quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Carlos Drummond de Andrade (Feliz Olhar Novo!!!)



O grande barato da vida é olhar para trás e sentir orgulho da sua história.

O grande lance é viver cada momento como se a receita de felicidade fosse o AQUI e o AGORA.

Claro que a vida prega peças. É lógico que, por vezes, o pneu fura, chove demais…, mas, pensa só: tem graça viver sem rir de gargalhar pelo menos uma vez ao dia? Tem sentido ficar chateado durante o dia todo por causa de uma discussão na ida pro trabalho?

Quero viver bem! Este ano que passou foi um ano cheio. Foi cheio de coisas boas e realizações, mas também cheio de problemas e desilusões. Normal. As vezes a gente espera demais das pessoas. Normal. A grana que não veio, o amigo que decepcionou, o amor que acabou. Normal.

O ano que vai entrar vai ser diferente. Muda o ano, mas o homem é cheio de imperfeições, a natureza tem sua personalidade que nem sempre é a que a gente deseja, mas e aí? Fazer o quê? Acabar com o seu dia? Com seu bom humor? Com sua esperança?

O que desejo para todos é sabedoria! E que todos saibamos transformar tudo em boa experiência! Que todos consigamos perdoar o desconhecido, o mal educado. Ele passou na sua vida. Não pode ser responsável por um dia ruim… Entender o amigo que não merece nossa melhor parte. Se ele decepcionou, passe-o para a categoria 3. Ou mude-o de classe, transforme-o em colega. Além do mais, a gente, provavelmente, também já decepcionou alguém.

O nosso desejo não se realizou? Beleza, não estava na hora, não deveria ser a melhor coisa pra esse momento (me lembro sempre de um lance que eu adoro): CUIDADO COM SEUS DESEJOS, ELES PODEM SE TORNAR REALIDADE.

Chorar de dor, de solidão, de tristeza, faz parte do ser humano. Não adianta lutar contra isso. Mas se a gente se entende e permite olhar o outro e o mundo com generosidade, as coisas ficam bem diferentes.

Desejo para todo mundo esse olhar especial.

O ano que vai entrar pode ser um ano especial, muito legal, se entendermos nossas fragilidades e egoísmos e dermos a volta nisso. Somos fracos, mas podemos melhorar. Somos egoístas, mas podemos entender o outro. O ano que vai entrar pode ser o bicho, o máximo, maravilhoso, lindo, espetacular… ou… Pode ser puro orgulho! Depende de mim, de você! Pode ser. E que seja!!!

Feliz olhar novo!!! Que o ano que se inicia seja do tamanho que você fizer.

Que a virada do ano não seja somente uma data, mas um momento para repensarmos tudo o que fizemos e que desejamos, afinal sonhos e desejos podem se tornar realidade somente se fizermos jus e acreditarmos neles!
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Fonte
Imagem = http://br.universalscraps.com

Trova XCIX - Nei Garcez (Curitiba/PR)


Resposta no final da página

Emílio de Menezes (Pinheiro Morto)



Ao Paraná

Nasceste onde eu nasci. Creio que ao mesmo dia
Vimos a luz do sol, meu glorioso irmão gêmeo!
Vi-te a ascensão do tronco e a ansiedade que havia
De seres o maior do verdejante grêmio.

Nunca temeste o raio e eu como que te ouvia
Murmurar, ao guaiar da fronde, ao vento: - "Teme-o
Somente o fraco arbusto! A rija ventania,
Teme-a somente o errante e desnudado boêmio!

Meu vulto senhorial queda-se firme. Embala-mo
O tufão e hei de tê-lo eternamente ereto!
Resisto ao furacão quando a aura abate o cálamo!"

Ouve-me agora a mim que, em vez de ti, vegeto:
Já que em ti não pesei, entre os fulcros de um tálamo,
Faze-te abrigo meu nas entraves de um teto!
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Fontes:
MENEZES, Emílio de. Obra Reunida. RJ: José Olympio, 1980.
Foto de Tiago Duarte (Pinheiro Morto)

Artur Azevedo (O Palhaço)



(História Triste para um Dia Alegre)

Como se explica que o Saraiva, um homem que tomava a sério as coisas mais cômicas da vida, e, segundo afirmavam as pessoas que o conheciam mais de perto, nunca ninguém viu rir, como se explica que o Saraiva, na terça-feira gorda de 1885, saísse de casa depois de jantar e, sem dizer nada à senhora, comprasse uma vestimenta de palhaço, uma cabeleira e uma máscara, e com tais objetos se metesse no seu escritório na Rua do Hospício, de onde saiu disfarçado?

Ninguém diria que escondido naquela roupa alegre, muito branca e semeada de rodinhas vermelhas, e por baixo daquela cabeleira azul, encimada por um chapeuzinho minúsculo e pontiagudo, e por trás daquela carranca jocosa, que ria de um rir comunicativo, estivesse o grave comerciante, que parecia haver nascido para vida monástica.

A esposa desse urso, D. Balbina, era, quando se casou, uma rapariga expansiva e risonha; teve, porém, que se submeter ao feitio dele: tornou-se tão séria e tão sensaborona como o Saraiva, e, sozinha em casa, sem filhos, sem amigas, porque o marido não queria visitas, aborrecia-se muito.

Aborrecia-se tanto que procurou uma distração, e encontrou-a num belo rapaz, seu vizinho, que de vez em quando pulava o muro do quintal para fazer-lhe companhia, e consolá-la daquele silêncio e daquela solidão.

Infelizmente para ela, outro vizinho, por inveja ou simplesmente por maldade, escreveu uma carta anônima ao Saraiva, de que ele tinha um sócio de cuja existência não suspeitava - e ora ai está como se explica que naquela terça-feira gorda, depois de dizer a D. Balbina que ia para o escritório, onde se demoraria até tarde da noite, fechando uma correspondência que devia partir no dia seguinte, o austero e sisudo negociante foi se vestir de palhaço para apanhar a esposa em flagrante delito.

- Eu saio, os criados saem, pensou ele; se ela tem realmente um amante, é de supor que aproveite a ocasião para metê-lo em casa...

Bem pensado, porque um quarto de hora depois de sair de casa o marido, o amante saltava o muro, e naquela terça-feira gorda, apesar de ter ficado em casa, D. Balbina divertiu-se mais que muitos foliões, nas patuscadas dos préstitos e dos bailes.

Havia já duas horas que o vizinho fazia companhia à solitária vizinha, quando a campainha do portão do jardim foi violentamente agitada. D. Balbina chegou à janela e avistou um tilburi, cujo cocheiro, mal que a viu, gritou:

- Mande cá uma pessoa, minha senhora!

Não havia um criado em casa. D. Balbina teve que ir pessoalmente abrir o portão.

- Que é? - perguntou ela.

- Minha senhora, este palhaço tomou o meu tilburi, e mandou tocar para esta casa; mas em caminho parece que teve uma apoplexia e morreu!

Efetivamente, o Saraiva, homem sangüíneo, que não pensou nas conseqüências de pôr aquela cabeleira e aquela máscara depois de jantar, tinha morrido no tilburi.

Deixo ao leitor o cuidado de pensar no espanto e na confusão que isso causou, e na tragicômica anomalia daquele negociante austero, estendido morto num canapé, e amortalhado em vestes de palhaço.

Só direi que D. Balbina, passado o período do luto, esposou o solicito vizinho que a consolava naquele silêncio e naquela solidão.

E até hoje, e lá se vão mais de vinte anos, ela não atinou com o motivo que levou o seu primeiro marido a vestir-se de palhaço... para morrer.

Fontes:
- AZEVEDO, Artur de. Contos.
- Imagem =
http://rei-de-lopes.blogspot.com

Francisco Sinke Pimpão (O Dia em que a Muiraquitã virou Gente)


Quando um escritor escreve um romance, ele faz um ofício de fé, pois uma vez lançada a idéia, por meio de enredo há muito tempo engendrado, não a segura mais, pois a palavra é mais forte do que um tiro de canhão ou o ferimento de um punhal, fere aqui, ali, acolá e continua ferindo sempre. Por isso, ao se tomar uma iniciativa de tal ordem, há que se ter o cuidado para que ela seja o portador da paz, concórdia e harmonia, levando a mensagem diretamente aos corações dos leitores. Em outras palavras, o autor deve ter em mente que lançar um livro é como mandar um filho para a guerra, através do mar proceloso.

A trama está bem ordenada, de forma a prender a atenção e o interesse do leitor. No conteúdo, o livro transmite preciosas lições de vida, úteis a todos, acima de tudo pelo poder dos exemplos.
O novel romancista, possuidor de notáveis atributos intelectuais, oferece aos leitores uma agradável e profícua leitura. Oxalá seja esta a primeira de muitas obras literárias. Parabéns ao autor, pela qualidade de seu trabalho.
(Valter Martins de Toledo)

O livro conta a história de João Batista Souza Lino Sotto Maior, filho de imigrantes portugueses estabelecidos no Brasil em fins do século XIX, tradicional família ligada ao ramo da tecelagem. Inteligente, bem educado e culto, João decide ser médico a tomar a frente dos negócios da família. A princípio contrariado, seu pai vê com orgulho o sucesso e o reconhecimento do filho, no Brasil e no exterior, como um grande cirurgião. Uma tragédia pessoal vai mudar de maneira drástica o destino desse homem apaixonado pela vida e pela profissão. Abandonando tudo que construíra e deixando de lado tudo aquilo em que acreditava, João vai se embrenhar e buscar refúgio nos confins da Amazônia, muito distante daquilo que comumente chamamos civilização. É nesse cenário, povoado por lendas e histórias que o povo da região ribeirinha acredita que João vai viver sua maior aventura. Da resistência ao passado, que o transformara num homem rude e cético, ao reencontro com a vida e com o amor, João verá, mais uma vez , seu destino ser mudado pela presença de uma mulher; menina-moça inocente e pura, que irá confrontá-lo com suas dores, pecados e mazelas.

Francisco Sinke Pimpão

Francisco José Sinke Pimpão, nascido em Curitiba no ano de 1953, é Bacharel em Administração e sócio de uma empresa de consultoria. Nos últimos anos tem-se dedicado ao estudo e aplicabilidade da Gestão de Processos nas Organizações, fruto de 27 anos de atuação no mercado. Com pós-graduação em Marketing e tendo concluído diversos cursos no Brasil e exterior, escreveu diversos artigos publicados em livros e revistas especializadas. Atualmente é redator e coordenador de web sites.

Fontes:
– Francisco Sinke Pimpão .O Dia em que a Muiraquitã virou Gente. Curitiba: Pro Infanti, 2009.
http://www.proinfantieditora.com.br/produto.php?id=131

Folclore Indigena (Muiraquitã)


Muiraquitã é um amuleto indígena. Segundo a lenda era retirado sob a inspiração de Iaci (lua) do fundo de um lago denominado Espelho da Lua (Iaci-uaruá) na proximidade das nascentes do rio Nhamundá, perto do qual habitavam as índias Icamiabas, nação das legendárias mulheres guerreiras que os europeus chamaram de Amazonas (mulheres sem marido). O lago era consagrado à Lua, pelas Icamiabas, onde anualmente realizavam a Festa de Iaci, divindade mãe do Muiraquitã, que lhe oferecia o precioso amuleto retirado do leito lacustre. Oferecido pelas guerreiras amazonas aos índios da aldeia vizinha, os guacaris, logo após acasalarem em noites de lua cheia. Depois do acasalamento, pouco antes da meia-noite, com as águas serenas e a Lua refletida no lago, as índias nele mergulhavam até o fundo para receber de Iaci os preciosos talismãs, com a configuração que desejavam, recebendo-os ainda moles, petrificando-se em contato com o ar, logo após saírem d’água

Uma versão da fábula diz que os rebentos do sexo masculino nascidos dessa união eram entregues aos guacaris. As meninas permaneciam com a tribo feminina. O amuleto conferia status e poderes mágicos ao seu possuidor. Bem pequenos e, por isso mesmo, alvo fácil de roubos e contrabandos, os muiraquitãs, quase sempre confeccionados em rochas esverdeadas, tinham em geral forma de sapos. Mais raramente, podiam ser talhados também em rochas brancas, em formatos de morcegos, peixes e homens.

Fontes:
http://www.abrasoffa.org.br/folclore/lendas/muiraquita.htm
http://portalamazonia.globo.com/pscript/amazoniadeaaz/artigoAZ.php?idAz
=538

Jerônimo Mendes (História da Poesia Universal – Breve Relato ) Parte IX



3. O FUTURO DA POESIA E A POESIA DO FUTURO

Há anos os mortais comuns ouvem dizer que o fim da poesia está próximo ou, então, que a poesia acabou. Verdadeira tolice. A execução desse trabalho deu-me a certeza de que a poesia está mais viva do que nunca, tem resistido ao tempo, da antigüidade até a época contemporânea, de Homero a Camões, de Shakespeare a João Cabral de Melo Neto.

Em cinco mil anos de existência e glória, a poesia sofreu diversas transformações e a mutação deu-se por meio de diferenças de idéias e pensamentos, as chamadas correntes poéticas, convertidas posteriormente ao conceito de Escolas Poéticas pelos historiadores da literatura universal e da poesia propriamente dita.

Lirismo, Romantismo, Parnasianismo, Simbolismo e Modernismo foram algumas das principais escolas que sustentaram pensamentos muito particulares ou em bloco através de poetas e escritores em todos os tempos. Em defesa das idéias, a evolução da poesia foi visível e os debates calorosos nas mais diferentes épocas somente contribuíram para enaltecer valor artístico que a mesma sempre mereceu, embora não tenha conseguido atingir em sua plenitude.

No Brasil, a partir de 1922, com o advento do Modernismo e a eclosão da poesia moderna, representada por Oswald de Andrade, Cecília Meireles e Guilherme de Almeida, muitas transformações ocorreram na arte da poesia.

Oswald de Andrade, poeta e escritor, lançou o manifesto da poesia Pau-Brasil , ao qual se contrapunham os membros do grupo “verde-amarelo”, formado por Menotti Del Picchia , Raul Bopp, Cassiano Ricardo e outros, que pretendiam conferir à arte uma função social e política. Duas das mais importantes obras da literatura moderna do país e, provavelmente, do continente, são as de Manuel Bandeira, que aliou amargura, humor e ironia e uma grande sensibilidade em livros como Libertinagem e Pasárgada, e Carlos Drummond de Andrade, que uniu o lirismo ao seu indubitável senso de humor em obras como Claro Enigma e Lição de Coisas.

O modernismo na poesia eclodiu com a Geração de 45, na qual desfilaram nomes como João Cabral de Melo Neto, José Paulo Paes, Thiago de Mello e Moacir Félix, contrapondo-se a alguns ideais do modernismo de 22 e englobando tendências díspares, ainda que defendendo, em comum, normas estéticas que aspiram à nitidez e à disciplina de expressão poética. De lá para cá a poesia mundial e brasileira nunca foram as mesmas.

O poeta Mário Faustino, com uma atividade intelectual pragmática, procurava contribuir para elevar a educação literária nacional, através de exaustivo trabalho de crítica poética e tradução de autores estrangeiros em ascensão. Ainda na década de 50, nasceu o movimento concretista, talvez o primeiro movimento internacional que teve, na condição de criador, a participação direta de poetas brasileiros, entre os quais Décio Pignatari e os irmão Augusto e Haroldo de Campos, fundadores do grupo Noigandres, que colocou em xeque toda a tradição em poesia, observando os impactos criativos sofridos pela linguagem poética ao longo do século.

Para os mentores do movimento, estava encerrado o ciclo histórico do verso, substituído pela associação formal dos vocábulos e pela sua disposição espacial na página, em alinhamentos geométricos. Pretendia-se, assim, libertar a poesia da sua limitação literária para integrá-la a outras formas de arte. No embalo das teorias da informação evocadas pelos concretistas, são lançados nas décadas de 60 e 70 os manifestos da poesia práxis e do poema processo, respectivamente defendidos, sobretudo, pelos poetas Mário Chamie e Wladimir Dias-Pino.

Como reação à ditadura militar, surge entre 1964 e 1968 o grupo Violão-de-Rua, vinculado à UNE (União Nacional dos Estudantes, organização estudantil de maior força oposicionista durante o regime militar instalado no ano de 1964 no Brasil), onde alguns poetas abandonaram seus projetos estetizantes por uma linguagem popular.

Ao longo destas três últimas décadas, o poeta Ferreira Gullar desenvolveu uma obra com características variadas, reconhecida, todavia, pelo teor de contestação da ordem social aliado à apurada percepção formal. A década de 70 viu nascer um movimento poético de contracultura, liderado pela chamada Geração Marginal, onde se estabelecia uma quase espontânea crítica comportamental (Ana Cristina César, Cacaso, Francisco Alvim).

Na década de 80 nota-se o resgate da poesia do mato-grossense Manoel de Barros, em consonância com o crescente interesse pela ecologia, e de Drummond, falecido em 1980, quando o povo brasileiro começava a assimilar a idéia da abertura política decretada pelo presidente Gal. Figueiredo. Em 1967, respondendo a um inquérito sobre a razão por que se escrevem poemas e romances, o escritor e crítico literário Ítalo Calvino teve a oportunidade de reconhecer que a literatura entrara a viver de sua própria negação.

Segundo Calvino, exaurida, depois de sucessivas experiências no plano das questões sociais e políticas, as letras se haviam requintado no maneirismo de soluções acentuadamente formais.

Sempre que a literatura dá a impressão de ter chegado a um impasse, como se não soubesse como ir adiante de si mesma, em busca de novos caminhos e soluções, suscita a perplexidade que conduz à sua condenação. (Josué MONTELLO, A literatura como perplexidade de solução, Revista Brasileira, p. 7)

Essa nossa breve exposição de fatos e acontecimentos em menos de cem anos mostra a instabilidade da poesia e da literatura em geral diante das transformações do mundo moderno. Nesse fim de milênio, manda a verdade que se reconheça, que a literatura passa por uma espécie de eclipse parcial.

Isto significa dizer que, descontadas as devidas proporções, a poesia perdeu a luz intensa que a brilhava. Daí as sombras que sobre ela se acumulam, por vezes levando-nos a supor que os poetas constituem uma espécie em via de extinção.

Sou levado a crer que não é bem assim. É bem verdade que os jornais de hoje se retraíram diante do que é puramente literário. Até a crítica, que transformava o texto em debate público, se converteu por força da pressão exercida pelas novas formas de jornalismo, ajustadas a outros campos do conhecimento e da expressão. As revistas literárias, que poderiam suplantar esse silêncio, oscilam e levam um bom tempo para reaparecer, quando não desaparecem para sempre, desmotivadas pela falta de recursos e de incentivos de todas as partes. A televisão, que poderia abrir um largo caminho às letras, só ocasionalmente o faz, haja vista que, na rotina dos noticiários, não há espaço, mínimo que seja, para o aparecimento de um livro, ainda que se trate de um clássico da literatura nacional. Nesse ponto, cabe ressaltar apenas o excelente serviço da TV Educativa e da TV Cultura, com programas especialmente consagrados à poesia e literatura corrente.

Em nossa pesquisa, apuramos que Augusto Frederico Schimidt profetizou, já quase no fim dos anos 30, a morte da Poesia. Mas a verdade é que, para o bem de todos, o óbito anunciado não ocorreu. Parafraseando o escritor Isaac B. Singer, Prêmio Nobel e Literatura, podemos pensar : “Como a poesia já existe, não podemos mais viver sem ela ” . Assim como o teatro sobreviveu ao impacto do cinema, o livro sobreviverá ao impacto da imagem, na instantaneidade dos recursos da televisão e do vídeo.

A literatura do nosso tempo, apesar de não viver os melhores dias, saberá suplantar a crise, quer como interesse, quer como fonte de novas experiências. Enquanto existir a palavra escrita, somos levados a crer que continuará a existir a poesia, como requinte da forma e da expressão, na harmonia do verso ou da prosa.

Atualmente, pelo mundo afora, a despeito de todas as experiências desenvolvidas em torno das novas tendências da poesia, a poesia de todos os tempos resiste bravamente aos mais diferentes experimentos e tentativas de mudança.

Convivemos com a poesia tradicional, metrifica e rimada que eternizou a escola romântica através da geração dos condoreiros ; com a poesia de versos livres (ou brancos), onde a mensagem, distante da rima e da métrica, pode soar estranha, mas apresenta, se bem concebida, a arte poética em estado puro ; com a poesia visual, onde as palavras são substituídas pela interpretação espontânea e natural por parte de quem aprecia a imagem (muitas vezes confundida com poesia concreta) e, por fim, com a poesia através da musica, esta última mais resistente às oscilações do plano literário. A quem pertence o futuro da poesia ? Aos Deuses ou aos poetas ? Trata-se de uma resposta dificílima perante tantas controvérsias e diferenças de idéias e pensamentos. Quem pode afirmar dizer quem está certo ? Os concretistas, o modernistas, os de escola nenhuma ? Sou obrigado a concordar que a poesia maior é aquela que soa melhor aos nossos ouvidos e aos nossos olhos. Somente aquele estado da emoção recolhida é capaz de prever a sobrevivência ou a morte da poesia.

Tudo o que aprendi durante o trabalho faz-me acreditar que a poesia não morrera jamais, está enraizada na alma humana, seja visual ou escrita, embora eu seja mais adeptos à poesia de versos clássicos, rimados e metrificados, com a qual aprendi a conviver desde pequeno e que soa melhor aos meus ouvidos.

Como reflexão, valeu desenvolver o capítulo em cima de tudo aquilo que a poesia já produziu, da evolução que sofreu e das tendências futuras, mas o futuro, sinceramente, quero estar vivo para testemunhar.

Fonte:
Monografia feita pelo autor em Curitiba / PR , março de 2001

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Trova XCVIII - José Fabiano (Belo Horizonte/MG)

Montagem da trova por José Feldman sobre imagens obtidas na internet de:
Espelho = criado por Rodrigo Ribeiro Gomes

Fábio Weintraub (Poesias Escolhidas)



ESTILO
(de uma entrevista com Tom Waits)

I .
A maneira pela qual
você faz
uma coisa
é a maneira
pela qual
faz todas as coisas

Você lava o carro
do mesmo jeito que
corta o cabelo
anda a cavalo
cria seus filhos

Depois dos filhos
todo o resto
fica (muito) fácil.

II.

É como pescar
ou caçar passarinhos
Você cava um buraco
na parede
e espera
que alguém
ou alguma coisa
cave de volta
na sua direção

III.

Como faço
para ter uma voz
assim grave?

Grito com a cara no travesseiro
Grito com meus filhos
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ÜBERMENSCH
para Viviana

Disse-me uma amiga
certa feita
que o máximo
da delicadeza
é entrar
num quarto vazio
onde haja um espelho
e vê-lo
vazio
livre da dívida
de nos refletir

Vampiros são muito suaves

(de Sistema de Erros, 1996)

RISCO

a nódoa azul
nos pães da véspera
um resto de orvalho
na pólvora agora
o leite coalhado
na teta órfã

sustos
ante o quê
por úmido
estraga

ou floresce
(de Sistema de Erros, 1996)
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MÃE

Então me informaram
que os pertences da paciente
— um par de brincos mais um colar —
deveriam ser retirados
pois há quem se fira
ou fira os outros
em tal estado

Minha mãe suplica:
precisa de talismãs
pra passar a noite fora de casa
Só assim ficará protegida
O Inimigo não a tocará

Expliquei-lhes que não era caso
para um tal rigor
Minha mãe não era disso
só estava muito triste
e confundida

A funcionária assentiu a contragosto

Devolveram-lhe as bijuterias
assinei o termo de responsabilidade
e ainda pude ver os enfermeiros chegando
antes de ser forçado a sair

(de Novo endereço, 2002)

GERENCIAMENTO ANTI-STRESS

Imagine um córrego
Há pássaros cantando
e o vento fresco da montanha
no céu de um azul limpíssimo
Aqui nada pode aborrecê-lo
Ninguém alcança esse lugar secreto
sem passagem para o mundo

A queda d'água
enche o ar de sons gentis
A água é transparência absoluta

Agora, sim, pode-se ver o rosto
daquele cuja cabeça
você comprime sob a água

(de Novo endereço, 2002)

PROMETEU

o fogo roubado
não é senão
a branquinha humilde:
brasa solitária
entre os carvões da vida

a ira divina
é pouco mais
que a recusa do garçom
em servir
a enésima dose
fiado

o castigo
este sim
tem a grandeza do mito:
a cirrose vulturina
com a família nas garras
da Previdência

(de Novo endereço, 2002)

PAI

Desempregado há três anos
no país do futuro

Batendo perna nas ruas
com o mostruário de meias

Adivinhando
o signo da morena
o ascendente da loira

Jogando xadrez
assobiando um samba
colecionando borboletas
descobrindo a fórmula exata
da tinta para balão
(tinta que não racha
sobre a pele inflável)

Contra as determinações médicas
filando cigarro
fazendo piada com a perna
que pode ser amputada
louvando as próteses modernas
dizendo que morre antes disso
que não vai dar trabalho
que some de casa
vai pro asilo

Meu pai de novo ao volante
guiando o negro Landau

O velho e bom batmóvel
rodando sem freio ou cinto
o vento de Gotham no rosto
minha cabeça no banco de couro

Meu pai cantando alto
limpo e bonito como só ele
numa estrada clara
sem pedágio ou limite
de felicidade

(de Novo endereço, 2002)

POR TRÁS

O prato ainda sobre a mesa
(arroz com frango)
pra quando ele voltasse

Tinha era muita raiva
Tanto que pediu
pra ele vender o táxi
deixar de rodar à noite

Pressentir é fácil
falta entendimento
Bem que estranhou o fato
dele voltar duas vezes
parar na porta
olhar pra ela sem motivo

Alguém disse que no caixão
ele tava bonito
Tava não

Repuxando o rosto
o tiro na cervical
varou a jugular
o esvaziou pela boca

(de Novo endereço, 2002)

SEQÜÊNCIA

Tudo se dá lentamente
sem sinais ostensivos
Um dia esquecem
de trocar os lençóis
ou colocam a cama
rente à porta
em posição propícia
a esbarrões freqüentes

Depois
por conta dalgum defeito
mandam o monitor pra manutenção
A cânula entra meio torta

Quem tiver paciência
verá a máscara de dor
armar-se sobre o rosto amado

Na hora certa
um enfermeiro moreno e rápido
cerca o leito com um biombo
preme a última seringa

Na casa dos parentes
o telefone toca

(de Novo endereço, 2002)
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Fabio Weintraub (1967)



Fabio Weintraub (São Paulo, 24 de agosto de 1967) é um poeta e crítico literário brasileiro

Filho de pais judeus de origem polonesa, Fabio Weintraub formou-se em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Porém, trabalhou pouco tempo nessa área, e passou a se dedicar à literatura e à edição de livros.

Fez parte do grupo paulista de poesia Cálamo, do qual faziam parte também Ruy Proença, Priscila Figueiredo, Chantal Castelli e Ana Paula Pacheco. Publicou Toda Mudez Será Conquistada (1992); Sistema de Erros (1996), ilustrado por Fernando Vilela e apresentado por Viviana Bosi, com o qual ganhou o prêmio literário Nascente, promovido pela USP e editora Abril. Novo Endereço (2002), sua obra seguinte, ganhou o prêmio Cidade de Juiz de Fora - Murilo Mendes em 2002[2]. Em 2003, a obra Novo Endereço recebeu o prémio especial "Embajada de Brasil" do Prémio Casa de las Américas na categoria "Literatura brasileña".

Em 2004, foi publicada a edição bilíngüe, em português e espanhol (com tradução da escritora cubana Lourdes Arencibia) de "Novo endereço", desta vez com parceria da Casa de las Américas. Em 2006, ganhou Bolsa de Incentivo à Criação Literária do Governo do Estado de São Paulo, na categoria poesia.

Até 2003, coordenou a coleção de poesia Janela do Caos da Nankin Editorial. Nela, publicou Roberto Piva, Donizete Galvão, Glauco Mattoso, Ronald Polito, Heron Moura, Sérgio Alcides, Tarso de Melo, Ricardo Rizzo, entre outros. Na mesma editora, publicou também os dois últimos livros de Hilda Hilst, "Estar sendo ter sido" e "Cascos e carícias".

Tem poemas publicados em diversos jornais e revistas, nacionais e do exterior. Foi colaborador das revistas literárias Cult, Jandira e Cacto. Atualmente, é um dos editores de K Jornal de Crítica.

Poesia e ativismo

A sua poesia, de acordo com a poeta e crítica Priscila Figueiredo, une "perspectivas que em geral aparecem separadas no panorama recente da poesia brasileira: intensidade lírica e reflexão social" (apresentação a "Novo endereço"). Esssa combinação pode ser lida em versos como: "Desempregado há três anos/ no país do futuro" (poema "Pai", de "Novo Endereço") e "contornou cinco mendigos/ e os respectivos cachorros/ lavou o chão do último bar// só foi morrer muito adiante/ no muro da praça deserta/ onde a fome devasta a fronte/ de um camundongo cego." ("Calçada", do mesmo livro).

A sua preocupação social espelha-se também em seu ativismo. Em 2006 e 2007, participou de ações em prol dos sem-teto de São Paulo, mais especificamente em apoio à Ocupação Prestes Maia do Movimento dos Sem-Teto do Centro, onde foi um dos organizadores do ciclo de palestras "O Direito à Cidade", que ocorreu em abril e novembro de 2006 na própria ocupação. Participou, com fotos, do "Dossiê Violações dos Direitos Humanos no Centro de São Paulo", organizado e publicado em 2006 pelo Fórum Centro Vivo .

Livros de poesia

1992: Toda mudez será conquistada, São Paulo: Massao Ohno Editor.
1996: Sistema de erros, São Paulo: Arte Pau-Brasil.
2002: Novo endereço, São Paulo: Nankin Editorial.
2004: Nueva dirección/ Novo endereço (edição bilíngüe), Havana: Casa de las Américas; São Paulo: Nankin Editorial; Juiz de Fora: Funalfa.
2007: Baque, São Paulo: 34 Letras.

Organização de livros
2006: Poesia marginal, São Paulo: Ática, Coleção Para gostar de ler.
2006: Eu, passarinho, antologia da poesia de Mário Quintana org. com Fabricio Waltrick. São Paulo: Ática, Coleção Para gostar de ler.

Fontes:
– Wikipedia

Fabio Wentraub em Xeque



Fabio Weintraub nasceu em 1967, em São Paulo. Além de poeta, é editor, produtor cultural e psicólogo. Seu recente livro de poemas "Novo endereço" (Nankin, 2002) recebeu o prêmio Cidade de Juiz de Fora, promovido pela Fundação Cultural Alfredo Ferreira (FUNALFA). É um dos fundadores do grupo Cálamo, que desde 1990 se reúne para discutir, estudar e produzir poesia. Nesta entrevista exclusiva, Fabio fala de sua intenção em realizar um trabalho poético que contenha um lirismo civil, voltado para os dilemas da pólis, e de sua opinião sobre a crítica literária, entre outros assuntos. Abrindo a subjetividade para a crise da realidade urbana contemporânea, Fabio experimenta as cenas e situações das ruas como quem vive um exílio doloroso. Também é autor de "Toda mudez será conquistada" (1992) e "Sistema de erros" (1996). Colabora regularmente com a revista Cult e integra a comissão executiva da revista Rodapé.

WEBLIVROS: Alardeia-se que o discurso da poesia vive um momento de crise, mais especificamente que o discurso lírico estaria condenado à extinção, não apenas pelo choque do século das vanguardas, mas também pelo contexto multimidiático e massificante em que vivemos, que tende justamente para a despersonalização. No entanto, seus poemas são insistentemente líricos, incorporando de modo intenso os estilhaços desse cenário triste e desencantado. A retomada do lirismo, nesse momento, seria uma atitude ousada, mais que um retrocesso? E que proposta de lirismo é essa?

FABIO WEINTRAUB: Penso que é preciso desconfiar um pouco desse alarde sobre a crise da expressão lírica, "ameaçada de extinção" nas condições históricas contemporâneas. Juízos apocalípticos - da mesma forma que os surtos maníacos de otimismo - são o que não falta: basta um pouco de memória e encontraremos desmentidos sucessivos para tão fatais profecias.

Além disso, é bom também lembrar que a exaltação da individualidade e da natureza, que está no cerne da expressão lírica, costuma ser justamente uma forma de reação contra fraturas sociais que colocam em xeque os processos de individuação.

O que você identifica no meu trabalho como uma "retomada do lirismo" parece-me, salvo engano, corresponder a um movimento mais coletivo de alargamento do nosso horizonte expressional pela relativização (quebra de hegemonia) do discurso racional-construtivista herdado de João Cabral e das vanguardas dos anos 50-60. Tal discurso dominou, para o bem e para o mal, a cena poética contemporânea até, digamos, o fim da década de 80. Em nome do rigor e do experimentalismo, catequizaram-nos dentro de uma ideologia da competência artesanal que desqualificava como frouxas, verborrágicas, sem "domínio da linguagem" as poéticas afeitas à expansão da subjetividade. O preço pago pela conquista da exatidão foi, no pior dos casos, uma poesia ascética, desfibrada.

É claro que o fundo autoritário dos slogans de vanguarda ainda subsiste, a julgar pela fé arrogante de alguns epígonos e pelo recurso reiterado às excomunhões. Porém, de uma maneira geral, vivemos um momento de distensão de que dá testemunho a diversidade de procedimentos, temas e preocupações presentes entre os poetas deste começo de século.

No que se refere mais especificamente ao tipo de lirismo por mim "proposto" (a palavra é ruim, pois a intencionalidade em questão não é de tipo programático), sirvo-me desavergonhadamente do que disse a poeta e crítica Priscila Figueiredo na apresentação ao meu mais recente livro, Novo endereço. Ali, ela faz ver de que maneira a intensidade lírica associa-se à reflexão social sob o signo do fracasso, isto é, a subjetividade enlaça a vida popular, abre portas e janelas ao vento do espaço público nutrida pelo "forte sentimento de exclusão e desagregação".

Ver exatamente como ocorre essa associação em cada poema demandaria um tempo de que não dispomos. De qualquer modo, como já declarei em outra ocasião, meu lirismo, que não é só meu, tem ambição civil: busco uma poesia cada vez mais transitiva, porosa às contradições do processo de modernização conservadora tal como se deu no Brasil. Trata-se de um caminho, ao que tudo indica, palmilhado por muitos neste momento. E não me refiro apenas a poetas, mas também a uma certa vertente da nossa prosa de ficção dedicada ao retrato mais brutal das nossas mazelas, por meio de uma escrita muito rente à realidade, aos efeitos da violência globalitária (autores como Marçal Aquino, Fernando Bonassi. Marcelo Mirisola, entre outros). O risco aqui prende-se ao hipermimetismo (Bosi), isto é, a um tipo de figuração que é mais reflexo que reflexão, que imita sem compreender, ou seja, sem a "distância" necessária para a inteligência dos conflitos subjacentes à matéria retratada. Na distância entre a forma conciliada e a realidade não-conciliada, reside o potencial crítico da arte, que é mimese e contradição a um só tempo (Adorno).

Mas tal risco, que talvez apareça com mais nitidez na prosa, também vale para esta poesia em que os espaços público e privado da vida contemporânea se tocam e interpenetram. O risco de concessão superficial ao pitoresco, ou de subestimação dos conflitos - por ímpeto estetizador, pieguismo populista, engessamento de perspectiva, formalização precária - é enorme. Chico Alvim, por exemplo, é um poeta que enfrenta esse risco com maestria porque se abre à fala alheia com uma "simpatia" que não apaga as divisões sociais. Isto é possível graças ao apuro formal, à combinatória de perspectivas, ao minimalismo das elipses de Alvim que, seguindo de certa forma a lição concretista (cabralina, oswaldiana...), lhe deu lastro histórico (Schwarz).

No entanto, outras soluções são possíveis (e necessárias).

WEBLIVROS: Seu novo livro traz algumas vertentes marcantes: há poemas nitidamente autobiográficos; outros que fazem uma apreensão crítica de cenas urbanas; e uma terceira, em que predominam os poemas com forte transfiguração imagética, muito próximos de uma dicção surrealista. Trata-se de caminhos explícitos de sua poética hoje, ou não existe um planejamento em seu trabalho?

FW: É difícil falar em "planejamento" na medida em que as forças em jogo em qualquer trabalho artístico (pulsões infantis, modelos de desempenho formal, variáveis ideológicas etc) sempre operam para muito além dos limites estreitos da consciência.

Quanto às três vertentes que você identifica no livro, aceito a classificação com alguma reserva, mas explico o porquê. Muitos dos poemas que você chama de "nitidamente biográficos" (poemas como "Mãe", "Pombos" e "Pai") são construídos a partir de uma "apreensão crítica de cenas urbanas" (a cidade entendida não apenas como cenário, mas como campo de relação, foco de um certo tipo de sociabilidade).

Igualmente, no grupo de poemas com dicção mais "surrealista", entram alguns elementos biográficos/domésticos bem como o sentimento de exílio, gerado a partir de uma relação agônica com a cidade.

Esse sentimento de perda do "direito à cidade" se impõe de várias maneiras, já desde a epígrafe, extraída do livro A gravidade e a graça, de Simone Weil. Weil nos ensina que entre uma cidade regida por mecanismos de exclusão social e uma cidade totalmente destruída há pouca diferença, pois é difícil sustentar no pensamento a existência autônoma e independente do que não nos pertence. Nesse sentido, uma cidade como Jenin - Ariel Sharon certamente nunca leu nem sequer uma linha de Simone Weil - pode não estar muito longe de São Paulo, ainda que a violência aqui assuma uma forma talvez menos ostensiva e indignante.

Veja que a imagem do exílio retorna na hipógrafe de Martin Buber (como Simone Weil, um autor judeu da primeira metade do século passado), ligando o livro, quem sabe, ao velho tema do judeu errante.

A internação descrita no poema "Mãe" também pode ser lida como a repetição da mesma perda, assim como o poema "Óvni" e todos os poemas com referências ao pé moído na errância pela cidade inviável ("Calcanhar de Vênus", "Tigre", "Montepio", "Pai").

Assim, penso que as diferentes vertentes mencionadas por você se articulam a partir desse núcleo comum.

WEBLIVROS: "Novo endereço" representa uma continuidade em relação a seus livros anteriores - "Todo mudez será conquistada" e "Sistema de erros" - ou você acredita que houve uma ruptura? Como você o relaciona com seus trabalhos anteriores, incluindo as experiências com o grupo Cálamo?

FW: Para mim há uma ruptura muito clara, uma mudança de projeto. Em relação aos livros anteriores houve um rebaixamento considerável no tom, o abandono de certo preciosismo vocabular, de certos jogos imagéticos, de certa dedicação à metalinguagem. Novo endereço é um livro mais machucado, nutrido pela linguagem coloquial e repleto de vários poemas com teor fortemente narrativo.

Mas é também evidente que, se você for pesquisar, encontrará algo nos livros anteriores que de alguma forma prenunciava o que pude alcançar agora, bem como, no livro atual, resíduos de obsessões anteriores. Em Sistema de Erros, por exemplo, um poema como "A rosa púrpura do Cairo", devido ao tom narrativo e à tematização da violência mutiladora contra a mulher, antecipa à sua maneira algumas questões de Novo Endereço. Já o poema "E vice-versa", de Novo endereço, retoma a vertente metalingüística em nova chave, o que só foi possível pela prevalência do erro sobre o sistema; da mobilidade do que é precário sobre a necessidade de organização.

WEBLIVROS: Percebe-se um diálogo cerrado com Manuel Bandeira, crítico-criativo e não meramente reverencial, nos poemas de "Novo endereço", mais até que com Drummond, autores que você admira e estuda. Como você enfrenta suas angústias de influência e como tais angústias se refletem nos seus textos? Como você lida com a tradição?

FW: Influência, angústia, diálogo com a tradição, herança. Eis um terreno verdadeiramente minado, no qual a própria forma de designar possíveis filiações entre autores suscita uma série de problemas.

Vejamos. A lição presente em um texto como "Tradição e talento individual" escrito por Eliot em 1917, encontra-se hoje, ao menos entre os poetas minimamente informados, bastante difundida. A idéia de que devemos ter consciência "não apenas da caducidade do passado, mas de sua presença" (a insistência quanto ao fato de que a obra original não é aquela que volta as costas à tradição, mas a que incorporando-a, reordena o conjunto das obras existentes), tornou-se, por assim dizer, quase um consenso entre os escritores de senso. Poucos são os que, ainda hoje, sentem romanticamente o "borbulhar do gênio", supondo que farão uma obra-prima apenas com o que lhes vai na cachola, sem tomar nada de empréstimo a outrem.

O que há talvez de novo na consciência de débito com a tradição é a metamorfose da idéia de filiação numa espécie de grife ou selo de que os poetas se servem para se autolegitimar. Ou seja, dependendo da maneira como se insira, real ou imaginariamente, na tradição, o poeta alcançará maior ou menor elevação na bolsa de valores literários. Curiosamente, nesses casos, a "angústia de influência" (Bloom), a idéia de que sempre se escreve contra um texto-modelo que nos oprime, transforma-se em "euforia da influência", isto é, em meio para alcançar prestígio e exercer (mais que sofrer) influência.

Assim é comum ver poetas declarando-se herdeiros deste ou daquele autor conforme a conveniência. "Fulano é herdeiro de Drummond..." Mas herdeiro de que forma? De que parte do espólio?

Mesmo a idéia de "diálogo", que não possui a ressonância patrimonial de "herança", é problemática também. Primeiro, porque supõe reciprocidade entre os interlocutores, o que raramente ocorre. Em segundo lugar, porque designa situações muito diversas que vão desde a citação avulsa (a intertextualidade, o pastiche pós-moderno, o servilismo de estilo) até a discussão mais consistente de procedimentos e temas a partir de um conjunto de preocupações comuns.

Da mesma forma, não deixa de ser curioso que, no terreno da crítica, o exame das influências e filiações tenha sido, de certa forma, "inflacionado". Hoje em dia já não nos surpreendemos com resenhas que praticamente se limitam a mapear o campo de interlocução de um autor ou de uma obra, não se aventurando pela análise mais concreta dos poemas nem pela emissão de juízos valorativos.

Outro equívoco usual é incorrer numa concepção meio evolucionista de literatura, ligada à idéia de progressão linear, de certa continuidade entre autores.

Como se a literatura fosse uma corrida de revezamento em que um poeta passa o bastão a outro, que o levará mais longe. Em matéria de arte, situar as transformações em termos de "progresso" e "retrocesso" será mesmo proveitoso? (Octavio Paz: "Técnica y creación, útil y poema son realidades distintas. La técnica es procedimiento y vale en la medida en que es un procedimiento susceptible de aplicación repetida: sua valor dura hasta que surge un novo procedimiento. La técnica es repetición que se perfecciona o se degrada; es herencia y cambio: el fusil reemplaza al arco. La Eneida no substituye a la Odisea").

Bem, voltando ao livro, você tem razão, sim, ao rastrear sinais da humildade terna e do lirismo bandeiriano em Novo endereço, evidente sobretudo, penso eu, nos poemas de família. Mas acho que a melancolia e o gauchismo drummondiano também ecoam de modo muito nítido, assim como a poesia andarilha de Mário de Andrade (veja-se o topos do calcante pede, tão bem destacado na já citada apresentação de Priscila Figueiredo) e, em menor grau, a estrutura dramática à Chico Alvim (em poemas como "Barrabás" e "Por trás").

No entanto, uma coisa que faço sempre questão de lembrar é que, embora os escritores normalmente se sintam mais à vontade para falar de influências literárias, a literatura desempenha um papel limitado no campo de influências a que um poeta está submetido. Às vezes, a posição da janela do quarto em relação à luz, um quadro prolongado de doença na família, sapatos apertados, uma mudança efetiva de endereço desempenham um papel da maior importância na construção de uma obra.

WEBLIVROS: Em que medida uma experiência de pesquisa poética coletiva como a do grupo Cálamo pode contribuir não apenas para o amadurecimento poético dos participantes, mas também para uma reflexão mais ampla sobre a presença da poesia no cenário contemporâneo?

FW: A participação de um grupo de trabalho sistemático com poesia, como é o caso do Cálamo, certamente alimenta a reflexão de seus membros sobre a situação da poesia no mundo contemporâneo, as complexas relações entre literatura e processo social, o exame detido do perfil estilístico de determinado autor ou período etc. No entanto, faço questão de frisar duas coisas. O grupo, apesar de contar com algumas pessoas ligadas à universidade, não se dedica à pesquisa em sentido acadêmico. Trata-se de um grupo no qual a pesquisa serve para instigar os participantes no sentido da criação, ou para fornecer-lhes parâmetros a fim de melhor equacionar os problemas com que se deparam ao longo dessa prática criativa. De modo que o lucro teórico de nossas discussões carece da isenção necessária a um diagnóstico abrangente da "presença da poesia no mundo".

Outro ponto diz respeito ao caráter individual, pessoal e intransferível das "descobertas", pois não se trata de um grupo com plataforma ou atuação programática. Trata-se, mais simplesmente, de um espaço de troca e discussão no qual são desenvolvidos trabalhos de feição muito variada, sem unidade estilística ou ideológica.

WEBLIVROS: Não seria ingênuo, como muitos poetas parecem ainda fazer hoje, reivindicar para a poesia uma atenção igual ou maior que a dispensada para produtos culturais de entretenimento e de fácil consumo?

FW: Minha opinião quanto a isso costuma variar: em alguns poetas vejo ingenuidade, noutros, arrivismo, noutros ainda, uma combinação das duas coisas, tudo temperado por doses cavalares de ressentimento.

Com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa e da indústria do entretenimento, a literatura foi empurrada para uma posição bastante marginal em nossas vidas, desempenhando um papel muito menos relevante na formação da sensibilidade contemporânea. Esse processo é, ao que tudo indica, irreversível: uma leitura pública de poesia jamais contará com um público do mesmo tamanho do que encontramos nas salas de cinema ou num espetáculo de rock.

Muitos dirão que conformar-se com tal situação é adotar uma postura elitista e impedir a formação de leitores de poesia (o que, por seu turno, agrava a situação dos poetas, sem editoras que os publiquem e jornais que divulguem seu trabalho). Seguindo tal linha de raciocínio, entra-se num círculo vicioso: já que poesia não vende, não se investe na circulação (publicação, divulgação, distribuição) dos textos, fazendo com que o público leitor se reduza e o mercado se retraia.

Acho que não é o caso de verificar aqui a validade do argumento, nem de apurar quem são os verdadeiros responsáveis pela situação acima descrita (falar, por exemplo, das políticas públicas com baixíssimo investimento em educação; do despreparo da imprensa; do conservadorismo das editoras etc).

Mas não deixa de ser engraçado, nos poetas que reclamam da pouca visibilidade midiática, a ilusão de que a eventual conquista de mais visibilidade não afetará a "liberdade" de que gozam como "outsiders". Querem ser, ao mesmo tempo, apocalípticos e integrados, para lembrar a feliz expressão de Umberto Eco.

WEBLIVROS: Tornou-se lugar-comum ouvir escritores brasileiros reclamarem da crítica, tanto a acadêmica quanto a jornalística, tidas como conservadora e elitista, a primeira, e superficial e tendenciosa, a segunda. Você edita uma revista dedicada exclusivamente à crítica literária - a Rodapé - cujos autores, em sua maioria, estão ligados ao universo acadêmico. Há mesmo um hiato entre criadores e crítica? Não haveria também uma certa indisposição dos escritores para com a crítica? Como uma revista nos moldes da Rodapé pode interferir nesse processo?

FW: O hiato realmente existe e deveria ser motivo de apreensão, uma vez que "toda crítica que se preza tem a ambição de estar à altura do que lhe é rigorosamente contemporâneo, o que é uma forma de estar à altura do que sucede às nossas vidas" (trecho da enquete com o prof. José Antonio Pasta Jr., parte integrante do próximo número da revista Rodapé).

Mas, com toda sinceridade, acho que, se tal ambição não puder ser satisfeita dentro da universidade, dificilmente o será fora dela. As resenhas de jornal se aproximam cada vez mais dos releases (os jornalistas desempenhando o mero papel de "relações públicas" das editoras), pois o compromisso da imprensa é de outra ordem, não pretende propriamente estar "à altura da vida". Até porque o ritmo de produção que nela vigora impede o estudo contínuo e a aprendizagem renovada, bem como as análises minuciosas, com maior fôlego interpretativo, necessárias para dar conta daquilo que nos é "rigorosamente contemporâneo".

Aos escritores, em contrapartida, falta muita vez isenção para avaliar o trabalho dos pares sem sucumbir ao coorporativismo, ao proselitismo ou ao polemismo estéril. Para não falar da militância anti-intelectual dos que atacam a universidade e pontificam sobre o pretenso conservadorismo da crítica acadêmica sem de fato conhecer (ou conhecendo muito pouco) o que se faz hoje sob essa chancela.

De modo geral, queixam-se os autores novos da instrumentalia inadequada com que os críticos recebem o vinho novo por eles preparado. Os críticos, por seu turno, tacham como inautêntica a novidade, questionam a procedência das uvas e se eximem de limpar o limo das barricas. Considerando a caturrice das partes, o tal vinho, velho ou novo, se converterá no vinagre com que compensaremos a falta de sal do debate.

Uma revista como a Rodapé quer interferir nesse processo, entre outras coisas, mapeando, de modo extensivo, sistemático, a produção literária contemporânea (poesia, prosa de ficção, dramaturgia), entendendo por contemporâneo "um tempo um pouco mais largo que o da indústria cultural"; conforme se lê na apresentação ao primeiro número da revista.

WEBLIVROS: Além de poeta, você também é editor de livros do selo Janela do Caos, da editora Nankin. Qual o prazer de editar poesia, esse projeto editorial inviável economicamente?

FW: O prazer de editar poesia, que você também tem, capitaneando a Weblivros, é correlato ao prazer de ler. Levar adiante a palavra alheia é, de alguma forma, estender e renovar a alegria que tivemos anteriormente, no confronto solitário com o texto.

Além disso, todas as decisões sobre a materialização física do trabalho de outros poetas (a concepção da capa, a escolha do papel, da tipologia, o objeto gráfico como fetiche) costumam ser estimulantes e exigem do editor a capacidade de conciliar (o que nem sempre é fácil), o desejo (às vezes capricho) do autor com o conhecimento das condições objetivas de produção e circulação do livro.

O contato com os autores - que, em muitos casos, tornam-se grandes amigos - também ajuda muitas vezes a iluminar a obra de que nos acercamos, não tanto pelo que eles nos dizem diretamente, mas pelo que observamos em sua maneira de agir: propondo uma diagramação diferente, sugerindo uma imagem para a capa ou comentando o texto escrito para a orelha.

A despeito da "inviabilidade econômica" do gênero, é um trabalho gostoso, viciante. Se pudesse, me dedicaria exclusivamente a isso. Faria passar pela "Janela do caos" - essa pequena fresta, fenda (atente para o logotipo, inspirado nos "rasgos" de Lucio Fontana) - todo o vento da poesia brasileira contemporânea.

Fonte:
Entrevista Por Reynaldo Damazio, para Weblivros. Disponível em http://www.weblivros.com.br/entrevista/fabio-wentraub-7.html

Machado de Assis (Casa, não casa)


Se alguma das minhas leitoras morasse na Rua de S.Pedro da cidade nova, há cousa de quinze anos, e estivesse à janela na noite de 16 de março, entre uma e duas horas, teria ocasião de presenciar um caso extraordinário.

Morava ali, entre a Rua Formosa e a Rua das Flores, uma moça de vinte e dous anos, bonita como todas as heroínas de romances e contos, a qual moça na sobredita noite de 16 de março, entre uma e duas horas, levantou-se da cama e a passo lento foi até à sala com uma luz na mão.

Não estando as janelas fechadas, a leitora, caso morasse defronte, veria a nossa heroína pousar a vela sobre um aparador, abrir um álbum, tirar um retrato, que não saberia se era de homem ou de mulher, mas que eu lhe afirmo ser de mulher.

Tirado o retrato do álbum, pegou a moça na vela, desceu a escada, abriu a porta da rua e saiu. A leitora ficaria naturalmente assombrada com tudo isto; mas que não diria quando a visse seguir pela rua acima, voltar a das Flores, ir até à do Conde, e parar à porta de uma casa? Justamente à janela dessa casa estava um homem, rapaz ainda, vinte e sete anos, olhando para as estrelas e fumando um charuto.

A moça parou.

O moço espantou-se do caso, e vendo que ela parecia querer entrar, desceu a escada, com uma vela acesa e abriu a porta.

A moça entrou.

— Isabel! exclamou o rapaz deixando cair a vela no chão.

Ficaram às escuras no corredor. Felizmente trazia o moço fósforos na algibeira, acendeu outra vez a vela e fitou os olhos na recém-chegada.

Isabel (tal era o seu verdadeiro nome) estendeu o retrato ao rapaz, sem dizer palavra, com os olhos fitos no ar.

O rapaz não pegou logo no retrato.

— Isabel! exclamou ele outra vez mas já com a voz sumida. A moça deixou cair o retrato no chão, voltou as costas e saiu. O dono da casa ainda mais aterrado ficou.
— Que é isto? dizia ele; estará louca? Pôs a vela sobre um degrau da escada, saiu à rua, fechou a porta e seguiu lentamente atrás de Isabel, que foi pelo mesmo caminho até entrar em casa.

O mancebo respirou quando viu Isabel entrar na casa; mas ficou ali alguns instantes, a olhar para a porta, sem nada compreender e ansioso por que chegasse o dia. Todavia era forçoso voltar para a Rua do Conde; lançou um último olhar às janelas da casa e retirou-se.

Ao entrar em casa apanhou o retrato.

— Luísa! disse ele.

Esfregou os olhos como se duvidasse do que via, e ficou parado na escada a olhar largos minutos para o retrato.

Era preciso subir.

Subiu.

— Que quererá isto dizer? disse ele já em voz alta como se falasse a alguém. Que audácia foi essa de Isabel? Como é que uma moça, filha de família, sai assim de noite para... Mas estarei eu sonhando? Examinou o retrato, e viu que tinha nas costas as seguintes linhas: À minha querida amiga Isabel, como lembrança de eterna amizade.

LUÍSA.

Júlio (era o nome do rapaz) não pôde descobrir nada por mais que parafusasse, e parafusou muito tempo, já deitado no sofá da sala, já encostado à janela.

E na verdade quem seria capaz de descobrir o mistério daquela visita a semelhante hora? Tudo parecia antes uma cena de drama ou romance tétrico, do que um ato natural da vida.

O retrato... O retrato tinha certa explicação. Júlio andava quinze dias antes a trocar cartas com o original, a formosa Luísa, moradora no Rocio Pequeno, hoje Praça Onze de Junho.

Todavia, por mais agradável que lhe fosse receber o retrato de Luísa, como admitir a maneira por que lho levaram, e a pessoa, e a hora, e as circunstâncias? — Sonho ou estou doudo! concluiu Júlio depois de longo tempo.

E chegando à janela, acendeu outro charuto.

Nova surpresa o esperava.

Vejamos qual foi ela.

CAPÍTULO II

Não havia fumado ainda uma terça parte do charuto, quando viu dobrar a esquina um vulto de mulher, caminhando lentamente, e parar à porta da casa dele.

— Outra vez! exclamou Júlio. Quis descer logo; mas as pernas começavam a tremer-lhe. Júlio não era tipo de extrema valentia; creio até que se lhe chamarmos medroso não estaremos longe da verdade.

O vulto, entretanto, estava à porta; era forçoso tirá-lo dali, a fim de evitar um escândalo.

"Desta vez, pensou ele pegando na vela, hei de interrogá-la; não a deixo sair sem me dizer o que há. Infeliz. Parece-me que está douda!" Desceu; abriu a porta.

— Luísa! exclamou.

A moça estendeu-lhe um retrato; Júlio pegou nele com ânsia e murmurou consigo: "Isabel!" Era efetivamente o retrato da primeira moça que a segunda lhe trazia.

Não será preciso dizer ou repetir que Júlio namorava também a Isabel, e a leitora compreende facilmente que, tendo ambas descoberto o segredo uma da outra, ambas foram mostrar ao namorado que estavam cientes da sua duplicidade.

Mas por que motivo tais cousas se davam assim revestidas de circunstâncias singulares e tenebrosas? Não era mais natural mandarem-lhe os retratos dentro de uma sobrecarta? Tais eram as reflexões que Júlio fazia, com o retrato numa das mãos e a vela na outra, enquanto já de volta entrava em casa.

Não será preciso dizer que o nosso Júlio não dormiu o resto da noite.

Chegou a ir à cama e a fechar os olhos; tinha o corpo moído e necessidade de sono; mas a imaginação velava, e a madrugada veio achá-lo acordado e aflito.

No dia seguinte foi visitar Isabel; achou-a triste; falou-lhe; mas quando quis dizer-lhe alguma cousa do sucesso, a moça afastou-se dele, talvez porque adivinhasse o que ia ele dizer-lhe, talvez porque já estivesse aborrecida de o ouvir.

Júlio foi a casa de Luísa, achou-a no mesmo estado, as mesmas circunstâncias se deram.

"É claro que descobriram o segredo uma da outra, dizia ele consigo. Não há remédio senão desfazer a má impressão de ambas. Mas como se me não querem ouvir? Ao mesmo tempo desejava explicação do ato atrevido que ontem praticaram, salvo se foi sonho meu, o que é bem possível. Ou então estarei doudo..." Antes de ir adiante, e não será longe porque a história é pequena, convém dizer que este Júlio não tinha paixão real por nenhuma das duas moças. Começou o namoro com Isabel por ocasião de uma ceia de Natal, e travou relações com a família que o recebera muito bem. Isabel correspondeu um pouco ao namoro de Júlio, sem todavia lhe dar grandes esperanças porque então andava também à corda de um oficial do exército que teve de embarcar para o Sul. Só depois que ele embarcou foi que Isabel de todo se voltou para Júlio.

Ora, o nosso Júlio já então lançara as suas baterias contra a outra fortaleza, a formosa Luísa, amiga de Isabel, e que desde princípio aceitou o namoro com ambas as mãos.

Nem por isso rejeitou a corda que lhe dava Isabel; manteve-se entre as duas sem saber qual delas devia preferir. O coração não tinha a este respeito opinião assentada. Júlio não amava, repito; era incapaz de amar... Seu fim era casar com uma moça bonita; ambas o eram, restavalhe saber qual delas lhe convinha mais.

As duas moças, como vimos pelos retratos, eram amigas, mas falavamse de longe em longe, sem que nessas poucas vezes houvessem comunicado os segredos atuais do seu coração. Ocorreria isso agora e seria essa a explicação da cena dos retratos? Júlio pensou efetivamente que elas haviam enfim comunicado o seu namoro com ele; mas custavalhe a crer que tão atrevidas fossem ambas, que saíssem da casa naquela singular noite. À proporção que o tempo se passava, Júlio inclinava-se a crer que o fato não passasse de uma ilusão sua.

Júlio escreveu uma carta a cada uma das duas moças, quase do mesmo teor, pedindo a explicação da frieza que ambas ultimamente lhe mostravam. Cada uma das cartas terminava perguntando "se era tão cruelmente que se devia pagar um amor único e delirante".

Não teve resposta imediatamente como esperava, mas dous dias depois, não do mesmo teor, mas no mesmo sentido.

Ambas lhe diziam que pusesse a mão na consciência.

"Não há dúvida, pensou ele consigo, estou pilhado. Como sairei eu desta situação?" Júlio resolveu atacar verbalmente as duas fortalezas.

— Isto de cartas não é bom recurso para mim, disse ele; encaremos o inimigo; é mais seguro.

Escolheu Isabel em primeiro lugar. Haviam já passado seis ou sete dias depois da cena noturna. Júlio preparou-se mentalmente com todas as armas necessárias ao ataque e à defesa e dirigiu-se para casa de Isabel, que era como sabemos na Rua de S. Pedro.

Foi-lhe difícil achar-se a sós com a moça; porque a moça que das outras vezes era a primeira a buscar ocasião de lhe falar, agora esquivava-se a isso. O rapaz entretanto era teimoso; tanto fez que pôde pilhá-la numa janela, e ali ex abrupto disparou-lhe esta pergunta: — Não me dará a explicação dos seus modos de hoje e da carta com que respondeu à minha última? Isabel calou-se.

Júlio repetiu a pergunta, mas já com um tom que exigia resposta imediata. Isabel fez um gesto de aborrecimento e disse: — Respondo o que lhe disse na carta; ponha a mão na consciência.

— Mas que fiz eu então? Isabel sorriu-se com um ar de lástima.
— O que fez? perguntou ela.
— Sim, o que fiz? — Deveras, ignora? — Quer que lhe jure? — Queria ver isto...
— Isabel, essas palavras!...
— São dum coração ofendido, interrompeu a moça com amargura. O senhor ama a outra.
— Eu?...

Aqui desisto de descrever o gesto de espanto de Júlio; a pena nunca o poderia fazer, nem talvez o pincel. Era o agente mais natural, mais aparentemente espontâneo que ainda se viu neste mundo, a tal ponto que a moça vacilou, e atenuou as suas primeiras palavras com estas: — Pelo menos, parece...

— Mas como? — Vi-o olhar com certo ar para a Luísa, quando outro dia ela aqui esteve...
— Nego.
— Nega? Pois bem; mas negará também que, vendo o retrato dela, no meu álbum, me disse: É tão bonita esta moça! — Pode ser que o dissesse; creio até que o disse... há cousa de oito dias; mas que prova isso? — Não sei se prova muito, mas em todo o caso foi bastante para fazer doer a um coração amante.
— Acredito, observou Júlio; seria porém bastante para o audacioso passo que deu? — Que passo? perguntou Isabel abrindo muito os olhos.

Júlio ia explicar as suas palavras, quando um primo de Isabel se aproximou do grupo e a conversa ficou interrompida.

Não foi porém sem algum resultado o pouco tempo em que falaram, porque, ao despedir-se Júlio no fim da noite, Isabel apertou-lhe a mão com certa força, indício certo de que as pazes estavam feitas.

— Agora a outra, disse ele saindo da casa de Isabel.

CAPÍTULO III

Luísa estava ainda como Isabel, fria e reservada para com ele. Parece, entretanto, que suspirava por lhe falar, foi ela a primeira que procurou uma ocasião de ficar a sós com ele.

— Já estará menos cruel comigo? perguntou Júlio.
— Oh! não.
— Mas que lhe fiz eu? — Pensa então que eu sou cega? perguntou-lhe Luísa com olhos indignados; pensa que eu não vejo as cousas? — Mas que cousas? — O senhor anda de namoro com a Isabel.
— Oh! que idéia! — Original, não é? — Originalíssima! Como descobriu semelhante cousa? Conheço aquela moça há muito tempo, temos intimidade, mas não a namoro nem tal idéia tive, nunca na minha vida.
— É por isso que lhe deita uns olhos tão ternos?...

Júlio levantou os ombros com um ar tão desdenhoso que a moça acreditou logo nele. Não deixou de lhe dizer, como a outra lhe dissera: — Mas para que olhou outro dia com tanta admiração para o retrato dela, dizendo até com um suspiro: Que moça gentil! — É verdade isso, menos o suspiro, respondeu Júlio; mas onde está o mal em achar uma moça bonita, se nenhuma me parece mais bonita que você, e sobretudo nenhuma é capaz de me prender como você? Júlio disse ainda muito mais por este teor velho e gasto, mas de efeito certo; a moça estendeu-lhe a mão dizendo:

— Então era engano meu? — Oh! meu anjo! engano profundo! — Está perdoado... com uma condição.
— Qual? — É que não há de cair em outra.
— Mas se eu não caí nesta! — Jure sempre.
— Pois juro... com uma condição.
— Diga.
— Por que razão não tendo plena certeza de que eu amava a outra (e se a tivesse não me falava mais decerto), por que razão, pergunto eu, foi você naquela noite...
— O chá está na mesa; vamos tomar chá! disse a mãe de Luísa aproximando-se do grupo.

Era forçoso obedecer; e nessa noite não houve mais ocasião de explicar o caso.

Nem por isso Júlio saiu menos contente da casa de Luísa.

"Estão ambas vencidas e convencidas, disse ele consigo; agora é preciso escolher e acabar com isto." Aqui é que estava a dificuldade. Já sabemos que ambas eram igualmente belas, e Júlio não procurava outra condição. Não era fácil escolher entre duas criaturas igualmente dispostas para ele.

Nenhuma delas tinha dinheiro, condição que podia fazer pender a balança posto que Júlio fosse indiferente nesse ponto. Tanto Luísa como Isabel eram filhas de funcionários públicos que apenas lhes deixavam um escasso montepio. Sem uma forte razão que fizesse pender a balança, era difícil a escolha naquela situação.

Alguma leitora dirá que por isso mesmo que eram de igual condição e que ele as não amava de coração, era fácil a escolha. Bastava-lhe fechar os olhos e agarrar a primeira que lhe ficasse à mão.

Erro manifesto.

Júlio podia e era capaz de fazer isso. Mas no mesmo instante que escolhesse Isabel ficava com pena de não ter escolhido Luísa, e viceversa, donde se vê que a situação era para ele intricada.

Mais de uma vez levantou-se ele da cama com a resolução assentada: — Vou pedir a mão da Luísa.

A resolução durava-lhe só até o almoço. Acabado o almoço, ia ver (pela última vez) Isabel e logo afrouxava com pena de a perder.

"Há de ser esta!" pensava ele.

E logo lembrava-se de Luísa e não escolhia nem uma nem outra.

Tal era a situação do nosso Júlio, quando se deu a cena que passo a referir no capítulo seguinte.

CAPÍTULO IV

Três dias depois da conversa de Júlio com Luísa, foi esta passar o dia em casa de Isabel, acompanhada de sua mãe.

A mãe de Luísa era de opinião que a filha era o seu retrato vivo, cousa que ninguém acreditava por mais que ela o repetisse. A mãe de Isabel não ousava ir tão longe mas afirmava que, no tempo de sua mocidade, fora ela muito parecida com Isabel. Esta opinião era recebida com incredulidade pelos rapazes e com resistência pelos velhos. Até o major Soares, que fora o primeiro namorado da mãe de Isabel, insinuava que essa opinião devia ser recebida com extrema reserva.

Oxalá porém fossem as duas moças como suas mães eram, dous corações de pomba, que amavam estremecidamente as filhas, e que eram com justiça dous tipos de austeridade conjugal.

As duas velhas entregaram-se às suas conversas e considerações sobre arranjos de casa ou assuntos de pessoas conhecidas, enquanto as duas moças tratavam de modas, músicas, e um pouco de amores.

— Então o teu tenente não volta do Sul? disse Luísa.
— Eu sei! Parece que não.
— Tens saudades dele? — E terá ele saudades de mim? — Isso é verdade. Todos esses homens são assim, disse Luísa com convicção; muita festa quando se acham presentes, mas ausentes são temíveis... valem tanto como o nome que se escreve na areia: vem a água e lambe tudo.
— Bravo, Luísa! Estás poeta! exclamou Isabel. Já falas em areias do mar! — Pois olha, não namoro nenhum poeta nem homem do mar.
— Quem sabe? — Sei eu.
— É então?...
— Um rapaz que tu conheces! — Já sei, é o Avelar.
— Deus nos acuda! exclamou Luísa. Um homem vesgo.
— O Rocha? — O Rocha anda todo caído pela Josefina.
— Sim? — É uma lástima.
— Nasceram um para o outro.
— Sim, ela é uma moleirona como ele.

As duas moças gastaram assim algum tempo a tasquinhar na pele de pessoas que nós não conhecemos nem precisamos disso, até que voltaram ao assunto capital da conversa.

— Já vejo que não pode adivinhar quem é o meu namorado, disse Luísa.
— Nem você o meu, observou Isabel.
— Bravo! então o tenente...
— O tenente está pagando. É muito natural que as rio-grandenses o tenham encantado. Pois agüente-se...

Enquanto Isabel dizia estas palavras, Luísa ia folheando o álbum de retratos que estava sobre a mesa. Chegando à folha onde sempre vira o seu retrato, a moça estremeceu. Isabel notou-lhe o movimento.

— Que é? disse ela.
— Nada, respondeu Luísa fechando o álbum. Tiraste o meu retrato daqui? — Ah! exclamou Isabel, isso é uma história singular. O retrato foi passar às mãos de terceira pessoa, a qual afirma que fui eu que lho levei alta noite... Ainda não pude descobrir esse mistério... Luísa já ouviu de pé estas palavras. Seus olhos, muito abertos, fitaram-se no rosto da amiga.

— Que é? disse esta.
— Sabes bem o que estás dizendo? — Eu? — Mas isso foi o que me aconteceu também com o teu retrato...

Naturalmente era zombaria comigo e contigo... Essa pessoa...

— Foi o Júlio Simões, o meu namorado...

Aqui devia eu pôr uma linha de pontos para significar o que se não pode pintar, o espanto das duas amigas, as diferentes expressões que tomou a fisionomia de cada uma delas. Não tardaram as explicações; as duas rivais reconheceram que o seu namorado comum era pouco mais ou menos um patife, e que o dever de honra e de coração era tomar dele uma vingança.

— A prova de que ele nos enganava uma à outra, observava Isabel, é que os nossos retratos apareceram lá e foi ele naturalmente quem os tirou.
— Sim, respondeu Luísa, mas é certo que eu sonhei alguma cousa que combina com a cena que ele alega.
— Também eu...
— Sim? Eu sonhei que me haviam falado do namoro dele com você, e que, tirando o retrato do álbum, fora levá-lo à casa dele.
— Não é possível! exclamou Isabel. O meu sonho foi quase assim, ao menos no final. Não me disseram que ele tinha namoro com você; mas eu mesma vi e então fui levar o retrato...

O espanto aqui foi ainda maior que da primeira vez. Nem estavam só espantadas as duas amigas; estavam aterradas. Embalde procuravam explicar a identidade do sonho, e mais que tudo a coincidência dele com a presença dos retratos em casa de Júlio e a narração que este fizera da noturna aventura.

Estavam assim nesta duvidosa e assustadora situação, quando as mães vieram em auxílio delas. As duas moças, estando à janela, ouviram-lhes dizer: — Pois é verdade, minha rica srª Anastácia, estou no mesmo caso da senhora. Creio que a minha filha é sonâmbula, como a sua.

— Tenho uma pena com isto! — E eu então! — Talvez casando-as...
— Sim, pode ser que banhos de igreja...

Informadas assim as duas moças da explicação do caso, ficaram um tanto abaladas; mas a idéia de Júlio e suas travessuras tomou logo o lugar que lhe competia na conversa das duas rivais.

— Que pelintra! exclamavam as duas moças. Que velhaco! que pérfido! O coro de maldições foi ainda mais longe. Mas tudo acaba neste mundo, principalmente um coro de maldições; o jantar interrompeu aquele; as duas moças foram de braço dado para a mesa e afogaram as suas mágoas num prato de sopa.

CAPÍTULO V

Júlio, sabendo da visita, não se atreveu a ir encontrar as duas moças juntas. No pé em que as cousas se achavam era impossível evitar que descobrissem tudo, pensava ele.

No dia seguinte porém foi de tarde à casa de Isabel, que o recebeu com muita alegria e ternura.

"Bom! pensou o namorado, nada contaram uma à outra." — Engana-se, disse Isabel adivinhando pela alegria do rosto dele qual era a reflexão que fazia. Pensa naturalmente que Luísa nada me disse? Disse-me tudo, e eu nada lhe ocultei...

— Mas...
— Não me queixo do senhor, continuou Isabel com indignação; queixome dela que devia ter percebido e percebeu o que entre nós havia, e apesar disso aceitou a sua corte.
— Aceitou, não; posso dizer que fui compelido.
— Sim? — Agora posso falar-lhe com franqueza; a sua amiga Luísa é uma namoradeira desenfreada. Eu sou rapaz; a vaidade, a idéia de passatempo, tudo isso me arrastou, não a namorá-la, porque eu era incapaz de esquecer a minha formosa Isabel; mas a perder algum tempo...
— Ingrato! — Oh! não! nunca, a boa Isabel! Aqui começou uma renovação de protestos da parte do namorado, que declarou amar mais que nunca a filha de D. Anastácia.

Para ele a cousa estava resolvida. Depois da explicação dada e dos termos em que falara da outra, a escolha natural era Isabel.

Sua idéia foi não procurar mais a outra. Não o pôde fazer à vista de um bilhete que no fim de três dias recebeu da moça. Pedia-lhe ela que fosse lá instantemente. Júlio foi. Luísa recebeu-o com um sorriso triste.

Quando puderam falar a sós: — Quero saber da sua boca o meu destino, disse ela. Estarei definitivamente condenada? — Condenada! — Sejamos francos, continuou a moça. Eu e a Isabel falamos no senhor; vim a saber que também a namorava. A sua consciência lhe dirá que praticou um ato indigno. Mas enfim, pode resgatá-lo com um ato de franqueza. A qual de nós escolhe, a mim ou a ela? A pergunta era de atrapalhar o pobre Júlio, nada menos que por duas grandes razões: a primeira era ter de responder em face; a segunda era ter de responder em face de uma moça bonita. Hesitou alguns largos minutos. Luísa insistiu; mas ele não se atrevia a romper o silêncio.

— Bem, disse ela, já sei que me despreza.
— Eu! — Não importa; adeus.

Ia a voltar as costas; Júlio segurou-lhe na mão.

— Oh! não! Pois não vê que este meu silêncio é de comoção e de confusão. Confunde-me realmente que descobrisse uma cousa em que eu pouca culpa tive. Namorei-a por passatempo; não foi Isabel nunca uma rival sua no meu coração. Demais, ela não lhe contou tudo; naturalmente escondeu a parte em que a culpa lhe cabia. E a culpa é também sua...
— Minha? — Sem dúvida. Pois não vê que ela tem interesse em separar-nos?... Se lhe referir, por exemplo, o que se está passando agora entre nós fique certa de que ela há de inventar alguma cousa para de todo separar-nos, contando depois com a sua beleza para cativar o meu coração, como se a beleza de uma Isabel pudesse fazer esquecer a beleza de uma Luísa.

Júlio ficou satisfeito com este pequeno discurso, assaz astuto para enganar a moça. Esta, depois de algum tempo de silêncio, estendeu-lhe a mão: — Jura-me o que está dizendo? — Juro.

— Então será meu? — Unicamente seu.

Assim celebrou Júlio os dous tratados de paz, ficando na mesma situação em que se achava anteriormente. Já sabemos que a sua fatal indecisão era a causa única da crise em que os acontecimentos o puseram. Era forçoso decidir alguma cousa; e a ocasião ofereceu-se-lhe propícia.

Perdeu-a, entretanto; e dado que quisesse casar, e queria, nunca estivera mais longe do casamento.

CAPÍTULO VI

Cerca de seis semanas foram assim correndo sem resultado algum prático.

Um dia, achando-se em conversa com um primo de Isabel, perguntou-lhe se teria gosto em vê-lo na família.

— Muito, respondeu Fernando (era assim o nome do primo).

Júlio não deu explicação da pergunta. Instado respondeu: — Fiz-lhe a pergunta por uma razão que saberá mais tarde.

— Quererá talvez casar com alguma das manas?...
— Não posso dizer nada por ora.
— Olha aqui, Teixeira, disse Fernando, a um terceiro rapaz, primo de Luísa, e que nessa ocasião se achava em casa de D. Anastácia.
— Que é? perguntou Júlio assustado.
— Nada, respondeu Fernando, vou comunicar ao Teixeira a notícia que o senhor me deu.
— Mas eu...
— É nosso amigo, posso ser franco. Teixeira, sabe o que me disse o Júlio? — Que foi? — Disse-me que vai ser meu parente.
— Casando com alguma irmã tua.
— Não sei; mas disse isso. Não te parece motivo de congratulação? — Sem dúvida, concordou Teixeira, é um perfeito cavalheiro.
— São obséquios, interveio Júlio; e se eu alguma vez alcançasse a fortuna de entrar...

Júlio interrompeu-se; lembrou-se que Teixeira podia ir contar tudo à prima Luísa, e fosse inibido de escolher entre ela e Isabel. Os dous quiseram saber o resto; mas Júlio preferiu convidá-los a jogar o solo, e não houve meio de arrancar-lhe palavra.

A situação porém devia acabar.

Era impossível continuar a vacilar entre as duas moças, que ambas lhe queriam muito, e a quem ele queria com perfeita igualdade não sabendo qual delas escolhesse.

"Sejamos homem, disse Júlio consigo. Vejamos: qual delas devo ir pedir? A Isabel. Mas a Luísa é tão bonita! Será a Luísa. Mas é tão formosa a Isabel! Que diabo! Por que razão não há de uma delas ter um olho furado? ou uma perna torta!" E depois de algum tempo: "Vamos, sr. Júlio, dou-lhe três dias para escolher. Não seja tolo. Decida com isto por uma vez." E enfim: "Verdade é que uma delas há de odiar-me. Mas paciência! fui eu mesmo que me meti nesta embrulhada; e o ódio de uma moça não pode doer muito. Avante!" No fim de dous dias ainda ele não tinha escolhido; recebeu porém uma carta de Fernando concebida nestes termos: Meu caro Júlio.

Participo-lhe que brevemente casarei com a prima Isabel; desde já o convido para a festa; se soubesse como estou contente! Venha cá para conversarmos.

Não é preciso dizer que Júlio foi às nuvens. O passo de Isabel simplificava muito a situação dele; todavia, não queria ser assim despedido como um tolo. Exprimiu a sua cólera por meio de alguns murros na mesa; Isabel, por isso mesmo que já não a podia possuir, parecia-lhe agora mais bonita que Luísa.

— Luísa! Pois será Luísa! exclamou ele. Essa sempre me pareceu muito mais sincera que a outra. Até chorou, creio eu, no dia da reconciliação.

Saiu nessa mesma tarde para ir visitar Luísa; no dia seguinte iria pedi-la.

Em casa dela foi recebido como sempre. Teixeira foi o primeiro a dar-lhe um abraço.

— Sabe, disse o primo de Luísa apontando para a moça, sabe que vai ser a minha noiva? Não me atrevo a dizer o que se passou na alma de Júlio; basta dizer que jurou não casar, e que morreu há pouco casado e com cinco filhos.

Fontes:
http://www.dominiopublico.gov.br
Imagem = criação de Mel Gama

Ronaldo Correia de Brito (Entre o Jornalismo e a Academia)



Um editor famoso afirmou que se foi o tempo em que uma crítica desfavorável condenava uma obra literária. Insistiu na irrelevância da crítica na promoção e venda de livros, reforçando o papel do editor e dos mecanismos de mídia e mercado. Ao fazer essa declaração, ele reforçou a imunidade do autor best-seller e a mudança de perfil do consumidor de livros. A crítica literária talvez ocupe, nos dias de hoje, um espaço limitado a um pequeno universo de leitores.

No jornalismo, os espaços reservados à literatura foram ocupados pelas resenhas, um tipo de texto que se afasta do ensaio acadêmico. Os leitores preferem informações ligeiras e superficiais. Ou talvez a literatura tenha perdido o prestígio em relação às outras artes. Há excesso de informação e escassez de tempo para ler.

Certa vez perguntaram a João Cabral de Melo Neto quanto os seus livros vendiam. Mesmo se tratando de um grande poeta, o jornalista procurava associar o valor da obra ao poder de venda. João Cabral citou um número irrisório, mas ressaltou um outro valor não mensurável: mesmo sendo pequena a tiragem de seus livros, o conteúdo se multiplicava pela força inerente à poesia, pela capacidade de transformar e transtornar.

Algumas críticas ficaram tão fortemente ligadas aos textos originais, que fazem parte da história desses livros. Posso citar o ensaio de Sartre sobre O Estrangeiro, de Camus; o de Emerson sobre "Folhas de Relva", de Whitman; e os de Edmund Wilson sobre os simbolistas Yeats, Valéry, Eliot, Proust, Joyce, Gertrude Stein, L'Isle-Adam e Rimbaud. Harold Bloom tornou-se um especialista em Shakespeare e seus estudos podem ser incluídos entre as formas de crítica a que Guimarães Rosa se referia, uma reinvenção ou redescoberta do autor.

Os exemplos de crítica que acabo de citar estão mais próximos do modelo acadêmico: análises minuciosas, profundas, para leitores que curtem literatura. Sartre e Emerson também eram escritores e exerceram a crítica numa perspectiva diferente de Edmund Wilson e Harold Bloom. Mas nada parecido com o atual abismo entre o ensaio e a resenha.

O pouco espaço reservado ao jornalismo literário e os novos tipos de leitores transformaram a crítica em divulgação e apreciação ligeira. Ela mais pontua que analisa. O jornalista inventa maneiras de chamar a atenção do leitor, através de resumos de obras e sugestões de leituras.

Chegamos a uma questão prosaica: continuam existindo várias formas de crítica literária, em função do público a quem se destina. Talvez o editor tenha razão ao afirmar que uma crítica não desbanca um autor da moda, por mais desfavorável que seja. A crítica sofre os embates do mercado, e tenta situar-se livre dos números e das listas de mais vendidos. Mesmo com baixo poder de fogo, mesmo dispondo de espaços menores e desprestigiados, a crítica continua ajudando não apenas a provocar e criar leitores, mas também a fazer escritores.

Fontes:
Colaboração de Digestivo Cultural. (http://www.digestivocultural.com)
– Imagem = http://overdriver.wordpress.com

Abertas inscrições para editais de literatura


Serão investidos R$ 915 mil em projetos de incentivo ao livro e a literatura. Inscrições vão até 19 de fevereiro na sede da Fundação Pedro Calmon.

A partir de segunda-feira, dia 21 de dezembro, a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, através da Fundação Pedro Calmon, estará com inscrições abertas para quatro editais de estímulo à cadeia produtiva do livro, através do apoio à editoras, escritores e à promoção da leitura. A iniciativa, realizada pela primeira vez em 2008, este ano traz ainda mais investimentos em cada categoria. Os quatro editais a serem lançados são: Edital de Apoio à edição de livros de autores baianos; Apoio à coleção editorial; Apoio à criação literária e Edital de incentivo à leitura. As inscrições vão até o dia 19 de fevereiro, na sede da FPC ou via Correio.

Desde 2008, a Secult, através da FPC, vem estimulando a dinamização da cadeia produtiva do livro através de editais, que segundo o diretor geral da Fundação Ubiratan Castro de Araújo, “é um instrumento transparente e democrático para fomentar a cultura, sem privilégios a pessoas ou grupos”. Os editais são lançados através do Fundo de Cultura da Bahia.

As inscrições deverão ser realizadas até 19 de fevereiro de 2010, na Fundação Pedro Calmon-FPC, localizada na Avenida Sete de Setembro, nº 282, Ed. Brasilgás, 7º andar, sala 709 - Centro, de segunda a sexta-feira, das 9h às 12h e das 14h às 17h, ou enviadas para Caixa Postal nº 2505, CEP 40060-001, Salvador/Bahia.

Editais –

Apoio a Edição de Livros de Literatura de Autores Baianos selecionará 15 (quinze) projetos inéditos nas categorias Poesia, Romance, Contos e Literatura Infanto-Juvenil. Também foi acrescentada a categoria, de memórias e ensaios, contemplando gêneros que até então não tinham apoio. O valor do apoio foi ajustado para R$25 mil, assim como o número mínimo da tiragem para 1500.

O Apoio a Coleção Editorial para edição de coleção de livros objetiva incentivar o mercado editorial e a criação literária na Bahia. O edital contemplará três editoras no valor de até R$ 70 mil (setenta mil reais) cada.

O Edital de Criação Literária selecionará oito projetos de apoio a autores baianos para criação literária nas categorias correspondentes aos gêneros lírico (poesia) e narrativo (romance, conto, crônica e novela), no valor de até R$18.750,00 (dezoito mil e setecentos e cinqüenta reais) cada.

O Edital de Incentivo à Leitura selecionará 10 (dez) projetos de estímulo ao hábito da leitura no valor de até R$18 mil (dezoito mil reais) cada, totalizando R$ 180 mil (cento e oitenta mil reais).

Fontes:
Colaboração de Douglas Lara.
http://ibahia.globo.com/plantao/noticia/default.asp?id_noticia=220466&id_secao=31
http://www.cultura.ba.gov.br/noticias/plugcultura/secretaria-de-cultura-lanca-novos-editais-de-literatura

Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte XXVII – final


IX. — Riquet à la Houppe
Ritual nupcial, Riquet mostra o poder mágico do amor sobre o ente amado.

1. — As variantes

Saintyves analisa esses contos nos quais o amor transforma a cônjuge. A mutação animal pode ser completa e constante (Le crapaud ) (O sapo) ou episódica (Le loup gris, L’homme Crapaud) (O lobo cinzento, O homem-sapo). O marido pode deixar sua mulher que não soube guardar um segredo (Le roi de Pietraverde). O homem, transformado em bicho, torna ao seu estado assim que uma mulher se decidir a beijá-lo ou a desposá-lo. (A Bela e a Fera, O Pentameron). As vezes a esposa é o personagem encantado (Perceval, La chaise de crapauds) (Parsifal, A cadeira dos sapos).

2. — Interpretações

A bela — a aurora — desposou o Sol que obscureceu; mas ao tornar-se cintilante ela deve segui-lo do Oriente ao Ocidente até a porta do palácio da noite.

Essa proibição de interrogar o ente amado significa para Saintyves o respeito de tabus nupciais. La veuve et ses filles torna-se ma das variantes de Barba-Azul: a história do casamento infeliz. Essas metamorfoses se referem às práticas de sociedades secretas pagãs ou religiosas: os membros, durante sua iniciação, revestiam peles de animais ou máscaras de animais.

É assim que essas narrativas mágicas de metamorfoses deram origem aos Pururavas, a Psiquê, a Riquet à la Houppa ou aos contos de Mme Leprince de Beaumont (Kusa le prince spirituel) (Cusa, o príncipe espiritual).

X. — O gato de botas

1. — Variantes

Se encontramos um conto semelhante em Pentameron (Gagluso), o conto de Zanzibar Sultant Darai assemelha-se muito ao nosso Gato de Botas. Mas quando a gazela benfeitora adoece, Darai esquece o que lhe deve; somente o povo lhe dedicará funerais públicos.

2. — Interpretações

A raposa da versão mongol é, sem dúvida, esse animal sagrado da Ásia mediterrânica, o gato é um animal feiticeiro (Europa); os gatos pretos acompanham as feiticeiras (Bodin). O gato calçado como os oficiantes persegue ritualmente a raposa e sem dúvida liga-se à liturgia egípcia: é o servidor do Sol.

Esse papel de proteção relaciona-se ao ritual da instauração dos antigos padres-reis das sociedades primitivas. Saintyves observa que o casamento prepara a ascensão ao trono e o futuro esposo troca de nome bem como o futuro rei.

Purificado pelas águas do rio, o herói veste novos trajes, é o cerimonial do coroamento; os súditos encontrados prestam obediência ao novo rei que toma posse do seu palácio: ritual de instauração real. Na maior parte dos contos o homem é ingrato; mas o animal pode demitir o rei que tem obrigações para com o seu povo.

A água é o emblema da ressurreição e da vida eterna. Com as águas maternais adquire-se um corpo novo que é o ritual do batismo. A água, essa fonte de Juvência, permitirá que Hera volte à virgindade depois de cada imersão na fonte de Canatos em Nauphie; eis ai uma reencarnação da qual aproveita o nosso marquês de Carabas.
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BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA

LANGLOIS, Monuments littéraires de l’Inde (Lefêvre, 1827).
FALIGAN, Ernest. Histoire de la légend de Faust (Hachette, 1887).
A. VAN GENNEP, La formation des légendes (Flamamarion, 1910).
MENENDEZ PIDAL, L’épopée Gastillane (Colin, 1910).
GENDARME DE BEVOTTE, La légende de Don Juan (Hachette, 1906 e 1911).
J. LOTH, Romans de la Table Ronde (Paris, 1912).
PARIS, Gaston. Légendes du Moyen Age (Hachette, 1912).
BÉDIER, Joseph. Les légendea épiques (Champion, 1914).
COSQUIN, Emmanuel. Etudes folkloriques (Champion, 1922).
BOISSONNADE, La chanson de Roland (Champion, 1923).
PAUPHILET, Quête du Graal (Champion, 1923).
SAINTYVES, Les contes de Perrault (Nourry, 1923).
A. VAN GENNEP, Le folklore (Stock, 1924).
GUENON, Le roi da Monde (Paris, 1927).
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BIANQUIS, Genevieve. Faust à travers quatre siècles (Droz, 1935).
SAINTYVES, Manuel de folklore (Nourry, 1936).
DONTENVILLE, Henri. La mythologie française (Payot, 1949).
LOEFFLER-DELACHAUX, La symbolisme des légendes (L’Aréhe, 1950).
MARX, Jean. La légende arthurienne (Presses Universitaires de France, 1952).
SAUVAGE, Micheline. Les cas Don Juan (Le Seuil, 1953).

Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores