sexta-feira, 26 de julho de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “20”

 

Mensagem na Garrafa = 128 =


APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Traumas 

AS INCISURAS invisíveis da alma –, ou aqueles talhos sangrentos que não dimensionamos à olhos nus, são como terremotos internos que abalam as estruturas mais profundas do nosso ser. Elas não escolhem hora nem lugar, tampouco avisam que estão coladas em nossa pele. Sempre deixam cancelas profundas e marcantes que nem o tempo é capaz de apagar, pelo menos de uma maneira que acreditamos completa e sem melindres para reclames posteriores.                                                                               
 
Cada pessoa carrega dentro de si seus medos e aflições, assombros e espantos de maneira única, tipo assim, como se fosse uma ferida questionando a maneira de como vemos o mundo e interagimos com ele. São memórias dolorosas alojadas em cantos e desvãos esquecidos dentro da mente e, para o nosso desespero, emergem do corriqueiro nosso de cada dia, notadamente quando menos esperamos. 

As repugnâncias e as decepções, podem nascer de momentos de grandes dissabores, seja por perda ou por simples melancolia. Podem vir, em paralelo, tipo uma infância difícil, uma quadra de relações debilitadas sem motivos aparentes, ou seja, de palavras vazias que somente têm por objetivo ficarem mais profundamente visíveis que qualquer outro corte físico. Elas nos ensinam, apesar dos pesares, a sermos moderados, cautelosos e prudentes. 

Nós, brasileiros, de um modo geral, não somos, nem levamos a coisa à sério. Vivemos dispersos, voando em sonhos sem futuro lógico. Se estivéssemos ligados e atentos, unidos e agregados em um objetivo (vinte e quatro horas por dia), construiríamos muros altos ao redor do nosso coração e de suas fragilidades. Desse modo, olharíamos com mais atenção e carinho para o horizonte e, sobretudo, encararíamos o futuro com uma forte dose de esperança. Existe, por conta de tal imprevisto, pequenos outros entraves. Quais seriam?! As escoriações e os traumas. Referidas figuras também podem ser empecilhos, e sempre afloram com algo embutido no mesmo pacote. 

Outras situações rigorosas surgem a todo instante, nos ensinando lições valiosas sobre superação. Aprendemos a nos levantar após cada queda, a curar e tratar as feridas com compaixão e a transformar a dor em força.  A jornada de cura dos traumas é pessoal e muitas vezes solitária. Requer coragem para enfrentar de peito aberto e cabeça erguida, os fantasmas do passado. Atrelado a esses espectros, feito unha e carne, devemos alimentar a vontade férrea de buscar ajuda urgente quando ela se fizer necessária. 

Nessas horas, uma terapia ou o apoio de amigos e familiares são fundamentais no decorrer desse processo. É importante lembrarmos que, embora os percalços façam parte ativa do que somos, eles não nos definem. Tais imposições, nos ensinam apenas que somos muito mais poderosos que as nossas experiências, notadamente as doridas e amargas. Com o tempo, cultivando a paciência e o trabalho, poderemos aprender a conviver com os nossos piores pesadelos, sem permitirmos que eles destruam as nossas vidas ou a de nossas famílias. 

No final, os traumas, ou as crises, são apenas partes indistintas da complexa tapeçaria que nada mais é que a experiência humana disfarçada em outra roupagem. Eles, os traumas, nos ensinam, mais, ou melhor, nos mostram, nos orientam e nos falam abertamente sobre a vulnerabilidade e a força. Do mesmo modo, nos capacitam sobre a teoria do “se quebrar e se reconstruir.” Talvez, paralelamente, nos tornem mais empáticos e compreensíveis com as lutas e pelejas dos outros, todos, obviamente sem distinção de raça ou credo. 

O fato é que, de repente, sem que esperemos por algum resultado benéfico, poderemos ter diante de nosso cotidiano, as nossas batalhas internas, e, de roldão, as guerras particulares refreadas, saradas e apaziguadas, ou mesmo resultado, qualquer outro traumatismo que nos tente levar para o buraco da perdição, ainda que infâmias que no dia a dia, minuto a minuto pelejam arduamente para nos tirar o foco, ou a paz e o sossego da verdadeira jornada que intencionamos seguir trilhando... se faz mister termos os olhos abertos. A mente em alerta, o corpo todo em estado de vigilância total. Dessa forma, simples e corriqueira, conseguiremos a condução da tão sonhada, desejada e querida FELICIDADE.

(Texto enviado pelo autor)

Vereda da Poesia = 67 =


Trova Humorística de Taubaté/SP

ARGEMIRA F. MARCONDES

Levando um coice da mula,
minha sogra se mandou;
a mulinha nem calcula
o galho que me quebrou.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Brusque/SC

MARIA LUIZA WALENDOWSKY

Tristeza

Tristeza d´alma
vá para longe...
não fiques me sufocando
com esta angústia,
dor no peito
sem fim.
- De onde vens?
São tantos os motivos...
mas por que insistes em ficar?
Deixe-me ser livre... solta!
Voar bem alto
e, no infinito,
mergulhar em meu íntimo,
a sorrir com orgulho,
de uma vida prestes
a desabrochar...
tímida e imprevista.
- Por favor,
não insistas mais
em ficar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Aldravia de Ipatinga/MG

MARÍLIA SIQUEIRA LACERDA
retratos
pela
casa
digerir
saudades
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de Jaboatão dos Guararapes/PE

PAULINO DE ANDRADE
(1886 – ????)

Olinda

No alto, a paisagem verde-escura e acidentada.
Em baixo, o ouro da praia e a saudade do mar...
Sugere lendas... reis magos... terra encantada...
Fidalgas castelãs... troveiros a cantar...

É bem de vê-la sob a tragédia sagrada
Do crepúsculo: é grande, heroica, singular!
Eu, quando a vejo assim, tenho a alma amplificada
E uma dilatação de beleza no olhar.

E se, pela alterosa e lendária Palmira
Longa e empolgada, a vista amplamente se estira,
Lembro o Nebo sob a ânsia imortal de Moisés!...

E um ninho azul coroa a epopeica Cidade...
Rumina o coqueiral uma velha saudade,
E a saudade do Mar rumoreja-lhe aos pés...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Premiada em Maringá

WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba/PR

Enfeitando de poesia
suas canções de ninar,
enquanto o filho dormia
mamãe podia sonhar.

= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Belo Horizonte/MG

CARLOS LÚCIO GONTIJO

Peão de Letras

Palavras são novilhos
Novelos de rios e lã
Cavalos bravios, puro-sangue
Na escuridão esperando manhã
Mangue de fala nascente
Veneno de língua poente
Pauta sonhando som
Feno bom para a mente animal
Que não sabe ser silente
Nesta campina sou cavaleiro
Poeta visionário social
Guerreiro, desbravo o dicionário
Matagal de mel em favos
Onde enlaço palavras com laço de céu
Feito abraço, prisão que afaga
Esta é minha saga, minha sina
Que se algum dia termina
Quero meu corpo ao lado da mãe
E o conforto da inscrição final:
"Meu irmão, aqui jaz um peão de letras”
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Popular

Amor com amor se paga:
nunca vi coisa tão justa;        
paga-me contigo mesmo           
saberás quanto te custa.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de Curitiba/PR

VANDA FAGUNDES QUEIROZ

Antes de fechar a porta

Recordo, muita vez, sentada à porta
de mim mesma, o tão nosso antigamente!
O que espreito, bem sei, não mais importa
que a mim só que de novo estou presente.

É a mão da saudade que transporta
o que sou ao que fomos. De repente,
tanta coisa, com rótulo de morta,
vive em mim nova vida, inteiramente...

Julgas mera tolice a devoção
de minha ardente peregrinação
ao passado. E me acordas à verdade.

Volvo ao deserto de viver, então.
Mas, antes de esconder o coração,
guardo já dentro mais uma saudade.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Juiz de Fora/MG

ARLINDO TADEU VAGEN

Eu vi, ao nascer do dia,
a rosa despetalada
e o assassino que fugia:
o vento da madrugada!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Fortaleza/CE

NEMÉSIO PRATA

Poema de vida... sem vida! 

A Rosa, cheia de vida, 
de viço e beleza, tida, 
das flores, a preferida 
de todos, foi bem nascida, 
agora, vive esquecida 
em uma jarra partida 
sem viço, beleza e vida!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Humorística de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

"Com Deus, vou subir a serra
sem perigo... eu tenho fé!"
Na curva, o bebum se ferra...
Deus subiu... mas foi a pé!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de de Dublin/Irlanda

OSCAR WILDE
(Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde)
Dublin/Irlanda (1854 – 1900) Paris/França

Soneto à Liberdade

Não que eu ame teus filhos cujo olhar obtuso
Somente vê a própria e repugnante dor,
Cuja mente não sabe, ou quer saber, de nada
É que, com seu rugir, tuas Democracias,

Teus reinos de Terror e grandes Anarquias
Refletem meus afãs extremos como o mar,
Dando-me Liberdade! -à cólera uma irmã.
Minha alma circunspecta gosta de teus gritos

Confusos só por causa disso: do contrário,
Reis com sangrento açoite ou seus canhões traiçoeiros
Roubavam às nações seus sagrados direitos,

Deixando-me impassível e ainda, ainda assim,
Esses Cristos que morrem sobre as barricadas,
Deus sabe que os apoio ao menos parcialmente. 
(tradução de Nelson Ascher)
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Potiguar

ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/RN (1951 - 2013) Natal/RN

Muda-se a cor preferida,
troca-se a corda do sino,
muda-se tudo na vida…
Mas não se muda o destino.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Glosa do Rio de Janeiro/RJ

REGINA COELI

MOTE: 
Nessas rosas em que espelhas
teus delicados primores,
meu amor, tu te assemelhas
a uma flor me dando flores! 
Humberto-Poeta 
(São Paulo/SP)

GLOSA:
Nessas rosas em que espelhas
teu perfume e tua cor,
há um exército de abelhas
tornando em mel teu amor.

Sinto em tão doce fragrância
teus delicados primores,
pinçados com elegância
das rosas em belas cores.

Se o telhado tem nas telhas
instrumento pra abrigar,
meu amor, tu te assemelhas
à pérgula a perfumar.

Teu doce encanto me enleva
a jardins encantadores;
comparo-te — luz na treva —
a uma flor me dando flores! 
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Bragança Paulista/SP

MARINA GOMES VALENTE

Contemplar o mar infindo,
entender sua poesia,
ver o sol se despedindo
é sentir paz e alegria.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de Manaus/AM

ANIBAL BEÇA
(1946 – 2009)

Mala com alça

É da lama essa mala que retiro
para subir a encosta (como a pedra
que Sísifo ainda empurra todo dia)
numa viagem cheia de sequelas.

Não há como negar tantos espinhos
na travessia turva de mistérios
que vão-se descobrindo nos caminhos:
a mão negada, a fome, o vitupério,

o rito solidário que esquecemos
em troca a vaidade transitória.
Somos do barro e ao barro voltaremos.

A verdade do Homem e de sua Hora
vem com mala e alça, disto sabemos,
mais o peso do corpo e sua história.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Premiada em Sete Lagoas/MG , 2000

MARINA BRUNA 
Franca/SP, 1935 – 2013, São Paulo/SP

Em cada dia eu renasço
- apesar de envelhecer –
descobrindo, passo a passo,
a alegria de viver!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Três Corações/MG

MEIMEI CORREA

Brincando com versos

Um verso
Disperso
Na calada da noite
Pensou ser esperto
E passou de mansinho
Caminhou no meu leito
Bateu forte no peito.

Invisível aos olhos
Sorriu para o coração
Que na distração
Do sonho acordado
Dormiu nessas linhas
Que fingem ser minhas.

Um poema sem métrica
Sem réplica se fez
Escorreu pela alma
Em forma de tintas
Colorindo a madrugada
Que foi enganada
Pelo sono que não veio
Estando em recreio
Com os pingos da chuva
Que uma nuvem esqueceu
No telhado da imaginação!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Triverso de Curitiba/PR

ÁLVARO POSSELT

Curitiba não nos poupa.
Ontem eu tomei sorvete,
Hoje eu tomo sopa.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Setilha de Natal/RN

JOSÉ LUCAS DE BARROS
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

O Pai não deixou talentos
iguais para os filhos seus.
Os seres não são iguais
na família dos pigmeus
nem também na dos gigantes,
e, se somos semelhantes,
já damos graças a Deus.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Caicó/RN

PROFESSOR GARCIA

O sol, a brisa e esta rede,
no entardecer, que esplendor!
E o mar morrendo de sede,
mata-me a sede de amor!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Hino de Cabo Frio/RJ

Cabo Frio, minha terra amada,
Tu és dotada de belezas mil,
Escondida vives num recanto,
Sob o manto deste meu Brasil...

Noites Claras teu luar famoso,
Este luar que viu meus ancestrais...
O teu povo se orgulha tanto,
E de ti, não esquecerá jamais...

Tuas praias, Teu Forte,
Olho ao longe e vejo o mar bravio
A esquerda um pescador afoito,
Na lagoa que parece um rio...

O teu sol, que beleza!
No teu céu estrelas brilham mais...
Forasteiro, não há forasteiro,
Pois nesta terra todos são iguais…
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
O Canto de Orgulho e Beleza de Cabo Frio
O 'Hino de Cabo Frio - RJ' é uma ode à cidade localizada no estado do Rio de Janeiro, exaltando suas características naturais e a sensação de pertencimento que ela proporciona aos seus habitantes e visitantes. A letra começa com uma declaração de amor à terra, destacando as belezas naturais que a cidade possui, como se estivesse escondida, mas ainda assim sob a proteção do Brasil.

A referência ao 'luar famoso' e aos ancestrais do narrador evoca um sentimento de continuidade histórica e de conexão profunda com o lugar. O orgulho do povo de Cabo Frio é ressaltado, indicando que a memória e a valorização da cidade são passadas de geração em geração. As praias e o Forte são mencionados como marcos geográficos, enquanto a visão de um pescador e a lagoa que se assemelha a um rio pintam um quadro da vida cotidiana e da relação harmoniosa com o meio ambiente.

Por fim, a canção destaca a igualdade entre as pessoas que se encontram em Cabo Frio, sejam elas moradores ou visitantes, sugerindo uma atmosfera acolhedora e inclusiva. A beleza do sol e o brilho das estrelas no céu são metáforas para a vivacidade e a energia positiva que a cidade emana, reforçando a ideia de que Cabo Frio é um lugar especial tanto para quem vive quanto para quem a visita. https://www.letras.mus.br/hinos-de-cidades/467125/ 
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poetrix de Palmeira das Missões/RS

CARLOS VILARINHO

um verbo

Entre nós um verbo
Que não cresce
Nem aparece…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de Sorocaba/SP

DOROTHY JANSSON MORETTI
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Um olhar sobre Sorocaba

Em pleno ciclo de tantas tropeadas,
quer de mulas, ou quer também de bois,
Sorocaba levanta as mãos armadas...
Mil oitocentos e quarenta e dois. 

Passa o século. A poeira das estradas              
vai-se apagando e vão florir, depois,              
as lindas laranjeiras carregadas...              
Mil novecentos e quarenta e dois. 

Os ciclos vão-se de outros distanciando...
Do bandeirante ao têxtil se afastando,
a indústria abre, imponente, o seu roteiro. 

E hoje, aos ventos do tempo e seus avanços,              
Sorocaba levanta os braços mansos,              
e torna irmãos... filhos do mundo inteiro.       
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

O fruto é um santo produto
do mais generoso amor.
Por isso é que antes do fruto
quis Deus que ele fosse flor!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Conto em Versos do Rio de Janeiro/RJ

ARTHUR DE AZEVEDO
São Luís/MA, 1855 – 1908, Rio de Janeiro/RJ

Improbus amor...

O Alfredo era poeta,
E na imprensa chamavam-lhe eminente;
Todavia, gostava loucamente
De uma mulata quase analfabeta,
Que desdenhava o seu amor ardente,
Pois que lhe preferia
O primeiro caixeiro
De um armazém de secos e molhados.

Suspirando e gemendo noite e dia,
E tirando do fundo do tinteiro
Chorosos versos, versos inflamados,
Que a mulata não lia,
E quando os lesse, não os entenderia,
As esperanças não perdia Alfredo
De, mais tarde ou mais cedo,
Aquele coração tornar mais brando.

Um dia, um belo dia, eis senão quando
Uma poetisa de talento, e bela,
Branca e não amarela,
Misto de musa e fada,

Olhos da cor do céu sereno e puro,
E cabelos da cor da madrugada
Quando reponta no horizonte escuro,
— Apaixonou-se pelo nosso Alfredo,
E tais olhares lhe lançou, tão fundos,
Que não pôde guardar o seu segredo.

O poeta, nos seus versos gemebundos,
Continuou a lastimar, coitado,
Viver pela mulata desprezado
Como folha arrastada pela brisa,
E não deu atenção à poetisa.

Um amigo do peito,
Que de tudo sabia,
Protestou contra essa anomalia:
— Alfredo! Com efeito!
Isso é depravação! Pois tu enjeitas
O amor de uma senhora inteligente,
Líndíssima, atraente,
Que faz poesias e que as faz bem feitas,
Pelo menos tão boas como as tuas,
Por não poderes esquecer um diabo
Uma mulher das ruas,
Que de ti dará cabo
Se não tomares juízo?!...
Vamos! Que os olhos abras é preciso!
Não podes hesitar entre elas duas!…

— Meu caro amigo, respondeu Alfredo,
Tu tens toda a razão, mas eu não cedo.
É uma fatalidade! O fado nosso
Não depende de nós; aquela eu amo,
E outra, seja qual for, amar não posso!
Insulta-a! Não reclamo!
Dize contra ela o mal que bem quiseres;
Mas ha milhões, bilhões de outras mulheres
E não posso outra amar senão aquela,
Que não é boa e nem sequer é bela!

Tanto amor teve, enfim, a recompensa:
A mulata, depois de percorrida
Uma carreira imensa
Que não podia ser menos abjeta,
Condoeu-se do poeta.

Hoje comem os dois à mesma mesa,
Hoje dormem os dois na mesma cama,
Não sei se ela é feliz, mas com certeza
Ele o é, porque a ama,
E a felicidade nada mais precisa.
Por uma coincidência, a poetisa
Casou-se com o caixeiro
De secos e molhados,
Que da mulata o amor logrou primeiro;
E creiam todos que são bem casados.

(convertido para o Português atual por José Feldman)

Luís da Câmara Cascudo (O bem se paga com o bem)

A onça caiu numa armadilha preparada pelos caçadores e, por mais que tentasse escapar, ficou prisioneira. Resignara-se a morrer, quando viu passar um homem. Chamou-o e lhe pediu que a libertasse.

— Deus me livre! — disse o transeunte. – Se você ficar solta, devorar-me-á.

A onça jurou que seria eternamente agradecida, então o homem desatou as cordas que seguravam a tampa do alçapão e ajudou a onça a deixar a cova. Logo que esta se encontrou livre, agarrou seu salvador por um braço, dizendo:

— Agora você é o meu jantar.

Debalde o homem pediu e rogou. A onça, finalmente decidiu:

— Vamos combinar uma coisa. Ouvirei a sentença de três animais. Se a maioria for favorável ao meu desejo, comê-lo-ei.

O homem aceitou e saíram os dois. Encontraram um cavalo, velho, doente, abandonado. A onça narrou o caso. O cavalo disse:

— Quando eu era moço e forte trabalhei e ajudei o homem a enriquecer. Qual foi o meu pagamento? Largaram-me aqui para morrer, sem um auxílio. O bem só se paga com o mal.

Adiante depararam com um boi. Consultado, opinou pela razão da onça. Contou sua vida de serviços ao homem e, quando julgava que ia ser recompensado, soube que fora vendido para ser morto e retalhado pelo açougueiro. O bem só se paga com o mal.

O homem, triste, acompanhava a onça que lambia o beiço, quando viram um macaco. Chamaram o macaco e pediram o seu parecer. O macaco começou a rir. A onça ia-se zangando:

— Por que tanta risada, camarada macaco?

— Não é fazendo pouco, — explicou o macaco — é que eu não acredito que o homem caísse na armadilha que ele mesmo preparou.

— Ela não caiu. Quem caiu foi eu. — contava a onça.

— Foi você? Então como é que esse homem fraquinho pôde libertar um bicho tão grande e forte como a camarada onça?

A onça, despeitada pelo macaco julgá-la mentirosa, foi até o alçapão e saltou para o fundo do fosso, gritando lá de baixo:

— Está vendo? Foi assim!

Mais que depressa o macaco empurrou o engradado de varas pesadas que fazia de tampa e a onça tornou a ficar prisioneira.

— Camarada onça! - sentenciou o macaco — O bem só paga com o bem. E como você fez o mal, receba o mal.

E se foi embora com o homem, deixando a onça para morrer de fome na armadilha.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público. in Jangada Brasil, Abril 2011 - Ano XIII - nº 146 . acesso em 20 de dezembro de 2012. 

Recordando Velhas Canções (Mestre Sala dos Mares)


Compositores: João Bosco e Aldir Blanc

Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu

Conhecido como o Navegante Negro
Tinha a dignidade de um mestre-sala
E ao acenar pelo mar
Na alegria das regatas

Foi saudado no porto
Pelas mocinhas francesas
Jovens polacas
E por batalhões de mulatas

Rubras cascatas jorravam das costas dos santos
Entre cantos e chibatas
Inundando o coração do pessoal do porão
Que a exemplo do feiticeiro gritava então

Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história

Não esquecemos jamais
Salve o Navegante Negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais

Mas salve
Salve o Navegante Negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais

Mas faz muito tempo
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Navegação pela História: A Ode a João Cândido em 'Mestre Sala dos Mares'
A música 'Mestre Sala dos Mares', composta por João Bosco e Aldir Blanc, é uma homenagem a João Cândido, figura histórica brasileira conhecida como 'O Almirante Negro'. A letra faz referência à Revolta da Chibata, ocorrida em 1910, quando marinheiros se rebelaram contra os castigos físicos, então comuns na Marinha Brasileira. João Cândido liderou essa revolta, lutando pela dignidade e contra as condições desumanas a que eram submetidos os marinheiros, em sua maioria negros e pobres.

A canção utiliza metáforas náuticas e imagens festivas para descrever a figura de Cândido, comparando-o a um 'mestre-sala', personagem tradicional do carnaval brasileiro, que com sua elegância e liderança, guia a escola de samba. A menção às 'regatas' e ao aceno pelo mar simboliza a liderança e o respeito que Cândido conquistou. As 'rubras cascatas' podem ser vistas como uma representação do sangue derramado pelos revoltosos e a resistência dos oprimidos, que mesmo em condições adversas, encontravam motivos para celebrar a vida e a liberdade.

A música também faz uma crítica social ao mencionar que o 'Navegante Negro' tem como monumento apenas 'as pedras pisadas do cais', uma referência à falta de reconhecimento e valorização dos heróis populares na história oficial. A repetição do verso 'Mas faz muito tempo' no final da música sugere que, apesar dos anos, as lutas e injustiças sociais continuam presentes e não devem ser esquecidas.  https://www.letras.mus.br/joao-bosco/663976/