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sexta-feira, 5 de abril de 2024

Contos e Lendas do Paraná – 21 (Municípios de Clevelândia – Quitandinha)

Município de Clevelândia
A ESCRAVA

Há muitos anos atrás, em uma fazenda de nosso município, um fato curioso aconteceu. Certa amanhã de inverno, dona Maria esquentava-se na boca de seu fogão à lenha, quando sua escrava começou a falar, que quando morresse, não gostaria de ser enterrada no cemitério municipal e sim no cemitério da fazenda. Ali era o lugar que ela gostava. Dizia ela: “aqui eu nasci, aqui vivi e aqui quero ficar; naquela colina de onde poderei ficar enxergando os meus senhores, os quais foram tão bons para mim”. 

Sua patroa ria muito e não ligava para o que ela falava.

Como, naquela época, morriam muitas crianças ainda bebês, do chamado mal dos sete dias, a fazendeira fez um cemitério para as crianças, bem embaixo de um lindo pinheiro. Foi todo cercado com uma linda cerca branca. Muito tempo se passou e a escrava faleceu. Foi velada na fazenda, depois colocada em uma carroça para ser enterrada no cemitério municipal.

Porém, para sair da fazenda era preciso passar bem ao lado do cemitério das crianças e veja só o que aconteceu: quando chegaram bem perto do cemitério da fazenda, a carroça parou e os bois não iam nem para frente nem para trás. Puxavam, batiam nos bois, gritavam e nada adiantava. No mesmo instante, dona Maria lembrou do pedido que a escrava havia feito e determinou que voltassem, pois ela seria enterrada no cemitério das crianças, assim fazendo a vontade da escrava.

Os bois, então, começaram a andar sem que ninguém precisasse comandá-los. Andaram e chegaram até o portão do cemitério ali parando. Enterraram a escrava ali, realizaram seu último pedido, seu desejo de permanecer para sempre perto de seus senhores. Como dizia a escrava: “aqui nasci, aqui vivi e aqui quero ficar”.
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Município de Quitandinha
O CEMITERINHO

Existe na localidade de Reis um cemiterinho semi-abandonado, cuja história registramos. Havia na localidade de Reis um homem de mau caráter de nome Antônio Chato, o qual vivia com uma mãe solteira, com um filhinho de nome Virgílio. Antônio maltratava a amásia, como também o inocente filhinho. A criança apanhava todos os dias. Muitas vezes a mãe da criança fugia de casa pelos maus tratos recebidos. Antônio então batia na criança para que a mãe, atraída pelo choro, viesse em socorro do filho, quando apanhava também. 

Antônio Chato amarrava a criança numa árvore, deixando ali um pote de barro com feijão e farinha para sua alimentação, enquanto o casal passava o dia fora. 

Algo de estranho começou a acontecer quando o menino ficava amarrado em dia de chuva, não se molhava. Uma força divina o protegia. 

Certa vez Antônio Chato fez um colete cravado de espinhos por dentro e também uma touca com espinhos e vestiu o menino, enquanto o deixavam a sós. Desta vez o menino morreu pelos maus tratos recebidos.

Os pais sepultaram o menino no mato e deram como desaparecido. Passado algum tempo, o caso foi denunciado à polícia da Lapa, a qual obrigou Antônio Chato a dar conta do menino. Levados ao local e desenterrada a criança, nova surpresa: seu corpinho estava intacto, tal qual havia sido enterrado.

Uma piedosa senhora de nome Francisca Xavier de Oliveira, tendo obtido uma graça por pedido que fez ao menino, mandou cercar o local da sepultura e confeccionar a imagem de um anjo com o nome de Anjinho Virgílio, e a colocou em cima da sepultura.

Anjinho passou a ser objeto de devoção para o povo do lugar.

João Mendes (curador) mandou construir o cemitério que passou a servir para enterro de outras crianças mortas nas redondezas e uma capelinha para o Anjinho Virgílio. Hoje a capelinha foi demolida e a imagem do anjinho transladada para a residência de Jeremias Mendes, o qual mandou reformar e pintar a imagem, juntamente com a coroa de espinhos.

Fonte> Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Contos e Lendas do Paraná – 20 (Palmeira – Pontal do Paraná – Palmas)

PALMEIRA

A lenda da araucária

Era uma vez duas tribos de índios inimigos. Um certo dia o caçador da tribo foi caçar e encontrou uma onça; ali também estava a curandeira da tribo inimiga, pela qual havia se apaixonado. O índio matou a onça e se aproximou da índia, que se assustou e acabou desmaiando.

Os índios da tribo inimiga encontraram os dois ali, o índio à beira do rio com a índia nos braços, pensaram mal do que viram e o mataram a flechadas. Ele morreu cheio de flechas pelo corpo.

Diz a lenda que ele se transformou numa araucária e a índia numa gralha azul e as gotas de sangue que pingaram eram os pinhões que a gralha azul enterra. As flechas eram os espinhos e o índio, a árvore.
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PONTAL DO PARANÁ

Figueira do corpo seco 

Caro leitor preste atenção 
Na história que vou contar 
Este fato ocorreu no litoral 
Do Estado do Paraná

Há muitos anos passados
Na época da escravidão
Os negros trabalhavam duro
Em troca de um pedaço de pão

Na localidade ribeirinha
Chamada de Guaraguaçu
Havia um patrão temido
Por todos os negros do sul

Os negros não tinham direitos
O patrão era um carrasco cruel
Mandava escravo para o tronco
Depois deixava ao léu

Um dia um escravo fujão
Ao ser capturado pelo capataz
Foi colocado no tronco
Sendo espancado até demais

O local da execução
Foi num mato fechado
Ficando o corpo do escravo
Naquela árvore amarrado

O negro não resistiu
A tamanha agressão
Vindo o pobre a falecer
Sem receber extrema unção

A figueira com os anos
Foi sua casca fechando
Ficando o corpo do negro
Ao tronco preso secando

Hoje quem visitar o Guaraguaçu
Deve aproveitar para conhecer
A figueira do corpo seco
Que lá está para quem quiser ver.
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PALMAS

História manchada de sangue

Existiam em Palmas três grandes aldeias indígenas. Uma do Cacique Viri, outra do Cacique Condá e uma terceira do Cacique Vaiton. Cacique Viri, possuído pelas influências dos bandeirantes, que pensavam em tomar essas terras, começou assim a transferir poderes aos bandeirantes, agora fazendeiros.

O cacique, encantado com viagens ganhas para Curitiba e Caçador junto com os fazendeiros, começou a ceder as terras. O cacique Condá, porém, orientava o cacique Viri a não fazer essas trocas, até que foi corrompido para levar toda sua tribo a Chapecó, deixando livres as terras que habitavam.

Enquanto isso, o cacique Vaiton preparava um ataque à tribo do cacique Viri. Este protegeu-se com os fazendeiros, que com armas de fogo e armas brancas esperaram numa tocaia toda a tribo do cacique Vaiton. O local do ataque foi o atual Parque da Gruta. 

Numa vala, cheia de pedras e água, morreram todos os indígenas da tribo do cacique Vaiton. Hoje em dia, ainda se ouvem gritos desses indígenas no parque.

Fonte> Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Contos e Lendas do Paraná - 19 (Esperança Nova – Paranaguá)


ESPERANÇA NOVA
Quebradeira

O caso ganhou destaque na imprensa da região de Umuarama, quando no ano de 1994, na estrada Jequitibá, distrito das Três Vendas, município de Esperança Nova, uma casa assombrada causava medo, risos e incredulidade nas pessoas. 

No sítio do senhor Derso moravam o seu Neno, a esposa e três filhos; sendo uma menina e dois adolescentes. Na condição de empreiteiros, a família do seu Neno, por mais que trabalhasse, era considerada muito pobre pelos vizinhos sitiantes. Porém, ninguém desabonava a conduta honesta daquela gente simples e humilde. Uma doença nos olhos obrigou seu Neno a retirar um olho, colocando no lugar uma espécie de burca, deixando a família ainda mais necessitada de recursos financeiros.

Certa feita, determinados fenômenos passaram a acontecer na casa daquela família: xícaras, pratos e copos amanheciam quebrados. Garfos entortados podiam ser vistos pela casa. Tochas de fogo acendiam sozinhas e o telhado da casa se encheu de buracos. Seu Neno comunicou o assombro para o patrão, que veio ligeiro de Curitiba para constatar o fato. 

Tamanho foi seu susto, quando um dia dormia tranquilo e, no  meio da noite, às escuras, sentiu a cama suspensa. Aí sim a notícia chegou aos jornais e emissoras da região, culminando nas visitas e orações de crentes, curiosos, padres, pastores e espíritas. 

A filha do Zé Turilho dizia, por exemplo, que o seu rosário havia quebrado em diversos pedaços só por ter se aproximado da casa. O Zé Carlos ofereceu lar aos meninos. O povo dizia que a assombração destruiria com tudo. 

O padre de Pérola achou por bem transferir a família para uma casinha no pátio da Igreja das Três Vendas. A vizinhança ajudava com donativos. A comunidade se comprometeu a ajudar com dinheiro aqueles assustados moradores. Mas, seu Quintino e outros poucos vizinhos não acreditavam naquilo; chamaram a polícia, que visitou o local, conversou com os membros da família e se foi. 

Entretanto, investigadores deixaram na casa uma câmera para filmar o “fenômeno”. Tamanha foi a surpresa, quando a polícia viu as imagens dos sorrateiros moleques, jogando tijolos no telhado, quebrando e danificando os móveis e objetos domésticos. 

Conduzidos à delegacia, confessaram tratar-se de um plano que visava arrecadar dinheiro para reverter o estado de pobreza em que se encontravam. Liberados após os depoimentos e sermões, a família retornou à tal casa assombrada, onde vive até hoje, sem maiores alaridos ou quebradeiras.
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PARANAGUÁ
A lenda do brejo que canta

Cheguei a conhecer, já octogenário, o João Bomsinho, que tinha um sítio lá para as bandas do Porto dos Padres, assim chamado o lugar onde tiveram os Jesuítas uma fazenda de criação, na foz do Imboguassu. Neste sítio o velho cultivava algodão e foi ele quem me contou a história do
“Brejo que Canta”:

A meio caminho da cidade, na embocadura do Imboguassu, há um terreno vasto e alagadiço, onde o lírio do brejo cresce viçoso. Com as chuvas o lugar se transforma num lago e com bom tempo prolongado continua a ser temível atoleiro, do qual o gado por instinto se afasta, receoso de desaparecer no sumidouro.

E assim falava, na sua pitoresca linguagem, o João Bomsinho:

– O brejo canta, sim Sinhô, mas só uma vez no ano, à meia-noite, justa de quinta pra Sexta-feira santa e nessa hora quem por ali passa, ouve muito bem o batido dum fandango, ao som de duas violas e da cantiga dos violeiros. Deus permite que saiam as suas almas do purgatório na noite da paixão pra correrem o fado, em castigo da ofensa ao “Sinhô Morto”.

– Almas de quem? perguntei.

– “Dos violeiros e dos dançadores, os excomungados que cantavam e fandangueavam na noite em que nosso Sinhô morreu. Escuite mecê; no lugar do brejo era um terreno enxuto, bom, de terra branca e firme e nele morava em casa de pedra e cal um tal de Roberto Inglês, ruivo e herege como o diabo, não gostava de Deus nem dos santos. Decerto esse mardito era criminoso e até diziam que fora pirata.

“O meu avô que o conheceu de vista, sempre que o encontrava fazia o sinal da cruz e com ele nunca quis parceria, receoso do castigo do céu. Ora, numa quinta-feira maior estava a vila entregue aos ofícios da semana santa, enlutados os moradores e até o capitão-mor dera ordem à milícia que fizesse a guarda, com a boca dos arcabuzes voltada para o chão e não permitissem cantorias nem folguedos até a hora da aleluia, sob pena de cadeia. Quando o danado, em conluio com o “coisa ruim”, resolveu uma folgança pra essa noite.

“Andava por aqui nesse tempo o coronel Afonso Botelho, que assistiu à missa devotadamente com um laço de crepe no copo da espada, e a Câmara, com o estandarte do rei, de luto, que o vereador mais moço conduzia, foi incorporada à matriz para fazer guarda ao Sinhô Morto.

“Tudo era respeito ao dia. Mas no caminho do Porto dos Padres, o inglês, zombando das coisas santas, procurou e achou uns infelizes que aceitaram o convite. À meia-noite estrondeava o fandango, longe da vila e por isso despercebido da autoridade. A cachaça corria aos copázios. Maneco Eduvirges e Domingos Pedrão, violeiros e já embriagados, cantavam quadrinhas blasfemas, desafiando a majestade divina, com aprovação do diabo ruivo. Quando cantavam esta:

Si Deus morreu porque quis
Não é caso pra chorá
Bate firme, minha gente
Bate forte, até suá

“Nesse instante, a casa moveu-se e todos sentiram que afundava, mas antes do alarme ainda se ouviu o Pedro e o Eduvirges cantarem mais esta barbaridade:

Si morreu pra nos salvá
O fio do padre eterno,
Ele que vá buscá nois
Lá nas profunda do Inferno!

“O movimento acentuou-se e o pânico se manifestou naquelas almas entenebrecidas pelo vício e pela impiedade, despertada nelas a compreensão do desastre e morte inevitável. O primeiro impulso foi de fuga, mas quando tentaram evadir-se já as portas e janelas estavam entaipadas pelo lodo mole que invadia o interior. 

“Apagaram-se as luzes. Nas trevas e começando a respirar dificultosamente, aqueles desgraçados se debatiam. Não havia salvação possível! O fim pela asfixia era fatal. Não tardou a agonia. O terreiro, há pouco ainda sólido, com laranjeiras e cajueiros, dum pra outro instante virou lodaçal e tudo se afundou.

“Consumada a tragédia, a habitação desapareceu no abismo e com ela quantos estavam no fandango sacrílego e fatal. No dia seguinte os sitiantes vizinhos, que iam para a vila assistir à missa da sexta-feira santa, viram com espanto um brejo no local onde de véspera se erguia a moradia do inglês e isto sem que tivesse chovido. E brejo ficou o lugar maldito. Na noite de quinta-feira santa do ano seguinte, alguém por ali passando, noite alta, ouviu claramente o batido dum fandango, ao toque das violas e o cantar dos violeiros. Correu espavorido a contar na vila o prodígio que a tradição trouxe, do Brejo que Canta. De geração em geração, até o presente, vem enchendo de terror a gente supersticiosa que a tudo se arriscará neste mundo, menos transitar pela estrada que margeia o trágico alagadiço, na noite da paixão de Jesus.”

Fonte> Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. 
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

sábado, 9 de dezembro de 2023

Contos do Paraná (Em Cascavel tem cascavel)


(por Moysés Paziornik)

Há dias nesta coluna, um leão do Lions, sem ferocidade, cascavelense, sem veneno, explicou por que Cascavel continua a chamar-se Cascavel, apesar de não ter mais cascavéis.

A primeira vez que lá fomos furou o pneu do nosso avião. Era um Douglas, da Real. Vinha de Foz Iguaçu. Um dos passageiros desceria em Cascavel. Daí a parada extraordinária.

No campo de pouso, campo mesmo, que todo coberto de capim original, nem bem o aviãozinho encosta, a asa direita baixa, o bicho trepida, rabeia. Na freada brusca, parece que vai tombar.

No susto:

- Que foi? Que foi?!

O jeito risonho do calmo e gorducho do piloto vem nos desassustar.

- Não foi nada de grave.

Desce, volta para mostrar.

- Furou o pneu da direita. Acertei bem nos cravos desta ferradura. Algum cavalo a perdeu bem onde decidi pousar. Na cidade deve ter borracheiro. Enquanto conserto o pneu — calculo meia hora, uma hora — podem descer, passear por aí.

Do alto a gente vira na extensão imensa da impressionante floresta falha e mais falhas, chão coalhado de troncos de árvores recém derrubadas. De cortar o coração. De longe em longe, casebres isolados. Depois de algum tempo o avião começara a baixar em direção a duas fileiras de casas, ladeando rua de barro. Uns duzentos metros, se tanto. O vermelho vivo das telhas mostradas a pouquíssima idade da "cidade".

A rua começava quase que diretamente do campo de aviação, situado num plano mais elevado. Passeando, deu para constar, casas baixas, de madeira... Carroças. Cavalos. Jipes. Tudo. Caminhões, muitos. Carros, poucos. Enlameados. Tudo enlameado. Homens de botas, sapatões. Mulheres, uma ou outra. Armazém. Botequins, um maiorzinho.

Entramos. Provocamos o balconista.

- Tem cascavel em Cascavel?

- Só nos matos. Aqui na cidade tinha, agora não tem mais.

- Então me sirva um refrigerante.

- O quê?

- Um refrigerante, gasosa.

- Ah, sim! Gasosa. Temos. Da qual quer?

- De framboesa, (coca-cola ele não conhecia, lá ainda não tinha chegado). E bem gelada.

- Gelada? Só fresca, frescor do porão. Serve? (lá, eletricidade ainda não tinha chegado).

- Serve. Neste calorão. A sede está de matar. Quanto custa?

- Cinco mil réis.

- O quê? Está louco? Em Curitiba sai um mil réis cada garrafa.

- Em Curitiba? Aqui é Cascavel. Por mil réis, vá matar sua sede lá em Curitiba. Ora veja só. Passe bem. Boa Viagem.

- Não, não, me dê assim mesmo.
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E ainda diziam:

Cascavel em Cascavel? Não, só nos matos, na cidade não tem mais.

Não, hein? Mas, que a gasosa estava boa estava. Naquele calorão, com aquela sede, valia bem os cinco mil réis. Ou era cruzado? Ou era cruzeiro? Ou era... Que dinheiro será que era?

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

domingo, 19 de novembro de 2023

Contos do Paraná (“Meu menino”, por Pedro Ramblas Filho)

O ônibus, como sempre naquele horário, comecinho da noite, estava abarrotado de gente. Operários, comerciárias, um que é um sujeito de terno desalinhado e pasta 007, estudantes… todos mudos, cansaço estampado nos rostos. De repente, uma ordem gritada lá na frente por alguém ao lado do motorista acordou os sonolentos e sobressaltou os acordados.

- Encosta que é um assalto! E fica todo mundo quieto, quero ver todo mundo manso!

O cano do revólver, a dois palmos da cabeça do motorista, tremia um pouco. No meio do ônibus, uma senhora ensaiou gritar. Foi calada por novas ordens nervosas:

- Quieta aí!

- Todo mundo calado!

O do revólver tinha dois comparsas, um na porta da frente e outro perto da porta do meio. O motorista encostou devagar no meio da quadra, na frente de dois terrenos baldios, perguntou ao do revólver se lá estava bom. O assaltante respondeu que sim e, sem desviar o revólver da cabeça do motorista, explicou como ia ser; com calma, um por vez em cada porta, os passageiros iam deixar o ônibus; na saída iam deixar bolsas, carteiras, anéis e relógios com "os companheiro"; que não se preocupassem, os documentos todos iam ficar no ônibus; que ninguém chamasse a polícia logo, senão o motorista "dançava"; que ninguém reagisse dentro do ônibus, senão também "dançava". 

O cobrador, nessas alturas já tinha sido limpado.

Devagar, como ordenado, os passageiros começaram a descer, deixando antes com os assaltantes tudo que fora pedido, mais as bijuterias, por via das dúvidas. Uma senhora gorda que chorava baixinho, desesperada que a aliança não saía do dedo, foi empurrada por um dos assaltantes:

- Vamos logo, dona, pode ficar com a aliança.

Por pouco, a gorda não se esborracha no chão.

Já tinha saído quase metade dos passageiros quando o do revólver encarou uma senhora de seus trinta e poucos anos, na fila para deixar a bolsa na porta da frente. Não foi bem uma encarada, mais um olhar de curiosidade. O assaltante insistiu alguns segundos sem tirar os olhos, a senhora era só medo.

O assaltante continuou, mas seu rosto foi se descontraindo, ensaiou um sorriso, os olhos brilharam, e então exclamou;

- Tia Carmen!!

A jovem senhora, apavorada, não conseguiu pronunciar palavra. O assaltante repetiu a exclamação:

- Tia Carmen!! Não lembra de mim? O Luiz, Luizinho, seu aluno lá da Graciliano, lembra?

A senhora olhou com curiosidade o assaltante, aos poucos seu rosto se descontraindo, tomando cor, os olhos ganhando brilho.

- Luizinho! É você mesmo, Luizinho! Mas como você cresceu, meu menino.

Nessas alturas, parara toda movimentação dentro do ônibus, passageiros e demais assaltantes, ainda sem entender bem a situação, pareciam avaliar o crescimento do 'Luizinho". Ele tinha coisa de 1,80 metro de altura, ombros largos, cabelos pretos, aparentava entre vinte e vinte e cinco anos. Pela primeira vez baixou o revólver, passou-o para a mão esquerda, a direita estendeu num respeitoso cumprimento.

A professora perguntou de sua vida, fingiu espanto, ao sabê-lo casado e já com dois filhos. Voltou-se então para os demais passageiros, agora já sorrindo, e fez a apresentação, com orgulho:

- O Luizinho. Meu menino mais inteligente e bonito, minha primeira turma de alfabetização, primeiro ano de professora, na Escola Graciliano Ramos, lá na Fazendinha... já passou tanto tempo, né meu menino?...

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Contos do Paraná (“A teoria do iceberg”, por Roberto Muggiati)

Meu protetor de tela é um iceberg, passo o dia diante dele. Nenhuma paixão especial por icebergs. Os tons azul-cobalto da foto lembram o céu de Curitiba ao entardecer. Essa imagem do iceberg veio pela internet: uma namorada queria que eu não esquecesse a cor do céu que nos protegia. A namorada passou, a imagem continuou na tela em homenagem à Teoria do Iceberg, do velho Hemingway: “Se escrever apenas a verdade, um escritor pode omitir muitas coisas. O leitor sentirá essas coisas que foram ocultadas com tanta força como se o escritor as houvesse explicitado. A dignidade de um iceberg existe porque apenas um oitavo dele está acima da água.” O autor da imagem do iceberg também tinha sua teoria. Fez uma montagem de várias fotos para ilustrar o conceito de que “nem tudo o que se vê é necessariamente real.

O céu de Curitiba me leva a outro episódio — a outro céu noturno, e outra namorada, de um tempo bem mais distante. Éramos crianças, parentes remotos, estranhos um ao outro, e de repente nos descobrimos. Numa festa de família, na janela do vigésimo andar de um dos primeiros arranha-céus da cidade, espetado solitário na paisagem. Loucos para viver e falar, nos enlaçamos, ávidos por conhecer um ao outro. (O que conversam os amantes? Eles nunca sabem, eles nunca lembram.) E então, no descampado do aeroporto, vimos  as luzes de um avião que piscavam, cortando o horizonte como notas numa pauta musical. O avião, de destino insondável, tateava com suas lanternas vermelhas o grande mistério do futuro. Comungamos em silêncio a mesma emoção. A esperança de partir para o mundo, quem sabe juntos? Foi nossa epifania — perdoem o clichê. Um biólogo definiria todo aquele cataclismo entre nós como uma mera erupção de feromônios e testosterona. Não importa, a atração era real, como nunca havíamos sentido antes.

Meia-noite com ela e as estrelas — e então a noite acabou. A nossa história seria uma crônica de amantes malsinados, atravessando décadas. Uma estória entrecortada, desencontrada, que me arrastaria por tristes oceanos de lágrimas... Desculpem esse crime de lesa-TI. Sim, a Teoria do Iceberg merece uma sigla, pertence à ciência, é um teorema, a equação que fornece le mot juste (a palavra certa). A emoção tem de estar sempre ali, mas é a maior inimiga do bom texto.

Passamos um ano e meio longe um do outro. Fui morar em Paris, quando voltei ela estava casada. Mal casada, já quase descasada. Numa escapada furtiva à Livraria Ghignone, marcamos um encontro em Guaratuba. Cheguei lá, ela não. Sumiu, desapareceu do meu mapa. Para sempre? Aprendi que nada é para sempre. Em 1968 — o mundo em chamas — eu casado, em São Paulo, dou de cara com ela na Rua Augusta, numa manhã de inverno solar e vento cortante.

— Que coisa incrível! Você por aqui?

— Trabalho na Veja. E você, como vai sua vida?

— Não vai acreditar! Sou aviadora, com brevê e tudo! Vou buscar jatinhos nos Estados Unidos. Outra noite, em Nova York, ouvindo o Gato Barbieri, pensei muito em você...

(Ela conhecia minha paixão pelo jazz. Uma vez, nos tempos inocentes de Curitiba — ela de camisola eu de porre — eu fiz serenata para ela com o saxofone tenor.)

No vento frio da Augusta, minha mulher, ciumenta, cortou o clima. Nem pudemos trocar telefones. E fiquei outros vinte anos sem saber de — não, não vou dizer seu nome... Afinal, isso não se faz num conte à clef (conto de fadas). 

Aos poucos senti toda a extensão de sua doce vingança. Eu não soube defender aquela absurda epifania adolescente, que era tudo para nós. Ela, sim, foi à luta, aprendeu a pilotar, sequestrou o nosso avião e levantou voo com suas luzes vermelhas sumindo na cerração da velha noite curitibana. Eu a via cortando a imensidão dos espaços infinitos. Pensando em mim, quem sabe?

Um amigo me ensinou um dia: não se esforce muito para lembrar as coisas boas, elas podem se desgastar e se perder. Mas, naquele meu triste fim de casamento, eu não pensava em outra coisa — na minha doce e cômica Valentina. Como doía a sua ausência nas noites suicidas do inverno paulistano.

O coração é um músculo flexível. O casamento acabou, outro casamento começou, dois filhos, até cachorros. O matrimônio que nunca sonhei ter. Eterno enquanto durou. Uma noite, livre de novo, num shopping de Curitiba, lançando um livro, ela entra de novo na minha vida, na fila de autógrafos.

— Ainda se lembra de mim?

Desta vez trocamos telefones. Não pilotava mais, estava também livre, totalmente. Marcamos um encontro no Rio. Fui esperá-la no aeroporto do Galeão. Subimos a Serra para o meu chalé em Itaipava. Jantamos no velho Farfarello, era dia 29, pedimos Gnocchi della Fortuna, al cricco e al pesto, com direito a uma nota de un dollaro debaixo de cada prato. Loucos para viver e falar, bebemos duas garrafas de vinho. Em uma hora traçamos os planos de uma vida inteira. Não lembro como dirigi o carro até o chalé. Antes de desmaiarmos na cama, ela ainda perguntou:

— Agora vamos ser felizes?

Acordou-me no meio da madrugada. Queria porque queria descer a Serra ali na hora, fazer logo nossa mudança definitiva para Itaipava. Bêbado e cansado, não resisti. Foi nossa perdição. No meio da descida, despenquei pelo despenhadeiro. Dormi na direção e acordei no fundo do socavão, preso às ferragens. Sobrevivi, com pequenos arranhões. Ela pagou a fatura. Foi jogada para fora do carro e quebrou a coluna em vários pontos. Na queda, tive a impressão de ouvi-la gritar: “Estou voando!”

O acidente aconteceu logo depois do viaduto sobre o rio Rolador. Lembrei da Serra do Rola-Moça do Mário de Andrade, que descreve um casal em fuga. “Como eles riam! E os risos também casavam com as risadas dos cascalhos.” Subitamente, “dão noiva e cavalo um salto, precipitados no abismo.” Poesia numa hora dessas?

Por minha culpa, ela iria passar o resto da vida presa a uma cadeira de rodas. Não fomos finalmente felizes. Eu conseguia suportar a dor até o escurecer, depois a coisa ficava terrível por volta da meia-noite, e às três da manhã era o grande mergulho na noite escura da alma. Pensei em suicídio: lasanha com chumbinho, como aquela atriz da TV. Ou caipivodca de lichia com carrapaticida (uma variante mais sofisticada do antigo Guaraná com formicida.) Ou um salto espetacular de um vigésimo andar: no bilhete de suicida, inverteria a frase de Eliot: “This is the way the world ends — not with a whimper, but a bang...(É assim que o mundo acaba – não com um gemido, mas com um estrondo...) Mas todas as coisas devem passar e o mundo continua.

Você recupera a maior parte de sua vida, como bens salvados de um incêndio. Eu iria continuar por mais tempo, muito tempo talvez — até a hora de cinzelarem na minha lápide o epitáfio, a definição de vida que tomei emprestada de Cole Porter: “It was great fun, but it was just one of those things.”

Ainda fui vê-la uma última vez. Era como falar com uma estátua. Seu olhar parado não dizia nada. Saí para o dia ofuscante, os olhos cegados por uma cortina de lágrimas e sal. O sol, sem alternativa, brilhava sobre o nada novo. E a história acaba aqui. O mundo mata indistintamente os belos, os bons e os bravos. Ela morreu, você vai morrer e eu vou morrer. É tudo o que posso prometer.
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Roberto Muggiati (Curitiba, 1938) começou a carreira na redação da Gazeta do Povo — completou 60 anos de carreira em março de 2014. Estudou no Centre de Formation des Journalistes, em Paris, trabalhou na BBC de Londres, colaborou no SDJB e na revista Senhor, além de editor de Manchete, Veja e Fatos e Fotos. Há 45 anos escreve sobre música e política — e a relação entre as duas: de Mao e a China (1968) a Improvisando soluções (2008), passando por Rock/O grito e o mito (1973) e pelo romance A contorcionista mongol (2000) — e mais a caminho.

Fonte:
Luiz Rufatto (org.). Antologia de contos paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

domingo, 22 de outubro de 2023

Contos do Paraná ("´Seu` Andrézinho", por Thiago Brandão Neto)


A pedido de um amigo que estava com um pé no altar, o genial D. Francisco Manuel de Mello, escritor português do século XVII, escreveu a saborosa "Carta de Guia de Casados", contendo ensinamentos ainda hoje bastante úteis para casados, noivos, viúvos e quetais.

Um exemplo: Dom Francisco chama de "casamento da morte" a união de uma moça com um velho. E explica: "os velhos casados com moças apressam a morte, ora pelas desconfianças, ora pelas demasias".

Pois não era outra coisa o que se dizia do "seu" Andrézinho às vésperas do casamento com Maria, lá em Várzea, lugarejo perdido no interior do Município de Bocaiúva do Sul, a meio caminho de Campinhos e da antiga Colônia Marques de Abrantes. Moça bonita, de cabelo preto e pele rosada, Maria sequer completara 18 anos. Já o "seu" Andrézinho... remanescente dos primeiros poloneses assentados na Colônia, viúvo, estava a caminho dos 83 anos. Homem miúdo de corpo, até que estava razoavelmente conservado para a idade, mas 83 anos são 83 anos. Já ia para uns 30 anos que enviuvara, mas o homem só embestou de casar de novo fazia alguns meses, logo depois da morte do filho único, solteirão. 

"Preciso alguém para me cuidar na velhice", dizia. Daí... Por que com uma moça tão jovem, em vez de alguma das viúvas das redondezas, era a pergunta que ninguém ousou perguntar e ele jamais precisou responder. Mas não tinha casa na comunidade em que não se cochichasse a mesma coisa: "esse não tá casando, tá, sim, é comprando uma petíça nova".

Sucede que "seu" Andrézinho tinha uma chácara de oito alqueires bem montadinha, carroção, parelha de mula, três cavalos, algumas vacas, criação de porco e galinha, plantava dois quartos de milho, um de feijão...

Naquelas bandas, até que era um bom patrimônio. Já a moça Maria, de riqueza só tinha a família: pai, mãe e uma penca de irmãos. Quando "seu" Andrézinho fez o pedido, a mãe da Maria chorou pelos cantos uns três dias; já o pai, esse - como se diz hoje em dia: deu o maior apoio. Parece que até a Maria se encantou com a ideia do casamento.

De cara, ganhou enxoval e sapato de sola de couro - coisa que ela nunca calçaria na vida. E de mais a mais, o velho não haveria de durar por muito tempo... Só o padre Antonio, que visitava o patrimônio duas ou três vezes por ano, se recusava a realizar o casamento. - "Isso é absurdo, é pecado!!" - vociferou quando foi procurado pelo Andrézinho. 

Acabou convencido pelo próprio noivo: - "Se o senhor não casar, a gente se ajunta do mesmo jeito, o que é pecado maior".

A igrejinha de madeira de Ouro Fino nunca vira tanta gente como no dia do casamento. Parecia que estava todo mundo ali para tirar a teima, ou para o churrasco de gordo que viria depois. "Seu” Andrézinho fez questão de esperar a noiva no altar - coisa que não se usava por aquelas bandas — e instruiu Maria para entrar na igreja andando devagarinho, mesmo que música não tivesse. Quando Maria assomou na porta da Igreja, o rosto do velho polonês ficou mais vermelho que de costume. Então ele se curvou pouco para a frente, levou as mãos no peito, curvou mais ainda e, se esborrachou no chão.

"Seu" Andrézinho estava morto! Ataque cardíaco fulminante. Nem desconfiança nem demasia. O pobre homem morreu de ansiedade, sequer pôde desfrutar da noiva.

Pior, é que casamento não houve. E sem casamento, a Maria que não pôde desfrutar o património do Andrézinho. Sem herdeiros aqui, e sem que ninguém conseguisse localizar um parente dele no Polônia, a chácara do Andrézinho acabou passando tempo depois, para as mãos do governo.

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Contos do Paraná ("Falcão", de Nilson Monteiro)


Que magias trouxe em suas asas carijós, que romperam 25 mil quilômetros à procura do sol? Que mistérios lhes foram reservados em meio às espécies para merecer dos imperadores chineses extrema consideração, símbolo de prestígios e poder, intocável, que provoca decapitação a quem lhe atravesse a tirar a vida?

Os milhares de olhos grudaram no topo do edifício Associação Rural, no coração de Londrina, à procura da majestade, indiferente, exposta às lambidas do sol na cidade verânica, feito lagarto.

Posudo, estrela, transformado em brilho municipal. Mais procurado que manchete, provocou torcicolo em criança e adultos. Assanhou. Solitário, desde quando despediu-se do gélido Hemisfério Norte. Solitárío, no pano azul do céu londrinense. Solitário, no temor às outras aves. Seu voo é certeiro em direção às vitimas - pombas, pardais e outras aves anarquistas nas frondosas     árvores da praça.

Impiedoso: mata. Feito carcará no sertão nordestino. Fome na favela do O.K. Porém nem tudo é prepotência.

Os pequenos pássaros vingam-se de sua beleza pela própria natureza, comendo insetos envenenados por inseticida. Ele, ao alimentar-se dos pássaros, destrói sua realeza, extingue sua espécie.

Para se manter, é necessário voar mundo. No ano passado, na mesma época, também encantou Londrina, com suas penas carijós, e só a abandonou quando o inverno veio chegando, manso, cinza.

"Espécie esquisita", resmungou Valdevino Cruz, zelador do edifício onde a majestade fez sua morada.

Ele, peregrino, a nova atração desta aventureira cidade de pouco mais de meio século, parece rejeitar o adjetivo. Posa, sim, como a ave mais perfeita do mundo. Este, o que pousou na curiosidade londrinense, parece certo disso. Outros de sua raça, parece lembrar, vivem em palácios como os da rainha Elizabeth ou do então primeiro-ministro soviético Tchernenko ou de reis da Arábia Saudita.

Paradão, com suas asas recolhidas, parece endossar o valor que os homens estabeleceram para sua espécie, Quem olha para sua beleza sabe porque os Papas, na Idade Média, o preservavam tanto, chegando a crucificar atrevidos que sonhassem em matar um deles.

Paradão, parece debochar de armadilhas, arapucas, gaiolas, estilingues, setas, cadeias quaisquer. Ninguém consegue passar ileso ao belo. Há até o caso de um velhinho, no Centro Comercial, que deixou de procurar pernas carnudas com seu binóculo para fixar suas vistas, já fracas, nas penas. Fique sabendo até que algumas lojas, asfixiadas pela recessão, receberam um novo sopro de vida com a venda maiúscula, de binóculos. Ontem cedo, porém, nuvens carrancudas atrapalharam o espetáculo: definitivamente, o peregrino não gosta de frio e não veio para posar em seu palco. Escondeu-se?

Frustrou a quem queria endoidar com a sua beleza. Bateu asas à procura do Sol? Foi raptado por ornitólogos? Quem perdeu, perdeu, vaticinou Valdevino. É provável que volte, quem sabe? Quem sabe deste cigano? Ano que vem, talvez, a cidade repita uma pergunta surrada neste dia: "Já viu???"
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Nilson Monteiro, jornalista e poeta.

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.
Imagem por JFeldman

sábado, 14 de outubro de 2023

Contos do Paraná ("Ao pé das letras", de Wilson Silva)

Dezembro de 1953. A greve na aviação comercial forçava os pilotos de táxi-aéreo a um sobre-esforço para suprir as faltas dos Douglas, Convair e Scandia das companhias. Voavamos desde o nascer até o por-do-sol. A maioria das viagens era de Londrina para Curitiba e vice-versa.

Eu já estava pilotando no limite da resistência. Quase me transformara, como os outros companheiros, num piloto-automático, decolando, ganhando altura, nivelando, baixando, aproximando, pousando... e repetindo tudo logo em seguida.

Naquela tarde eu taxiei o Bonanza PT-AHO até a cabeceira 17 do Bacacheri, com três passageiros. Dos que estavam no assento traseiro não me lembro. Mas à minha direita, na frente, ia o Michel Dib, chefe do Serviço de Trânsito de Cornélio Procópio, devidamente fardado (brim cáqui) e com seu quepe branco. Já conhecia Dib de outros voos. Magro, traços bem marcados de árabe, fala mansa, jeito tranquilo. Decolei e aproei Londrina, ganhando altura.

Fazia um calor sufocante, o sol parecia querer nos fritar dentro do avião. No ar quente e pesado, o Bonanza se arrastava como num pote de geleia, pesado e com má vontade aerodinâmica.

De súbito eu - que pilotava librado em pensamentos extra-aeronave - ouço o rechinar (ranger) das engrenagens do trem-de-pouso baixando. Levo um susto, corto a manete (acelerador do motor) de aceleração, puxo o manche para trás, "matando" a velocidade e procuro, num átimo, localizar a "pane".

Um trem-de-pouso jamais pode ser baixado em linha-de-voo, em velocidade de cruzeiro. Checo o painel e vejo a chave de comando do trem na posição de "down" (baixo). Não entendi, eu não havia comandado trem baixo!

Dib, encostado na porta, braços cruzados e quepe com a pala sobre os olhos, estava quieto, como um anjinho:

- Dib, ô Dib! Você mexeu aqui? - Perguntei quase gritando.

- Eu? Ué! - pensou alguns segundos - Mexi sim!

- Mas, como? Essa é a chave de trem-de-pouso, tem uma trava de segurança por baixo! Por que fez isso?

A inocência da resposta do Dib me fez rir:

- Wilson, é que estava muito quente aqui dentro. Aí, comecei a olhar, olhar e vi escrito "Landing Gear". Gear, pensei, é frio. Aí, empurrei essa chavinha pra baixo, ué!...
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Wilson Silva, ex-aviador no Norte do Paraná, jornalista.

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Contos do Paraná ("O amor na Fazenda Fortaleza", de Ivo Nalce)


No começo do século passado, José Felix da Silva instala a Fazenda Fortaleza, nos Campos Gerais, perto de onde hoje é Tibagi, então um povoado parado. A região era habitada pelos índios Coroados que atacavam os brancos. José Felix transforma sua fazenda numa verdadeira fortaleza, com muralhas e alguns homens passam a atacar    os índios,  massacrando-os e trazendo os sobreviventes para trabalhar como escravos na fazenda. O governo dá-lhe a patente de coronel e, além dos índios, passa a atacar os garimpeiros clandestinos que faiscavam no Rio Tibagi. As lutas contra os índios prosseguem, mas a segurança da Fazenda Fortaleza atrai agricultores que se instalam na região.

José Felix tinha fama de ser dos homens mais ricos da Província de São Paulo, a que o Paraná pertencia. E também de ser avarento e muito cruel. Quando o sábio francês Auguste de Saint-Hilaire passa pela Fazenda Fortaleza, em 1820, conta que as provisões eram fechadas a sete chaves e, por ser José Felix odiado por seus escravos, somente seu neto de oito anos era que o barbeava. Não tinha confiança de entregar a navalha na mão de ninguém mais.

José Felix se casa com uma moça muito pobre e, dizem muito bela e aí começa um dos casos de amor mais loucos que o Paraná já conheceu. Mulher jovem e bela com marido velho, avarento e ruim não pode dar boa coisa. A mulher contrata dois homens para matarem o marido, Na emboscada, José Felix fica gravemente ferido, mas consegue liquidar com os dois bandidos.

Como todo mundo sabia que fora a mulher quem mandara matar José Felix, ela foi presa na cadeia em Castro, cidade que, segundo Saint-Hilaire, era então habitada por três ou quatro comerciantes, prostitutas e alguns artesãos. Com seu dinheiro, ou poder, José Felix consegue liberar a mulher, o que ela aceita. Traz ela de volta para a Fazenda Fortaleza e tranca-a no quarto do casal, para isso manda gradear as janelas e a única porta. Os escravos passam a comida através das grades. Ninguém entrava na cela.

Ninguém? Todas as noites, José Felix tirava a chave que trazia amarrada no pescoço, abria a cela e ia dormir com ela no seu leito nupcial para cumprir as obrigações matrimoniais de praxe. Como eram as noites de amor do casal, só Deus sabe. Ou, então, Nelson Rodrigues, que também sabe de alguma coisinha da vida como ele é.

Talvez, como as personagens de Nelson Rodrigues, a mulher gostasse de apanhar. Mas de todo jeito parece que não muito, porque um belo dia, ou uma bela noite, consegue despejar goela abaixo de José Felix, um delicioso copo de vinho francês temperado com esses venenos que só os índios da região sabiam preparar. Mas enfim, apesar de morrer com a dose, José Felix, mesmo desconfiado como era, devia estar acostumado e gostar de receber das mãos da mulher um copinho de vinho francês antes de deitarem no leito nupcial para mais uma noite de amor, ou talvez de ódio. Isso, só mesmo o bom Deus sabe.

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

domingo, 10 de setembro de 2023

Contos do Paraná ("Bento Cego", de Valência Xavier)


Bento Cordeiro nasceu no Registro, em Antonina, lá por 1821. Nasceu cego e pobre, filho de 
caboclos do nosso litoral. Logo perde o pai, e a sua mãe, Ana Maria, tem de manter o barraco da família e cuidar do filho cego.

Mocinho, Bento foi numa festança, onde os caboclos dançavam fandango batendo pé com os tamancos chumbados de chocalhos. Lá estava Chico Folião, o Rouxinol da Faisqueira, cantador de muita fama. Chico Folião já tinha derrotado todos outros repentistas da noite. Cada quatro porfias ganhas davam direito ao prêmio: um galho de arruda na viola e a admiração das moças.

As moças assanham Bento para desafiar o campeão, afinal ele era dono da mais bela voz do coral da igreja. Arranjam uma viola para Bento e começa seu primeiro combate. Chico Folião parte para o ataque. "Nem namorar você pode/ porque vista não tem/ vive só sem ser amado/ sem olhar não se quer bem”. Bento cego contra-ataca: "Sem olhar também se ama/ a mulher que estima a gente/ os olhos são traidores quando o coração não sente".

A porfia segue braba e, por fim, Chico Folião se confessa derrotado. Cabelão comprido, moço bonito logo enfrenta outro cantador famoso. A peleja termina com os dois chorando com os versos de Bento: "Não posso dizer se tal coisa/ é feio ou bonita/ porque me vejo no abismo/ da escuridão infinita."

Antonina fica pequena para ele. Bento Cego se despede da mãe e sai pelo mundo afora vencendo desafios. Sente fraqueza nos pulmões e vai para Lapa se curar. Lá enfrenta o invicto Manoel Viola e diz o que pensa da mulher: "Tem amor tem distinção/ ralha e fala/ mas não deixa de escutar teu coração". Manuel Viola alerta: "Pois então se é assim/ estás de todo perdido/ Hás de verter coração/ cair bem logo vencido". Bento reflete: "Bem vindo que seja ele/ pela graça da mulher/ antes ela nos vença/ do que a mão de Lúcifer". Vence mais esta porfia. Sente-se curado e segue seu caminho.

Fica em Santa Catarina, numa casinha dum fazendeiro seu fã. Encontra o amor: é Catarina, uma bela jovem órfã que trabalha na roça. Ela cuida dele e tudo vai bem, mas Bento Cego quer mais: "Só quisera ter a dita/ de filha te enxergar/ que a vida eu não gozaria/ diante de teu olhar". Ela sorri para Bento, os dois se amam: "Não há dúvida que tens/ muita candura no amor/ mas eu quisera senhora/ ver-te sorrir com fulgor". Vivem felizes.

Um dia, ele acorda e não sente mais o doce cheiro do corpo de Catarina. Sem aviso, ela foi embora. Seu mundo fica mais escuro. Sem poder suportar a solidão, Bento parte. Talvez um dia, reencontre Catarina, o amor.

Um dia aparece em Sorocaba, amargo, cansado e com os pulmões doentes. Mesmo fraco, aceita enfrentar ao mesmo tempo 3 cantadores. A porfia segue por 3 dias e 3 noites. Caindo de cansaço. Bento Cego ainda canta: "Hei de morrer cantando/ Cantando me hei de enterrar/ Cantando irei para o céu/ Cantando conta hei de dar". Diz-se que, nesse momento, levantou os olhos ao fundo da sala, onde havia uma imagem da Virgem. Nesse momento, viu a imagem da Virgem. Ninguém sabe. Nesse momento, ele caiu morto, deitando sangue pela boca. Ninguém sabe, mas acho que, nesse momento, ele não viu a imagem da Virgem, viu novamente o amor, viu Catarina.

Fonte:
300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

segunda-feira, 17 de julho de 2023

Contos e Lendas do Paraná - 18 (Campo Mourão - Cerro Azul - Guaratuba)


Nota: em letras maiúsculas o nome da cidade que é originária a lenda/conto


CAMPO MOURÃO
A lenda de São Tomé (o caminho do Peabiru)


Num dos dias mais frios do mês de junho, Nhô Juca, figura muito conhecida na região, por ser uma personagem enigmática e muito amável com todos que o conheciam, estava em seu rancho, às margens do rio Piquiri, acendendo uma pequena fogueira para se aquecer. Ia assar
pinhão, fruto da Araucária. Era costume dos moradores dali comer pinhão e também saborear o chimarrão, a erva nativa.

Nhô Juca tinha muitos compadres, pois sendo uma pessoa muito antiga no lugar, ajudava todos que o procuravam, com seus remédios caseiros, seus conselhos de ancião e seus belos causos. No rústico rancho onde vivia, nos finais de tarde, recebia seus amigos. Sentados em banquinhos, ou pedaços de troncos, ouviam e contavam histórias, principalmente causos de assombração, boitatá, saci-pererê e muitas outras. Além da iluminação da fogueira, no centro do rancho usava-se uma lamparina de querosene.

Então nesse final de tarde, como um ritual, seus companheiros, após um dia de lida na roça, vieram conversar com o compadre Juca e também ver se ele não estava precisando de nada, pois era sozinho na vida. Dele não se conhecia a existência nem de mulher, nem de filhos. A conversa estava tão animada que nem perceberam a tempestade que se aproximava. O vento era tão forte que atravessava de um lado para outro do rancho, ficando impossível manter a lamparina acesa.

Os visitantes estavam assustados, porém Nhô Juca, em sua calma, começou a lhes contar uma nova história. Disse que aquela região já havia pertencido aos índios e que estes haviam construído um caminho muito importante: o caminho do Peabiru. Era uma trilha muito antiga e comprida, começava no Oceano Atlântico e terminava no Oceano Pacífico, atravessando a América do Sul. Tinha mais ou menos 3 mil quilômetros de comprimento e cerca de 1,4 metro de largura, mais parecendo uma grande valeta no meio da floresta.

– E este caminho ainda existe? – perguntou Pedro, maravilhado.

– Pois bem, os índios, nossos antepassados, tinham a sua sabedoria, não eram bobos não. Eles plantavam nesse caminho uma grama miúda que evitava que a chuva lavasse a terra e, ao mesmo tempo, impedia que as ervas daninhas invadissem a valeta. Assim, o caminho ficaria sempre limpinho, mais parecendo um corredor encarpetado de verde, bem fofinho.

– Ah! Que espertos, hein, compadre? – disse Pedro, admirado.

– Pois bem, como eu lhes falei, os índios não eram burros não, essa grama era plantada em alguns trechos e ia se reproduzindo e avançando o caminho. E também soltava umas sementinhas gelatinosas que grudavam nos pés e pernas dos que por ali passavam e a levavam pelo caminho; dessa forma, as sementes iam caindo e novos trechos iam sendo formados.

E a conversa continuou, falaram dos índios, seus costumes e até da sua saída da região. Nhô Juca, então, resolveu contar-lhes sobre a lenda que envolve este caminho milenar.

– “Sabem, compadres, dizem que por este caminho andava muita gente importante da nossa história. Ouvi, certa vez, um moço lá da capital, que tava cavocando uns buracos na beira do rio, procurando sei lá o que, dizer que por aqui passou um homem branco, pois só existiam os índios e este homem fez muita coisa boa para eles. Dizem que ele veio das águas e que seu nome era Tomé ou Pai Zumé, como os índios o chamavam. Era um homem branco, alto, com longas barbas. Usava cabelos curtos com uma tonsura no alto da cabeça, igual às que os padres tinham. A roupa branca ia até os pés, amarrada por um fino cinturão de couro. Nas mãos trazia um livro semelhante ao Breviário dos sacerdotes e também uma cruz.

– “Por todos os lugares onde passava, deixava seus ensinamentos, condenando a poligamia e a antropofagia. Ele evangelizava os índios falando sobre o único Deus. Também ensinou aos índios o cultivo de outras culturas como a cana-de-açúcar e o milho. Por pregar a palavra do bem e censurar a imoralidade, causou grande revolta nos chefes e pajés que, furiosos, mandaram persegui-lo, incendiando as cabanas onde se abrigava para descansar, disparando flechas e pedras no profeta. Ileso dos atentados sofridos, sempre fugia pelas águas dos rios ou do mar.

– “Muitos dos antigos dizem que o homem branco era Tomé, apóstolo de Jesus Cristo, o mesmo que duvidou da ressurreição, pois pediu para colocar seus dedos nas chagas de Cristo para ver o sinal dos cravos em suas mãos. Como foi descrente, Jesus lhe deu a missão de pregar o evangelho nas terras mais longínquas do mundo. Naquela época, o mundo era apenas o Oriente, a Europa, África e a Ásia. Dizem que Tomé foi primeiro para a Pérsia. Assim que concluiu suas pregações, entrou num barco de mercadores rumo às Índias. Alcançou a Índia chegando até a China. Depois avançou no mar, indo parar em ilhas não determinadas. Como chegou ao Brasil, não se sabe, apenas alguns padres jesuítas relatam sua passagem por estas terras. Seu percurso começava no oceano Atlântico e terminava no Pacífico.”

– Nossa, compadre, esse caboclo viajou muito, hein! – exclamou Pedro.

– Pois é, era a sua missão e nada o impedia. Porém, certo dia os inimigos conseguiram pegá-lo e o amarraram numa grande pedra. Furiosos, surraram-no e o largaram desmaiado. Então, três grandes águias desceram do céu, cortaram as amarras e o libertaram. Ele fugiu pelas águas da mesma maneira que havia chegado e nunca mais ninguém soube do seu paradeiro.

– E esse caminho do Peabiru ainda existe, compadre? – pergunta Pedro.

– Olha, eu escutei uns moços, lá no boteco do seu João-Pé-Grande, falando desse caminho, dizem que ainda existem alguns lugares dele. Mas ainda tem mais. O Apóstolo Tomé ou Pai Zumé, dizia que era para preservarem o caminho do Peabiru, e se um dia ele fosse destruído pelos gigantes de ferro e aço, haveria muita seca, as aves e animais iriam acabar e as águas dos rios se tornariam escuras.

Nhô Juca enche a cuia com a água fervente da chaleira preta de ferro e repassa para Pedro. Todos ficam em silêncio. Apenas a fumaça dos palheiros sobe no ar.

– É preciso ver para crer.
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CERRO AZUL
Mais uma do Hermógenes


Isso foi nos tempos da primeira república. Hermógenes, o grandalhão, mandava em Cerro Azul. Sua fama é de um homem muito malvado. Era tão temido, que teve pai batizando filho com o nome de Hermógenes, como sinal de respeito e para aplacar a ira do “Sinhozinho Malta” daquele tempo.

Era um político muito vingativo, segundo a versão de alguns. Ele tinha o apoio do Governo Estadual, por ser o chefe político da região. Como “não havia” autoridade policial era ele que “fazia o serviço”, à sua maneira. Estava sempre rodeado dos seus capangas, que cumpriam religiosamente todas as suas ordens. Quando ordenava para prender alguém e este não obedecia à voz de prisão, os capangas tinham recomendação de matar.

Certa vez, conta-nos Chico Tiblier, Hermógenes teria mandado prender um camarada e disse que se não pudessem trazê-lo vivo, que trouxessem a cabeça dele. E não é que os desgraçados fizeram o serviço ao pé da letra! Trouxeram a cabeça e a colocaram na mesa. Hermógenes, ao vê-la, teria dito:

– Barbaridade! Que serviço vocês fizeram. Com o susto, o tirano desmaiou e nunca mais conseguiu ser o mesmo. A cabeça do homem foi enterrada nos fundos de sua casa, onde é hoje o bar do Jadir. Depois que Hermógenes morreu, contam muitas pessoas, a casa dele ficou assombrada. Dizem, por exemplo, que o assoalho da casa se erguia e formava um caixão.
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GUARATUBA
A lenda do Brejatuba


Itacunhatã, assim é chamada uma rocha que forma o conjunto do morro do Cristo. Nome originário dos índios tinguis, que habitaram o litoral. Itacunhatã era um guerreiro famoso e perdido de amores por Juracê, da família dos Carijós.

Num passeio no alto do Brejatuba, Itacunhatã achou que havia conquistado Juracê. Ao envolvê-la em seus braços, Juracê esquivou-se e saiu correndo. Quando, de repente, caiu do alto do morro, sendo engolida por uma onda. Itacunhatã atirou-se para salvá-la, mas as ondas recuaram, ele foi de encontro às pedras e acabou morrendo.

O mar arrependeu-se e trouxe a jovem de volta para ser salva por Itacunhatã, que já não podia mais salvá-la. E assim o mar tem feito, trazendo sempre Juracê em suas ondas, para que um dia seja pega e salva por Itacunhatã

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná.
Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, 2005.

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Contos e Lendas do Paraná – 17 (Campo Largo - Congonhinhas - Corbélia - Ubiratã)


Município de Campo Largo
O mistério da lagoa grande

Existe em Campo Largo uma lagoa misteriosa, cujas águas desaparecem, por vezes, repentinamente. Tendo sido transformada em parque, permanece, ainda, envolta em lendas. Uma das lendas locais diz que ela foi criada através das crenças dos índios Tingüi, que eram os habitantes do local na época da colonização. Segundo esta lenda, Tupã, de visita à terra, derramou sobre um vulcão um cálice de água que extinguiu suas chamas. Mas a enorme serpente de duas cabeças, habitante das profundezas da terra, ficou soterrada, sendo que uma das suas cabeças se encontra na lagoa, outra em Curitiba, e sua cauda na praia de Leste.

Por outro lado, segundo o relato de Edácia do Nascimento Saldanha, o surgimento da lagoa tem outro mistério e outra história. Ela conta: “numa sexta-feira santa um padre entrou em um clube da cidade, onde se dançava um animado baile. Com a bíblia na mão exortou os presentes a respeitarem o dia. Não tendo sido ouvido, retirou-se do lugar indignado. No entanto, havia esquecido sua bíblia. Quando voltou para apanhá-la encontrou a lagoa, cujas águas haviam tragado o salão de baile com todos que estavam dentro”.
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Município de Congonhinhas
Ditinho de Deus

Ditinho de Deus era um pretinho alto, que chegou por aqui lá pelos anos 1950. Sofria de chaga na perna esquerda. Não se sabia em que Estado do Brasil ele nascera. Ficava durante o dia sentado na calçada de uma esquina de qualquer rua, à noite ia dormir debaixo da igreja, somente com um velho cobertor. Não pedia esmola, porém vivia da caridade pública e era muito molestado pelas crianças malvadas. Estas chegavam até a atirar pedras no Ditinho, que sempre rebatia dizendo: “Não façam assim, Deus não gosta”. Não xingava e não dizia palavrões.

Sentindo-se bastante fraco e, sofrendo graves dores na perna e sem nenhum tratamento, veio a falecer debaixo da igreja, sendo de lá transportado para uma casinha de propriedade do senhor João Nogueira da Silva, “vulgo João Carro”, onde se realizou o velório. O sepultamento foi no cemitério local, não se sabe ao certo se foi em 1952 ou 1953.

Ditinho de Deus faleceu sem receber os sacramentos, pois o padre estava em viagem visitando as capelas. As viagens naquele tempo eram feitas a cavalo. Mais tarde, por iniciativa do senhor José Lopes, homem devoto e de formação religiosa, foi construída uma capelinha em sua honra. Lá os fiéis iam rezar e cumprir seus votos. Depois, com o alargamento da rua para pavimentação, seus restos mortais foram transladados para a atual capelinha, muito visitada pelo povo.
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Município de Corbélia
Mistérios na comunidade São Roque

Segundo relato feito, no final dos anos 1970, na região da comunidade São Roque, costumavam acontecer coisas estranhas e até hoje os habitantes da região contam estas histórias.

À noite, por volta das dez horas, surgia em meio à plantação e até mesmo fora dela, o que parecia ser línguas de fogo que se chocavam no ar, rodopiando. Quando iam verificar o local onde estas imagens apareciam, nada havia sido queimado, ou pisoteado. As pessoas que ali viviam e vivem, dizem que se trata de um Boitatá. Dizem que se as pessoas passarem no local das aparições, principalmente à noite, se não quiserem ser atacadas por este Boitatá, elas deveriam prender uma faca entre os dentes, porque segundo a superstição, esse era um meio de proteção contra a aparição.

Nos dias atuais, esses relatos são mais vagos. Entretanto, existem muitas pessoas que lá vivem e que afirmam que existe algo de estranho no lugar. Uns dizem que é um espírito que necessita de orações, ou que provavelmente estes espíritos, ou espírito, querem mostrar algo que esteja enterrado na região.

Alguns trabalhadores da pedreira daquela localidade afirmam, ainda, que existe sim algo de estranho, pois eles já presenciaram alguns acontecimentos, como pedras que são atiradas nas barracas (eles utilizavam barracas de lona nos acampamentos na pedreira). Estas pedras entram nas barracas, sem, entretanto, perfurarem a lona.
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Município de Ubiratã
A lenda da curva da onça

Em 1954, a sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná Ltda. - SINOP, iniciou a colonização desta região. A equipe de engenharia e topografia passava por inúmeras dificuldades, abrindo picadas na mata para chegarem ao local preestabelecido, que denominaram Sauju, ou seja, o espigão mais alto do contraforte da serra do Piquiri, hoje Ubiratã.

Inúmeros obstáculos e dificuldades foram encontrados. Com a ajuda de mais de duzentos homens contratados, construíram acampamentos e um campo de pouso em plena mata virgem.

Foi nesse contexto que surgiu em Ubiratã uma localidade na zona rural, mais especificamente na estrada Caviúna, denominada São Cristóvão. Conhecida popularmente como Curva da Onça, ela era o elo para as cidades de Cascavel, Foz do Iguaçu e a Região sul do país.

O nome se deu, porque diziam existir uma onça naquele local, dado o fato de que este animal tentou apanhar um cachorro dos funcionários do acampamento da SINOP. Os trabalhadores que estavam no acampamento contam que na cabeceira de um córrego, o cachorro, aos latidos, foi arrastado pela suposta onça, mas depois de muito custo conseguiu fugir e voltar ao acampamento, onde recebeu os devidos cuidados.

Logo após o ocorrido foram conferir as pegadas, que realmente pareciam ser de onça. O acontecido foi comunicado ao escritório central da SINOP e técnicos foram até o local, pois os funcionários relutavam em continuar o trabalho de abertura da estrada, temendo novos ataques da onça misteriosa.

O fato é que a onça desapareceu, ninguém nunca mais a viu, mas a história ficou registrada na mente daquelas pessoas e foi contada de pai para filho, chegando até os nossos dias. Este local continua sendo chamado de Curva da Onça.

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná.
Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, 2005.