segunda-feira, 18 de março de 2024

Edy Soares (Oceano de Trovas) – 6 –

 

Arthur de Azevedo (O Gramático)

Havia na capital de uma das nossas províncias menos adiantadas certa panelinha de gramáticos, sofrivelmente pedantes. Não se agitava questão de sintaxe, para cuja solução não fossem tais senhores imediatamente consultados. Diziam as coisas mais simples e rudimentares num tom pedantesco e dogmático, que não deixava de produzir o seu efeito no espírito das massas boquiabertas.

Dessa aluvião de grandes homens destacava-se o Dr. Praxedes, que almoçava, merendava, jantava e ceava gramática portuguesa.

Esse ratão, bacharel formado em Olinda, nos bons tempos, era chefe de seção da Secretaria do Governo, e andava pelas ruas a fazer a análise lógica das tabuletas das lojas e dos cartazes pregados nas esquinas. "Casa do Barateiro, -sujeito: esta casa; verbo, é; atributo, a casa; do barateiro, complemento restritivo." O Dr. Praxedes despedia um criado, se o infeliz, como a soubrette das Femmes Savantes, cometia um erro de prosódia.

E quando submetia os transeuntes incautos a um exame de regência gramatical?

Por exemplo: encontrava na rua um menino, e este caía na asneira de perguntar muito naturalmente:

-Sr. Dr. Praxedes, como tem passado?

-Venha cá, respondia ele agarrando o pequeno por um botão d0 casaco: "Sr. Dr. Praxedes, como tem passado?" - que oração é esta?

-Mas... é que estou com muita pressa...

-Diga!

-É uma oração interrogativa.

-Sujeito?

-Sr. Dr. Praxedes.

-Verbo?

-Ter.

-Atributo?

-Passado.

-Bom. Pode ir. Lembranças a seu pai.

E, com uma ideia súbita, parando:

-Ah! venha cá! venha cá! Lembranças a seu pai - que oração é esta?

-É uma oração... uma oração imperativa.

-Bravo! - Sujeito?

-Está oculto... é você... Você dê lembranças a seu pai.

-Muito bem. Verbo?

-Dar.

-Atributo?

-Dador.

-Lembranças é um complemento...?

-Objetivo.

-A seu pai...?

-Terminativo.

-Muito bem. Pode ir. Adeus.

* * *
Depois de aposentado com trinta anos de serviço, o Dr. Praxedes recolheu-se ao interior da província, escolhendo, para passar o resto dos seus gloriosos dias, a cidadezinha de ***, seu berço natal. Aí advogava por muito empenho, continuando a exercer a sua missão de oráculo em questões gramaticais.

Raramente saia à rua, pois todo o tempo era pouco para estar em casa, respondendo ás numerosas consultas que lhe dirigiam da capital e de outros pontos da província.

* * *
A cidadezinha de *** dava-se ao luxo de uma falha hebdomadária, o Progresso, propriedade do Clorindo Barreto, que acumulava as funções de diretor, redator, compositor, revisor, paginador, impressor, distribuidor e cobrador.

Ninguém se admire disso, porque o Barreto -justiça se lhe faça -dava mais uso à tesoura do que à pena. O vigário, que tinha sempre a sua pilhéria aos domingos, disse um dia que aquilo não era uma tesoura, mas um tesouro.

Entretanto, se no escritório do Progresso a goma-arábica tinha mais extração que a tinta de escrever, não se passava caso de vulto, dentro ou fora da localidade, que não viesse fielmente narrado na folha.

Por exemplo.

"O Sr. Major Hilarião Gouveia de Araújo acaba de receber a grata nova de que seu prezado filho, o jovem Tancredo, acaba de concluir os seus preparatórios na Corte, e vai matricular-se na Escola Politécnica, da referida Corte.

"Cumprimentamos cheios de júbilo o Sr. Major Hilarião, que é um dos nossos mais prestimosos assinantes, desde que fundou-se a nossa falha."

* * *
Em fins de maio de 1885, a notícia do falecimento de Victor Hugo chegou à cidadezinha de ***, levada por um sujeito que saíra da capital justamente na ocasião em que o telégrafo comunicara o infausto acontecimento.

O Barreto, logo que soube da notícia, coçou a cabeça e murmurou:

-Diabo! não tenho jornais... Como hei de descalçar este par de botas? A notícia da morte de Victor Hugo deve ser floreada, bem escrita, e não me sinto com forças para desempenhar semelhante tarefa!

Todavia, molhou a pena, que se parecia um tanto com a espada de certos generais, e rabiscou: Víctor Hugo.

Ao cabo de duas horas de cogitação, o jornalista não escrevera nem mais uma linha...

* * *
Mas, oh! Providência! nesse momento passou pela porta da tipografia o sábio Dr. Praxedes, a passos largos, medidos e solenes, e uma idéia iluminou o cérebro vazio de Clorindo Barreto.

-Doutor Praxedes! Doutor Praxedes! exclamou ele. Tenha vossa senhoria a bondade de entrar por um momento. Preciso falar-lhe.

O Dr. Praxedes empacou, voltou-se gravemente e, conquanto embirrasse com o Barreto, por causa dos seus constantes solecismos, entrou na tipografia.

-Que deseja?

O redator do Progresso referiu a notícia da morte do grande poeta, confessou o vergonhoso embaraço em que se achava, e apelou para as luzes do Dr. Praxedes.

Este, com um sorriso de lisonjeado, sorriso que logo desapareceu, curvando-se-lhe os lábios em sentido oposto, sentou-se a mesa com a gravidade de um juiz, tirou os óculos, limpou-os com muito vagar, bifurcou-os no nariz, pediu uma pena nova, experimentou-a na unha do polegar, dispôs sobre a mesa algumas tiras de papel, cujas arestas aparou cuidadosamente com a... com o tesouro, chupou a pena, molhou-a três vezes no tinteiro infecundo, sacudiu-a outras tantas, e, afinal escreveu:

"Falecimento. -Consta, por pessoa vinda de ~ ter falecido em Paris, capital da França, o Sr. Victor Hugo, poeta insigne e autor de várias obras de mérito, entre as quais um drama em verso, Mariquinhas Delorme (Marion Delorme) e uma interessante novela intitulada Nossa Senhora de Paris (Notre-Dame de Paris)

"O ilustre finado era conde e viuvo.

"O seu falecimento enluta a literatura da culta Europa.

"Nossos sinceros pêsames à sua estremecida família."

* * *
O Dr. Praxedes saiu da tipografia do Progresso, e continuou o seu caminho a passos largos, medidos e solenes.

Ia mais satisfeito e cheio de si do que o próprio Sr. Víctor Hugo quando escreveu a última palavra da sua interessante novela.

O Barreto ficou radiante, e, examinando a tira de papel escrita pelo gramático, exclamou, comovido pela admiração:

-Nem uma emenda!

Fonte:
AZEVEDO, Artur de. Contos Possíveis. Publicado em 1889. Disponível em Domínio Público

Olavo Bilac (Poesias Para Crianças)


A BONECA

Deixando a bola e a peteca,
Com que inda há pouco brincavam,
Por causa de uma boneca,
Duas meninas brigavam.

Dizia a primeira: "É minha!"
— "É minha!" a outra gritava;
E nenhuma se continha,
Nem a boneca largava.

Quem mais sofria (coitada!)
Era a boneca. Já tinha
Toda a roupa estraçalhada,
E amarrotada a carinha.

Tanto puxaram por ela,
Que a pobre rasgou-se ao meio,
Perdendo a estopa amarela
Que lhe formava o recheio.

E, ao fim de tanta fadiga,
Voltando à bola e à peteca,
Ambas, por causa da briga,
Ficaram sem a boneca . . .
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A BORBOLETA

Trazendo uma borboleta,
Volta Alfredo para casa.
Como é linda! é toda preta,
Com listas douradas na asa.

Tonta, nas mãos da criança,
Batendo as asas, num susto,
Quer fugir, por fim, cansa,
E treme, e respira a custo.

Contente, o menino grita:
"É a primeira que apanho,
"Mamãe! vê como é bonita!
"Que cores e que tamanho!

"Como voava no mato!
"Vou sem demora pregá-la
"Por baixo do meu retrato,
"Numa parede da sala".

Mas a mamãe, com carinho,
Lhe diz: "Que mal te fazia,
"Meu filho, esse animalzinho,
"Que livre e alegre vivia?

"Solta essa pobre coitada!
"Larga-lhe as asas, Alfredo!
"Vê com treme assustada . . .
"Vê como treme de medo . . .

"Para sem pena espetá-la
"Numa parede, menino,
"É necessário matá-la:
"Queres ser um assassino?"

Pensa Alfredo . . . E, de repente,
Solta a borboleta . . . E ela
Abre as asas livremente,
E foge pela janela.

"Assim, meu filho! perdeste
"A borboleta dourada,
"Porém na estima cresceste
"De tua mãe adorada . . .

"Que cada um cumpra sua sorte
"Das mãos de Deus recebida:
"Pois só pode dar a Morte
"Aquele que dá a Vida!"
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A MOCIDADE

A mocidade é como a primavera!
A alma, cheia de flores resplandece,
Crê no Bem, ama a vida, sonha e espera,
E a desventura facilmente esquece.

É a idade da força e da beleza:
Olha o futuro, e inda não tem passado:
E, encarando de frente a Natureza,
Não tem receio do trabalho ousado.

Ama a vigília, aborrecendo o sono;
Tem projetos de glória, ama a Quimera;
E ainda não dá frutos como o outono,
Pois só dá flores como a primavera!
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PALAVRAS

As palavras do amor expiram como os versos,
Com que adoço a amargura e embalo o pensamento:
Vagos clarões, vapor de perfumes dispersos,
Vidas que não têm vida, existências que invento;
.
Esplendor cedo morto, ânsia breve, universos
De pó, que o sopro espalha ao torvelinho do vento,
Raios de sol, no oceano entre as águas imersos
-As palavras da fé vivem num só momento...

Mas as palavras más, as do ódio e do despeito,
O "não!" que desengana, o "nunca!" que alucina,
E as do aleive*, em baldões**, e as da mofa, em risadas,

Abrasam-nos o ouvido e entram-nos pelo peito:
Ficam no coração, numa inércia assassina,
Imóveis e imortais, como pedras geladas.
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* Aleive = calúnias.
** Baldões = impropérios.
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O UNIVERSO
(Paráfrase)

A Lua:

Sou um pequeno mundo;
Movo-me, rolo e danço
Por este céu profundo;
Por sorte Deus me deu
Mover-me sem descanso,
Em torno de outro mundo,
Que inda é maior do que eu.

A Terra:

Eu sou esse outro mundo;
A lua me acompanha,
Por este céu profundo . . .
Mas é destino meu
Rolar, assim tamanha,
Em torno de outro mundo,
Que inda é maior do que eu.

O Sol:

Eu sou esse outro mundo,
Eu sou o sol ardente!
Dou luz ao céu profundo . . .
Porém, sou um pigmeu,
Quer rolo eternamente
Em torno de outro mundo,
Que inda é maior do que eu.

O Homem:

Por que, no céu profundo,
Não há de parar mais
O vosso movimento?
Astros! qual é o mundo,
Em torno ao qual rodais
Por esse firmamento?

Todos os Astros:

Não chega o teu estudo
Ao centro disso tudo,
Que escapa aos olhos teus!
O centro disso tudo,
Homem vaidoso, é Deus!
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O TEMPO

Sou o Tempo que passa, que passa,
Sem princípio, sem fim, sem medida!
Vou levando a Ventura e a Desgraça,
Vou levando as vaidades da Vida!

A correr, de segundo em segundo,
Vou formando os minutos que correm . . .
Formo as horas que passam no mundo,
Formo os anos que nascem e morrem.

Ninguém pode evitar os meus danos . . .
Vou correndo sereno e constante:
Desse modo, de cem em cem anos
Formo um século, e passo adiante.

Trabalhai, porque a vida é pequena,
E não há para o Tempo demoras!
Não gasteis os minutos sem pena!
Não façais pouco caso das horas!

Fontes:
Jornal de Poesia. http://www.secrel.com.br/jpoesia/

Nelly Novaes Coelho (Literatura de Cordel)

A literatura de cordel - poesia popular impressa em folhetos e vendida em feiras ou praças -, tal como é cultivada no Brasil até hoje (vésperas do Terceiro Milénio), teve origem em Portugal, onde por volta do séc. XVII se popularizaram as folhas volantes (ou folhas soltas) que eram vendidas por cegos nas feiras, ruas, praças ou em romarias, presas a um cordel ou barbante, para facilitar suas exposição aos interessados. Nessas folhas volantes, de impressão rudimentar, registavam-se fatos históricos, poesia, cenas de teatro (como o de Gil Vicente), anedotas ou novelas tradicionais, como A Imperatriz Porcina, Princesa Magalona ou Carlos Magno, textos que eram memorizados e cantados pelos cegos que os vendiam. Essas folhas volantes lusitanas, por sua vez, tiveram origem no grande caudal da Literatura Oral, tal como se arraigou na Península Ibérica, onde se formou o velho Romanceiro peninsular.

Desta fonte primeva, saíram inicialmente os pliegos (folhas) volantes que circularam na Espanha desde fins do séc. XVI e, destes, as folhas volantes portuguesas. Ambas as formas tiveram, como antecessora, a "littérature de colportage", pequenos libretos surgidos na França no início do séc. XVI, com popularização da imprensa. Eram folhetos impressos em papel de baixa qualidade, em cor cinza ou azul (daí o nome genérico de “Biblioteca Azul”). Seus textos eram velhos romances, cantigas, vidas edificantes, fatos históricos ... recolhidos da tradição oral e bastante simplificados em sua redação.

Difundidos por toda a Europa, essa forma popular de literatura, chamada “de cordel”, foi transladada para o continente americano pela ação de seus descobridores espanhóis e portugueses, à medida em que se instalavam nas terras por eles conquistadas.

Nas naus colonizadoras, com os lavradores, os artífíces, a gente do povo, veio naturalmente a tradição do Romanceiro, que se fixaria no Nordeste do Brasil, como literatura de cordel.” (Câmara Cascudo, 1973).

Nos países hispano-americano, essa literatura de cordel se difundiu com outros nomes: corridos (México, Venezuela, Nicarágua, Cuba ...) e hojas ou pliegos sueltos (Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai, Peru ...). Textos esses em que predominava a forma poética.

Enquanto não se difundiu a tipografia, foi essa a forma que a poesia popular encontrou para se divulgar. Se na Idade Média, os jograis populares ou palacianos, cantados nas festas e animando o povo, constituíam a comunicação dessa poesia, com a transformação do tempo, tais formas também foram se transformando.” (Manuel Diégues Júnior)

Foi no Nordeste do Brasil (da Bahia ao Pará) que essa literatura de cordel se arraigou mais profundamente e continua como forma viva de comunicação, tornando-se uma das características diferenciadoras dos costumes dessa imensa região em relação às demais regiões brasileiras.

Pela interpretação do grande pesquisador que foi Câmara Cascudo, sabemos que, “No Nordeste, por condições sociais e culturais peculiares, foi possível o surgimento da literatura de cordel, da maneira como se tornou hoje em dia característica da própria fisionomia cultural da região. Fatores de formação social contribuíram para isso: a organização da sociedade patriarcal, o surgimento das manifestações messiãnicas, o aparecimento de bandos de cangaceiros ou bandidos, as secas periódicas provocando desequilíbrios económico e sociais, as lutas de família deram oportunidade, entre outros fatores, para que se verificasse o surgimento de grupos de cantadores, como instrumentos do pensamento coletivo e das manifestações de memória popular. 

(...) Se eram raras as obras impressas, vindas de Portugal ou dos centros mais adiantados do próprio Brasil, havia à mão os folhetos contando as velhas novelas populares, ás vezes, histórias de santos também. Não foi difícil à literatura de cordel introduzir-se neste ambiente. Tornou-se o meio de comunicação, o elemento propagador dos fatos ocorridos, servindo como que de jornal ao pôr a família ao corrente do que se passava: façanhas de cangaceiro, casos de rapto de moças, crimes, prejuízos da seca, efeitos das cheias, tanta coisa mais. Afinal de contas, no Brasil, o mesmo quadro era traçado por Bernardim Ribeiro ou Garrett, para Portugal.” (Manuel Diégues Júnior).

Devido à diversidade de assuntos ou temas cantados pela literatura de cordel, em todos os países ela tem sido classificada segundo seus “ciclos temáticos”. Tais classificações diferem bastante entre si, segundo os critérios usados pelos folcloristas. Em geral essas classificações abrangem duas grandes áreas-matrizes: a da Tradição (passado) e a das Circunstâncias (presente). Na Europa, existem importantes classificações, mas nenhuma definitiva. No Brasil, destacam-se as de Ariano Suassuna, Cavalcante Proença, Câmara Cascudo, Leonardo Mota, Manuel Diégues Jr., Orígenes Lessa e Roberto Câmara Benjamin. cada qual com sua contribuição, sem esgotar o problema.

Uma das classificações mais simples e abrangentes é a de Manuel Diégues Jr., que cataloga o imenso acervo popular ou folclórico em três ciclos temáticos:

I. Temas tradicionais:

a.) romances e novelas;
b.) contos maravilhosos;
c.) estórias de animais;
d.) anti-heróis/peripécias/diabruras;
e.) tradição religiosa.

Entre os exemplos mais famosos desse ciclo, estão: Proezas de Carlos Magno, Histórias dos Doze Pares de França, Cavaleiro Oliveiros, Cavaleiro Roldão, Roberto Diabo, Helena de Tróia, Histórias da Imperatriz Porcina, Donzela Teodora ... e outros de origem bíblica: José do Egito, Sansão e Dalila, Judas e histórias da Virgem Maria, Jesus, São Pedro, São Paulo ... No Catálogo da Casa Rui Barbosa, constam também contos maravilhosos: Ali Babá e os 40 Ladrões, Proezas de Malazartes, O Barba Azul, A Branca de Neve, A Bela Adormecida, O Ladrão de Bagdá e outros.

II. Fatos circunstanciais ou acontecidos:

a.) de natureza física (enchentes, cheias, secas, terremotos, etc.);
b.) de repercussão social (festas, desportes, novelas astronautas, etc.);
c.) cidade e vida urbana;
d.) crítica e sátira;
e.) elemento humano (figuras atuais ou atualizadas, como Getúlio Vargas, ciclo do fanatismo e misticismo, ciclo do cangaceirismo, tipos étnicos ou regionais, etc.

III. Cantorias e pelejas: 

Poemas que nascem oralmente, no calor dos “desafios” entre dois ou mais cantadores. Em geral, tais pelejas ou cantorias se perdem, pois ninguém se preocupa em registrá-las por escrito. Mas algumas, devido à memória prodigiosa dos cantadores (e agora com os recursos eletrônicos) acabam escritas em folhetos de cordel e se tornam famosas, inclusive, devido ao complexo virtuosismo da estrutura poética que, por vezes, apresentam. É principalmente nestes casos que a literatura de cordel deixa de ser anônima (como é natural na literatura popular), pois sempre leva os nomes dos cantadores responsáveis.

Segundo os pesquisadores, o Brasil é o maior produtor de literatura de cordel, no mundo ocidental: em cem anos publicou cerca de 20.000 folhetos, embora em pequenas tiragens (entre 100 e 200 exemplares cada). (Joseph M. Luyten).

Há cantadores e cordelistas famosos (Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde, Cuíca de Santo Amaro, pseud. de José Gomes, Rodolfo Coelho Cavalcante Raimundo Santa Helena; Francklin Machado; Paulo Nunes Batista, entre outros) que, além de cantarem e imprimirem os textos tradicionais, inventam cantorias com temas gerados pelas circunstâncias de seu tempo, pelo dia-a-dia do povo, e que servem de informação, deleite do ouvinte ou leitor, ou denúncia dos mal feitos em prejuízo de alguém. 

A maioria dos cordéis é ilustrada pela técnica da xilografia (gravação em madeira, depois estampada à tinta no papel, e que tem evoluído muito, em sutilezas técnicas). Arte regional (no início minimizada como rudimentar), hoje constitui, juntamente com as “cerâmicas de Mestre Vitalino”, uma das expressões mais características da arte popular brasileira.

Com o correr dos tempos e o progresso urbano que, embora devagar, atingiu o Nordeste brasileiro, muitos costumes antigos desapareceram, mas a literatura de cordel resistente, mantém-se viva até hoje, concorrendo com o rádio, o cinema e a televisão, para o entretenimento do povo nas praças, ruas, feiras, mercados ou em qualquer lugar em que haja um cantador e sua viola ... Só que, cada vez com mais evidência, o interesse pelos cordéis antigos vem decrescendo em favor dos novos cordéis que falam dos heróis - muito mais, anti-heróis - dos dias de hoje, e mais denunciando ou zombando do que inventando acontecimentos do novo Brasil e suas circunstâncias.

BIBLIOGRAFIA: 
Horacio Jorge Beco, Cancioneiro Tradicional Argentino, Buenos Aires, 1960; 
Sol. Biderman, Messianismo e Escatologia na Literatura de Cordel, São Paulo, 1970; 
Théophilo Braga, O Povo Português nos seus costumes, crenças e tradições, 2 vols., Lisboa, 1885; 
Luís Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, Rio de Janeiro, 1962; 
Mark J. Curran, A Sátira e a Crítica Social na Literatura de Cordel, Recife, 1960; 
Diccionario de la literatura hispanoamericana, 8 vols. Washington, 1958; 
Manuel Diègues Jr., “Literatura de Cordel”, in Revista do Livro, Rio de Janeiro, nº. 30, pp. 51-57 jul/set. 1969; 
Manuel Diègues Jr., “A Literatura de Cordel no Nordeste”, in Literatura Popular em verso, 2 vols., Rio de Janeiro, 1973; 
Manuel Diègues Jr., Literatura Popular em Verso-Catálogo, Rio de Janeiro, 1961; 
Manuel Diègues Jr., Literatura Popular em Verso-Antologia, Rio de Janeiro, 1964; 
Armando de Mária y Campos, La Revolución Mexiacana á través de los corridos, México, 1962; 
António José Saraiva, História da Cultura em Portugal, 2 vols., Lisboa, 1955; 
Marc. Soriano, “Littérature de Colportage”, in Guide de littérature pour la jeunesse, Paris, 1975.
http://www.sectec.rj.gov.br/redeescola/especialistas/portugues/tema04/por-tm04.html
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P.S.: Revisão realizada por José Feldman. A grafia original do artigo era em português de Portugal.

Fonte:
http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/L/literatura_cordel.htm. Acesso em 29.12.2007.

domingo, 17 de março de 2024

Arthur Thomaz (Devaneios) – 4 -

 
Fonte: Arthur Thomaz. Rimando Sonhos. Santos/SP: Bueno Ed., 2023

Walcyr Carrasco (A saga dos carecas)

Ser careca é um drama. Pessoalmente, não acredito que, por falta de cabelos, alguém seja mais ou menos charmoso. Mas as pessoas adoram fiscalizar. Tenho duas entradas desde os 20 anos de idade. Nunca aumentaram. Basta ficar sem ver alguma amiga alguns meses para ouvir:
– Ih… Você está ficando careca?

– Não, sempre fui assim.

Ganho um sorrisinho de dúvida. Piadas não faltam. Tive um tio com uma calva pronunciada. Passou a vida toda recebendo mimos:

– E aí, como vai o aeroporto de mosquito?

– Já lustrou?

Durante muito tempo não imaginei o desconforto. Só minha tradicional falta de tato me apontou a seriedade da questão. Um amigo estava passando um remédio caríssimo, último lançamento. Três fios solitários espetados no alto da cabeça. Todos os dias ele se mirava no espelho, esperançoso.

– Estão nascendo, estão nascendo!

Até que eu disse:

– Por que não junta os três e faz uma chuquinha, bem para cima?

Olhar de ódio absoluto. Nunca mais brinquei. Passei os anos seguintes tentando ser solidário.

– Puxa, já tem quatro fios! Que bom, parabéns!

Ou:

– Tenha paciência. É que nem horta. Tem de plantar, adubar, esperar crescer… Um dia a colheita vem!

Na praia o dito-cujo passava protetor solar na pele reluzente!

Em compensação, há quase um MSC – Movimento dos Sem Cabelos. Outrora criaram um refrão: “É dos carecas que elas gostam mais…”. Propaganda, sem dúvida. Falando francamente, nem sempre os carecas ajudam. Inventam estratagemas.

Alguns deixam o cabelo crescer de um lado e depois penteiam por cima da calva. Fica estranhíssimo, com os ralos fios tentando superar o deserto do topo. Outros apelam para uma franja comprida, que começa atrás das orelhas e cobre toda a frente. Se bate vento, é uma revelação! E os que botam aquelas meias perucas modernas? Depois de instaladas, recebem um corte semelhante ao dos cabelos, para dar a impressão de uma única e viçosa plantação. Sempre há uma franja juvenil, mas milagre ninguém faz. Com o tempo, os cabelos normais crescem. A peruca, não. Resta o topo certinho. Em torno, um jardim selvagem!

Massagens. Estímulos para abrir os vasos capilares. Extratos vegetais capazes de deixar um odor estranho por semanas! Implante? A calva é preenchida com uns tufos ralos, à espera de que floresçam. Deve ser mais fácil plantar soja! Um tratamento puxa a pele de trás para a parte da frente da cabeça. O redemoinho fica na altura da testa! Um amigo lançou mão de um artifício trágico: pintou a calva de preto. Encontrei-o de noite e fui enganado:

– Como conseguiu?

Da vez seguinte nos cruzamos em um shopping, de tarde. Vi a tinta! Parecia quase… piche! De perto, era horrendo. Procurei agir educadamente, o que é horrível nesse tipo de situação. Tentava desviar os olhos. Quando dava por mim, estavam pregados na área asfaltada!

Admiro quem assume a calva. Vários amigos raspam a cabeça toda. É um estilo. Também não fica mal quem deixa a careca aparecer, rodeada por cabelos. Sem disfarce.

Depois de certa idade, os pelos nascem por todos os lados. Nas orelhas. No nariz. As sobrancelhas transformam-se em taturanas. Para muitos homens, dá para fazer trancinhas rastafári no peito! Só não nasce cabelo na cabeça!

Eu me solidarizo com os carecas. A genética, de fato, é bem injusta para com a vaidade humana!        

Benjunior (Benevides Garcia) Poemas Escolhidos 5


AGORA E SEMPRE

Amiga amada!
Quero-te
agora e sempre,
na vida
e na morte,
alegre e contente!
Não importam
as ladeiras
e os pedregulhos
desta vida
traiçoeira.
Tenha fé
em Deus
e tudo
se arrumará
no devido
tempo!
É hora
de risos
e canções:
é com alegria
que se vence
as tensões.
Juntos estamos
no azar
e na sorte:
somos um,
somos dois,
somos todos,
somos fortes!            
E com 
amor no ideal
vislumbraremos
a vitória final…
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CANÇÃO GUERREIRA

Quero fazer uma canção triste
que seja como vento ligeiro...
Uma canção para o povo
como um canto de esperança!
Quero fazer uma canção guerreira
que luta para que voltem à vida
aqueles que declararam sua guerra!
Quero fazer uma canção para
animar os que caem...
Quero fazer uma canção de amor
que seja a de todos os tempos
e para sempre...

E que todos se levantem
e levantem suas bandeiras,
acima de seus corpos e cabeças;
levando todos os sonhos,
a todos os povos da terra
que vivem, amam e sofrem
e ainda esperam
uma canção guerreira…
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CÉU DE VIDRO

Abri minha janela
e as certezas
que nunca tive,
entraram junto
com minhas dúvidas e
anseios...

Lembranças queridas
me trazem um pouco de você
e minha alma ri...
Estrelas fugidias,
errantes
irradiam magia,
em meio ao silêncio
da rua deserta...
Mais além,
um som manhoso
de um tango milongueiro
vagueia pelos cantos
daquelas portas de muitas cores,
multicores...

Pra que me entregar
nos braços
de Morfeu
e perder este espetáculo,
que me embebeda
a alma
e mata minha sede?...
Continuo
e me sinto
dono da noite
que galopa
sonhos,
entre brisa e luar.
Na  parede
da  casa  adormecida,
vejo nuances de
verdes que se
encastelam
e se engancham,
mostrando que arte
é também e apenas
uma maneira de viver...
Retorno     
e fecho a janela,
para o dia
que vem chegando.
Adormeço…
= = = = = = = = = 

GRITO DE ESTRELAS

"Um grito de estrelas vem do infinito
E um bando de luz repete o grito.
Todas as cores e outras mais
Procriam flores astrais.
O verme passeia na lua cheia"...

Hoje estou com vontade diferente
de ser outra gente
de outro bando e lugar.
Estou com vontade de andar
caminhar [vagar, voar,]
ser infinito
enquanto posso...
Quero libertar de
minhas janelas,
e conhecer a imensidão
dos amanhãs, que
são forjados
nas oficinas do tempo,
que ficam escondidas
em lugar nenhum.
Quero escapar,
dos caminhos que existem
dentro das coisas transparentes,
que refletem os cansaços
e as indecisões.
Quero viver a vida
em "slow motion"
no abrigo
dos corações invertidos,
pintados como trens
que de repente param
em nenhuma estação...
E assim,
como do fundo da música
brotam as notas
que, ora são lembranças,
ora esperanças,
emudeço o grito,
na pauta do silêncio
e da amargura...
E quando a noite vier,
cantarei alguma coisa
pra dormir,
no silêncio das paredes,
que refletem fantasmas
de minha alma...
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QUIMERA

No desalento 
de minha alma
encontrei forças
para seguir em frente
voltar a ser um cavaleiro andante
em busca do sonho, em busca do amor

Visões de um passado há tanto esquecido
turvaram-me coração, olhar e mente
refletindo espectros de quimera
envoltos na lembrança
de um amor
infeliz...

Leon [Liev] Tolstói (Cachorros bombeiros)

(História real)

Nas cidades, muitas vezes acontece de crianças ficarem dentro das casas que pegam fogo e é impossível tirá-las de lá porque, assustadas, elas se escondem e ficam caladas e, com a fumaça, não dá para ver onde estão. Por isso, em Londres, existem cachorros ensinados. Esses cachorros vivem com os bombeiros e, quando uma casa pega fogo, os bombeiros mandam um cachorro retirar as crianças. Um desses cachorros, em Londres, salvou doze crianças; chamava-se Bob.

Um dia, uma casa pegou fogo. E quando os bombeiros chegaram, uma mulher veio correndo falar com eles. Chorava e dizia que uma menina de dois anos tinha ficado dentro da casa. Os bombeiros mandaram o Bob. Bob subiu a escada correndo e sumiu na fumaça.

Cinco minutos depois, saiu da casa, trazendo nos dentes, pendurada pela camisa, a menina de dois anos. A mãe abraçou a filha e chorou de alegria ao ver que a filha estava viva. Os bombeiros afagaram o cachorro e verificaram se não tinha se queimado; mas Bob quis se soltar e entrar de novo na casa. 

Os bombeiros acharam que havia mais alguém vivo lá dentro e o soltaram. O cachorro entrou correndo e logo depois saiu com alguma coisa entre os dentes. Quando olharam o que ele trazia, todos começaram a rir: o cachorro trazia uma grande boneca.

Fonte: Liev Tolstói. Livros de leitura para crianças. Publicado originalmente em 1864. Disponível em Domínio Público

Hinos de Cidades Brasileiras (Barra Mansa/RJ)


Vivo seja teu nome esculpido
No granito das rochas sem par,
E por todos co'amor repetido,
Com preces diante do altar!
Cada lábio o murmure e um hino
Ele seja e o suave penhor
Dum afeto tão grande e divino,
Tão sublime e mais puro que o amor!

Barra Mansa! Barra Mansa!
Glória a ti! Hosana mil!
Lembras suave esperança
Num recanto do Brasil!

Tua glória, fulgindo brilhante,
Com mais vivo fulgor e mais luz,
Repercute no vale distante,
Vai além desses céus mais azuis!
Vai além desses montes e fala
Da existência de um povo a lutar,
Do teu povo feliz, que se iguala
aos titans no feroz batalhar!

Barra Mansa! Barra Mansa!
Glória a ti! Hosana mil!
Lembras suave esperança
Num recanto do Brasil!

O teu nome também nos recorda
Um murmúrio suave, um perdão,
Um carinho que terno transborda
De teus filhos no teu coração!
Ele lembra também a meiguice,
À beleza, a grandeza moral
Das mulheres que tens, a ledice
À pureza sem par de Vestal!

Barra Mansa! Barra Mansa!
Glória a ti! Hosana mil!
Lembras suave esperança
Num recanto do Brasil!

Do criador, já a mão justiceira
Teu destino no tempo traçou...
Barra Mansa, serás a primeira
Pelos bens que o Senhor te doou!
Cada etapa vencida em peleja
Traga sempre uma glória melhor,
Uma glória mais santa e que seja,
Entre todo o triunfo o maior!

Barra Mansa! Barra Mansa!
Glória a ti! Hosana mil!
Lembras suave esperança
Num recanto do Brasil!

Luís da Câmara Cascudo (O Veado de Plumas)

Era uma vez uma rainha que seria completamente feliz se tivesse filhos. Estava, numa ocasião, tão excitada que, não reparando que era justamente o pino do meio-dia, hora em que os anjos do Céu estão cantando, gritou:

– Meu Deus! Pelas horas que são! Dai-me um filho nem que seja com cara de bicho...

Nasceu-lhe um filho forte, bem feito, rosado, mas tendo em vez de rosto um focinho de veado.

Cresceu depressa, muito inteligente e agradável, possuindo uma sabedoria fora do comum e virtudes mágicas. O Rei e a Rainha traziam-no escondido para que ninguém soubesse que o herdeiro do trono tinha cara de veado.

Ao pôr-se rapaz, o príncipe pediu que o deixassem sair pelo mundo, procurando aventuras para esquecer seu físico. Os pais deram permissão e o príncipe viajou numa noite escura, para que não o vissem os súditos de seu pai.

Andou, andou, andou dias e dias, até que finalmente chegou a um reinado muito grande e bonito. Logo na entrada da cidade estava um letreiro convidando qualquer homem a construir uma ponte ligando as duas partes do reinado que eram divididas por um abismo sem fundo, obrigando aos moradores a uma volta de mais de cem léguas. Quem construísse a ponte seria pago com o seu peso em ouro e casaria com uma das três filhas do rei. Caso contrário sofreria a pena de morte.

Muita gente morrera tentando levantar a ponte. Quando o trabalho estava prestes a findar-se, erguia-se um pé de vento e desmanchava tudo.

O príncipe de cara de veado ofereceu-se e foi aceito. Ficou na beira do precipício, deitou-se e dormiu como se estivesse em casa. Passou quase todo o dia seguinte passeando e olhando para todos os lados como se não tivesse o que fazer. Da janela mais alta do palácio a princesa acompanhava os passos do Cara de Veado.

Ao anoitecer, o príncipe andou para lá e para cá, como se estivesse rezando. Parou, abriu os braços e apareceu uma nuvem de trabalhadores, em ambos os lados da barranca, iniciando imediatamente o serviço. Toda a noite houve o rumor de um formigueiro e ao romper do dia uma ponte de pedra ligava as duas margens do abismo, ponte larga, sólida, assombrando a todos.

O Rei ficou satisfeitíssimo. Cara de Veado recusou o ouro e esperou a noiva. As duas filhas do Rei nem admitiam a ideia de alguém sonhar em casá-las com uma criatura feia como o Cara de Veado. A mais moça declarou-se pronta a ser mulher do príncipe misterioso.

Foi um casamento feito depressa porque não tinha graça ver-se uma moça bonita casada com um camarada meio homem, meio bicho. Depois da cerimônia, o Rei perguntou ao genro onde ele queria morar.

– Na minha casa, real senhor!

E mostrou um palácio que era uma Babilônia, aparecido por encanto perto da mansão do rei.

A princesa casada vivia feliz, mas Cara de Veado não queria acompanhar a mulher para parte alguma, temendo envergonhá-la. As duas outras princesas casaram com dois príncipes elegantes e estavam orgulhosas dos maridos, fazendo inveja à irmã mais moça.

Sucedeu que, de tantos em tantos anos, o Rei mandava realizar umas cavalhadas muito concorridas. Vinha gente até do fim do mundo assistir. Todos os fidalgos corriam às justas, com lanças, tirando as argolinhas de ouro que eram dadas às damas, com muitos aplausos da multidão. Depois seguia-se um baile que durava a noite toda.

As duas princesas passavam os dias examinando vestidos e sonhando com as festas. A irmã caçula aparentava alegria, mas estava triste porque o marido não havia de correr às argolinhas com aquela cara.

Na manhã do dia das cavalhadas, Cara de Veado chamou a mulher e lhe disse:

– Aqui está o vestido que você deve ir à festa. Dê-me um banho, cate meus piolhos, perfume meu corpo e ficarei fechado num quarto até sua volta. Não quero que notem sua falta.

A princesa fez tudo quanto o marido pedira e, muito a contragosto, trancou-o num quarto, vestiu-se, tomou a carruagem e seguiu. Quando ela apareceu no tablado, todo mundo bateu palmas porque era a mais bonita de todas.

Começou a corrida. No meio dos cavaleiros apareceu um homem desconhecido, bonito, forte, bem armado e num cavalo que era um corisco. Correu todos os torneios e tirou todas as argolinhas. Ninguém o conhecia e quando os cavaleiros desfilaram junto do Rei para saudá-lo, o desconhecido baixou a lança de prata e deixou todas as argolinhas de ouro no colo da mulher do Cara de Veado.

O povo bateu tanta palma que a cidade estrondava.

A mulher do Cara de Veado quis sacudir fora as argolinhas e não fez para não afrontar a fidalguia, mas tomou a carruagem e voltou para casa. Encontrou o marido onde o deixara, perguntando se gostara das corridas. Ela respondeu contando o que sucedera.

– Você não gostaria mais de se ter casado com um cavaleiro como esse que lhe deu as argolinhas, do que comigo?

– Eu não troco meu marido por todos os cavaleiros desse mundo – respondeu a princesinha.

– Menos dois – disse o Cara de Veado.

A mulher não entendeu e o marido não lhe explicou.

No dia seguinte houve o mesmo caso. O cavaleiro desconhecido reapareceu, melhor vestido, montado e armado, e ganhou as argolinhas. Foi saudar o Rei e deitou-as todas no regaço da mulher do Cara de Veado. Depois, picou o cavalo nas esporas e sumiu-se.

A mulher voltou e contou o acontecido. Cara de Veado perguntou se ela não seria mais feliz com o desconhecido do que com ele.

– Eu não troco meu marido por todos os cavaleiros do mundo – foi a resposta.

– Menos dois – resmungou o Cara de Veado.

No terceiro, a mesma façanha. Cara de Veado ouviu a história e a resposta da esposa e disse:

– Menos dois...

E mandou que a mulher se vestisse para o baile. A mulher não queria ir, mas ele obrigou-a. A princesinha foi resolvida a não dançar porque só desejava dançar com o marido. No meio da festa apareceu o cavaleiro misterioso tão bem-vestido que causou espanto. Todas as damas e donzelas queriam dançar com ele, mas o cavaleiro foi até onde estava a mulher do Cara de Veado e pediu-lhe a honra de uma dança. Para não fazer desfeita, a moça aceitou e dançaram com muita graça várias vezes.

À meia-noite a princesinha saiu do baile e voltou para a casa. Encontrou Cara de Veado na mesma posição e houve a mesma troca de perguntas e respostas.

– Menos dois – repetiu.

Pela manhã a mulher deu a comida ao marido e foi administrar sua casa. Num quarto velho que havia no fim do palácio, viu um armário grande, empoeirado. Espanou-o e abriu-o. Qual não foi sua surpresa quando deparou todas as roupas que o cavaleiro misterioso usara nos três dias do torneio e no baile da véspera. Estava de boca aberta mirando aquelas maravilhas, quando ouviu um gemido. Voltou-se e viu o Cara de Veado.

– Você não ouviu eu dizer, por quatro vezes, “menos dois”? Pois cada vez que tinha uma prova de sua fidelidade, descontava dois anos no tempo do meu encanto. Esse quarto fechado não podia ser aberto porque fica fora do governo da casa. Sua curiosidade mudou meu destino e não posso mais ficar aqui.

A princesinha começou a chorar. Cara de Veado abriu uma janela enorme que havia e pediu que a mulher olhasse para o nascente e fosse dizendo o que avistasse. A mulher obedeceu.

– Estou vendo uma nuvem escura!

– Não é essa...

– Estou vendo uma nuvem cinzenta!

– Não é essa...

– Estou vendo uma nuvem branca!

– É esta! Adeus!

A nuvem branca foi crescendo, crescendo, encheu o quarto e no meio dela Cara de Veado pulou. A nuvem subiu, subiu, e a mulher avistou um grande Veado coberto de plumas, olhando-a do alto. E desapareceu.

Imediatamente o palácio desmanchou-se como se fosse feito de fumaça. A princesinha voltou para o palácio do rei seu Pai, chorando como uma órfã. O Rei recebeu-a muito bem, mas as duas irmãs riram muito da situação dela.

– Quem lhe obrigou a casar com bicho em vez de casar com gente? Vá procurar seu marido nos matos!...

A princesa deliberou procurar o marido pelo mundo. Muniu-se de um bordão e caminhou, caminhou, caminhou...

Num cair da noite chegou a uma casinha muito limpa e agradável, onde viu uma velha asseada e risonha que a recebeu com caridade. Deu-lhe de comer, de beber. A princesinha contou sua vida. A velha lhe disse:

– Minha filha, isto aqui é perigoso, mas, como você é protegida de Deus, eu vou tentar. Esconda-se por trás desse fogão porque a minha Filha quando chega, tudo fica gelado.

– Quem é sua filha?

– A Lua!

Quando a Lua chegou, a casinha ficou banhada por uma luz que parecia leite. A Lua estava de mau humor, farejando alto:

– Aqui me cheira a sangue real! Aqui me cheira a sangue real!

– Não é nada, minha filha. Jante e vamos conversar.

A Lua jantou e sossegou. A mãe perguntou:

– Minha filha, se por aqui chegasse uma peregrina, cansada e triste, que faria você?

– Eu, minha mãe? Tratá-la-ia bem...

A moça saiu de trás do fogão e a Lua recebeu-a bem, ouvindo-a contar sua história. Depois disse:

– Queria ajudar mas não sei onde fica o reinado do Veado de Plumas. Quem deve saber é minha madrinha, a Noite.

Sucedeu na casa da Noite o mesmo que houvera na casa da Lua. A Noite ignorava o reinado do Veado de Plumas e indicou a casa do Sol.

A princesinha seguiu seu caminho. O Sol, aquietado por sua mãe, conversou com a moça, mas desenganou-a quanto ao itinerário.

– Não sei. Quem deve saber são os Ventos.

Lá se foi a princesinha para a casa dos Ventos. A mãe dos Ventos alimentou-a, escondeu-a e aplacou a fúria dos filhos que chegaram uivando como uns desesperados. Depois do jantar, puseram-se às boas e entraram na conversa. O Vento Norte não sabia, nem o Vento Sul. O Vento Oeste já ouvira falar. O Vento Leste ficou importante:

– Sei onde é. Fica longe. É um reinado bonito, governado por um veado vestido de plumas muito alvas e brilhantes. Eu a levo amanhã.

Pela madrugada a mãe dos Ventos acordou a princesinha e lhe disse:

– Minha filha, quando você chegar lá, esconda-se na mata da lagoa do meio. Tem duas pedras de prata numa margem e aí todos os bichos encantados vêm beber água, diariamente. Fique de jeito que, assim que o Veado de Plumas baixar a cabeça na água, pule em cima, agarre-se nele e não se solte, haja o que houver. Deus a leve...

O Vento do Nascente arrebatou a moça e voou quase todo o dia. Ao tombar da noite deixou-a num caminho, perto da floresta. A moça viu a lagoa. Correu para lá e escondeu-se junto das duas pedras de prata.

Todos os animais vinham beber, aos grupos. Ao crepúsculo, ouviu-se um barulho de paus quebrados e galhos partidos e os bichos todos correram com medo. Apareceu então um Veado de Plumas enorme, majestoso como um monarca, e veio vindo, veio vindo, devagar, o focinho para o ar, desconfiado. Ia chegando para perto e, de repente, dava um trote e ficava longe. Depois voltava, aspirando forte, inquieto. Tanto se chegou, tanto se chegou que deu as costas para o lado da moça e pôs o focinho na água da lagoa. A moça, mais que depressa, saltou-lhe em cima, grudando-se no seu pescoço como se fosse um cadeado.

O Veado de Plumas deu mais de mil saltos, pulos, reviravoltas, bramando, atirando coices que escureciam, esfregando-se pelas árvores, correndo, mas a princesinha não o largou e mais e mais se segurava naquele turbilhão de pinotes e piruetas. Tanto o Veado saltou e se encostou nos espinhos que as plumas foram voando, uma a uma, e o couro se transformando em pele humana. Quando o veado cansou extenuado, e parou, estava mudado num príncipe bonito e forte, com a princesinha pendurada ao pescoço.

Foram juntos para o palácio que se erguia no centro da floresta. Entraram e foram recebidos pelos fidalgos que eram os animais desencantados. Um jantar magnífico apareceu e festejaram toda a noite o fim da penitência.

Pela manhã o Rei, sogro do Cara de Veado, foi olhar pela janela do seu palácio e viu um castelo muito mais imponente que o seu, ao lado. Mandou perguntar quem morava nele e, ao saber que voltara sua filha e o marido, correu para abraçá-los, chorando de alegria.

Houve festejos públicos três dias.

As duas princesas ficaram tão furiosas com a vitória da irmã que se precipitaram da torre, espatifando-se nos lajedos da calçada.

A rainha-mãe de Cara de Veado, que estivera todo esse tempo muda, recobrou a fala, sinal de que Deus lhe perdoara.
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OBSERVAÇÕES SOBRE O CONTO

Dividindo-o, é possível reconhecer as procedências, nos fabulários europeus, especialmente da península ibérica. Poder-se-ia chamar a história Cara de Veado, mas as narradoras teimavam em dizê-la Veado de Plumas. Os príncipes encantados que nasceram com focinho de cão, de macaco, de burro foram muitos. A atuação do Cara de Veado nas corridas de argolinhas já o filia a outro ciclo, assim como a presença no baile, tentando seduzir a própria esposa. No conto Bicão, que Silva Campos recolheu na Bahia (nº LXVIII), há o mesmo diálogo entre a moça e o príncipe encantado, mandando este que ela diga se vê as nuvens. A moça anuncia as nuvens escura, cinzenta e branca, que o leva. A viagem da esposa, peregrinando pela casa da Lua, da Noite, do Sol e dos Ventos, procurando saber onde ficava o reinado do Veado de Plumas, é um dos pormenores mais tradicionais na Europa. Ocorre, entre alguns contos, no Le Pays des Margriettes (Jean Fleurys, Littérature Orale de la Basse-Normandie, Paris, 1883), no A Paraboinha de Ouro (Teófilo Braga, nº 31), El Castillo de Oropé (Aurélio M. Espinosa, nº 128, Soria, Espanha), etc. O final exótico, da luta com o Veado de Plumas, não recordo haver encontrado símile.

A viagem da esposa é um dos motivos mais conhecidos dos contos europeus, ao redor do tema da “Terra a leste do Sol e a oeste da Lua”, os ventos (o vento Sul ou o Norte) levam a moça para o esposo, seguindo-se pormenores sempre diversos. Os contos dos irmãos Grimm, de George Webbe Dasent, a coleção escocesa de Campbell registram variantes.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.