sábado, 13 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 292


Humberto de Campos (As Loções Miraculosas)


A coisa mais fácil de inventar, é. neste mundo, o tônico para cabelo. Não há barbeiro por mais modesto e preguiçoso, que não possua a sua formula prestigiosa, destinada a fazer rebentar uma cabeleira encaracolada na calva mais rebelde e, se possível, numa bola de bilhar. Quanto à utilidade real dessas loções, desses tônicos, dessas tinturas miraculosas, prova-a o número, sempre crescente, de carecas, existente no Rio de janeiro.

O mais curioso é, no entanto, o entusiasmo, a fé, a convicção, com que os "fígaros" fazem a propaganda do seu preparado. Concluída a barba do freguês, o bárbaro, empunhando ainda a navalha, propõe à vítima:

- Vamos, agora, a uma fricção do nosso tônico?

Agredido assim, o freguês encara o agressor, medindo-o de alto a baixo, com raiva; ao dar, porém, com os olhos na lamina faiscante, aberta a dois palmos do seu pescoço, capitula, forçosamente, concordando, desarmado:

- Ponha!

Autorizado a cometer o crime nefando, o barbeiro passa, então, a fazer o elogio do seu remédio.

- É um prodígio, senhor doutor! - assegura. - Se ele caísse numa pedra, no chão, a pedra criaria cabelo!...

O mais curioso propagandista desse gênero foi, entretanto, o de que deu noticia, há muitos anos, na imprensa do norte, um saudoso jornalista paraense. Apanhado, certa vez, de surpresa, em uma cadeira de barbearia, esse mártir foi intimado, de súbito, pelo homem da navalha:

- Então, uma loçãozinha para nascer o cabelo; não?

O desventurado ia recusar terminantemente a proposta, mas o barbeiro atalhou, abrindo a navalha:

- É um verdadeiro milagre, o meu preparado. Basta cair na calva, para o cabelo começar, logo, a nascer. É assombroso! É prodigioso! É formidável!

E enquanto esfregava na cabeça do freguês a água do pote perfumada, contou:

- O senhor quer ver o que é a minha loção? Uma vez, estando eu a fabricar este preparado, peguei um jarro, que estava cheio dele, e coloquei-o em uma prateleira, pregada à parede. Debaixo da prateleira, que é alta, ficava o meu baú, um baú grande, de couro curtido, todo pregueado, daqueles antigos, sólidos, enormes, que se faziam em Portugal. Pois, bem; o jarro, que estava rachado, começou a vazar o liquido na prateleira, que o fazia cair, por seu turno, sobre o baú; e de tal forma que, na dia seguinte, ao abrir a porta encontrei o baú...

- Molhado. não? - interrompeu o jornalista.

E o fígaro, sério:

- Não, senhor; coberto de cabelo!

E esfregou-lhe a careca, com força.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado em 1925.

Prof. Garcia (Trovas que Sonhei Cantar) 8


A caridade é tão nobre,
quanto a força do perdão;
quem nega o pão para um pobre,
é tão pobre quanto o pão!
- - - - - -
Antes que cisme e se amoite,
lá do altar, da treva ingrata,
a lua enlouquece a noite
com seus versos cor de prata!
- - - - - -
Aos dias das mães da gente,
devemos dar luz e brilho;
mãe, é o mais santo presente
de Deus, na vida de um filho!
- - - - - -
Caminha de passos certos
quem nas trevas busca a Luz,
e faz dos braços abertos
os braços de sua cruz!
- - - - - -
De volta ao lar que foi meu,
velho!... Quis ler meu passado;
mas o que a infância escreveu,
já estava tudo apagado!
- - - - - -
Do orvalho, o pingo que cai
na planta, sem causar dor,
é uma lágrima que vai
regar os olhos da flor!
- - - - - -
E aquela voz tão singela,
que ouvi, não foi de ninguém?
Pensei que fosse a voz dela,
talvez, na voz de outro alguém!
- - - - - -
É longo o tempo de espera;
se o que se espera se alcança,
enquanto houver primavera,
não perco a minha esperança!
- - - - - -
Hoje, ao te ver na moldura,
do retrato abandonado,
teu semblante ainda murmura
tuas juras do passado!
- - - - - -
Já com cabelos grisalhos
caminha o andarilho em vão,
buscando a paz nos cascalhos
dos garimpos da ilusão!
- - - - - -
Minha alma inteira se agita,
e a saudade me consome.
Toda noite o vento grita
na porta, e chama o teu nome!
- - - - - -
Não há ninguém que descubra
as dores que a tarde sente,
na tristeza da cor rubra
do entardecer do poente!
- - - - - -
Na tua ausência, ao sol posto,
há um medo que me angustia,
temendo o pranto do rosto
dos olhos da noite fria!
- - - - - –
O silêncio, em noite calma,
fala tão profundamente...
Que põe mais vida e mais alma
na vida da alma da gente!
- - - - - -
O sino e meu violão,
têm seus lamentos iguais:
São vozes da solidão,
no silêncio de outros ais!
- - - - - –
O Sol, apertando o passo,
vai bebendo a luz do dia,
para pousar no regaço
dos braços da noite fria!
- - - - - -
Ó tu, velhice atrevida,
não sonhas nos dias teus?
Poupa-me as horas da vida
e a infância dos sonhos meus!
- - - - - -
Quando à noite, o céu se acalma,
e o silêncio, invade os campos;
a ternura põe mais alma
nas noites dos pirilampos!
- - - - - -
Que exemplo, o de um passarinho,
tão pobre e que nada tem,
e aos poucos, constrói seu ninho,
sem pedir nada a ninguém!
- - - - - -
Que pesadelo!... E eu sonhando,
refiz a minha esperança,
ao ver crianças brincando
com brinquedos de criança!
- - - - - -
Sem usar disfarce ou tinta,
o luar se perpetua
cor de prata, quando pinta
as pedras de minha rua!
- - - - - -
Se o tempo monta armadilhas,
a velhice não me afeta;
rejuvenesço entre as filhas,
renovo no olhar da neta!
- - - - - -
Sereia, sei que me rondas,
nas horas do meu sonhar:
Meu sonho acalmando as ondas,
teu canto agitando o mar!
- - - - - -
Sozinha e desprotegida,
tristonha e de olhar sem graça...
Vive a mocinha esquecida
vendendo o corpo a quem passa!
- - - - - -
Sozinho, mantendo a calma.
pergunta um velho ancião:
Se a lei da vida tem alma,
por que não tem coração?
- - - - - -
Teu beijo é como se fosse
feitiços de um grande amor,
nos lábios contendo o doce
do mel dos lábios da flor!
- - - - - -
Toda tarde, alguém me ensina
que a vida é sonho e ilusão,
no instante em que o sol declina
nas curvas da solidão!
- - - - - -
Tropeiros... Quantos tropeiros,
venceram mil desafios...
quais guardiões mensageiros,
rasgando os sertões bravios!
- - - - - -
Vi minha infância chorando
nas ruínas do meu chão,
e eu, com meus passos pisando
sobre os pés da solidão!
- - - - - –
Viver na casa sem ela,
pisando no mesmo chão...
É sentir na ausência dela
a sombra da solidão!

Fonte:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó: Ed. do Autor, 2018. 
Livro gentilmente enviado pelo autor.

Contos e Lendas do Mundo (Estados Unidos: Índios Sioux – O Falcão e o Pato)

Os ventos do inverno começavam a silvar e as ondas a subir, quando o Pato e sua companheira reuniram sua ninhada às margens do distante lago boreal.

"Esposa", disse ele, "é tempo de levarmos as crianças para o sul, para as terras quentes, que elas nunca viram!"

Pela manhã, bem cedinho, eles iniciaram sua longa jornada, formando um grande V no céu durante o voo. A mamãe pato guiava a sua prole e o papai pato cuidava da retaguarda, mantendo-se vigilante para impedir que algum filhote desgarrasse.

Durante todo o dia eles voaram a grandes alturas, sobre vastas pradarias e imensas florestas de pinheiros do norte até que, à noitinha, avistaram uma cadeia de lagos brilhante como um colar de pedras azuis-escuras. Girando num meio círculo, eles baixaram mais e mais para pousar e descansar sobre a superfície calma do lago mais próximo.

De repente, mamãe pato ouviu um zumbido, um som que lembrava uma bala cortando os ares e, prontamente, ela os advertiu:

"Perigo! Perigo!"

Todos desceram numa espiral confusa, mas o grande Falcão veio na direção deles com uma das asas levantadas pronto para atacar. Os patinhos espalharam-se loucamente para todos os lados. O velho pato, que vinha por último, foi atingido!

''Honk! honk!" Todos os patos gritaram de terror e, por alguns instantes, o ar ficou cheio de penas, tão fofas quanto flocos de neve. Mas a força do golpe como que se perdeu ao encontrar o corpo macio do pato que, livrando-se prontamente do medo, rumou com a família para o sul, enquanto o falcão caía pesadamente à beira da água com uma de suas asas quebradas.

Ali ele ficou e, todos os dias, caçou ratos da melhor maneira que pôde, dormindo à noite no oco de um tronco para ficar protegido da Raposa e da Doninha. Toda a sua sagacidade não seria sozinha um meio suficiente para mantê-lo salvo durante o longo e duro inverno.

Na primavera, porém, a asa do Falcão cicatrizou e, ainda que debilmente, ele pôde voltar a voar.

No céu azul o sol elevava-se cada vez mais alto, e os patos começaram a voltar para o seu ameno lar do norte. Todos os dias um bando ou dois filhotes voavam sobre o lago, e embora desejasse, o Falcão não ousou caça-los. Ele estava fraco com a fome e temia confiar na resistência da asa quebrada.

Um dia, um ruidoso bando de patos pousou bem próximo dele, todos exibindo o tórax liso agitando-se como ondas e indiferentes diante de sua presença.

"Aqui, crianças!", vangloriou-se o velho pato, "é o mesmo lugar onde o vosso pai foi atacado no último outono por um cruel Falcão! Posso dizer a todos vocês que precisei usar toda a minha habilidade, rapidez e astúcia para salvar minha vida. Melhor que tudo, nosso feroz inimigo caiu ao solo com uma asa quebrada! Sem dúvida, ele há muito que morreu de inanição ou uma Raposa ou uma Marta tenha feito desta malvada criatura o seu alimento!"

Diante daquelas palavras, o Falcão reconheceu o seu velho inimigo e a sua coragem retornou.

"Entretanto, eu ainda estou aqui!", exclamou ele e, tal qual um raio, lançou-se sobre o desprevenido e velho pato que descansava e contava seu feito heroico e a difícil fuga com imenso orgulho e satisfação.

"Hunk! Hunk!", gritaram todos os patos e se espalharam como folhas secas de outono voando para o alto. Mas o falcão já tinha seu alvo. Caiu pois sobre o velho pato e eles giraram engalfinhados em estonteantes espirais, até que, com um rápido impulso, o Falcão agarrou o pescoço alongado do pato e o esmagou ao forte golpe de suas asas reunidas.

Fonte:
Elaine Goodale Eastman e Charles A. Eastman (tradução: Antonio Dorival). O talismã da boa sorte e outras lendas dos índios Sioux. SP: Landy, 2003.

Nação Sioux

Chefes e Líderes Sioux
Os sioux são um grupo de povos nativos americanos que falam línguas semelhantes. Há três principais divisões de sioux: os dacotas (ou santees), os nacotas (ou yanktons) e os lacotas (ou tetons).

Os sioux viviam originariamente perto do lago Superior, nos Estados Unidos, onde fica atualmente o estado de Minnesota. Eles caçavam, pescavam, plantavam e também coletavam leguminosas e arroz selvagem.

Em meados do século XVIII, guerras com os ojibwas conduziram os sioux para o oeste. Os dacotas se estabeleceram no sul e no oeste de Minnesota. Eles continuaram a viver do mesmo modo que antes.

Os nacotas e os lacotas mudaram-se para as Grandes Planícies, nas partes central e centro-oeste dos atuais Estados Unidos. Os nacotas se estabeleceram onde ficam atualmente os estados de Dakota do Norte e Dakota do Sul. Os lacotas foram mais para oeste, para a região montanhosa conhecida como Black Hills, na parte oeste de Dakota do Sul e no leste dos estados de Wyoming e de Montana. A mudança transformou seu estilo de vida. Os nacotas e os lacotas começaram a caçar bisões nas planícies. Enquanto caçavam, viviam em tepees, tendas portáteis em forma de cone. Comiam carne de búfalo e usavam a pele do animal para fazer tepees e roupas.

Em meados do século XIX, colonizadores brancos começaram a entrar no território sioux. Os sioux lutaram por muitos anos para deter as invasões de sua terra. Touro Sentado e Cavalo Louco foram famosos chefes sioux que lideraram a luta contra os colonos invasores. Em 1890, tropas americanas mataram mais de duzentos sioux em um local chamado Wounded Knee (Joelho Ferido), em Dakota do Sul. No final do século XIX, a maioria dos sioux tinha se mudado para reservas indígenas.

Segundo o censo norte-americano de 2010, há cerca de 170 mil pessoas de origem sioux nos Estados Unidos. Muitos vivem em reservas em Montana, Nebraska, Dakota do Norte e Dakota do Sul. Outros vivem no Canadá.

Fonte:
Escola Britannica 

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 291


Stanislaw Ponte Preta (Caixinha de Música)


Que Deus perdoe a todos aqueles que cometem a injustiça de achar que são fantasiosas as histórias que a gente escreve; que Deus os perdoe porque são absolutamente verídicos os momentos vividos pelo vosso humilde cronista e que aqui vão relatados.

Foi há dias, pela manhã, que fui surpreendido pelo pedido da garotinha: queria que eu trouxesse uma nova bonequinha com música. Bonequinha com música — fica desde já esclarecido — são essas caixinhas de música com uma bailarina de matéria plástica rodopiando por cima. É um brinquedo caríssimo e que as crianças estraçalham logo, com uma ferocidade de center-forward (atacante).

Como a garotinha está com coqueluche, achei que seria justo fazer-lhe a vontade, mesmo porque este é o primeiro pedido sério que ela me faz, se excetuarmos os constantes apelos de pirulitos e kibons. Assim, logo que deixei a redação, às cinco da tarde, tratei de espiar as vitrinas das lojas de brinquedos, em busca de uma caixinha de música mais em conta. E nessa peregrinação andei mais de uma hora, sem me decidir por esta ou aquela, já adivinhando o preço de cada uma, até que, vencido pelo cansaço, entrei numa casa que me pareceu mais modestinha.

Puro engano. O que havia de mais barato no gênero custava oitocentos cruzeiros, restando-me apenas remotas possibilidades de êxito, num pedido de desconto. Mesmo assim tentei. Disse que era um absurdo, que um brinquedo tão frágil devia custar a metade, usei enfim de todos os argumentos cabíveis, sem conseguir o abatimento de um
centavo.

Depois foi a vez do caixeiro. Profissional consciencioso, foi-lhe fácil falar muito mais do que eu.

— O doutor compreende. Isto é uma pequena obra de arte e o preço mal paga o trabalho do artista. Veja que beleza de linhas, que sonoridade de música. E a mulherzinha que dança, doutor, é uma gracinha.

Pensei cá comigo que, realmente, as perninhas eram razoáveis, mas já ia dizer-lhe que existem mulheres verdadeiras por preço muito mais acessível, quando ele terminou a sua exposição com uma taxativa recusa:

— Sinto muito, doutor, mas não pode ser.

E eu, num gesto heroico, muito superior às minhas reais possibilidades, falei, num tom enérgico:

— Embrulhe!

Devidamente empacotada a caixinha de música, botei-a debaixo do braço, paguei com o dinheiro que no dia seguinte seria do dentista e saí à cata de condução. Dobrei a esquina e parei na beira da calçada, no bolo de gente que esperava o sinal "abrir" para atravessar. Foi quando a caixinha começou a tocar.

Balancei furtivamente com o braço, na esperança de fazê-la parar e, longe disso, ela desembestou num frenético Danúbio Azul que surpreendeu a todos que me rodeavam. Primeiro risinhos esparsos, depois gargalhadas sinceras que teriam me encabulado se eu, com muita presença de espírito, não ficasse também a olhar em volta, como quem procura saber donde vinha a valsinha.

Quando o sinal abriu, pulei na frente do bolo que se formara junto ao meio-fio e foi com alívio que notei, ao chegar na outra calçada, que a música parara. Felizmente acabara a corda e eu podia entrar sossegado na fila do lotação, sem passar por nenhum vexame.

Mas foi a fila engrossar e a caixinha começou outra vez. "O jeito é assoviar" — pensei. E tratei de abafar o som com o meu assovio que, modéstia à parte, é até bastante afinado. Mesmo assim, o cavalheiro de óculos que estava à minha frente virou-se para trás com ares de incomodado, olhando-me de alto à baixo com inequívoca expressão de censura. Fiz-me de desentendido e continuei o quanto pude, apesar de não saber a segunda parte do Danúbio azul e ser obrigado a inventar uma, sem qualquer esperança de futuros direitos autorais. E já estava com ameaça de cãibra no lábio, quando despontou o lotação, no justo momento em que a música parou.

Entrei e fui sentar encolhido num banco onde se encontrava uma mocinha magrinha, porém não de todo desinteressante. Fiquei a fazer mil e um pedidos aos céus para que aquele maldito engenho não começasse outra vez a dar espetáculo. E tudo teria saído bem se, na altura do Flamengo, um camarada do primeiro banco não tocasse a campainha para o carro parar. Com o solavanco da freada, o embrulho sacudiu no meu colo e os acordes iniciais da valsa se fizeram ouvir, para espanto da mocinha não de todo desinteressante. Sorri-lhe o melhor dos meus sorrisos e ter-lhe-ia mesmo explicado o que se passava se ela, cansada talvez de passados galanteios, não tivesse me interpretado mal. Fez uma cara de desprezo, murmurou um raivoso "engraçadinho" e foi sentar-se no lugar que vagou.

Dali até a esquina de minha rua, fui o mais sonoro dos passageiros de lotação que registra a história da linha "Estrada de Ferro— Leblon". O Danúbio azul foi bisado uma porção de vezes, só parando quando entrei no elevador. Já então sentia-me compensado de tudo. A surpresa que faria à garotinha me alegrava o bastante para esquecer as recentes desventuras.

Entrei em casa triunfante, de embrulho em riste a berrar:

— Adivinhe o que papai trouxe?

Rasguei o papel, tirei o presente e dei corda, enquanto ela, encantada, pulava em torno de mim. Mas até agora, passadas 72 horas, a caixinha ainda não tocou.

Enguiçou.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996.

Edy Soares (Cristais Poéticos) II


AMARRAS

E então eu me emaranhei
Nos espinhos da flor que beijei,
Da flor que me ganha,
Que me arranha,
Que me banha de amor.
Da flor que me enobrece,
Calor que me aquece,
Perfume que me acompanha
Onde eu for.
Que embriaga minha alma,
Afaga-me e me acalma
Enfatizando o sabor
Dos beijos que ganho,
Aí, eu me assanho
E me entrego a esse amor.
E então eu me perco
Nos caminhos que mais desejei.
E então me emaranho e me arranho
Nas amarras de onde jamais escapei.
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MÃE TERRA


No conforto do teu colo,
Na superfície do teu solo,
Minha alma descansará
Calma e mansa.

Eu que não irei por completo,
Eterno enamorado e discreto,
Deixarei pra ti meus versos
Como herança.

Na onda que cambaleia,
Na folha que vagueia,
No galope de uma criança
Ou canto do passarinho,
No filhote que larga o ninho,
Terás de mim lembranças.
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MÁQUINA DO TEMPO

Vou inventar a máquina do tempo.
Vou voltar e fazer tudo outra vez.
Quero ter certeza de que meus erros e acertos
Foram os alicerces da minha lucidez.

Não repudio um só minuto vivido.
Não tenho dúvidas de que tenho muito a caminhar,
Mas cada pedra, que lapidei com tropeços,
Foram as mesmas que pisei pra escalar.

A montanha é íngreme. Eu bem sei,
Que chegarei lá no topo, nunca duvidei!
Cicatrizes nos punhos e pés vão ficar.

Mas se os rumos que tomei foram incertos,
Se, troquei águas claras por oásis no deserto,
Faria tudo de novo, se tivesse que recomeçar.
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MEIA TAÇA

Da taça de vinho que deixaste sobra,
Deverias ter tomado o ultimo gole.
Pois os lábios úmidos se secaram
E buscam desesperados por saciar
A sede que ainda perdura.
Choras pelo pecado não cometido,
Pedes perdão por não teres pecado,
Arrependes, pois não tomou todo o vinho,
Amaldiçoas a sobriedade,
Por não ter-te embriagado.
Vinho envelhecido tem sempre valor
E conserva, quando bem guardado, seu teor
Mas se aberto, bebe-se todo
Ou perde-se o sabor quando não for bem selado.
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0 POETA
Fiquei velho...
Coitadinha da roseira,
Fiel companheira
Que enfeitava meu jardim.

Por falta d'água,
Com sede hoje definha
E as trepadeiras da casinha
Nem tem força pra florir.

E a mocinha,
Debruçada na janela,
Parecia Cinderela
Esperando um buquê.

Eu, pobre homem,
Simplesmente jardineiro,
Desprovido de dinheiro,
Não podia a merecer.

Colhia rosas,
Oferecia a outra Rosa,
Linda menina cheirosa
Que inspirava o sonhador.

Passou o tempo,
Lembro ainda o apaixonado,
Jardineiro, hoje inspirado,
Simplesmente... Escritor.
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PROFANO

Pêndulo que pruma,
Pétala que espera,
Fusão de sussurros
No cio da fera.

Seca garganta,
A pele
Que inflama,
Que sua,
Se é sua
Ou minha
Mistura
Na cama.
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SOU PROSA

Sou prosa
Sem rima,
Sem rumo.

Sou nível
Sem bolha,
Sem prumo.

Sou letra,
Sou música
Sem verso.

Sem leito,
Sou limo
Da pedra.

Sou brilho
Da pedra
Que quebra.

Sou gente,
Sou pó
Dessa terra.

Fonte:
Edy Soares. Flores no deserto. Vila Velha/ES: Ed. do Autor, 2015.
Livro gentilmente enviado pelo autor.

Luigi Pirandello (Você Está Rindo!)


Cutucado pela mulher com um puxão forte no braço, naquela noite também o pobre senhor Anselmo acordou esperneando.

— Você está rindo!

Atordoado, com o nariz ainda tonto de sono e meio sibilante devido à ânsia daquele sobressalto, ele engoliu em seco, coçou o peito emaranhado de pelos e depois, carrancudo, perguntou:

— Esta noite.., que diabo... esta noite de novo?

— Todas as noites! Todas as noites! — rugiu a mulher, lívida de raiva.

O senhor Anselmo levantou-se, apoiando-se num cotovelo e, continuando a coçar os pelos com a outra mão, perguntou irritado:

— Mas você tem mesmo certeza? Talvez eu apenas faça caretas com os lábios por alguma indisposição do estômago e você fica achando que eu estou rindo.

— Não, você ri, ri, ri — reafirmou a mulher três vezes — Quer ouvir como? Assim, ó.

E imitou a gargalhada demorada, cheia de gorjeios, que o marido emitia todas as noites durante o sono.

Espantado, mortificado e quase incrédulo, o senhor Anselmo voltou a perguntar:

— Assim mesmo?

— Assim mesmo! Assim mesmo!

E a mulher, depois do esforço da gargalhada, exausta, abandonou a cabeça sobre o travesseiro e os braços em cima dos cobertores, gemendo:

— Ai, meu Deus, a minha cabeça...

Aos soluços, apagava-se no quarto naquele momento uma lamparina junto à Virgem do Loreto, em cima da cômoda. A cada soluço da lamparina, parecia que os móveis todos estremeciam.

Irritação e mortificação, raiva e chateação estremeciam da mesma maneira no espírito abatido do senhor Anselmo, por causa das suas inacreditáveis gargalhadas de todas as noites durante o sono, e que despertavam na mulher a suspeita de que ele, dormindo, deliciava-se sabe-se lá com que prazeres, enquanto ela continuava acordada ao seu lado, insone, irritada pela eterna dor de cabeça, pela asma nervosa, pelas palpitações do coração, em suma, por todas as doenças possíveis e imagináveis numa mulher nervosa perto dos cinquenta anos.

— Quer que eu acenda a vela?

— Acende, sim, acende! E me traz as gotas, depressa! Vinte gotinhas num pouco d'água.

O senhor Anselmo acendeu a vela e desceu da cama rapidamente. Assim, de camisola e descalço, quando passou diante do guarda-roupa para buscar o frasco de água-de-laranjeira na cômoda e o conta-gotas, viu-se no espelho e instintivamente ergueu a mão para ajeitar a longa madeixa com que se iludia esconder um pouco a calvície. Da cama, a mulher flagrou-o.

— Está ajeitando o cabelo! — comentou. — Você tem a coragem de ajeitar os cabelos de noite, de camisola, enquanto eu estou morrendo?

O senhor Anselmo virou-se como se uma víbora o tivesse mordido à traição e, apontando o dedo indicador para a mulher, gritou-lhe:

— Você, morrendo?

— Eu só queria — disse ela, em voz de lamento — que o Senhor fizesse você experimentar o que estou sofrendo no momento!

— Ah, não, minha querida, não — resmungou o senhor Anselmo. — Se você estivesse realmente mal não iria se preocupar com um gesto meu involuntário. Apenas levantei a mão, levantei... Raios me partam!...

E, com raiva, jogou no chão a água do copo, no qual em vez de vinte, sabe lá Deus quantas gotas do calmante haviam caído. E precisou ir até a cozinha, assim mesmo de camisola e descalço, para buscar mais água.

— Eu rio! Senhoras e senhores, eu rio... — dizia para si mesmo, ao atravessar na ponta dos pés e com a vela na mão o longo corredor.

— Vovô, vovozinho…

Era a voz de uma das cinco netinhas, a voz de Suzana, que ele chamava Suzie, a mais velha e a mais querida do senhor Anselmo.

Acolhera em casa há uns dois anos as cinco netinhas e a nora, depois que seu único filho morrera. A nora, uma mulher ruim que aos dezoito anos enredara seu pobre filho, por sorte havia fugido de casa com um certo senhor, amigo íntimo do defunto marido, e assim, as cinco orfãzinhas (a mais velha delas, Suzie, tinha apenas oito anos) acabaram nos braços do senhor Anselmo, literalmente nos seus braços pois que nos da avó, afligida de tantas doenças, é claro que não podiam ficar.

A avó mal tinha forças para cuidar dela mesma. Mas tinha forças, ora se tinha, quando o senhor, Anselmo involuntariamente levantava a mão para arrumar meia dúzia de cabelos que ainda lhe restavam no crânio. Porque, além de todas as doenças, a avó ainda tinha a coragem de ser ferozmente ciumenta, como se na tenra idade de cinquenta e seis anos, com a barba branca, o crânio pelado, no meio das delícias que a sorte amiga lhe tinha destinado, com aquelas cinco netinhas às costas que não sabia como criar com seu magro ordenado, com o coração ainda sangrando pela morte do seu desgraçado filho, ele pudesse ainda por cima sair atrás de mulheres bonitas!

Não seria justamente por isso que ele ria tanto? Claro que sim! Claro que sim! Sabe-se lá quantas mulheres eram beijadas por ele todas as noites! A fúria da sua mulher, a raiva lívida com que lhe gritava "Você está rindo!", não tinha com certeza outra razão senão o ciúme. E o ciúme… ora, vejamos, o que é o ciúme, afinal? Um pequeno e ridículo fragmento de pedra infernal metido pelo destino amigo na mão da mulher para se divertir irritando-lhe as chagas, todas as chagas de que graciosamente quisera cobri-lo a existência.

O senhor Anselmo colocou a vela no chão, perto da porta, para não acordar com a luz as outras netinhas, e entrou no quarto atendendo ao chamado de Suzie. Para melhor consolo do avô que tanto bem lhe queria, Suzie crescia mal; um ombro mais alto do que o outro, torto ainda por cima, e dia a dia o pescoço parecia cada vez mais uma haste fina demais para sustentar a cabecinha muito grande da garota. Ah, aquela cabecinha da Suzie...

O senhor Anselmo debruçou-se na cama para que a netinha lhe enlaçasse o pescoço com seu bracinho magro, e disse:

— Sabe de uma coisa, Suzie? Vovô estava rindo!

Suzie olhou-o nos olhos, com espanto e pena.

— De novo?

— De novo. Uma daquelas gargalhadas... Mas deixa eu buscar um copo d'água para a vovó, queridinha... Durma, durma... e vê se você também consegue rir um pouco, tá? Boa noite.

Beijou a netinha nos cabelos, ajeitou-lhe as cobertas direitinho e foi até a cozinha.

Auxiliado com tanto amparo pela sorte, o senhor Anselmo conseguira (sempre para consolo seu) erguer o espírito às considerações filosóficas que, sem lhe arranharem a fé nos sentimentos honestos, profundamente enraizados no seu coração, haviam-lhe roubado o conforto de esperar naquele Deus que conforta e recompensa no Além. E, sem conseguir acreditar em Deus, não podia consequentemente acreditar, como gostaria, num diabinho brincalhão que se lhe tivesse escondido no corpo e se divertisse a rir todas as noites, para originar as mais tristes suspeitas no espírito da ciumenta mulher.

O senhor Anselmo estava certo, certíssimo, de jamais ter tido um sonho que pudesse provocar tantas gargalhadas. Logo ele, que nem sonhava! Nunca sonhava! Todas as noites, à hora de costume, caía num sono de chumbo, negro, pesado e profundíssimo, cujo acordar lhe custava um esforço tão grande e um tão grande sofrimento! As pálpebras pesavam-lhe como duas lousas de túmulos.

Logo, a se excluir o diabo, a se excluírem os sonhos, não restava outra explicação para aquelas gargalhadas senão alguma doença nova e desconhecida. Talvez uma convulsão das vísceras, que se manifestava no sonoro sobressalto das gargalhadas.

No dia seguinte resolveu consultar o jovem médico especialista em doenças nervosas que vinha atender a mulher em casa, dia sim, dia não. Além do conhecimento, este jovem médico especialista creditava aos clientes os cabelos loiros que pelo excesso de estudo lhe ficaram precocemente caídos, e a vista que, pela mesmíssima razão, também se lhe enfraquecera precocemente. E além das doenças nervosas, tinha uma outra especialização que oferecia porém de graça aos senhores pacientes: os olhos, atrás dos óculos, de diferentes cores: um amarelo e outro verde. Fechava o amarelo, piscava o verde e explicava tudo. Ah, tudo explicava com uma clareza maravilhosa, a fim de dar aos senhores pacientes, mesmo que no caso de morrerem, uma total satisfação.

— Me diga, doutor, é possível acontecer que uma pessoa, durante o sono, e sem sonhar, se ponha a rir? Rir alto, entende? Uma senhora gargalhada...

O jovem médico pôs-se a expor-lhe as mais recentes e adiantadas teorias sobre o sono e os sonhos. Falou cerca de meia hora, recheando o discurso daquela terminologia grega que dá um ar respeitável à profissão do médico, e finalmente concluiu que — não — não era possível. Sem sonhar, impossível rir daquela maneira durante o sono.

— Mas eu juro, senhor doutor, que não sonho mesmo, não sonho, nunca sonhei! — exclamou irritado o senhor Anselmo, notando o sorriso sardônico com que a mulher recebera a conclusão do médico.

— Não é possível, acredite. É o que lhe parece — acrescentou ele, fechando de novo o olho amarelo e piscando o verde.

— É o que lhe parece... Mas o senhor sonha, sim. Com toda a certeza. Só que não se lembra, porque tem um sono profundo. Normalmente, como já lhe expliquei, nós só nos lembramos sonhos que temos quando, digamos, os véus do sono se tornam mais tênues.

— Quer dizer então que eu rio dos sonhos que tenho?

— Sem dúvida. Sonha coisas alegres e ri.

— Que azar! — deixou escapar o senhor Anselmo. — Quero dizer, estar alegre, pelo menos no sonho, senhor doutor, e não saber... Porque eu juro que nada sei de sonhos. A minha mulher me sacode, me grita "Você está rindo!", e eu fico apatetado olhando pra ela porque não sei que estou rindo nem do que estou rindo.

* * *

Mas eis que agora ele entendia. Finalmente entendia. Sim, sim. Devia ser aquilo mesmo. Providencialmente a natureza, às escondidas no sono, o ajudava. Mal ele fechava os olhos à cena de suas misérias, a natureza ali pousava e despojava-lhe o espírito de todas as sombrias tristezas, conduzindo-o, leve, leve como uma pluma, pelos arejados caminhos dos sonhos mais aprazíveis. Negava-lhe, era verdade, e cruelmente, a lembrança de sabe-se lá que delícias hilariantes mas, sem dúvida, que o compensava de certo modo, restaurando-lhe inconscientemente a mente, para no dia seguinte estar pronto para suportar os trabalhos e as adversidades da sorte.

E agora, ao voltar do escritório, o senhor Anselmo sentava-se com Suzie ao colo, ela que tão bem sabia imitar a gargalhada de todas as noites, de tanto ter escutado a avó repeti-la, e acariciava-lhe o rostinho murcho e perguntava-lhe:

— Suzie, como é que o vovô ri? Hein, minha querida, quero escutar minha própria gargalhada.

E jogando a cabeça pra trás e mostrando o gracioso pescocinho de raquítica, Suzie irrompia numa alegre gargalhada, demorada, plena, cordial.

O senhor Anselmo escutava-a, feliz, saboreando-a, embora com as lágrimas querendo cair no pescocinho da garota, e abanando a cabeça e olhando para fora, através da janela, suspirava:

— Nem imagine como sou feliz, Suzie! Nem imagine como sou feliz no sonho, quando estou rindo assim.

Infelizmente, até mesmo esta ilusão o senhor Anselmo teria de perder. Aconteceu-lhe uma vez, por acaso, de lembrar um dos sonhos que tanto o faziam rir todas as noites. Ele via uma enorme escadaria por onde subia com muita dificuldade, apoiando-se numa bengala, um certo Torella, seu velho colega de escritório, que tinha as pernas tortas. Atrás do Torella, subia ligeiro o seu chefe de seção, o "cavaleiro" Ridotti, que se divertia malvadamente batendo com sua bengala na bengala de Torella, o qual, devido às pernas tortas, tinha grande necessidade de se apolar nela. Finalmente, o pobre Torella, não aguentando mais, curvava-se e agarrava-se com as duas mãos no degrau de cima da escada e pôs-se a dar coices como uma mula no cavaleiro Ridotti. Este ria, sarcástico, e habilmente evitando os coices, ensaiava enfiar a ponta da sua cruel bengala no traseiro desnudo do pobre Torella, ali mesmo no meio, o que finalmente conseguia.

Diante de tal visão, o senhor Anselmo, ao acordar com o riso travado nos lábios, sentiu a alma cair-lhe aos pés. Ah, Deus, era daquilo que ele ria? De tais tolices?

Contraiu a boca numa careta de profunda repugnância o lançou o olhar à sua frente.

Era daquilo que ele ria! Era então aquela a felicidade toda que pensava gozar durante os sonhos! Ah, Deus... Ah, Deus... E então o espírito filosófico que lhe falava interiormente há anos, também desta vez veio em seu auxílio e demonstrou-lhe que, claro, era mais do que natural que risse de coisas estúpidas. Queria ele rir de quê? Na sua situação, era preciso se tornar estúpido para ter vontade de rir. Caso contrário, como poderia rir?

Fonte:
Flávio Moreira da Costa. Viver de Rir II. RJ: Record, 1997.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 290


A. A. de Assis (Relógio de Bolso)


Nunca me esqueço de uma crônica publicada há mais de meio século na revista “O Cruzeiro” pela célebre jornalista Rachel de Queiroz. Falava de um homem que passou a usar relógio de pulso porque não tinha tempo para ver as horas no relógio de bolso.

Naquela época já as pessoas começavam a tornar-se escravas dos ponteiros. Para dar uma olhada no Omega pataca de bolso você perderia alguns valiosos segundos. No fim do dia, esses segundos, somados, dariam mais de cinco minutos. Já pensou?...

O relógio de pulso tem a vantagem de ser funcional. Você pode ver as horas sem interromper o que está fazendo. Por isso ele se adaptou tão bem ao ritmo do homem moderno, aposentando o elegante “colega” outrora carregado na algibeira com direito a correntinha.

Um desses sujeitos superorganizados decidiu medir o tempo que a gente perde durante o dia. Aqueles segundos gastos à espera de que o semáforo nos dê passagem: cada semáforo é um atraso de vida; cada tartaruga, cada quebra-molas... quantos segundinhos desperdiçados nesse stop-start do trânsito urbano...

A espera pelo sinal do telefone, a espera pelo elevador, a espera da vez de falar com o gerente no banco... Espera aqui, espera acolá, espera isso, espera aquilo...

No final da tarde, com o mapa da cronometragem rigorosamente montado, o sujeito chegou à calamitosa conclusão de que um homem de negócios perde, durante o espaço útil de um dia, nada menos que sessenta e cinco minutos e quarenta e dois segundos.

São cerca de quatrocentas horas por ano, gastas em esperas. Transforme essas quatrocentas horas em dinheiro e veja o tamanho do prejuízo...

Mas quer saber de uma coisa? Se a gente pega a mania de medir o tempo perdido nisso ou naquilo, acaba enlouquecendo.

Todos estamos hoje esmagados pela necessidade de aproveitar cada minuto em alguma “coisa prática”. De manhã à noite é essa correria maluca. Daí todo mundo fica se queixando de estresse. Mas todo mundo continua na mesma pressa.

Por que? Por causa de uns dinheirinhos a mais? Será que os seus compromissos são assim de tal modo urgentes? Ou é você que não sabe mais parar?

Ah que saudade do relógio de bolso... Um amigo meu confessou que um dos seus bons sonhos é um dia dispor de tranquilidade para usar um desses mimos no bolso do colete. Quem sabe acerte na mega sena e possa dar-se o luxo de não mais se preocupar com as horas.

Disse que outro dia viu um numa vitrine, igual ao do seu avô. Falou ao dono da relojoaria: “Guarde esse bacanudo aí, que ele ainda vai ser meu...”

O homem olhou meio desconfiado e foi atender outro freguês. Ele também não podia perder de forma alguma o seu precioso tempo.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 04-6-2020)

Fonte:
Facebook do autor.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 16 - Trabalho


É pelo trabalho que o homem se reinventa e supera-se. A importância do trabalho está no seu papel fundamental para o equilíbrio do homem, bem como para sua inserção no meio social, para sua saúde física e mental.

Não há maior bem no mundo
que o homem possa almejar:
- manter-se ativo e fecundo,
ter saúde e trabalhar.
Gonzaga da Silva - RN

O trabalho é luta santa
que não vislumbra medalha,
e um país só se levanta
pelas mãos de quem trabalha.
José Lucas de Barros - RN

Preces, crenças, ritos, cultos...
Tudo é valor sem medida.
No entanto, a paz do trabalho
é a bênção maior da vida.
Auta de Souza - RN

Comigo, num certo dia,
meu coração conversando
prometeu o que eu queria:
continuar trabalhando.
Andière Abreu - RN

De sonhar não me envergonho,
mas ante o dever, não falho:
troco a varanda do sonho
pelo galpão do trabalho!
José Tavares de Lima - MG

Os gregos tinham duas palavras para designar trabalho: ponos, que faz referência ao esforço e à penalidade, e ergon, que designa a criação, a obra de arte. A diferença entre trabalhar no sentido de penar (ponein) e trabalhar no sentido de criar (ergozomai) pode ser expressa na seguinte trova:

Com talhadeira e martelo,
finas madeiras entalho...
E esse trabalho é tão belo
que já nem sei se é trabalho.
Hermoclydes Siqueira Franco - RJ

O mundo capitalista globalizado procura esconder o sofrimento no trabalho. A mídia mostra apenas o progresso refletido nas vitrines, sem avaliar o quanto custou em exploração do trabalhador. São poucos os que percebem que é o trabalho que move o mundo e não o dinheiro;

Da face do mundo inteiro
tirei um saber profundo...
É trabalho, e não dinheiro,
o força que move o mundo!
Lucília Trindade Decarli - PR

Mas é preciso reconhecer que muitas vezes o trabalho comporta todo um pano de fundo de sofrimento e de constrangimento, historicamente condicionado. Com o advento da era industrial, o trabalhador perdeu o controle sobre os meios de produção, transformando-se num autômato na linha de montagem.

O trabalho passa a ser o mediador da passagem do sofrimento para o prazer quando ocorre o espaço aberto de discussão e são respeitadas a singularidade e a subjetividade de cada um, possibilitando a construção de relações mais satisfatórias. Infelizmente na maioria dos casos não é isso que ocorre,

Assim como há riqueza na terra para todos, há possibilidade de trabalho também para todos. O problema é que os "donos" do mundo, a fim de manter os salários aviltados criaram as chamadas reservas de mão de obra.


Enquanto proles "distintas"
esbanjam pão e agasalho...
milhões de bocas famintas
vivem clamando trabalho.
Djalma Alves da Mota - RN

Trabalhador sem trabalho,
faminto sem ter comida,
fazem da vida um atalho,
uma vereda esquecida!... 
Gonzaga da Silva - RN

Ao gerar prosperidade
e bem-estar social
o trabalho é, na verdade,
o maior bem contra o mal
Joamir Medeiros - RN

Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro gentilmente enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (Emperrado)


TIA VERUSCA OLHOU PARA A SOBRINHA de seis anos que dormia como um anjinho e comentou com Godofredo, seu marido:

– Olhe só para a Luma, veja que menina linda!

– Puxou ao pai.

– Mas, em compensação, espoleta igual a ela está por nascer...

– Puxou à mãe.

– Já percebeu um sorriso sempre alegre bailando em seu rostinho largo?

– Puxou ao pai.

– E os pezinhos? Que fofura!

– Puxou à mãe.

– Os olhos verdes são meus.

– Qual o quê! Puxou ao pai.

– Os cabelos encaracolados... As sobrancelhas...

– Puxou à mãe.

– Mentirosa! Já aprendeu a mentir, a espertinha...

– Puxou ao pai.

– Carinhosa, delicada, meiga...

– Puxou à mãe.

– Emburra, fecha a cara quando a babá põe na mamadeira leite frio com chocolate. Ela odeia.

– Puxou ao pai...

– Nesse ponto concordo com você: chata para comer igual ao Tião, está por existir...

– Puxou à mãe.

– Engraçadinho, você. Puxou ao pai, puxou à mãe. E a tia? Será que Luma não tem nada de mim?

– Acertou em cheio. Nada. Puxou à mãe.

– Dorminhoca!

– Puxou ao pai.

– Aprendeu a contar historinhas.

– Puxou à mãe.

– Não gosta de tomar banho, igual o tio chato...

– Um a zero para você: nisso ela puxou ao pai.

– Estudiosa. Só recebe elogios da professora.

– Puxou à mãe.

– Tem um problema: gosta de bater nas coleguinhas.

– Puxou ao pai.

– O Tião vivia dando porradas nos amiguinhos?

– Quase que diariamente. Puxou à mãe.

– O quê?

– Puxou à mãe, eu disse.

– Vira o disco. Deixe de ser asqueroso.

– Puxei a você.

A mulher ficou furiosa com essa conversa furada e cansativa do marido que não saía do: “puxou à mãe, puxou ao pai”. Estava de saco cheio. Partiu para cima do sujeito e acabou acertando uma unhada que deixou uma marca enorme no lado esquerdo de seu rosto. A briga dos dois despertou a pequena Luma que dormia tranquilamente ao lado num sofá de canto de sala. A jovenzinha acordou braba e ainda por cima chorando. A babá veio lá de dentro. A mãe e o pai também.

– Que foi que aconteceu? Que arranhão é esse na sua cara, mano?

– A Verusca.

– Eu sabia: puxou nosso pai.

– Até você, mana?

– E não gosta que lhe chamem a atenção: puxou a mãe.

A confusão recomeçou, desta vez mais acirrada

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. RJ: Editora AMCGuedes, 2013.  Ebook enviado pelo autor.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 289


Malba Tahan (O Leão Irritado)


Certa manhã o Rei Leão, depois de uma noite agitada por maus sonhos e terríveis pesadelos, acordou irritado.

Os animais, tomados de pânico, reuniram-se na grande floresta. Que fazer? O Rei Leão está de mau humor, enfurecido! Como levar a tranquilidade e a calma ao espírito do poderoso e invencível soberano?

— Tenho uma ideia — começou o prudente Camelo, dirigindo-se aos outros animais. — O Rei Leão gosta muito de ouvir contar lendas e histórias maravilhosas. Se um de nós for à sua presença e lhe relatar um caso original e interessante, estou certo de que ele se acalmará e a bondade lhe há de voltar ao coração.

— Quem, entretanto, terá a audácia de aproximar-se do Rei Leão? — acudiu tristonho o Elefante — Qual de vocês conhece alguma história digna de ser ouvida por Sua Majestade?

— Nada mais fácil — retorquiu a Raposa, com trejeitos de orgulhosa. — Coragem não me falta, nem me há de faltar nunca! E se o curar-se o Rei depende apenas do relato de uma história, é-me facílimo aplicar-lhe o remédio. Conheço trezentas histórias, lendas e fábulas interessantíssimas que aprendi no decurso de longas viagens empreendidas pelo mundo. Uma dessas histórias há de, por força, agradar ao nosso impávido soberano e dissipar a agitação que maus sonhos lhe trouxeram.

— Muito bem! Muito bem! — conclamaram alegres os outros animais — Está resolvido o caso! Vamos ao palácio do Rei Leão!

Puseram-se todos a caminho, pavoneando-se, à frente da numerosa comitiva, a esperta Raposa, que sabia trezentas histórias!

No meio da jornada, porém, a Raposa parou repentinamente e assustada, a tremer, exclamou dirigindo-se aos companheiros:

— Meus queridos amigos, grande infortúnio acaba de ferir-me!

— Que foi? Que aconteceu? — indagaram todos aflitos.

— Das trezentas histórias que eu tão bem sabia esqueceu-me agora o fio de cem!

— Não te aflijas por isto — afirmaram os outros animais. — Duzentas histórias são suficientes. Uma delas há de, por força, agradar ao Rei e dissipar de seu espírito a agitação que maus sonhos lhe trouxeram.

E o cortejo novamente se pôs em marcha pela larga e verdejante estrada que conduzia ao palácio do soberano da floresta.

Momentos depois, quando já se ouviam nitidamente os urros atordoadores do Leão, a Raposa parou novamente e, ainda mais assustada, voltou-se para os que a acompanhavam dizendo-lhes com voz transformada:

— Amigos! Nova e terrível desgraça me vem surpreender!

— Que foi que te aconteceu, amiga Raposa? — acudiram pressurosos e em coro os companheiros.

— Das duzentas histórias que eu sabia na ponta da língua — balbuciou chorosa — de cem não me lembro mais!

— Não vai nisso grande mal, boa amiga — redarguiram os animais já duvidosos da segurança de tão apregoada memória. — Cem histórias dão de sobra! A metade desse número bastaria, por certo, ao próprio Sultão! Em cem casos de peripécias atraentes uma há de agradar ao Rei Leão e dissipar de seu espírito e agitação que maus sonhos lhe trouxeram.

E, isto dizendo, puseram-se novamente a caminho, levando por diante a Raposa, que parecia triste e abatida com o seu apoquentador esquecimento.

Quando o cortejo — que engrossara consideravelmente com a adesão de muitos outros
animais — chegava diante do palácio do Leão, a Raposa teve um desmaio e rolou desamparada pelo chão.

Reanimada, porém, pelos desvelos dos companheiros, reabriu os olhos e com voz sucumbida confessou tremente:

— Que desgraça, meus amigos! Não sei como ocultar-lhes que já não me lembro das cem últimas histórias de que ainda há pouco me recordava tão bem!

A infanda revelação da Raposa causou entre os animais presentes verdadeira desolação. Que fariam eles? Como remediar a situação? Já sabiam todos — pelos urros mais fortes e mais frequentes do Rei Leão — que Sua Majestade, exaltado e impaciente, se achava na sala do trono à espera do anunciado emissário que vinha trazer-lhe calma ao espírito agitado. Quem seria capaz, naquela grave emergência, de substituir a Raposa, atacada de tão forte acesso de amnésia?

O Chacal, prudente e sensato, sabedor do que acontecera à Raposa, reuniu os chefes do bando e disse-lhes:

— Meus camaradas! Sou, como bem sabeis, um animal rude e inculto! Tenho vivido sempre em soturnas grutas, isolado do mundo e dos poderosos. Aprendi, porém, com um velho mestre que tive nos primeiros anos de minha vida, uma história muito original, de que jamais me esquecerei. Estou certo de que, ao ouvir essa história, o nosso glorioso Rei Leão verá restituídas a calma e a tranquilidade ao seu espírito conturbado.

— Vai, Chacal! — exclamaram os animais — Quem sabe se não conseguirás com tua bela narrativa salvar-nos da fúria vingativa do Rei Leão!

Animado pelos amigos e companheiros, o Chacal galgou resoluto as longas escadarias do rico palácio que abrigava o exaltado soberano. A grande praça estava repleta. A população inteira da floresta aguardava ansiosamente o desfecho da arriscada tentativa. Esperavam todos, a cada instante, ouvir os uivos de dor que o pobre Chacal expediria quando estivesse sendo esmagado pelas garras impiedosas do Leão.

Decorridos, porém, alguns momentos de angustiosa expectativa, viram todos, perplexos, abrirem-se as portas do régio palácio e surgir, na larga varanda, o Rei Leão, calmo e satisfeito, a saudar risonho, com amáveis meneios de sua lustrosa juba, os súditos reunidos a seus pés. E para maior pasmo surgiu ao lado do temido Leão o abnegado Chacal, o peito escuro coberto de ricas medalhas e distintivos nobiliárquicos, a cintura envolta pela faixa dourada de ministro e conselheiro do Reino.

Os animais não se mexiam, de assombrados. Ninguém sabia explicar aquele espantoso mistério. Que teria contado o Chacal de tão extraordinário ao Rei Leão? Que história maravilhosa teria sido a que alterara tão radicalmente o gênio do monarca e fizera com que o seu narrador se tornasse digno de tão alta recompensa?

A curiosidade, mesmo entre os animais da floresta, é um fator da maior importância em todos os acontecimentos da vida. O Camelo, que fora até então um dos mais íntimos do Chacal, não podendo refrear a ânsia que o espicaçava, aproximou-se, discreto, do novo vizir do Rei e perguntou-lhe respeitosamente:

— Ilustre ministro, dizei-me, peço-vos por favor, que história contastes ao nosso glorioso soberano?

— Amigo Camelo — respondeu bondoso o Chacal — o conto que narrei ao Leão nada tem, realmente, de extraordinário. Aproximei-me do trono e contei-lhe, sem nada ocultar a peça que nos pregara a vaidosa Raposa! Sua Majestade achou-lhe muita graça e disse-me: — “É sempre assim, meu caro Chacal! É sempre assim! Longe de um rei violento e irritado todos se inspiram e apresentam ideias geniais! O verdadeiro talento e a verdadeira coragem só se revelam, porém, na ocasião exata e precisa ao defrontarem o risco e a ameaça”.

Fonte:
Malba Tahan. Lendas do deserto. Publicado originalmente em 1929, com prefácio de Olegário Mariano.

III Concurso Internacional de Trovas do Uruguai (Trovas Premiadas)



Tema: GUIA

VETERANOS

Vencedores
1º Lugar

No ofício nobre, em que brilha,
confiante o cão me conduz!
É o guia da minha trilha,
para os meus olhos sem luz.
MÁRCIA JABER
Juiz de Fora - MG
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2º Lugar

No painel do caminhão,
uma frase traduzia
o que fala o coração:
“Eu dirijo, Deus me guia!”
GERALDO TROMBIN
 Americana – SP
----------------------------------------------------

3º Lugar

Nos meus tempos de criança,
tudo era sonho e alegria!
Alma plena de esperança,
minha mãe: estrela-guia!
LEONILDA YVONNETI SPINA
 Londrina – PR
----------------------------------------------------

4º Lugar

Não deixemos a alegria
sucumbir a uma aflição:
um sorriso é sempre guia
na pior escuridão.
EDWEINE LOUREIRO DA SILVA
Saitama - Japão
----------------------------------------------------

5º Lugar

Num mundo de nostalgia,
quisera ante o caos profundo,
ser aquela estrela-guia
guiando os passos do mundo!
CLENIR NEVES RIBEIRO
Nova Friburgo – RJ
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MENÇÃO  HONROSA

1º Lugar

Respeitar é garantia
que só nos guia à moral
e faz da moral, um guia,
que nos guia contra o mal.
PLÁCIDO FERREIRA DO AMARAL JÚNIOR
Caicó – RN
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2º Lugar

Vendo  o  mundo  em  aflição,
peço a Deus, bem  comovida,
em   sublime  devoção:
Sede  guia  em nossa vida!
NADIR NOGUEIRA GIOVANELLI
São José dos  Campos – SP
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3º Lugar

Se Deus te guia e abençoa,
então, filho amado, parte!
Por mais que a saudade doa,
me acharás sempre a esperar-te.
A. A. DE ASSIS
Maringá – PR
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 4º Lugar
Se tropeçares um dia,
não temas a escuridão…
Quem faz da luz o seu guia,
enxerga além da visão.
FRANCISCO GABRIEL RIBEIRO
Natal – RN
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5º Lugar

Sem saber por onde eu ia
na confusão dos caminhos,
você foi, enfim, o guia
que me afastou dos espinhos.
MARIA DULCE DE LIMA PESSOA
Tabira – PE
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MENÇÃO ESPECIAL

1º Lugar

Em meu céu de fantasia,
sou cometa e te proponho
que sejas a estrela-guia
que me acompanha em meu sonho!
RENATA PACCOLA
São Paulo – SP
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2º Lugar

Na dureza da porfia
para moldar minha história,
Deus me abençoa e me guia
para chegar à vitória.
JESSÉ FERNANDES DO NASCIMENTO
Angra dos Reis – RJ
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3º Lugar

Em meus desertos da vida
quem sempre se faz meu guia?
- Um Deus que me dá guarida
e, na alma, minha poesia !
DIONEZINE DE FÁTIMA NAVARRO
Ponta Grossa – PR
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4º Lugar

Se a fé te servir de guia
ao longo do teu destino,
em plena noite sombria,
vês um raio matutino!
CARLOS ALBERTO DE ASSIS CAVALCANTI
Arcoverde –  PE
----------------------------------------------------

5º Lugar

No meio da pandemia,
no tormento... solidão...
Quem tem amor como guia
conquistará salvação.
CÉLIA TEREZINHA NEVES VIEIRA
Irati – PR
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NOVOS TROVADORES


1º Lugar
A vida nos desafia,
só concluo e fico atenta:
Prefiro a mão que me guia
àquela que me sustenta!
RACHEL SANTO ANTONIO
São Gonçalo – RJ
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2º Lugar

Pelos caminhos da vida,
quem me guia é o bom Jesus,
sigo bem agradecida
por contar com Sua luz.
SUELY RIBELLA
Santos – SP
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3º Lugar

Vem! Guia-me nessa estrada.
Toma meu corpo sedento,
até surgir a alvorada
e inebriar-me de alento.
NILZE LENE DOS SANTOS BENEDICTO
São Gonçalo – RJ
----------------------------------------------------

4º Lugar

À noite, mesmo sem luz,
caminhando ele dizia
que estava junto a Jesus
e era imbatível seu guia!
FLAVIO DE AZEVEDO LEVY
Campinas – SP
----------------------------------------------------

5º Lugar

Mantenho a perseverança,
nesta vida em turbulência,
quando me falta esperança
meu guia é a resiliência.
HENRIQUE LÜCK
Rio Branco –  AC

Fonte:
Maria Luíza Walendowski - Coordenadora Final

Rachel de Queiroz (Emigrantes)

    

     Cearense é conhecido: pequenino (batoré), cara de índio, entusiasmado, cabeça chata. Tem muito cearense alto, branco, até louro, mas ninguém pode negar que o tipo geral é aquele mesmo — mais de 80% é.

Estrangeiro, aqui, sempre deu pouco e até mesmo negro chegou por cá moderado. Não havia cultura nem mineração que justificassem a caríssima aquisição da mão-de-obra  servil. Tão cara, em verdade, que no tempo em que um alto funcionário não ganhava talvez um conto de réis por ano, um negro novo e sadio, bom de peito, dava até dois contos de réis. E, pois, como aqui não se produzia açúcar nem café, nem nada dessas culturas que dão bom dinheiro, apenas alguns mais ricos compravam negros para o serviço doméstico. E, claro, compravam só a semente — um casal, um terno de africanos importados. O resto ia se criando em casa, para isso estavam às ordens o sinhô velho e os sinhozinhos, sob a vista grossa da sinhá, que precisava das mulatas ladinas para suas mucamas. A lavra da terra, que era o gado, se fazia com pouca gente, e para o emprego de vaqueiro dava muito bem o índio andejo, cuja natureza era mesmo vaguear pelo sertão. Era apenas necessário lhe ensinar a querer bem a boi, a correr a cavalo. E estava pronto o centauro amarelinho de Euclides.

Teve também o contingente português. Dele saíram as chamadas melhores famílias, as tradicionais, as aristocráticas. Assim mesmo misturado com muita índia, quase na proporção daquele restaurante francês que anunciava pastéis de perdiz e, indagado o dono por um freguês se não punha alguma mistura na perdiz, ele confessou que punha 50% de carne de cavalo: assim: um cavalo, uma perdiz... Aqui também era um português só para muita índia, muita.

Mas passada a fase própria para a introdução desses alienígenas, a emigração para cá se deteve. As condições ásperas da terra, a pobreza geral, as ameaças de seca. (Pouca gente sabe que o nosso primeiro donatário morreu neste sertão de fome e sede, vítima da primeira seca registrada oficialmente. E mais, de quebra, um jesuíta.) Raro se encontrava um francês, um inglês, um alemão. De francês recordo só Boris e Meyer, e, muito mais tarde, os Gradvohl. Inglês só o pai do Barão de Studart, porque Mister Hull não foi emigrante, era inglês colonizador da estrada de ferro. E alemão teve, mas não recordo o nome. Colônia mesmo de europeu nunca existiu aqui, nem sequer lusitana. Não dava para se encher uma sala de baile com eles todos. Árabe (que, curiosamente, o povo pequeno chama de galego) foi o estrangeiro que melhor se adaptou ao Ceará, o que é natural. Tanto as condições da terra como o próprio caráter do cearense se adaptavam perfeitamente ao emigrante ismaelita.

Esses vieram, ficaram, chamaram os outros. É a única colônia apreciável que temos aqui. E já passaram a fase inicial de aclimação e pobreza, da segunda geração em diante os filhos foram tirando carta de doutor, casando com gente nativa e estamos aí com um belo contingente de cearenses com apelido árabe; o único defeito deles é que são árabes sem petróleo e sem petrodólares. Mas isso virá.

Agora porém há uma onda nova, aliás quase não se pode dizer que é uma onda, de tão discreta: são os japoneses. Entram no macio, em geral com contrato agrícola de algum fazendeiro mais progressista. Logo se instalam em terra própria e já conseguiram revolucionar a dieta alimentar senão do homem do interior, pelo menos dos fortalezenses, que aprenderam com os japoneses a consumir legumes — beterraba, cenoura, couve-flor, repolho. Subvertendo até a linguagem tradicional, pois legume, aqui, sempre se chamou o feijão e o milho. O resto é “verdura” ou mesmo “mato”. Até morango na serra plantam e ouvi dizer que deu ótimo, não vi. Mas japonês emigrante pode se destacar em outras terras de gente de cara branca. No Ceará se funde com o geral da população que tem a cara igual à deles.

Me lembro até de um caso, se passou faz muitos anos; nós morávamos no Pici, o nosso sítio que acabou dando o nome ao bairro que é hoje lá. Nos fundos do Asilo de Alienados, perto da lagoa de Parangaba onde Iracema tomava banho, as Irmãs de Caridade instalaram um japonês para fazer uma horta. A horta prosperou e o japonês — Seu Kamura — prosperou com ela. Mas só enquanto manteve a sua severa solidão nipônica. Depois Seu Kamura arranjou uma cabocla e começaram a aparecer os curuminzinhos, e era tudo o puro bugre. E o povo da terra não distinguia mais Seu Kamura do resto da caboclada e acabou que nem o próprio Seu Kamura se distinguia mais. Porque um belo dia ele entregou a horta às Irmãs. Agarrou a mulher e os curumins que já eram nove, arranjou um lote de terra para morar e ficou vivendo de plantar mandioca-de-catacumba, como os índios já plantavam desde o começo do mundo. Desde o começo do mundo, não. Porque não diz que o nosso índio é filho dos de raça amarela que vieram para a América através do estreito de Bering? Sendo assim, Seu Kamura apenas revertia ao original. E aliás deixou de se chamar Kamura, que a mulher não gostava. Passou a se chamar Nonato.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. Publicado originalmente em 1976.

terça-feira, 9 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 288


Altino Afonso Costa (Velha Marocas)


Ela não teve notícias da segunda guerra mundial.

Feia, cega de um olho, lampião a querosene "jacaré" pendurado em um galho de árvore; ao seu lado a "pica~pau " de carregar pela boca, com pólvora preta, fumacenta, bem socada com vareta de pau, bucha e pedaços de metais.

Na boca desdentada o cigarro de palha de fumo macaia ou o cachimbo de barro, vara de pescar rústica de taquara, própria para a pesca de lobó na lagoa; sob o olhar alento de seu vira-lata rabugento, essa era a velha Marocas, de cócoras à margem da ponte feita de pau roliço de coqueiro, às margens do Rio Tibiriçá.

Era uma figura dantesca, no meu tempo de moleque, que enchia de curiosidade o meu olhar quando ia pescar naquele rio.

Mulher que inspirava medo e respeito ao mesmo tempo; teria    sido sacrificada nas fogueiras da Santa Inquisição, pois passaria por feiticeira diante de qualquer tribunal eclesiástico da Idade Média.

Pobre Marocas, não fazia mal a ninguém, exceto aos animais incautos que rondavam os seus domínios à beira das lagoas.

Figura conhecida naquelas redondezas, que o tempo se encarregou de apagar.

Pobre selvagem como os ribeirinhos que a viam pescando e exibindo a sua fieira de peixes.

Pele ressequida e fustigada pelo sol, pelo vento e pelos mosquitos, causadores de tantas malárias.

Sua morada era a céu aberto à beira da estrada e sob árvores frondosas, que deixavam filtrar a luz do sol, da lua e das estrelas.

Velha Marocas, se teu espírito ainda estiver rondando por aí, não te esqueças de iluminar o caminho tortuoso e escuro daquele menino simples que ficava olhando para ti, com espanto, do alto das pinguelas; daquele menino que se vestia com roupas brancas feitas de sacos vazios de farinha de trigo "Santista", bornal a tiracolo, cheio de pelotas de argila e uma latinha com minhocas, trazendo o estilingue no pescoço, vara de pesca e bodoque nas mãos.

Não te esqueças, velha Marocas, do menino que vivia com os pés descalços sem pensar no amanhã e que hoje vive só pensando no futuro e na busca da felicidade fugidia. Peço a tua benção, velha guerreira das matas e lagoas do Rio Tibiriçá.

Enquanto o tempo passa, esquenta o teu peixe enlameado, no espeto sujo de bambu, na fogueira crepitante de gravetos.

Toma um trago da tua cachaça ou bebe da água barrenta da lagoa, solta uma baforada forte do teu cachimbo, espanta os espíritos maus da floresta com tiros para o céu; põe minhoca no anzol e deixa a vara de pesca na espera, na barranca do rio, e depois, velha Marocas, descansa na paz que nunca tiveste aqui na terra...

Fonte:
Altino Afonso Costa. Buquê de estrelas: crônicas e poemas. Paranavaí/PR: Olímpica, 2001.
Livro gentilmente enviado por Dinair Leite.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XVI


FRATERNIDADE

MOTE:
A fraternidade, eu creio,
está bem dentro de nós:
repartindo o pão ao meio,
mesmo quando estamos sós!

Selma Patti Spinelli
São Paulo/SP


GLOSA:
A FRATERNIDADE, EU CREIO,
é um sentimento profundo
e que esteja, é o que eu anseio
aumentando em nosso mundo!

Sei que esta doce emoção,
ESTÁ BEM DENTRO DE NÓS:
nasce em nosso coração,
ouvimos a sua voz!

Suave brisa sobreveio
que eu senti, com paz e calma
REPARTINDO O PÃO AO MEIO,
bem no fundo de minha alma!

Vamos repartir o pão
pensando que logo após,
pode chegar um irmão...
MESMO QUANDO ESTAMOS SÓS!
****************************************

BRASIL – PORTUGAL

MOTE:
Tendo a grandeza por tema,
Portugal, em versos sãos,
o meu Brasil é um poema
escrito por tuas mãos!...

Sérgio Bernardo
Rio de Janeiro/RJ


GLOSA:

TENDO A GRANDEZA POR TEMA,
em tamanho e inspiração,
temos por princípio o lema:
tudo fazer c’o emoção!

À nós, tu sempre cantaste,
PORTUGAL, EM VERSOS SÃOS,
e é verdade o que falaste:
somos, na verdade, irmãos!

Tendo essa beleza extrema,
com tanto céu, tanto mar,
O MEU BRASIL É UM POEMA
gostoso de declamar!

Esse poema tão lindo,
é a união de nossos chãos
nesse teu querer infindo,
ESCRITO POR TUAS MÃOS!…
****************************************

EM SEU TRAJETO...

MOTE:

Que o poeta, em seu trajeto,
em vez de buscar a glória,
ensine aos homens o afeto
e mude os rumos da história.

Thalma Tavares
São Simão/SP

GLOSA:

QUE O POETA, EM SEU TRAJETO,
semeie amor no caminho
e a chuva banhe direto
a plantação de carinho!

Que o poeta busque a paz,
EM VEZ DE BUSCAR A GLÓRIA,
somente quem assim faz
é que consegue a vitória!

Que ele tenha em seu projeto
a semente da alegria,
ENSINE AOS HOMENS O AFETO
incrustado de poesia!

Que ele seja um vencedor
sempre, em sua trajetória,
que desperte muito amor
E MUDE OS RUMOS DA HISTÓRIA.
****************************************

MEU DIÁRIO

MOTE:

 Meu diário! Em tuas folhas,
morrem desejos sem fim...
Pago o preço das escolhas,
que outros fizeram por mim!

Wanda de Paula Mourthé
Belo Horizonte/MG


GLOSA:

MEU DIÁRIO! EM TUAS FOLHAS,
eu escrevo com emoção,
e peço que tu acolhas
os ais do meu coração!

Sem que eu possa controlar,
MORREM DESEJOS SEM FIM...
Os meus desejos de amar,
foram ceifados, enfim!

Feito um champanhe com bolhas,
que tonturas, faz sentir,
PAGO O PREÇO DAS ESCOLHAS,
das quais não pude fugir!

Diário, és meu confidente
e sofres comigo, assim,
pela escolha inconveniente
QUE OUTROS FIZERAM POR MIM!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. março de 2005.

Basílio de Magalhães (A Rainha das Onças)


Era um dia, uma moça muito pobre, que tinha um filhinho. Uma vez, não tendo comida nenhuma para dar ao menino, agarrou-o e saiu de casa desesperada da vida, disposta a ir a toa pelo mundo afora. Em vez de seguir a estrada real, tomou por um atalho, perdendo-se no mato.

Quando já tinha andado muito, encontrou um velho que lhe disse:

- Ih! minha filha, você por aqui vai dar na casa da onça-verdadeira que é a rainha das onças.

- Ai! meu velho, que é que eu hei de fazer? Não sei caminho nem carreira; já estou perdida nestas brenhas e o jeito que tenho é ir aonde Deus quiser me levar.

E contou-lhe o motivo que a obrigava a andar por aqueles fins de mundo.

- Está bem. - disse-lhe o velho – Quando você chegar na casa da rainha das onças, há de ver uma muito grande, sentada na porta. É essa. Salve ela e diga que foi pedir para ela ser madrinha de seu filho.

A moça despediu-se do velho, depois de lhe ter agradecido muito o conselho e toca a andar. Andou, andou, até que deu naquele campo vasto, de admirar, tendo ao meio uma casa muito grande, que era um convento, rodeada de uma porção de onças. Na porta estava uma que era um mundo, de enorme, sentada, lambendo as patas. Com muito receio, a moça chegou perto dela, levando o filhinho pela mão e disse:

- Bom dia. Eu vim aqui pedir a vosmincê pra ser madrinha deste menino.

A onça-verdadeira, com a cara muito fechada, sem dizer palavra, pôs-se a olhar para a moça e para o filho. E as onças todas que estavam por ali, ficaram também muito quietas, olhando para os dois. Afinal, a verdadeira disse que sim. Pegou na criança, deu-lhe uns tombos, à maneira de afagos e mandou a futura comadre entrar. A moça obedeceu, ficando em pé num canto da sala, sem largar o filhinho.

Passado algum tempo, a rainha das onças perguntou-lhe se queria comer. Respondeu a moça:

- Ou! se vosmincê me der, eu quero.

Então a onça-verdadeira mandou buscar um pedacinho de carne sapecada, muito dura, e um punhadinho de farinha. A moça comeu aquele tiquinho de comida com o filho e ficou ali sossegada, sem dizer palavra, sentada ao chão com o pequeno no colo. E as onças, bem de seu, sem se importarem com ela; umas entrando, outras saindo; umas carregando água, outras rachando lenha, outras cozinhando.

Quando foi de noite, a onça-verdadeira deu umas palhas para ela fazer a sua cama mais a do filho. Pela manhã muito cedinho, varreu a casa toda, varreu o terreiro, depois acendeu o lume, que quando as onças acordaram, só tiveram o trabalho de botar a comida no fogo.

A verdadeira tornou a lhe dar aquele pedacinho de carne sapecada com um punhadinho de farinha, para ela e o filho. Depois disse:

- Comadre, você fique estes dias aqui comigo, para então se fazer o batizado do menino.

A moça disse que sim. Falava somente quando a comadre lhe perguntava alguma coisa. Todos os dias de manhã, arrumava e varria a casa e acendia o lume.

Passado algum tempo, efetuou-se o batizado do menino. A moça disse então à rainha das onças:

- Comadre, vosmincê agora me dê licença para amanhã eu ir m’embora.

No outro dia, a onça-veradeira mandou ver um cavalo com dois caçuás, encheu-os de muita roupa e muito dinheiro para o afilhado, dando-lhe também uma trombeta. A moça despediu-se da comadre e de todas as outras onças, com muitos agradecimentos e saiu por ali a fora mais o filhinho, puxando o cavalo pelo cabresto.

Assim que ela entrou no mato, o velho tornou a lhe aparecer e disse:

- Moça, as onças, agora, vão lhe atalhar no caminho para lhe matar, mas não tem nada.

Então ensinou-lhe o que devia fazer, concluindo:

- Assim elas lhe deixam ir em paz com seu filho. Todos os que têm ido lá são comidos por elas, na volta, porque não sabem o que eu acabo de ensinar a você.

Já havia andado um bom pedaço, quando a onça-verdadeira, que tinha corrido com as outras para atalhá-la no meio do caminho, gritou de lá de dentro do mato:

- Minha comadre!... Oh! minha comadre!...

A moça respondeu, conforme o velho lhe ensinara:

- O que quereis comigo, onça verdadeira?

Disse a onça:

- Quando você chegar em casa, que seu pai e sua mãe perguntarem quem foi que lhe zelou, o que é que você diz?

A moça:

- Eu hei de dizer
Que quem me tratou
Que quem me zelou
Foi quem come boi
Quem come cavalo
Quem come mocó.

Muito satisfeita, gritou a onça:

- Bravo, minha comadre! Toque a trombeta!

Ela tocou:

- Esta trombeta é de mongolô
Este cavalo é de mongolô
Este cabedalé de mongolô...

Meteu o pé no caminho, meteu o pé no caminho, que ia mesmo voando. A onça-verdadeira correu, correu, com as companheiras, indo atalhá-la de novo adiante. Tornou a chamá-la e a fazer-lhe a mesma pergunta, respondendo a moça tudo direitinho, como da primeira vez. Aí as onças voltaram, deixando-a ir-se embora.

Chegou em casa muito contente, referindo minuciosamente aos pais o que lhe acontecera. Fez logo um sobrado muito grande, muito bonito, para morar com eles, botou o filho nos estudos e ficou vivendo como rica, com os cabedais que a onça-verdadeira dera ao afilhado.

Ora, uma vizinha, com inveja de vê-la enriquecer assim da noite para o dia, começou a espremer com ela que lhe dissesse como tinha achado tanto dinheiro, de repente. Deu em cima da moça, deu em cima da moça, até que ela lhe contou tudinho, tim-tim por tim-tim.

A vizinha pegou no filho, dizendo que ia procurar também a casa da rainha das onças para ser sua comadre e fazê-la rica. Mas, chegando lá, muito malcriada e orgulhosa que era, procedeu exatamente ao contrário de quanto a moça lhe ensinara. Não varreu nem arrumou a casa, não acendeu o lume, nem nada. Quando lhe deram a comida, reclamou, dizendo que aquilo era pouco, que ela não era pinto, que aquela carne era muito dura e a farinha, mofada. Ao lhe darem as palhas para se deitar, gritou:

- Eu não sou cachorro para dormir no chão, em cima da palha...

Só vivia rindo e caçoando das onças:

- Credo! Nunca vi onça rachar lenha!... Te arrequeiro! Nunca vi onça com pote d’água na cabeça!... Cruz! Eu te arrenego!... Nunca vi onça varrer casa!...

E assim por diante.

Mal se acabou de fazer o batizado, ela disse à comadre que queria ir-se embora. A onça mandou ver um cavalo, encheu os caçuás de roupa e de dinheiro e deu-lhe uma trombeta. A mulher nem se despediu da comadre. Pegou no filho, escanchou-o no quarto e foi puxando o animal pelo cabresto, sem olhar para trás.

Quando já estava bem no meio da mata, ouviu a onça-verdadeira gritar:

- Comadre!... Oh! minha comadre!...

Ela respondeu:

- Pra lá, anzol! Eu te desconjuro!...

A onça tornou:

- Quando você chegar em casa, que seu pai mais sua mãe perguntarem quem foi que lhe tratou, quem foi que lhe zelou, o que é que você diz?

Exclamou a mulher:

- Vai-te para as areias gordas, onde morreu a primeira baleia... Ave Maria!

E assim tornou a dizer, quando, adiante, a onça-verdadeira a chamou pela segunda vez. Então as onças todas saíram do mato, sangraram-na, bem como ao menino, botando os dois corpos em cima do cavalo. Chegando à casa, fizeram aquela fogueira enorme, assaram-nos e comeram-nos, bem de seu.

Fonte:
Basílio de Magalhães. O folk-lore no Brasil. Publicado em 1928.