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quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Vestir a carapuça”

Vestir o que mesmo, parente? Afinal, o que vem a ser “carapuça”? 

Segundo o “pai dos burros”, é uma espécie de barrete ou capuz de forma cônica e remonta ao período da Inquisição, em que os condenados eram obrigados a vestir trajes ridículos ao comparecer aos julgamentos. 

Além de usarem uma túnica com o formato de poncho, os acusados precisavam colocar sobre a cabeça um chapéu longo e pontiagudo, conhecido como carapuça. Daí a expressão "vestir a carapuça" ter se incorporado ao português escrito e falado, com o exclusivo sentido de alguém implicitamente assumir a culpa ou colocar-se como culpado, mesmo por algo não expressamente admitido. É como se a pessoa reconhecesse que uma crítica se lhe aplica, embora não lhe sendo sido diretamente dirigida. 

Nesse passo, quando alguém "veste a carapuça" – em sentido figurado e não literal – reconhece que uma responsabilidade ou acusação é procedente em relação a si mesmo. De uso rarefeito na atualidade, os adestradores de falcões ainda colocam carapuças para manter a calma nessas aves de rapina, antes que alcem voos para combater outras aves, principalmente as que adejam nos aeroportos, colocando em risco a segurança da navegação aérea. 

Famosa no universo infantil se tornou a carapuça do Saci-Pererê, o diabinho sapeca de uma perna só, imortalizado na série de livros infantis do Sítio do Pica Pau Amarelo, criação do genial escritor Monteiro Lobato, personagem que vaga solto pelo mundo aprontando das suas, com seu famoso cachimbo aceso na boca e a carapuça vermelha na cabeça.

Na musica popular surgiu o rap “Veste a Carapuça”, onde no texto poético uma dupla viola aos gritos os padrões aceitos da moralidade pública, por isso transcrevemos somente o trecho em que a expressão é mencionada:

 “Bicho sem postura e conduta no rolê,
com esses cinco mango que cê tem,
Só arruma um cd, ouve, veste a carapuça,
Vem falar bonito, finge que gostou,
Fico com a grana e finjo que acredito!..."

Em certos casos, incisivamente se pode interpelar alguém usando a contrário sensu mas com o mesmo objetivo a expressão “Se a carapuça serviu, vista!”... Dá no mesmo, pois em vez de deixar flutuando no ar para ser usada por quem de direito, nessa hipótese, já há um destinatário pré-determinado da acusação, embora continue ele agindo como se não tivesse “culpa no cartório”. 

Em outro contexto usar a expressão “Vestir a carapuça” pode ser oportuno e interessante quando a fala não tem a menor intenção de fazer crítica a outrem, ainda mais quando o dito cujo eventualmente se encontra numa reunião de amigos, mas outra pessoa resolve tomar as dores do suposto acusado. Ouvirá, possivelmente dos demais participantes: - E porque você está vestindo a carapuça, se nada tem a ver com isso?

Sobram exemplos sobre o uso dessa expressão, seja de modo expresso, seja de modo implícito. Maneco era um moleque precoce do interior, que nos anos 40 pegou o vício de fumar escondido dos pais. Juntava suas moedas para comprar cigarros a retalho nas bibocas da rua da beira. Tinha predileção pelo “Terezita”, um mata rato feito com tabaco de Bragança, cuja fábrica, na época, ficava na antiga avenida 1.º de Maio n.º 210 em Belém, famoso pela fortidão, capaz - diziam - de derrubar muriçoca a dois metros numa única baforada. 

Depois do almoço, quando a família se entregava ao deleite da sesta, furtivamente ele se trancava no banheiro e lá dava suas tragadas, em estado de pura catarse. Até que alguém dedurou e o Conselho Familiar resolveu dar um basta naquela situação. Certo dia, fingindo que ressonavam, viram quando ele se escondeu para curtir o vício, oportunidade em que se postaram à frente do improvisado fumódromo, aguardando o fim do espetáculo. Dez minutos depois, ao sair do cubículo, deu de cara com os pais, que sem nenhuma palavra ou gesto de reprovação, se limitaram a fitá-lo duramente e à densa fumaça que foi liberada com a abertura da porta. E sem poder negar o óbvio, Maneco instintivamente “vestiu a carapuça”:

- Vocês vão querer dizer que eu estava fumando aí dentro...

Há pessoas que se sentem ofendidas em face de uma conversa, por entender que o “recado” é para ela. O que podemos fazer, se a carapuça lhes serviu, por se terem identificado com o que foi dito por outrem? Qual o grande problema com as críticas, ciente que somos das nossas falhas? Ninguém nasce com o estigma da perfeição. Resta convencionado que temos 15 minutos por dia para fazer bobagens, pisar na bola, falar o que não devemos, comprar o que não precisamos e a vida toda para se arrepender. Mas convenhamos que só através das críticas, quando procedentes, é que modificamos a nós mesmos.  

Os que, encastelados em posições de mando, se julgam pequenos césares, achando-se inalcançáveis e imunes a quaisquer críticas, ainda que justas, vão sempre “vestir a carapuça” toda vez que surgirem protestos profligando suas arbitrariedades, embora sem se aperceberem que o ato de criticar se assemelha a uma auditoria gratuita ofertada, visando corrigir os excessos. 

Em qualquer situação e para cada um de nós, vale refletir sempre sobre o que foi dito, antes de vestirmos a carapuça. Se a conclusão for de que não corresponde à verdade ou não nos atinge, o barrete na cabeça não nos cabe. Entretanto, se fizer sentido, procure melhorar naquele aspecto, pois só não mudam os inanimados, presente o fato da constante mutação dos seres vivos - e na grande maioria dos casos conhecidos, felizmente para melhor. 
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.
Fonte:
Texto e imagem enviados pelo autor

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Rei morto, Rei posto”


"REI MORTO, REI POSTO" é uma expressão que mostra como o poder, a posição de mando e a influência política, profissional ou social, podem mudar rapidamente. Quando alguém perde posição de destaque, outro assume seu lugar de imediato, provando que nesta vida ninguém é insubstituível. É como se um trono imaginário estivesse ou precisasse estar sempre ocupado.

É muito usada para descrever situações de substituição rápida de líderes e/ou figuras influentes. Antigo lema das monarquias, traduz incontestável realidade, pois no momento em que o rei morre, seu herdeiro já é rei, sendo a coroação, com pompa e circunstância, mera formalização daquilo que na prática já ocorreu, pois nenhum reino não pode ficar acéfalo. Exprime a transitoriedade do poder. Quem é poderoso hoje, não será mais amanhã. Os reis passam, a coroa e o cetro ficam. 

Considerando sua origem, essa expressão passou a ser modernamente utilizada em diferentes contextos. Se nos remotos tempos das monarquias europeias, após a morte ou a abdicação de um rei, outro monarca de imediato ascende ao trono, sem interrupção de determinada linhagem de nobres, no mundo profano, é usada para descrever a tendência de se substituir uma figura de poder por outra, sem grandes lamentos sobre o antecessor, na busca por um novo líder, seja ele político, religioso, militar, empresarial, enfim, onde a figura central ou o número um da organização social, precisa existir. 

Não confundir, entretanto, “rei posto” com “rei deposto”, embora seja a mesma a consequência. Em uma ou outra situação, ganha relevo a natureza implacável da sucessão e a imediatidade com que as pessoas costumam substituir figuras importantes, sem muita reflexão sobre seu passado meritório. 

É induvidoso que a expressão se refere ao definitivo desligamento de alguém,  do seu cargo de mando. E quando o “todo poderoso” é apeado do poder, somem também os assessores e serviçais, cabendo ao dito cujo se adaptar e levar a vida como simples mortal, como lembrou Fernando Henrique Cardoso ao sair da presidência da República, sobre ter que fazer o próprio check-in no aeroporto, carregar a própria mala, fazer suas compras ou procurar um táxi.

A observação do ex-presidente nos remete àqueles que imperam em uma instituição por muito tempo, criando vínculos profundos com as demais pessoas. Quando o manda chuva se retira ou é retirado, dissipados os efeitos chorosos das despedidas sinceras ou não, os antigos subordinados já ficam de olho em quem entra, propiciando-lhe calorosa recepção, tudo para cair em suas boas graças e continuar se dando bem, sem nem disfarçar a hipocrisia.

Nos relacionamentos amorosos há o famoso “um novo amor para esquecer o antigo”. A propósito, já foi dito que “ninguém substitui ninguém”, mas essa realidade é duvidosa. Basta perguntar a alguém que amou muito e de repente, foi deixada de lado. Nesse caso, é razoável imaginar que esse “rei posto” (o amor que se foi) deixou marcas indeléveis duradouras, resultantes de um convívio prenhe de momentos felizes, que não podem desaparecer de repente, assim, mal comparado, como se apaga a chama de uma vela.  

Em Portugal, a expressão “Rei morto, Rei posto” é muito utilizada quando as pessoas se aposentam ou deixam em definitivo o trabalho (de forma honrosa ou pela porta dos fundos), e no aspecto amoroso, quando vem a separação.

O escritor José Murilo de Carvalho, no excelente livro que escreveu sobre o nosso mais festejado monarca - “D. PEDRO II” (Companhia das Letras, ano 2007, pág. 21) - narrando o drama que se seguiu à abdicação de Pedro I, usou com exatidão tal expressão: “Quando o Major Frias voltou do Campo de Santana com a notícia da abdicação, várias coisas poderiam ter acontecido (...). O grito de “Viva D. Pedro II”, lançado pelo General Manuel da Fonseca Lima e Silva, irmão de Francisco de Lima e Silva, quebrou o suspense e foi decisivo. como por instinto, a multidão repetiu a aclamação, desfazendo a tensão da expectativa e definindo o curso da história. Rei morto, Rei posto...

Na música popular brasileira, “Rei morto, Rei posto”, cantada por Edú Lobo, com composição de Têtes Raides e Joyce Silveira Palhano, possui o mesmo sentido, em especial na terceira e última estrofe do texto poético:

“Deixa desatar
Deixa a vida fluir
Um dia a verdade vai ter que sair
Mais cedo ou mais tarde não tá mais aí
Por cima do muro ela tem que sair
E a força do escuro não tá mais aí
Com graça e com gosto ela tem que sair
Rei morto, Rei posto não tá mais aí...”

"C'est fini", diriam os franceses, para quem ontem, no topo da pirâmide, era “o cara”, o todo poderoso, o chefão, o número um, que fazia e acontecia - e hoje, no esquecimento, “não deferem nem indeferem” no dizer bem humorado do saudoso jurista e professor Júlio Augusto de Alencar, e amargam inconformados o terrível fel do ostracismo, pois nem mesmo para velório são convidados... 
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

Fontes:
Enviado pelo autor
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sexta-feira, 11 de julho de 2025

Colar de pérolas culturais

 
Lavoisier foi guilhotinado por ter inventado o oxigênio.

O nervo ótico transmite ideias luminosas ao cérebro.

O vento é uma imensa quantidade de ar.

O terremoto é um pequeno movimento de terras não cultivadas.

Os egípcios antigos desenvolveram a arte funerária para que os mortos pudessem viver melhor.

Péricles foi o principal ditador da democracia grega.

O problema fundamental do terceiro mundo e a superabundância de necessidades.

O petróleo apareceu há muitos séculos, numa época em que os peixes se afogavam dentro d'água.

A principal função da raiz é se enterrar.

O sol nos dá luz, calor e turistas.

As aves têm na boca um dente chamado bico.

A unidade de força é o Newton, que significa a força que se tem que realizar em um metro da unidade de tempo, no sentido contrario.

Lenda é toda narração em prosa de um tema confuso.

A harpa é uma asa que toca.

A febre amarela foi trazida da China por Marco Polo.

Os ruminantes se distinguem dos outros animais porque o que comem, comem por duas vezes.

O coração é o único órgão que não deixa de funcionar 24 horas por dia.

Quando um animal irracional não tem água para beber, só sobrevive se for empalhado.

A insônia consiste em dormir ao contrário.

A arquitetura gótica se notabilizou por fazer edifícios verticais.

A diferença entre o Romantismo e o Realismo é que os românticos escrevem romances e os realistas nos mostram como está a situação do país.

O Chile é um país muito alto e magro.

As múmias tinham um profundo conhecimento de anatomia.

O batismo é uma espécie de detergente do pecado original.

Na Grécia a democracia funcionava muito bem porque os que não estavam de acordo se envenenavam.

A prosopopeia é o começo de uma epopeia.

Os crustáceos fora d'água respiram como podem.

As plantas se distinguem dos animais por só respirarem à noite.

Os hermafroditas humanos nascem unidos pelo corpo.

As glândulas salivares só trabalham quando a gente tem vontade de cuspir.

A fé é uma graça através da qual podemos ver o que não vemos.

Os estuários e os deltas foram os primitivos habitantes da Mesopotâmia.

O objetivo da Sociedade Anônima é ter muitas fabricas desconhecidas.

A Previdência Social assegura o direito à enfermidade coletiva.

O Ateísmo é uma religião anônima.

A respiração anaeróbia é a respiração sem ar que não deve passar de três minutos.

O calor é a quantidade de calorias armazenadas numa unidade de tempo.

Antes de ser criada a Justiça, todo mundo era injusto.

Fontes:
"Jornal do Brasil". Rio de Janeiro: 21/10/84
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sábado, 28 de junho de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Bode expiatório”


Para começo de conversa, que fique claro que o “expiatório” do título deste é grafado com “X”, pois deriva do verbo "expiar", consequência punitiva decorrente de um erro ou falta grave que cometemos. Já "espiar", escrito com "S", significa espreitar, vigiar, espionar, observar atentamente qualquer coisa. 

O saudoso advogado, magistrado, intelectual, acadêmico e professor paraense Edgar Olyntho Contente, bolou um neologismo que usava para alertar, com bom humor, os alunos do velho Casarão sobre a rigorosa proibição de “espiolhar” a prova do colega que estivesse sentado ao lado... A grafia equivocada dessas duas palavras, lembra a costumeira confusão entre o "mas" e o "mais", de pronúncias semelhantes, mas de significados diferentes. Muitos esquecem que o "mas" (conjunção) deve ser usado para exprimir ideias opostas, fazendo às vezes de "porém", "contudo" ou "todavia"; e o "mais" (advérbio), indica um acréscimo, um aumento e é o oposto da palavra "menos". 

Voltando ao tema principal, a expressão "Bode expiatório" refere-se a alguém que suporta as consequências deletérias dos erros dos outros, pagando por eles. Sua origem remonta no ritual judeu do Livro dos Levíticos, do Antigo Testamento, em que Aarão, ao pôr as mãos sobre a cabeça de um bode, transmite para o animal todos os pecados do povo de Israel. 

E a partir dessa origem bíblica, passou a ser comum usarmos o termo “Bode expiatório” para caracterizar o suposto culpado por um ato reprovável, sem que tenha sido ele a cometê-lo. Tal expressão, que hoje faz parte da nossa linguagem, retrata situações em que uma pessoa ou um grupo de pessoas inocentes, foi ou está sendo responsabilizado por uma culpa inexistente.

Indivíduos ou grupos, carregam eles suposta culpa por deslizes, dramas ou problemas que não são exclusivamente seus e exemplos não faltam. Basta lembrar que os judeus, na sombria época da Alemanha nazista, foram considerados culpados pelos problemas econômicos e sociais da nação, virando “bodes expiatórios” para as desumanas atrocidades de Hitler. 

Ainda na Europa medieval, mulheres paupérrimas e marginalizadas foram acusadas de “bruxaria” e implacavelmente perseguidas e punidas, se tornando  “bodes expiatórios”, de vez que lhes eram atribuídas as causas de todos os problemas sociais, como doenças, vícios e até a frustração das colheitas. 

Ademais, durante a construção da ferrovia transcontinental nos EUA no Século XIX, os trabalhadores braçais chineses, além de explorados até à exaustão, posteriormente foram culpados por problemas econômicos e sociais, fazendo surgir leis discriminatórias, como a famigerada “Lei de Exclusão Chinesa”.

Tais exemplos mostram como transformar uma pessoa ou grupo de pessoas em “Bodes expiatórios”, vertente de odiosa discriminação, inaceitável violência e aberta injustiça. Na música popular brasileira, surgiu um “rap” (estilo musical que é expoente da cultura “hip hop”, no qual rimas e poesias são faladas, sobre uma barulhenta base rítmica), que usou a expressão “Bode expiatório” como título, abordando temas nitidamente sociais e políticos:

Racismo, preconceito, 
Discriminação
São maneiras de agir
Mostram a nós desunião
Não sei quem é perfeito
Mas eu vejo egoísmo
Não sei quem é perfeito
Mas eu vejo solidão

Bode expiatório!!! (repete 4 vezes)

Uma das características principais dos chamados “bodes expiatórios”, sejam eles grupos de pessoas ou indivíduos, é a falta de poder, a sua incapacidade de lutar contra aqueles que ostensivamente os oprimem, sendo-lhes difícil entender porque um grupo social ou uma pessoa canaliza suas frustrações e idiossincrasias contra os demais, só porque eles são diferentes ou desiguais.

A necessidade que a maioria tem de encontrar um culpado, mesmo sabendo que essa prática gera preconceito, discriminação, violência física e/ou psicológica, nos remete aos bancos escolares, onde tomamos conhecimento da existência de Tiradentes, mártir da independência do Brasil, espécie de Cristo cívico da nacionalidade, que pagou com a vida seu sonho de liberdade. 

O jornalista e escritor gaúcho Eduardo Bueno, no livro “Brasil: uma história” (editora Leya, 2013), afirma ter sido ele um “Bode expiatório” da Inconfidência Mineira, revolta motivada pela abusiva cobrança de impostos, e integrada por intelectuais, religiosos, militares e fazendeiros de Vila Rica (hoje Ouro Preto), da qual só ele, simples alferes do Regimento de Cavalaria de Minas Gerais (atual Polícia Militar), que nem dessa requintada elite fazia parte, experimentou a crueldade do títere português até mesmo depois de morto na forca, incumbindo-se a República, quase um século depois de seu suplício, de transformá-lo no herói nacional que nós até hoje reverenciamos.
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O autor é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras. Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Virar a casaca”


No nosso português de cada dia, usamos a expressão "VIRAR A CASACA" para designar pessoas oportunistas e aproveitadoras, que se valem das chances que lhes parecem favoráveis para, sem qualquer vergonha, pudor ou escrúpulo, trocarem de lado exclusivamente em busca de vantagens pessoais. 

Trata-se de desvio de conduta de gente rasa, sem ética ou princípios, de moral opaca, sem apreço pela palavra empenhada ou por compromissos antes assumidos, desde que obtenham com a troca qualquer ganho. Há sempre um componente de traição no que fazem, pois são capazes de “vender a mãe”, para a satisfação de suas particulares ambições ou alcance de benefícios, sejam eles materiais, sociais ou emocionais, ainda que modestos. 

A origem dessa expressão remonta ao rei da Sardenha no Século XVIII, Carlos Emanuel III de Sabóia (1701 – 1773), que para proteger seu ameaçado patrimônio territorial das pressões da França e da Espanha, aliava-se a uma ou à outra ao sabor de suas conveniências - e para evidenciar isso mudava as cores da sua casaca, de acordo com as cores da bandeira do país com quem naquele momento se alinhava. 

Essa troca constante das casacas por ele usada, passou a ser sinônimo de oportunismo, consagrando a expressão "Virar a casaca", lembrada sempre que presenciamos, mesmo quatro séculos depois, essa famigerada atitude interesseira em alguém que só demonstra interesse quando acredita que terá alguma coisa a receber em contrapartida. 

Mas não foi somente a realeza que contribuiu para consolidar no Brasil essa expressão, sempre utilizada com escárnio em relação a quem troca de lado com a mesma rapidez com que a maioria troca de roupa. Para essa expressão idiomática, o futebol e a política também deram o seu contributo. 

O valor cultural do futebol no Brasil é imenso e vai além da simples prática esportiva. Trata-se de uma paixão nacional que permeia a cultura, a identidade e a história do país, influenciando diversos aspectos da sociedade. É uma manifestação cultural que une pessoas de diferentes origens, criando um involuntário senso de irmandade, parte integrante da vida brasileira que influencia a moda, a música, a arte e especialmente a linguagem. 

O futebol, que nos legou a expressão “Onde a coruja dorme” (já abordada nesta série de crônicas divulgadas), costuma taxar um torcedor que passa a simpatizar e até torcer pelo time rival como “vira casaca” - e esse é o preço que ele paga por essa prática rasteira.

O genial Chico Buarque, ao contrapor uma velha amizade à rivalidade clubística, deu uma força ao tema. O quilométrico título da música “Ilmo Sr. Ciro Monteiro ou Receita pra virar casaca de neném”, é uma carta ao famoso cantor e compositor Ciro Monteiro, abordando a disputa de preferência entre dois famosos times de futebol, mas o compositor o faz de maneira bem-humorada, destacando a amizade e o respeito mútuo entre os dois amigos, situada acima e além de suas diferenças pessoais.  

Chico é tricolor da gema e agradece a Ciro Monteiro, flamenguista doente, por um presente dele recebido: uma camisa rubro-negra. No entanto, ele brinca que o presente é “de grego”, uma expressão que tipifica uma dádiva que traz mais problemas do que benefícios. A música revela como Chico habilmente transformou a camisa rubro-negra (do Flamengo) em uma tricolor (do Fluminense), mostrando criatividade e lealdade ao seu time, para não incorrer na odiosa viração de casaca: 

Amigo Ciro
Muito te admiro
O meu chapéu te tiro
Muito humildemente
Minha petiz
Agradece a camisa
Que lhe deste à guisa
De gentil presente
Mas caro nego
Um pano rubro-negro
É presente de grego
Não de um bom irmão
Nós separados
Nas arquibancadas
Temos sido tão chegados
Na desolação

Amigo velho
Amei o teu conselho
Amei o teu vermelho
Que é de tanto ardor
Mas quis o verde
Que te quero verde
É bom pra quem vai ter
De ser bom sofredor
Pintei de branco o teu preto
Ficando completo
O jogo de cor
Virei-lhe o listrado do peito
E nasceu desse jeito
Uma outra tricolor

Por exemplo, a política disciplinou a prática da mudança de lado, ao regulamentar as regras para que parlamentares insatisfeitos com seus partidos políticos, se bandeassem para o aconchego dos que ontem eram adversários, instituindo as “janelas partidárias” a cada ano eleitoral e desde que ultimada a mudança seis meses antes do dia do pleito, dentro do prazo de 30 dias para o trânsfugo pular fora do barco, sem risco de perder o mandato. 

Tal regra veio no bojo da reforma eleitoral de 2015 e se consolidou como uma medida segura para a troca de legenda, depois do TSE assentar que o mandato pertence ao partido e não ao candidato eleito. Estabeleceu também a chamada “fidelidade partidária” para cargos nas eleições proporcionais (deputados estaduais, federais e vereadores). E como toda regra tem exceção, foi permitido também que fora da “janela partidária”, o político pode “virar a casaca” nas hipóteses de justa causa, entendida esta como a discriminação pessoal ou o desvio do programa partidário, sob pena de perda do mandato. 

Na vida real não há janelas partidárias e salvo raríssimas exceções, a fidelidade pode e deve ser esperada e casos específicos, mas não é exigível de quem quer que seja, pois vai do caráter de cada um manter-se firme em seus compromissos, procedimentos, condutas e ideologias. Somos às vezes surpreendidos por infidelidades, até de pessoas aparentemente respeitáveis e insuspeitas, que sem justificativas plausíveis decidem “virar a casaca”, buscando avidamente alcançar suas metas individuais a qualquer custo, mesmo incorrendo na conduta desonrosa e rasteira da falsidade e da traição.
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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quarta-feira, 14 de maio de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “São outros quinhentos”


A expressão “Outros quinhentos” tem origem numa prática legal da Península Ibérica. Antigamente, uma multa de 500 soldos (moeda de ouro na Roma antiga) era aplicada a quem injuriasse um nobre, cujo valor teria que ser pago para que o infrator pudesse merecer a absolvição. Porém, mesmo com o pagamento, se a ofensa fosse repetida, o reincidente teria que pagar outros 500 soldos, dizendo as autoridades que eram “Outros quinhentos”, e não aqueles já quitados, indicativo de que se tratava de nova culpa e outra penalidade, embora no mesmo valor pecuniário, pela repetição da injúria.  

Luís da Câmara Cascudo, historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado, jornalista, escritor prolífero que viveu em Natal (RN), dedicando-se ao estudo do folclore e da cultura brasileira, em seu “Locuções Tradicionais no Brasil”, confirma que se o condenado voltasse a cometer delito semelhante ao anterior, pagaria outros 500 soldos: “Compreende-se que outra qualquer vilta, vitupério sem razão, posterior à multa cobrada, não seria incluída na primeira. Matéria para novo julgamento. Outra culpa. Outro dever. Seriam, evidentemente, outros quinhentos”.

A partir dessa prática punitiva, chegou-se ao longo do tempo a essa conhecida expressão, cujo significado atual indica algo que é diferente, que refoge (evita) do senso comum, que representa uma nova situação, tendo como corolário consequências mais agravantes ou algo muito mais difícil. Basta exemplificar, para ser facilmente entendido: “Emprestar dinheiro em banco é fácil, mas pagar os juros que eles cobram, são outros quinhentos” …

O saudoso apresentador, ator, cantor, músico e compositor paulista Rolando Boldrin, um dos maiores divulgadores da vida interiorana, da cultura caipira e da música sertaneja, num dos programas televisivos em que contava seus “causus”, ofereceu outra explicação para a origem da expressão “São outros quinhentos”, tão histriônica quanto imaginativa. 

Explicou o artista que quando o padrão monetário no Brasil era o mil-réis, apareceu numa cidadezinha do interior um sujeito espertalhão, com o objetivo de aplicar um golpe para ganhar dinheiro fácil dos ingênuos moradores locais. Concebeu o pilantra e pôs em prática uma narrativa fantasiosa – a de que deixara aos cuidados do vigário da paróquia, homem insuspeito e confiável, a vultosa quantia de 500 mil-réis – enquanto ele se ausentaria durante certo tempo, em demorada viagem para outro estado. O religioso teria assumido, sob palavra de honra, o compromisso de lhe devolver o mesmo valor, quando um dia voltasse. Tudo papo furado, coisa de trapaceiro passado na casca do alho.

Concebido o golpe infame, o safado saiu alardeando para todo mundo essa história fantasiosa, justificando que a significativa quantia que deixaria sob a custódia do padre, ele a ganhara honestamente, pelo seu intenso e diuturno labor como caixeiro-viajante que lhe rendera polpudas comissões, mercê das vendas que realizara por toda aquela região.

Depois de propositadamente alardear tal fábula pelos lugares públicos de maior concentração de pessoas, o arguto trambiqueiro sumiu por meses, mas um dia finalmente voltou, com o óbvio intuito de rematar o golpe adrede preparado, tendo encontrado o sacerdote oficiando a missa de domingo na principal igreja da comunidade, que apinhada de gente anônima e dos figurões do lugar, assistia embevecida as exortações da homilia do eloquente presbítero.

Nem bem o pároco encerrou sua prédica, surge o espertalhão próximo do altar e perante uma plateia perplexa, incisivamente passou a exigir a devolução da quantia supostamente confiada ao clérigo, alegando urgência pois precisava viajar no dia seguinte, deixando-o atordoado e sem entender nada, limitando-se a jurar por todos os santos da Corte Celeste, que não guardara quantia nenhuma, nem dele nem de ninguém. 

– Claro que deixei os 500 mil-réis com o senhor, obtemperou o malandro aos gritos! E não adianta se fingir de inocente, pois aqui na cidade todo mundo sabe desse fato, asseverou o golpista sem nem tremer a cara.

Na igreja formou-se grande alarido, com alguns manifestando incredulidade e outros censurando a suposta velhacaria do padre, que imotivadamente se recusava a devolver o numerário que lhe fora confiado. A discussão seguiu acalorada, o padre alegando nada saber sobre o assunto e o trambiqueiro cobrando a pequena fortuna que afirmava ter deixado sob a sua guarda.

Foi quando surgiu no imbróglio uma terceira personagem – o rico e poderoso coronel do lugar, fazendeiro, chefe político influente e grande amigo do padre – que sensibilizado pela saia justa pela qual estava passando seu estimado amigo e querendo livrá-lo daquele descomunal constrangimento (até mesmo porque, homem vivido, já percebera toda a armação daquele refinado pilantra) interferiu bradando para o vigarista, com seu vozeirão de derrubar muro, que ele estava redondamente equivocado:

– O senhor está enganado! Não foi com o vigário que o senhor deixou os seus 500 mil-réis. Foi comigo, tá lembrado? Depois da missa passe na minha casa que eu vou lhe devolver tudo, lá a gente vai conversar direitinho, isso eu lhe garanto… Disse e deixou flutuando no ar a subjacente ameaça de dar uma peia naquele escroque, quando ele fosse receber a tal grana em sua residência.

Mas o embusteiro, pilantra escolado, daquele tipo que fareja dinheiro mesmo quando está constipado, percebendo que poderia tirar duplo proveito daquela situação, retrucou de bate pronto na presença dos fiéis que lotavam a igreja:

– Coronel, no momento só estou querendo receber os 500 mil-réis que ficaram com o padre. Aqueles que o senhor diz que eu deixei com o senhor, “São outros quinhentos…”.

Eis a segunda versão, tão improvável quanto divertida, da origem dessa expressão, utilizada quase diariamente, nas circunstâncias as mais inusitadas. Como, por exemplo, no tenso diálogo entre o guarda de trânsito e o motorista de um ônibus caquético, que trafegava com lanternas e faróis quebrados, excesso de passageiros e os pneus literalmente carecas.

Cioso de seu papel fiscalizador, o zeloso policial fez sinal para o motorista encostar, e com cara de pouquíssimos amigos exigiu o de sempre:

– Habilitação e os documentos do veículo!

– É pra já seu guarda, falou o chofer, mãos trêmulas em busca das credenciais solicitadas, guardadas num saco plástico no porta-luvas do mostrengo.

– Vocês estão tentando eleger outro Papa aí dentro desse ônibus?  

– Papa? Que Papa? Não estou entendendo nada…

– É que até agora só está saindo fumaça preta da descarga. Significa que o motor está desregulado, poluindo o meio ambiente e afetando a saúde pública. É infração grave, com multa e cinco pontos na carteira.  Como o coletivo está todo estropiado, vai ficar retido até ser feita toda a regularização…

– Pera aí seu guarda! Não faça isso comigo. Esse ônibus, mesmo detonado como está, é o meu ganha-pão. Se a papelada está toda em ordem, essa história de meio ambiente e saúde pública são outros quinhentos!… Dá pra gente conversar?…
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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quarta-feira, 23 de abril de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Com a pulga atrás da orelha”


Essa expressão estar, ficar ou andar “com a pulga atrás da orelha” significa ter suspeitas de que alguém está aprontando alguma coisa contra você, que movido pelo “desconfiômetro”, se mostra cabreiro e desconfiado. 

Desde a mais remota antiguidade, o ser humano sempre foi e ainda tem sido vítima da pulga, pois antes não se conhecia nenhum veneno capaz de exterminar essa praga do ambiente doméstico, que se intrujava em todos os cantos, brechas e escaninhos das residências, hospitais, quartéis, escolas, repartições, empresas, cinemas e muitos outros espaços.

As pulgas estão entre os insetos que mais causam problemas ao ser humano e também aos animais. O nome vem do grego Siphon - sifão, e apteros - sem asas, pois as pulgas, embora desprovidas de asas, pulam cerca de 300 vezes a sua própria altura, o que as torna campeãs de salto, justificado sonho de qualquer atleta olímpico. 

No mundo todo podem ser encontradas mais de três mil espécies de pulgas e a cota brasileira nesse monumental acervo é de mais de 50 espécies, das quais quase 40 são encontradas no Estado de São Paulo. Extremamente prejudiciais à saúde, até meados do século XX a pulga era, sem qualquer dúvida, um problema muito grave, responsável por transmissão de doenças, aninhando-se em colchões, almofadas, armários e até nos cabelos das pessoas. 

Sua incômoda presença inspirou mundo afora as famosas “feiras da pulga” ou “mercado de pulgas”, muito comuns na Europa e EEUU, comércios de rua ou de espaços confinados, de caráter sazonal, onde se vendem produtos usados como roupas, livros, utensílios domésticos, brinquedos e móveis antigos que pelo bom estado em que se encontram, ainda podem ser negociados. Surgidas nos arredores de Paris na década de 1880, em seus primórdios as peças de vestuário comercializadas vinham infestadas de pulgas, daí a denominação que popularmente a consagrou mundo afora.

Se nas roupas já incomodam, imagine o desconforto de uma pessoa com um bicho desses atrás da orelha. O gesto de coçar a orelha quando estamos desconfiados, a modo quando nela está alojado o incomodatício bichinho, pode ser uma das explicações para esta corriqueira expressão.

Na Espanha, se diz “tener la mosca detrás de la oreja”. Em Portugal, "estar com a pulga atrás da orelha" demonstra que alguém tem suspeita em relação a algo ou a outrem, que lhe deixa intranquilo. Lá como aqui, é comum alguém dizer: "fiquei com a pulga atrás da orelha depois de ouvir a conversa".

Na literatura brasileira, a expressão aparece em vários livros, os mais conhecidos o de Christiane Gribel e o de Ana Elisa Ribeiro. No primeiro, a autora explica de forma divertida, as muitas falas engraçadas que os adultos usam, dentre elas, "estar com a pulga atrás da orelha".  O segundo conta a história de um menino curioso, que adora perguntar tudo para todo mundo. 

Na música popular, a dupla Tenório & Praense incluíu em seu vasto repertório a música “Com a pulga atrás da orelha”, cuja letra é tão irreverente como a de outra composição deles, denominada “Fui chifrado na internet”... 

José Cornélio dos Santos, em seu livro “Lembranças de um Obidense” (edição do autor, 1994, pág. 26) narra com bom humor a sua atribulada trajetória de menino pobre do interior até se tornar um vitorioso empresário em Belém, descrevendo assim essa sensação de desconforto emocional: “Durante pouco mais de um ano, os nossos negócios cresceram e os invejosos não se conformavam com o nosso sucesso, até que um dia o dono do prédio onde tínhamos a mercearia, resolveu pedir o mesmo, alegando que precisava do imóvel para uso próprio. Notamos que havia “algo no ar” e o nosso negócio começou a estremecer e tirar o nosso ritmo”. Ele não disse explicitamente, mas deixou subentendido que a desconfiança fez com que a pulga desse sinal de vida, atrás da orelha do saudoso escritor.

Realmente, essa angústia é recorrente quando existe “algo no ar” que nos aflige. E há situações em que esse sentimento expectante se torna comum em humanos e animais. Por exemplo, quando o pastor alemão da policia, olhos atentos, faro apurado e “com a pulga coçando atrás da orelha”, passa a esquadrinhar as malas na esteira de bagagem dos aeroportos. Quando isso acontece, esse bichinho incômodo também se instala atrás da orelha de certos passageiros, principalmente daqueles que, dando uma de espertos, resolvem arrostar o perigo de transportar às escondidas, coisas que a lei não permite…
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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quarta-feira, 16 de abril de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Sangue de barata”

Dizemos que alguém que tem “Sangue de barata” quando a pessoa não reage a provocações ou situações desagradáveis, conseguindo ficar calma até nas horas mais difíceis. Trata-se de pessoa com "sangue frio", e olha que nem mesmo sangue essa bicha asquerosa tem.

É que a barata, assim como a maioria dos insetos, não tem sangue e sim possui um nauseabundo fluido chamado hemolinfa, que é transparente e não apresenta pigmentos. Dizem que o sangue é o condutor da nossa sensibilidade ao coração e assim, a pessoa com "sangue de barata" é fria e insensível, já que o inseto não possui o sangue "tradicional" que corre quente em nossas veias.

Dentro desse contexto, após agredir um torcedor, um jogador de futebol procurou justificar seu reprovável gesto dizendo que foi insultado antes e depois do jogo e dentro do esperado, reagiu: 

- “Ele ofendeu minha irmã e eu parti para cima dele, pois não tenho sangue de barata”. 

Natural de Caracaraí em Roraima, Marília Tavares iniciou na carreira artística ainda criança, com quatro anos de idade, quando cantava em eventos religiosos e culturais em sua cidade natal. Veja-se o trecho do texto poético de uma de suas canções, denominada justamente de “Sangue de Barata”:


Eu não consigo
Tampar a boca da minha raiva
Mandar o olho devolver a água
Pra ser plateia do meu ex-te-amo
Tem que ter sangue de barata.
Uma coisa que eu não tenho é sangue de barata, viu?

“Sangue de barata” inspirou também o nome de duas outras obras literárias, sendo uma de Sandra Paterno e outra de Martha Medeiros, demonstrando que essa expressão cultural fez parada na literatura e na música, assim nos meios eruditos e populares.

Sandra Paterno, natural de Ariranha (SP), escritora, gestora digital, psicopedagoga clínica e educacional, especialista em educação especial, pedagoga, compositora, palestrante e artista, imprimiu em seus muitos livros fortes ingredientes de psicologia e humor. 

“Sangue de Barata” é um dos livros dessa magnífica autora paulista que explora a psique de quem afirma não ter sangue de barata, daquele tipo de gente que não levam desaforo para casa. O livro busca desvendar as camadas ocultas da personalidade e guiar o leitor para o autoconhecimento. 

Diferente da cantora de Caracaraí (RR), famosa por “não ter sangue de barata”, a gaúcha Martha Medeiros, escritora, poeta e uma das melhores cronistas brasileiras, com mais de um milhão de exemplares vendidos, notabilizou-se pelo inverso. Esclarece que "Sangue de Barata" significa que a pessoa não reage quando é ofendida, age sempre marcada pela apatia, pelo “deixa pra lá”, sentimentos recorrentes nos apreciados textos da versátil autora. 

Em sua prestigiada coluna literária no GZH, Martha é coerente e confessa: "Quase tudo que conquistei na vida (desconte o exagero) foi por ter sangue de barata". Ela cita como exemplos a confiança no fato de que as pessoas cansarão se ela não der corda para suas maluquices, a sua compaixão por quem não tem condição de expandir-se, a calma diante de provocações, a tolerância com os desaforos, a paciência para aguardar e a espera da hora exata de cair fora. 

Portanto, quando nos referimos a alguém com “sangue de barata”, é o mesmo que dizer que a pessoa tem o sangue gelado, não age impulsivamente, não pega corda por qualquer coisa, não reage de bate pronto, não tem o tal pavio curto. 

No Lago Grande da Franca e em todo o Baixo Amazonas no Pará, um marmanjo desafiado para resolver uma diferença pessoal “no braço” e não reage, mesmo quando palavrosamente ofendido, é inapelavelmente rotulado de “indigno”, que no exemplo dado, não tem nada a ver com falta de dignidade pessoal e sim, com a falta de disposição para a luta corporal, haja vista que naquela vasta aba de mundo, assim como no Marajó, todo moleque briga desde a mais tenra idade. E é reputado “indigno” porque tem “sangue de barata”...

Nas danças da Desfeiteira que antigamente alegravam as várzeas do Arapucú, oeste paraense, a conhecida expressão não passou despercebida dos versejadores durante os bailes juninos, em que jocosamente provocavam suas damas, para delas receber, em cima da bucha, a merecida e irreverente resposta.

O cavalheiro:
Cabocla estúrdia e gostosa
desse jeito tu me mata,
te imploro, casa comigo,
não tenho sangue de barata...

A dama:   
Te enxerga pirento...
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Célio Simões de Souza é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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quarta-feira, 9 de abril de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Dia da mentira”


Você sabia que o peixe é o único animal que continua a crescer mesmo depois de morto? Então pergunte a qualquer pescador... Seguindo a tradição, nenhum pescador que se preze conta que pescou alguma coisa do tamanho exato que veio no anzol, na tarrafa ou na rede, porque sempre ele dirá que foi bem maior do que aquilo que realmente foi pescado. 

No Brasil, o primeiro registro do “Dia da mentira” foi há quase dois séculos, em 1828, quando o jornal mineiro curiosamente intitulado “A Mentira”, trouxe falsamente em sua primeira edição a notícia da morte de Dom Pedro I, justamente no dia 1º de abril. Descoberta a patranha, surgiu a afirmação de que "A mentira tem pernas curtas" ou, em sentido figurativo, a afirmação de que “É mais fácil pegar um mentiroso do que um coxo”. 

Embora possam ser danosas as consequências de uma história mendaz (falsa, mentirosa), no Dia da Mentira pessoas de todo o mundo brincam umas com as outras, pregando peças e contando balelas. Algumas antológicas, tanto que deram origem aos concursos de mentiras espalhados Brasil afora. 

Certame mundialmente famoso é o Festival da Mentira de Nova Bréscia, no Rio Grande do Sul, considerada a capital nacional da mentira, realizado a cada dois anos, em que atua uma banca julgadora integrada por jornalistas, publicitários, professores e coordenadores culturais, que escolhe a mentira vencedora, dentre as mais cabeludas que são contadas, premiando o vencedor com uma recompensa em dinheiro.

“Eu não gosto do mentiroso que mente para prejudicar os outros, eu gosto de mentiroso que mente por amor à arte”, dizia o impagável Ariano Suassuna, que tinha um verdadeiro repertório sobre a mentira e os mentirosos. Também na literatura brasileira, outro personagem se destaca. Mistura de poeta, escritor, folclorista, compositor, conferencista e contador de causos, Cornélio Pires arriscou um elenco de mentiras bem boladas.

Em um de seus vinte livros sobre a vida e os costumes da roça, contou sobre o pai de família que para festejar os 15 anos de sua filha mais velha, preparou um festão na qual a principal atração entre as fartas iguarias oferecidas aos convivas, estava um vistoso e caríssimo queijo suíço, que ele entretanto não permitiu que fosse cortado nem servido aos que compareceram justamente de olho nele. Todo mundo saiu com água na boca, desfrutaram da comilança que foi servida, mas foram impedidos de sequer provar o tal queijo, que pelo seu poder de atração de público, passou a ser alugado pelo dono para motivar com maciças presenças, todas as festas de 15 anos do lugar.

Outra assertiva é que “para mentir precisa ter boa memória” e disso sabem muito bem advogados, promotores e magistrados, pois nos interrogatórios judiciais as testemunhas às vezes distorcem os fatos e mais adiante, esquecidas do que disseram, acabam por revelar inteiramente a verdade caindo em notória contradição. 

Na música popular brasileira, no já distante ano de 1981, Erasmo Carlos nos brindou com “Pega na Mentira”, parece que feita sob medida para o dia 1.º de Abril, mas surpreendentemente atual, mesmo passados mais de 40 anos:

“Zico tá no Vasco, com Pelé
Minas importou do Rio, a maré
Beijei o beijoqueiro, na televisão
Acabou-se a inflação
Barato é o marido da barata
Amazônia preza a sua mata
Pega na mentira, pega na mentira
Corta o rabo dela, pisa em cima
Bate nela, pega na mentira (...)”

O escritor Jorge Fallorca, publicou em 1983 um livro de poucas páginas mas com um sugestivo nome: “Aqui se reúnem políticos, pescadores e outros mentirosos”. Cabia mais gente, claro, mas ele generosamente não deixou de fora os políticos...

Em sites e redes sociais, a mentira hoje se banalizou de tal forma que ninguém acredita de primeira em muitas notícias divulgadas, modernamente conhecidas como Fake News e que nos assolam e nos inquietam a todo minuto. Exemplo típico é recente falácia de que o Governo Federal passaria a cobrar impostos sobre as operações financeiras realizadas por Pix, sobre a compra de dólares e sobre os animais domésticos de estimação, o que, neste último caso, foge a qualquer lógica, de vez que os tutores provavelmente abandonariam seus vira-latas para se eximirem de mais um imposto, entre os tantos que já são pagos. Prova evidente que convivemos com a mentira todo dia o ano todo e não apenas em 1.º de abril, quando ela é tradicionalmente comemorada.

Lembro, a propósito, das ingênuas petas do saudoso mateiro e caçador apelidado de “Mata Onça”, caboclo da região quilombola do Mondongo no Baixo Amazonas, que desbravou o setentrião (norte) como membro da Comissão Demarcadora de Limites onde viveu mil peripécias, uma espécie de Pinóquio ribeirinho que costumava brindar seus ouvintes, sem que crescesse o seu achatado nariz, com mirabolantes pataratices (mentiras) urdidas por sua fértil imaginação, como certa pescaria que ele fez com um amigo, em que sofreram o contratempo de ter a tarrafa enroscada nos galhos submersos do rio, que tinha cerca de três metros de profundidade. O parceiro mergulhou para resgatar a tarrafa, passaram-se dez minutos e nem sinal dele retornar. 

Preocupado, nosso herói pulou na água para ver o que havia acontecido e chegando ao fundo, ficou perplexo ao encontrar seu parceiro calmamente sentado numa pedra consertando a tarrafa, que fora seriamente danificada com o engate. Esse divertido campeão da invencionice afirmava que aquele sujeito tinha um fôlego descomunal, capaz de aguentar mais uns quinze ou vinte minutos submerso, sem qualquer problema. E queria que a gente acreditasse...

Mais famoso que ele foi Pantaleão, inesquecível personagem do genial Chico Anysio no programa Chico City, humorístico que ficou no ar durante toda a década de 1970. No programa, Pantaleão era casado com Terta (interpretada pela atriz Suely May) e de pijama, barbas longas e brancas, cabelos grisalhos e usando óculos cuja lente escura cobria apenas o olho direito, contava suas façanhas se balançando numa cadeira, cada qual a mais inverossímil, alegrando-nos intensamente nas noites em que era exibido, com invejável índice no Ibope, deixando muitas saudade quando foi extinto.

Pela parte que me toca, depois dessas ternas e gostosas lembranças, preciso encerrar este texto por aqui, pois tenho que conferir, cédula por cédula, a polpuda grana que recebi hoje por ter acertado sozinho o último sorteio da mega sena acumulada. Não é verdade Terta?... 
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.
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terça-feira, 25 de março de 2025

Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Com as mãos abanando”

A origem mais aceita para essa expressão, remonta à vinda dos primeiros imigrantes para o Brasil, ainda no século XIX. Os fluxos imigratórios mais expressivos ocorreram nos séculos XIX e XX, entre o início do período republicano em 1889 até 1930, quando ingressaram no país principalmente portugueses, italianos, japoneses, alemães e povos árabes (sírios, turcos, egípcios, palestinos) representando mais de 3,5 milhões de estrangeiros, correspondendo a 65% do total de imigrados entre os anos de 1822 e 1960. 

É com razoável margem de certeza que a expressão “COM AS MÃOS ABANANDO” surgiu e se consagrou no linguajar do povo no contexto do crescimento da cafeicultura brasileira, justamente a partir do início do século XIX e desde então, ganhou novos significados, pois ela é comum em vários contextos de comunicação no Brasil, embora tenha passado por mudanças de significado, acumulando sentidos que podem ser aplicados em diferentes situações. Porém, na maioria das vezes em que é empregada, o resultado final está diretamente ligado às mãos vazias de determinada pessoa.

Esse considerável contingente humano costumava trazer em sua parca bagagem, apenas as ferramentas que em sua terra natal utilizavam para o amanho (cultivo) da terra, como ancinhos, alfanjes, machados, facões e enxadas, acreditando que portar uma dessas ferramentas tornaria induvidosa sua disposição para o trabalho, evidenciando a profissão e as habilidades de cada qual, viabilizando assim possível contratação pelo patronato rural brasileiro. 

Em contrapartida, chegar de mãos vazias, ou “com as mãos abanando”, indicava não só a falta de um ofício ou profissão, como a possível ausência de versatilidade para o exercício dos trabalhos manuais, numa visão estereotipada de pessoa com pouca disposição para encarar o batente. 

Outra hipótese para a origem do termo aparece em dicionários anteriores à imigração europeia para o Brasil. Em Portugal, ainda nos idos de 1789, “abanar” era usada com o sentido de “andar ao léu” ou “viver sem amparo”.

Entre nós, há muito tempo essa conhecida expressão também passou a indicar outros contextos literais de mãos vazias. Quando alguém chega numa festa sem levar presentes ou sem trazer contribuições num evento em que isso era de responsabilidade de todos, pode-se dizer que o fulano chegou “com as mãos abananando”. Ir em aniversários “de mãos abanando”, sem levar um presente, demonstra que o conviva compareceu apenas para forrar o panduro, tirar a barriga da miséria ou deleitar-se com as iguarias ofertadas pelo anfitrião. 

O mesmo se diz dos mancebos desprovidos de bens que desposam mulheres afortunadas, sem minimamente levar para a sociedade conjugal nada de valor, motivando a jocosa afirmação de que o dito cujo não constituiu matrimônio e sim, patrimônio... 

As expressões idiomáticas são frases conotativas amplamente conhecidas. Elas servem para expressar diversas ideias, como otimismo, cautela, crítica etc. Seu uso depende do contexto de fala ou de escrita, dado o seu caráter popular. Têm origem em fatos e personagens cotidianos ou históricos, mas sem elas, decididamente o idioma se descaracteriza. Configuram um fenômeno linguístico que consiste em frases de sentido figurado e fazem parte da cultura popular. Portanto, são expressões convencionais, de uso corrente no linguajar do povo, sendo desconhecida ou incerta a origem de muitas delas. 

Mas não se confundem elas com os chamados “ditados populares”, pois esses invariavelmente expressam um valor moral, sob a forma de uma mensagem subjacente. “A PRESSA É INIMIGA DA PERFEIÇÃO”, por exemplo, não diz claramente, porém sugere que é necessário ter paciência, que se deve fazer as coisas devagar, sem precipitações ou afobações, para alcançar os objetivos perseguidos. Coitado do porco, que não observou esse precioso aviso... 

Pode-se dizer que as expressões idiomáticas surgem da cultura popular e ao mesmo tempo a fomentam, constituindo uma interveniência que liga o passado ao presente (infelizmente, algumas expressões desaparecem), pois a cultura é e será sempre um processo resultante da atividade humana, desenvolvida com o intuito de educar a mente e o espírito. Os idiomatismos são vitais para a comunicação entre as pessoas, pois expressam experiências pessoais de uma maneira peculiar, além de revelar as identidades, o modo de pensar, de agir e de ver o mundo dos indivíduos e de sua época. 

Sem poder, sem dinheiro, sem nada para oferecer. A propósito, quando o atleta participa de uma competição e não logra vitórias, se diz que saiu da porfia “com mãos abanando”, sem medalhas ou troféus. Há times de futebol igualmente contemplados com essa expressão mordaz, pois nada ganham nas competições esportivas em que estão empenhados. Participam delas, perdem sempre quase todos os jogos e saem de lá “com as mãos abanando”…
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.
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