pinheiro, era outro bajulador inveterado, usando como artifício para agradar o mestre, presenteá-lo sempre com mimos escolhidos a dedo, alardeado com o seu conhecido bordão: “A propósito Digníssimo, vinha eu para essa maravilhosa aula, quando vi esse belo estojo de canetas e aí pensei - porque comprá-lo, porque não comprá-lo; compreio-o, aceite, é de coração, sem o menor interesse...”, com essa estratégia garantindo boas notas, facilitadas pelas “dicas” dadas pelo professor para garantir o acerto das respostas.

A figura do bajulador, convenhamos, não deixa de ser um retrato da nossa sociedade, onde há sempre alguém disposto a rasgar elogios para obter vantagens. São tipos que vivem na ânsia de cair nas boas graças de alguém ou de serem beneficiados por esse comportamento servil. Jamais comentam algum assunto diretamente, pois seu DNA lhes pespegou o palavreado meloso que antecede qualquer intervenção. É patético, mas verdadeiro. E agem como se isso fosse à coisa mais natural na face da terra. 

Há os que não precisam dessa encenação para serem aceitos, felizmente a maioria. São bem resolvidos, não cultivam esse costume, talvez por terem na memória a máxima de Shakespeare: “Aquele que gosta de ser adulado é digno do adulador”. Ser amigo desse tipo de pessoa é complicado, porque todo bajulador é um falso. A bajulação é a moeda falsa que só circula por causa da vaidade humana. A cada louvaminha, o ego do lisonjeado infla tal qual um baiacu rajado, após ser fisgado na água turva dos manguezais.

Mas como surgiu essa expressão? Dizem que se originou nos quartéis brasileiros como apelido dado aos recrutas e praças que nas viagens ou deslocamentos da tropa, carregavam os sacos de suprimentos e os pertences dos superiores. Na caserna ronda a maldosa versão sobre o coronel que tendo esquecido o relógio, pergunta a hora para o soldado bajulador, obtendo como resposta: - “Que hora o senhor quer que seja, comandante?...”. Com o passar do tempo, “Puxa-saco”, tal qual o recruta da piada pronta, passou a se referir  ao sujeito servil que lisonjeia outro, prestando-se a vilanias para obter algum ganho, por mais módico que seja.

Em contrapartida, ser adulado e até gostar disso é aceitar as oblações, deixar-se inebriar no turbilhão do fogaréu incensado pelo bajulador, vulgarmente conhecido como escova-botas, capacho, chaleira, louvaminheiro, mesureiro, sabujo e servil, termos que descrevem com nitidez o badameco que agrada alguém que lhe pode propiciar vantagens. 

Quer identificar um deles? Observe um figurão sendo entrevistado. Atrás dele tem sempre um baba ovo sorrindo, concordando, aplaudindo. São “papagaios-de-piratas” assumidos. Os demais que se danem para conseguir aparecer ao lado do chefão! Aspiram eles ser da copa e da cozinha do mandão, precisam ganhar a importância, precisam lisonjear pois do contrário não se afirmam. 

Na música brasileira, Zeca Pagodinho arrasou, interpretando “O PUXA-SACO”, composição de Alamir Filho, Levy Viana e Roberto Lopes da Costa:

“Botou o nome do patrão no filho e deu
a filha dele, orgulhoso para batizar
o cara vira bicho se escuta alguém falando
mal do chefe, ele quer brigar
não mede sacrifício e diz que é o seu ofício fazer tudo
e mais um pouco que o patrão mandar
Se o chefe chora, ele consola, também chora
sem demora pega um lenço para enxugar...
se a piada é sem graça, nem disfarça, ele é o primeiro
puxa o coro para gargalhar, é o queridinho do patrão
é protegido, baba ovo, pela saco,
é um carrapato que no saco dá!"

Cansada de ser preterida, a gaúcha Luciana Azevedo criou um curso, batizado de ”Puxa-saco sem frescura”, que ensina adular de forma metodológica, promovendo o aprendizado dos seus alunos nessa arte, sem que eles percam por completo a dignidade – se isso é mesmo possível. Seriam os primeiros bajuladores profissionais do País, aptos para a tarefa em troca de progressão funcional nos locais de trabalho. Diz ela que o retorno tem sido muito positivo, segundo o feedback dos próprios alunos treinados para essa tarefa.

Por igual, o escritor Ademar Gomes lançou o livro de humor intitulado “Manual do puxa-saco” (Editora Venture, 1993). A obra, caprichosamente ilustrada, fornece dicas irônicas sobre como se tornar um bajulador de sucesso, trazendo valiosas informações como a eliminação da própria personalidade, a mitigação do amor próprio, o jogo de cintura para agradar o chefe, gargalhar das suas piadas, mesmo aquelas manjadas, etc. O adulador sabe que vai ser olhado com reserva pelos demais, mas... e daí? Aos interessados, boa leitura!
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras (Floresta/PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.
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quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Duas caras”


O notável escritor, filósofo, professor, romancista, artista plástico, ensaísta, poeta, político, advogado e imortal da ABL Ariano Suassuna, um dos maiores nomes da literatura brasileira, em uma de suas apresentações, narrou que certa vez uma senhora indiscreta, ao saber que ele era do signo de Gêmeos, teria afirmado que todo “geminiano” possui “DUAS CARAS”. 

Apanhado de surpresa viu-se Suassuna confrontado com a crença que associa as pessoas de Gêmeos com o estereótipo de "duas caras", sinônimo de falsidade. de quem age sem firmeza de propósitos, sempre “acendendo uma vela a Deus e outra ao diabo”. De pronto, respondeu Ariano em tom jocoso:

- E você acha que se eu tivesse duas caras, eu usaria esta?...

A invertida demonstra a agilidade mental, a sagacidade e o bom humor do festejado dramaturgo paraibano, que de forma leve e inteligente, usou a vil acusação para engordar seu vasto repertório de situações cômicas.

Embora “DUAS CARAS” seja geralmente utilizada em sentido pejorativo, não se pode circunscrevê-la aos nascidos sob Gêmeos, signo que felizmente não tem o monopólio de albergar em seus limites cronológicos o tanto de gente falsa que existe em nossa volta, pois eles frequentam com desenvoltura e posando de sinceros, todas as demais faixas imaginárias do Zodíaco.

Atualmente não mais se discute a origem da expressão "DUAS CARAS". Remonta ela à dualidade inerente à natureza humana e ao vezo da manipulação, alcançando quem age com hipocrisia, falsidade e dissimulação, dependendo da situação. A expressão não tem uma origem única e pontual. Sofreu desenvolvimento gradual, encontrando paralelos em metáforas muito antigas, que evidenciam e desnudam a dualidade das pessoas. 

Exemplo mais remoto de “dupla face” foi o de Judas, ao entregar Jesus aos sacerdotes, não em troca de sinecuras, porém movido pela cupidez argentária de receber trinta moedas de prata. Ele era o tesoureiro do grupo e como tal, o responsável por administrar o dinheiro da comunidade de apóstolos, vendo na ignóbil oferta oportunidade imperdível de acumular riqueza pessoal, da qual, por sinal, sequer pode desfrutar, pois esmagado pelo peso do arrependimento resultante de sua vil traição, enforcou-se. 

Séculos depois, Joaquim Silvério dos Reis repetiu nas Alterosas o gesto infame de Iscariotes, ao trair os inconfidentes em troca do perdão de suas elevadas dívidas com a Coroa portuguesa, aliado ao medo de perder sua patente militar de coronel e seu prestigiado status social. Como o apóstolo maldito, agiu por ganância, oportunismo e interesses pessoais, não propriamente por lealdade à Coroa Portuguesa ou convicção política. Estudiosos da ciência jurídica e da História admitem que a atitude do coronel Silvério dos Reis pode ser considerada a primeira "delação premiada" do Brasil, instituto jurídico através do qual o delator é recompensado por revelar o envolvimento de seus pares. 

A colaboração ou delação premiada, pelo qual o investigado em um processo penal recebe benefícios em troca da deduragem. está prevista em diversas leis brasileiras e em qualquer delas, as informações do “colaborador” causam superlativo estrago, tanto que a protagonizada por Silvério dos Reis fulminou a Inconfidência Mineira e motivou o martírio de Tiradentes.

Há hipóteses, entretanto, que dão ensejo a acusações infundadas sobre alguém ter agido com “duas caras”. Como exemplo, vale lembrar o caso do ex-jogador da Ponte Preta de Campinas (SP). Na partida final do Campeonato Paulista do de 1977 disputada com o Corinthians, uma das mais memoráveis da história pois o Coringão buscava encerrar um longo jejum de títulos do campeonato paulista, no terceiro e decisivo jogo, ele foi expulso no início da partida após uma discussão com o árbitro. 

E sem o seu principal artilheiro, a Ponte Preta foi derrotada por 1-0 e o Corinthians finalmente sagrou-se campeão. Por coincidência, no ano seguinte, o jogador foi contratado justamente pelo Corinthians, o que aumentou a desconfiança de que ele teria facilitado a vitória do seu novo clube, o que nunca foi provado, pois o jogador com veemência sempre negou esse fato, no que foi corroborado pelos demais jogadores da Ponte, assim finalmente se livrando de ser rotulado de “duas caras”. 

É inevitável que essa repudiada expressão surja da observação do comportamento de indivíduos insinceros, que agem ao sabor da conveniência ou da situação que lhes parece mais favorável, fazendo jus ao rótulo de "falso" ou "hipócrita". A propósito, o vilão Duas-Caras do Batman, é um indicativo clássico dessa dualidade, com um lado bom e outro mau. Virou ele um dos mais famosos "Duas Caras" da nossa cultura, ajudando a popularizar o termo e consolidar a assertiva de que ter “duas caras" é próprio de alguém desonesto, sem decência e sem integridade moral.

O típico “duas caras”, exibe facetas contraditórias, marcadas pela hipocrisia (ostenta uma imagem, diversa do que é na verdade é), pela duplicidade (tem atitudes diferentes em contextos distintos), são vistos como os “morde-e-assopra” pelo povo, pois dizem uma coisa e fazerem outra, que estão “deste lado” mas também “do outro”, que são moralistas inflexíveis mas topam transigir, tudo, claro, em troca de vantagens, ainda que insignificantes.  

O tema é tão palpitante, que assegurou o êxito da novela “Duas Caras”, da rede Globo, exibida entre 2007 e 2008. Aguinaldo Silva caprichou na trama e alcançou grande invulgar sucesso de audiência abordando a história de um homem que, após roubar a fortuna da esposa, assume nova identidade. O enredo pode ser interpretado de várias maneiras, mas torna-se impossível não associá-lo à falsidade, mudança de comportamento, da ocultação de intenções, para concluir sobre existência de diferentes facetas da personalidade de cada um, dependendo da situação que enfrenta ou pretende enfrentar.

Para a Psicologia, a dupla personalidade pode ser resultado de experiências traumáticas ou mecanismos de defesa. Acredita-se que a pressão social pode levar pessoas a mostrar diferentes "caras", para de algum modo tirar proveito. A Filosofia exorta que a falta de autenticidade pode ser justificada pela dualidade do espírito humano. Entretanto, dúvida não resta que o selo de “duas caras” encerra impressão muito negativa sobre terceiro, associado que está à hipocrisia, à falsidade, à enganação, à dissimulação, ao disfarce e à capacidade de alguém se fazer passar por quem não é. 

Na música, tal a expressão descreve um tipo de personalidade falsa, que assim age para enganar os outros, especialmente em contextos amorosos. Tais composições (existem várias na MPB) são frequentemente cantadas para expor a decepção em um relacionamento, quando uma pessoa descobre, sob o peso da decepção, que a outra não é quem parecia ser, sentindo-se traída em sua confiança. A música "DUAS CARAS" de Paula Mattos, usa essa metáfora para expressar a dor de descobrir a infidelidade do parceiro.

“A minha raiva é não ter
aquela raiva de você
deve ser porque não deu, pra te esquecer.
Sofro sabendo que era só um truque
quando beijava tirando o look.
Dói saber que existem duas de você
uma é o meu amor a outra é meu desprazer.
Quem é você?
Quem tá aqui na minha frente
a verdadeira ou a que mente?
Quem é você?
Que dá o céu e tira o chão
a verdadeira ou a que mente
a top 1 na ilusão
e o pior de tudo ainda amo essa decepção
você é duas caras zero coração”

A paulistana Edna Frigato, famosa por seus poemas que exploram a profundidade das emoções humanas e a importância da autenticidade, sintetizou de forma magistral o que se deve pensar sobre esse tipo de gente: “O problema de conviver com pessoas de duas caras é que a gente nunca sabe a qual delas nos dirigir, já que as duas são falsas”. 

Excelente reflexão, diga-se de passagem, para encerrar esta crônica, pois dificilmente poderíamos conceituar de modo mais exato esse abominável desvio de personalidade, como fez numa única e antológica frase, essa carismática pensadora e poetisa brasileira.
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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sábado, 6 de setembro de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Meia tigela”

O premiado romancista e acadêmico Ademar Amaral, comentando em rede social mais uma sandice do títere venezuelano em fim de carreira, que da toca onde está homiziado propôs ao Brasil o envio de uma brigada de mil homens e mulheres do meio rural, sabidamente carentes de qualquer treinamento militar, visando com esse imaginário reforço de infantaria mambembe se defender de eventual confronto com as forças navais americanas, foi cáustico e direto: 
- “Pobre de nós se entrarmos na lorota desse ditador de meia tigela”. 

Ao assim se manifestar, esse grande escritor paraense colocou na expressão “MEIA TIGELA”, toda a repulsa que a bravata lhe causou, enfatizando ainda mais o sentido degradante que ela tem, geralmente dirigida a alguém despido de competência, lucidez, conhecimento ou habilidade naquilo que faz. Muito usada nos dias de hoje, essa designação aviltante surgiu em Portugal na Idade Média. E durante todo o período feudal ganhou força de gíria, de lá chegando ao Brasil com a mesma conotação depreciativa com que foi concebida.

No feudalismo, o bem mais precioso dos suseranos era a terra, que lhes assegurava produção farta e prosperidade, passaporte para o enriquecimento gerado pelo controle do comércio, donde vinha a influência, o mando político, os privilégios e o poder sem contestações em determinada região. Para impulsionar a produção em seus domínios territoriais, possuía a nobreza uma legião de servos incumbidos da atividade agrícola, exaustivo trabalho pago com alimentos, sempre servidos em rústicas e primitivas tigelas.

Havia absoluta necessidade dessa mão de obra gratuita e os servos que se destacavam pela maior produtividade, recebiam suas refeições em tigelas transbordantes de comida, ao contrário daqueles que não cumpriam as metas ditadas pelo patronato, no plantio ou na colheita, punidos com o recebimento de apenas metade da porção dos primeiros, minguada meia tigela de comida e designados pejorativamente como “trabalhadores de meia tigela”. 

Como na Europa, os negros que à força labutavam nas minas de ouro do Brasil Império, na sombria época da escravidão, nem sempre conseguiam alcançar as “metas” que lhes eram impiedosamente impostas. Quando isso acontecia, o que não era raro pela exaustão física e a subnutrição, como reprimenda recebiam apenas metade da tigela de comida e o injurioso epíteto de “meia tigela”, para que todos vissem o infeliz como uma pessoa despida de valor.

Chamar um profissional "meia tigela", longe de ser inconsequente brincadeira, tem sentido deveras ofensivo, porquanto alude a alguém com reputação de medíocre, desqualificado, sem versatilidade no que faz ou se propõe a fazer. E a expressão alcança com a mesma e deletéria intensidade o trabalhador intelectual, técnico ou manual, de vez que o alvo é sempre a pessoa e não o trabalho por ela realizado.

Engenheiros cometem erros graves nos cálculos de uma edificação, onde a falha no dimensionamento da estrutura, resulta na queda do prédio. Médicos se equivocam em cirurgias, como no caso de São Paulo em 2022, onde um cirurgião plástico foi denunciado por 20 pacientes cujos corpos restaram deformados após os procedimentos realizados, desaguando numa enxurrada de denúncias ao CRM/SP e em ações indenizatórias na justiça. Advogados sem preparo e juízes mal preparados desconhecem, vulgarizam ou afrontam o direito das partes. Odontólogos desatentos removem dentes saudáveis de seus aflitos clientes. Professores se perdem em proselitismo político e nada ensinam. Jornalistas deturpam notícias para atender interesses insondáveis, enfim, esta ligeira amostragem inclui o inconsequente comandante italiano que abandonou o “Costa Concórdia”, logo depois que o navio de cruzeiro se chocou com um rochedo e afundou matando 32 pessoas, em janeiro de 2012, todos se igualam como profissionais de “meia tigela”, sem competência em seu ofício, de conceito claudicante, por fazerem tudo muito mal feito. Chamado à atenção pela pintura desastrosa feita num apartamento de luxo, o mela-mão “meia tigela” ainda se saiu com esta:

- É patrão, eu ainda sei fazer pior...

Alguns relatos sugerem que a expressão também era usada antigamente para designar pessoas de baixa posição social, os que não tinham o privilégio de quebrar a tigela em certos rituais familiares, como era comum entre a nobreza da Idade Média. Em qualquer hipótese, a expressão sempre será considerada depreciativa, por isso deve ser evitada em tratamentos mais formais ou em conversas com pessoas sensíveis a alusões discriminatórias. 

Na literatura, o cearense Alves de Aquino, editor da revista Mutirão, que incentiva meritoriamente os novos autores do Ceará, se autointitula o “Poeta de Meia-Tigela”, embora não o seja, pois já publicou obras como  o “Memorial Bárbara de Alencar & outros poemas” (ano 2008) e lançou o livro “Concerto N. 1 Nico em Mim Maior para Palavra e Orquestra - Realidade de Combinações Puramente Imaginárias” (em 2010), nome respeitado das letras cearenses, que se empenha em romper com o lugar-comum em sua poética. 

Na musica popular brasileira, a dupla “Cacique e Pajé” lançou “PESCADOR MEIA TIGELA”, tirando sarro com a classe dos que buscam nas águas, por diletantismo ou profissão, o prazer da pesca ou o sustento da família:

“Pescador MEIA TIGELA gosta muito de pescar
Leva caixa de cerveja mantimentos no picuá
Leva barraca de luxo, leva até a sacaria
Pra trazer peixe pra casa ele sonha com esse dia.

Cadê o peixe pescador MEIA TIGELA?
Pra você não passar fome come pão com mortadela...”

Sequer escapou do injurioso conceito o escrete canarinho. Sob o título de “Seleção Meia Tigela”, o jornalista Leal Júnior, colunista do Portal LJ de Miracema do Tocantins (TO), na edição de 12/10/2024 questionou o pífio futebol da seleção brasileira, que nem de longe lembra a fase gloriosa de craques dignos desse nome que conquistaram cinco títulos mundiais, afirmando sem rodeiros: 

“Ao que parece, não tem jeito; nem mesmo diante do fraquíssimo time chileno (a seleção) conseguiu jogar bem; venceu praticando um futebol decepcionante. Vejo que os brasileiros abandonaram de vez o escrete canarinho, pois, poucas pessoas se arriscam até tarde da noite esperando a bola rolar, e mesmo assim passam o jogo cochilando ou só acordam no outro dia. Infelizmente hoje a realidade é essa! (...). Vamos ficando mesmo com nosso futebolzinho feijão com arroz das séries A e B do brasileirão. Pelo menos vai entretendo! É o que eu penso!!!”

Se bem analisado, dizemos agora nós, é o que a maioria pensa também...
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Conto do Vigário”

A expressão "Conto do Vigário", da qual deriva uma outra igualmente desabonadora - vigarista - diz respeito a golpe, trambique, artimanha, trapaça ou fraude, onde a vítima é miseravelmente enganada por meio de uma história bem elaborada, fantasiosa, rocambolesca, mas bem bolada e convincente. 

Sua origem remonta às antigas, em que os vigaristas, que não utilizavam violência física, porém a lábia como arma de ataque, se passavam por representantes do vigário ou usavam sem pudor a figura do próprio vigário, para lhes emprestar credibilidade, alicerçando melhor seus golpes. 

Assim, "Conto do Vigário" tem raízes históricas lastreadas em práticas enganosas que se popularizaram em Portugal e no Brasil, aperfeiçoando-se através dos tempos, principalmente na era da internet para aplicação de golpes contra os incautos, agora com a decisiva contribuição da inteligência artificial, que adultera com fidelidade a imagem e a voz das pessoas, para divulgação escancarada de mentiras, engodos, burlas e falsificações. 

Em tempos de crise econômica, com elevado desemprego e redução salarial, fazendo aumentar a angústia coletiva, é até compreensível, embora não aceitável, a proliferação de golpes por pessoas despidas de escrúpulos, que se aproveitem da aflição alheia para faturar alto, seja oferecendo produtos ou serviços prometendo excelentes resultados, com quase nenhum esforço e sem sair de casa, desde que mediante determinado investimento, que sem dúvida vai fazer falta ao infeliz, que piamente acredita no suposto milagre. 

Medicamentos anunciados com alarde, que prometem resolver as dores físicas ou psicológicas dos que padecem, são ofertados todo dia pelo rádio ou TV, com a ressalva de que não podem ser encontradas em farmácias convencionais, para serem adquiridos mediante compra virtual, com pagamento adiantado, de insuscetível devolução ou estorno se o “tratamento” resultar frustrado. Puro golpe, com milhares de vítimas engordando a conta bancária dos espertalhões, refinados profissionais do “Conto do Vigário”. 

Também é comum nas redes sociais conselhos sobre como aplicar melhor o suado dinheiro de cada qual, com golpistas acenando com enriquecimento fácil ou investimentos de alto rendimento, o que acaba em decepção, pois nada de milagroso ou imprevisível acontece no mercado financeiro ou no mercado de ações, atrativos irresistíveis para quem deseja acumular fortuna, levando vida mansa. São “pegadinhas” de vigaristas e o final é bastante conhecido: os “investidores” depenados e o pilantra levando vida de barão. Os idosos, por índole crédulos ou necessitados, são as vítimas prediletas dos escroques.

Uma das versões mais anedóticas da origem dessa expressão, envolve uma acirrada disputa entre duas igrejas - do Pilar e de N. S. da Conceição - por uma bela imagem de Nossa Senhora, onde um dos vigários, como forma de encerrar a contenda, propôs que se amarrasse a dita imagem a um burro para deixá-lo escolher a igreja sem interferência de ninguém. Pactuaram que para onde o animal fosse, a venerada Santa ficaria lá. O tal burro, que desde novo pertencia ao vigário da igreja do Pilar e por isso era apegado ao dono, acabou rumando para aquele templo, garantindo àquela igreja a posse definitiva do ícone religioso, revelando-se a esperteza do sacerdote só muito tempo depois. 

Existe uma outra versão sobre a origem da expressão. No século XIX, várias pessoas se apresentavam como se fossem emissários do vigário, solicitando ajuda financeira para que pudesse ser guardada em segurança, suposta mala recheada de dinheiro. Após acumular os mil-réis alheios com essa conversa mole, o espertalhão sumia com a grana recebida, para repetir o mesmo golpe em outras cidades, onde o povo é receptivo e solidário aos pedidos de ajuda. 

Na música brasileira, o festejado Trio Parada Dura interpreta a música “Conto do Vigário”, composição de José Homero, destacando-se a última estrofe do texto poético, que aborda o tema: 

“Casamento não prende ninguém
não obriga ninguém ser otário
se pra um ele é loteria
para mim foi conto do vigário”

Na literatura, o livro do escritor José Augusto Dias intitulado “Os contos e os Vigários”, trata de episódios sobre o “Conto do Vigário”, abordando uma gama de fatos reais que podem ser analisados. Referido livro contém inúmeras referências de fontes importantes, tentando entender esses laços de sociabilidade - se é que se pode chamar assim - entre o vigarista e sua vítima. 

No trecho a seguir pode-se identificar a reação e o sentimento do otário em relação ao ocorrido, que no papel de vítima, talvez desejasse ser ele mesmo o vigarista, daí sua frustração: 

“Aqueles que são enganados acabam finalmente por adquirir a pungente consciência de que se tornaram vítimas de tramoias bem armadas, mas tão poucos procuram a polícia ou a imprensa para reclamar do fato – com isso interrompendo, como já vimos, os circuitos pelos quais tais acontecimentos poderiam chegar a ser posteriormente conhecidos. há dois motivos básico para isso e um deles é absolutamente banal: a vergonha!”

Isto acontece porque ninguém quer passar por otário. Tal premissa, adaptada, burilada e deturpada pelos vigaristas, tornou-se nacionalmente conhecida como é ainda hoje - "Conto do Vigário" - usado para descrever fraude ou enganação, envolvendo história fantasiosa e persuasiva. Nesse contexto, “vigarista” ou “golpista” dá no mesmo: indica quem se aproveita da confiança e da ingenuidade de outrem para tirar proveito, principalmente financeiro. 

O vigarista é e sempre será um trapaceiro, indivíduo cheio de manhas e astúcias; espertalhão, finório e ladino, trampolineiro contumaz em busca de vantagens. Popularmente virou “trambiqueiro”, porém sua saga estará sempre ligada a golpes e fraudes, praticadas com a torpeza dos que nasceram com esse duvidoso talento. Tenha portanto, muito cuidado com eles ou com elas!...
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.
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quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Vestir a carapuça”

Vestir o que mesmo, parente? Afinal, o que vem a ser “carapuça”? 

Segundo o “pai dos burros”, é uma espécie de barrete ou capuz de forma cônica e remonta ao período da Inquisição, em que os condenados eram obrigados a vestir trajes ridículos ao comparecer aos julgamentos. 

Além de usarem uma túnica com o formato de poncho, os acusados precisavam colocar sobre a cabeça um chapéu longo e pontiagudo, conhecido como carapuça. Daí a expressão "vestir a carapuça" ter se incorporado ao português escrito e falado, com o exclusivo sentido de alguém implicitamente assumir a culpa ou colocar-se como culpado, mesmo por algo não expressamente admitido. É como se a pessoa reconhecesse que uma crítica se lhe aplica, embora não lhe sendo sido diretamente dirigida. 

Nesse passo, quando alguém "veste a carapuça" – em sentido figurado e não literal – reconhece que uma responsabilidade ou acusação é procedente em relação a si mesmo. De uso rarefeito na atualidade, os adestradores de falcões ainda colocam carapuças para manter a calma nessas aves de rapina, antes que alcem voos para combater outras aves, principalmente as que adejam nos aeroportos, colocando em risco a segurança da navegação aérea. 

Famosa no universo infantil se tornou a carapuça do Saci-Pererê, o diabinho sapeca de uma perna só, imortalizado na série de livros infantis do Sítio do Pica Pau Amarelo, criação do genial escritor Monteiro Lobato, personagem que vaga solto pelo mundo aprontando das suas, com seu famoso cachimbo aceso na boca e a carapuça vermelha na cabeça.

Na musica popular surgiu o rap “Veste a Carapuça”, onde no texto poético uma dupla viola aos gritos os padrões aceitos da moralidade pública, por isso transcrevemos somente o trecho em que a expressão é mencionada:

 “Bicho sem postura e conduta no rolê,
com esses cinco mango que cê tem,
Só arruma um cd, ouve, veste a carapuça,
Vem falar bonito, finge que gostou,
Fico com a grana e finjo que acredito!..."

Em certos casos, incisivamente se pode interpelar alguém usando a contrário sensu mas com o mesmo objetivo a expressão “Se a carapuça serviu, vista!”... Dá no mesmo, pois em vez de deixar flutuando no ar para ser usada por quem de direito, nessa hipótese, já há um destinatário pré-determinado da acusação, embora continue ele agindo como se não tivesse “culpa no cartório”. 

Em outro contexto usar a expressão “Vestir a carapuça” pode ser oportuno e interessante quando a fala não tem a menor intenção de fazer crítica a outrem, ainda mais quando o dito cujo eventualmente se encontra numa reunião de amigos, mas outra pessoa resolve tomar as dores do suposto acusado. Ouvirá, possivelmente dos demais participantes: - E porque você está vestindo a carapuça, se nada tem a ver com isso?

Sobram exemplos sobre o uso dessa expressão, seja de modo expresso, seja de modo implícito. Maneco era um moleque precoce do interior, que nos anos 40 pegou o vício de fumar escondido dos pais. Juntava suas moedas para comprar cigarros a retalho nas bibocas da rua da beira. Tinha predileção pelo “Terezita”, um mata rato feito com tabaco de Bragança, cuja fábrica, na época, ficava na antiga avenida 1.º de Maio n.º 210 em Belém, famoso pela fortidão, capaz - diziam - de derrubar muriçoca a dois metros numa única baforada. 

Depois do almoço, quando a família se entregava ao deleite da sesta, furtivamente ele se trancava no banheiro e lá dava suas tragadas, em estado de pura catarse. Até que alguém dedurou e o Conselho Familiar resolveu dar um basta naquela situação. Certo dia, fingindo que ressonavam, viram quando ele se escondeu para curtir o vício, oportunidade em que se postaram à frente do improvisado fumódromo, aguardando o fim do espetáculo. Dez minutos depois, ao sair do cubículo, deu de cara com os pais, que sem nenhuma palavra ou gesto de reprovação, se limitaram a fitá-lo duramente e à densa fumaça que foi liberada com a abertura da porta. E sem poder negar o óbvio, Maneco instintivamente “vestiu a carapuça”:

- Vocês vão querer dizer que eu estava fumando aí dentro...

Há pessoas que se sentem ofendidas em face de uma conversa, por entender que o “recado” é para ela. O que podemos fazer, se a carapuça lhes serviu, por se terem identificado com o que foi dito por outrem? Qual o grande problema com as críticas, ciente que somos das nossas falhas? Ninguém nasce com o estigma da perfeição. Resta convencionado que temos 15 minutos por dia para fazer bobagens, pisar na bola, falar o que não devemos, comprar o que não precisamos e a vida toda para se arrepender. Mas convenhamos que só através das críticas, quando procedentes, é que modificamos a nós mesmos.  

Os que, encastelados em posições de mando, se julgam pequenos césares, achando-se inalcançáveis e imunes a quaisquer críticas, ainda que justas, vão sempre “vestir a carapuça” toda vez que surgirem protestos profligando suas arbitrariedades, embora sem se aperceberem que o ato de criticar se assemelha a uma auditoria gratuita ofertada, visando corrigir os excessos. 

Em qualquer situação e para cada um de nós, vale refletir sempre sobre o que foi dito, antes de vestirmos a carapuça. Se a conclusão for de que não corresponde à verdade ou não nos atinge, o barrete na cabeça não nos cabe. Entretanto, se fizer sentido, procure melhorar naquele aspecto, pois só não mudam os inanimados, presente o fato da constante mutação dos seres vivos - e na grande maioria dos casos conhecidos, felizmente para melhor. 
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.
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quarta-feira, 16 de julho de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Rei morto, Rei posto”


"REI MORTO, REI POSTO" é uma expressão que mostra como o poder, a posição de mando e a influência política, profissional ou social, podem mudar rapidamente. Quando alguém perde posição de destaque, outro assume seu lugar de imediato, provando que nesta vida ninguém é insubstituível. É como se um trono imaginário estivesse ou precisasse estar sempre ocupado.

É muito usada para descrever situações de substituição rápida de líderes e/ou figuras influentes. Antigo lema das monarquias, traduz incontestável realidade, pois no momento em que o rei morre, seu herdeiro já é rei, sendo a coroação, com pompa e circunstância, mera formalização daquilo que na prática já ocorreu, pois nenhum reino não pode ficar acéfalo. Exprime a transitoriedade do poder. Quem é poderoso hoje, não será mais amanhã. Os reis passam, a coroa e o cetro ficam. 

Considerando sua origem, essa expressão passou a ser modernamente utilizada em diferentes contextos. Se nos remotos tempos das monarquias europeias, após a morte ou a abdicação de um rei, outro monarca de imediato ascende ao trono, sem interrupção de determinada linhagem de nobres, no mundo profano, é usada para descrever a tendência de se substituir uma figura de poder por outra, sem grandes lamentos sobre o antecessor, na busca por um novo líder, seja ele político, religioso, militar, empresarial, enfim, onde a figura central ou o número um da organização social, precisa existir. 

Não confundir, entretanto, “rei posto” com “rei deposto”, embora seja a mesma a consequência. Em uma ou outra situação, ganha relevo a natureza implacável da sucessão e a imediatidade com que as pessoas costumam substituir figuras importantes, sem muita reflexão sobre seu passado meritório. 

É induvidoso que a expressão se refere ao definitivo desligamento de alguém,  do seu cargo de mando. E quando o “todo poderoso” é apeado do poder, somem também os assessores e serviçais, cabendo ao dito cujo se adaptar e levar a vida como simples mortal, como lembrou Fernando Henrique Cardoso ao sair da presidência da República, sobre ter que fazer o próprio check-in no aeroporto, carregar a própria mala, fazer suas compras ou procurar um táxi.

A observação do ex-presidente nos remete àqueles que imperam em uma instituição por muito tempo, criando vínculos profundos com as demais pessoas. Quando o manda chuva se retira ou é retirado, dissipados os efeitos chorosos das despedidas sinceras ou não, os antigos subordinados já ficam de olho em quem entra, propiciando-lhe calorosa recepção, tudo para cair em suas boas graças e continuar se dando bem, sem nem disfarçar a hipocrisia.

Nos relacionamentos amorosos há o famoso “um novo amor para esquecer o antigo”. A propósito, já foi dito que “ninguém substitui ninguém”, mas essa realidade é duvidosa. Basta perguntar a alguém que amou muito e de repente, foi deixada de lado. Nesse caso, é razoável imaginar que esse “rei posto” (o amor que se foi) deixou marcas indeléveis duradouras, resultantes de um convívio prenhe de momentos felizes, que não podem desaparecer de repente, assim, mal comparado, como se apaga a chama de uma vela.  

Em Portugal, a expressão “Rei morto, Rei posto” é muito utilizada quando as pessoas se aposentam ou deixam em definitivo o trabalho (de forma honrosa ou pela porta dos fundos), e no aspecto amoroso, quando vem a separação.

O escritor José Murilo de Carvalho, no excelente livro que escreveu sobre o nosso mais festejado monarca - “D. PEDRO II” (Companhia das Letras, ano 2007, pág. 21) - narrando o drama que se seguiu à abdicação de Pedro I, usou com exatidão tal expressão: “Quando o Major Frias voltou do Campo de Santana com a notícia da abdicação, várias coisas poderiam ter acontecido (...). O grito de “Viva D. Pedro II”, lançado pelo General Manuel da Fonseca Lima e Silva, irmão de Francisco de Lima e Silva, quebrou o suspense e foi decisivo. como por instinto, a multidão repetiu a aclamação, desfazendo a tensão da expectativa e definindo o curso da história. Rei morto, Rei posto...

Na música popular brasileira, “Rei morto, Rei posto”, cantada por Edú Lobo, com composição de Têtes Raides e Joyce Silveira Palhano, possui o mesmo sentido, em especial na terceira e última estrofe do texto poético:

“Deixa desatar
Deixa a vida fluir
Um dia a verdade vai ter que sair
Mais cedo ou mais tarde não tá mais aí
Por cima do muro ela tem que sair
E a força do escuro não tá mais aí
Com graça e com gosto ela tem que sair
Rei morto, Rei posto não tá mais aí...”

"C'est fini", diriam os franceses, para quem ontem, no topo da pirâmide, era “o cara”, o todo poderoso, o chefão, o número um, que fazia e acontecia - e hoje, no esquecimento, “não deferem nem indeferem” no dizer bem humorado do saudoso jurista e professor Júlio Augusto de Alencar, e amargam inconformados o terrível fel do ostracismo, pois nem mesmo para velório são convidados... 
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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