Marcadores

Mostrando postagens com marcador Contos e Lendas do Mundo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Contos e Lendas do Mundo. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 27 de março de 2025

Hans Christian Andersen (Cinco grãos de uma só vagem)

Eram cinco ervilhas dentro de uma vagem. Eram verdes, e a vagem era verde. Por isso, pensavam que todo o mundo era verde, no que tinham toda a razão: para elas, de fato, o era. 

A vagem foi crescendo, adaptando-se ao espaço de sua moradia. Formavam uma fila perfeita. O Sol brilhava lá fora e aquecia a vagem. A chuva tornava-a transparente, dentro dela era quente e agradável, era claro durante o dia e escuro à noite, como deve ser. As ervilhas foram aumentando de tamanho e pensando cada vez mais, pois alguma coisa tinham de fazer. 

- Teremos de ficar sempre aqui dentro? - conjeturavam - tomara que não nos tornemos duras de tanto ficar aqui. Sentimos que deve existir alguma coisa lá fora... 

Passaram-se as semanas. As ervilhas se tornaram amarelas, e amarela a vagem se tornou. 

- O mundo todo está ficando amarelo - disseram. Que mais haveriam de dizer? 

Um dia, ouviram bulha na vagem. Esta foi arrancada, foi ter a mãos humanas, e depois a um bolso de paletó, em companhia de várias outras vagens cheias. 

- Logo a vagem será aberta... - disseram as ervilhas, e ficaram esperando. 

- Quem me dera saber agora qual de nós irá mais longe na vida - disse a menor delas - logo o veremos. 

- Aconteça o que tem de acontecer! - disse a maior. 

- Crac! - a vagem fendeu-se, e todas as cinco ervilhas saíram rolando, à clara luz do dia. 

Achavam-se na mão de um menino, que declarou serem elas ótimas ervilhas para o seu canhãozinho. Imediatamente uma delas foi para o canhão, e foi atirada. 

- Lá vou eu, voando pelo mundo afora! Pega-me, se puderes! - gritou a Ervilha. 

E desapareceu ao longe. 

- Eu - disse a segunda - voo diretamente ao Sol, que é uma verdadeira vagem de ervilhas e me serve muito bem. 

E sumiu. 

- Nós dormiremos onde chegarmos - disseram as duas outras - mas havemos de rolar para diante. 

E antes de irem para o canhão, saíram rolando pelo solo. Mas, apesar disso, sempre chegaram ao canhão. 

- De todas, nós é que iremos mais longe - garantiram. 

- Que aconteça o que tem de acontecer! - disse a última. 

Foi atirada ao ar, e voou até uma tábua, embaixo da janela de uma água-furtada, indo cair numa fenda onde havia musgo e terra úmida. O musgo tornou a fechar-se, e lá ficou ela, esquecida de todos, mas não por Deus. 

- Que aconteça o que tem que acontecer! - repetiu. 

Na água-furtada morava uma mulher pobre que saia todos os dias para o trabalho. Limpava lareiras, cortava lenha, e fazia outros trabalhos pesados, pois tinha forças e era muito trabalhadora. Mas era pobre, e pobre continuava. Em casa, no quartinho, jazia sua filha única, já mocinha, muito franzina e delicada. Estava de cama, enferma, já havia um ano inteiro, e parecia não poder viver nem morrer. 

- Ela irá ter com a irmãzinha - dizia a mulher - tive duas filhas e bem duro me era cuidar de ambas. Deus dividiu então o trabalho comigo, e tomou uma para si. Agora, eu gostaria de ficar com a única que me resta, mas Deus, com certeza, não as quer ver separadas, e ela irá para junto de sua irmãzinha. 

Mas a menina doente continuava a viver. Ficava deitada o dia inteiro, muito paciente e quieta, enquanto a mãe andava fora, tratando de ganhar alguma coisa. 

Era primavera e um belo dia, pela manhã bem cedo, quando a mãe ia sair para o trabalho e o sol entrava radiante pela janelinha, a menina doente olhou para a vidraça de baixo. 

- Que será aquilo ali, junto à vidraça? Uma coisa verde, que se mexe com o vento... 

A mãe foi até a janela e entreabriu-a. 

- Vejam só! - disse ela - é um pézinho de ervilha que nasceu aqui. Como terá o grão vindo parar nesta fenda? Terás um jardinzinho para olhar. 

A cama da doente foi mudada mais para perto da janela, onde ela podia ver a ervilha que brotava. A mãe foi para o trabalho. 

- Mãe, creio que vou sarar - disse a menina, à noitinha - hoje o sol foi tão bom para mim! O pézinho de ervilha vai bem, e também eu hei de um dia ir bem, podendo sair ao Sol. 

- Tomara que isso aconteça - disse a mãe. 

No fundo, porém, ela não acreditava que tal coisa acontecesse. Todavia, deu à verde plantinha, que infundira na filha nova alegria de viver, uma varinha, como tutor, para que o vento não a partisse. Esticou um barbante, da tábua ao alto do caixilho da janela, para que o ramo da ervilha tivesse onde se apoiar e se agarrar com suas gavinhas, quando soubesse. E a planta foi crescendo, crescendo. Dia a dia via-se a diferença de tamanho. 

- A ervilha já está dando flor! - disse a mulher, um dia, pela manhã. 

Também ela começou a ter fé e esperança em que a menina doente muito em breve se restabelecesse. Ocorreu-lhe que, nos últimos tempos, a filha falara com mais vivacidade, se erguera da cama e ficara sentada, fitando com olhos brilhantes o seu pézinho de ervilha. Na semana seguinte, a doente, pela primeira vez, esteve de pé por mais de uma hora. 

Ficou sentada, tomando Sol. A janela estava aberta, e via-se lá fora, inteiramente desabrochada, uma flor de ervilha, branca e vermelha. A menina inclinou a cabeça e beijou de leve as pétalas. 

Aquele dia foi para ela um dia de festa. 

- Foi Deus que a plantou e a fez crescer, para dar-te esperança e alegria, minha abençoada filha, e a mim também - disse a mãe, feliz, sorrindo para a flor, como um anjo vindo de Deus. 

Mas voltemos às outras Ervilhas. A que saíra voando pelo vasto mundo - "Pega-me se puderes" - caiu numa calha d'água e foi parar no papo de uma pomba, onde ficou, como Jonas na baleia. As duas indolentes não ficaram atrás: foram também comidas pelas pombas, o que é de muita utilidade. Mas a quarta, que queria ir até o Sol, caiu na sarjeta, onde ficou durante dias e semanas, mergulhada nas águas servidas. Com isso, inchou: 

- Estou engordando que é uma beleza - disse a ervilha - vou acabar rachando. Não creio que outra ervilha possa chegar onde já cheguei. Sou a mais notável das cinco que nasceram na Vagem. 

E a sarjeta confirmou. 

Junto à janela da água-furtada, entretanto, a menina, com olhos brilhantes, e já com sinais de saúde nas faces, juntou as mãos sobre a flor de ervilha e agradeceu a Deus por tê-la encontrado. 

A sarjeta, porém, repetia: 

- Fico com a minha Ervilha.

Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

domingo, 16 de março de 2025

Zitkala-Ša (O texugo e o urso)

À beira de uma floresta vivia uma grande família de texugos. Na terra sua moradia foi feita. Suas paredes e telhado estavam cobertos de pedras e palha.

O velho pai texugo era um grande caçador. Ele sabia bem como rastrear o cervo e o búfalo. Todos os dias ele voltava para casa carregando nas costas alguma caça selvagem. Isso manteve a mãe texugo muito ocupada e os texugos bebês muito gordinhos. Enquanto as crianças bem alimentadas brincavam, cavando pequenas habitações de faz de conta, sua mãe pendurava carnes finas em fatias em longas prateleiras de salgueiro. Tão rápido quanto as carnes eram secas e temperadas pelo sol e pelo vento, ela as embalava com cuidado em um saco grande e grosso.

Esta bolsa era como um enorme envelope rígido, mas muito mais bonita de se ver, pois estava todo pintado com muitas cores brilhantes. Estes firmemente amarrados em sacos de carne seca foram colocados sobre as rochas nas paredes da habitação. Desta forma, eles eram úteis e decorativos.

Um dia, o pai texugo não saiu para caçar. Ele ficou em casa, fazendo novas flechas. Seus filhos sentaram-se ao seu redor no andar térreo. Seus pequenos olhos negros dançavam de prazer enquanto observavam as cores alegres pintadas em cima as flechas.

De repente, ouviu-se um forte passo perto da entrada. A moldura da porta oval foi empurrada para o lado. Entrou um grande pé preto com grandes garras. Então o outro pé desajeitado veio em seguida. O tempo todo os texugos bebês olharam fixamente para o recém-chegado. Após o segundo pé, surgiu a cabeça de um grande urso preto! Seu nariz preto estava seco e ressequido. Silenciosamente, ele entrou na habitação e sentou-se no chão ao lado de a porta. Seus olhos negros nunca viram as bolsas pintadas nas paredes rochosas. Ele adivinhou o que havia neles. Ele era um urso muito faminto. Vendo as prateleiras de carne vermelha penduradas no quintal, ele veio visitar a família texugo.

Embora ele fosse um estranho e suas patas e mandíbulas fortes assustassem os pequeno texugos, o pai disse: "Caro amigo! Seus lábios e nariz parecem febril e famintos. Você vai comer conosco?"

"Hau, meu amigo", disse o urso. "Estou morrendo de fome. Eu vi suas prateleiras carne fresca vermelha, e sabendo que seu coração é bondoso, eu vim aqui. Dê-me carne para comer, meu amigo."

Em seguida, a mãe texugo deu longos passos pela sala e, enquanto ela teve que passar na frente do estranho visitante, ela disse: "Ah han! Permita-me passar!" que foi um pedido de desculpas.

“Han!” respondeu o urso, aproximando-se da parede e cruzando as canelas.

A mãe texugo escolheu a carne vermelha mais macia e logo sobre uma cama de brasas ela assou a carne de veado.

Naquele dia, o urso tinha tudo o que podia comer. Ao cair da noite, ele se levantou e bateu seus lábios juntos - essa é a maneira barulhenta de dizer "a comida estava muito boa!" - ele deixou a casa do texugo. Os texugos bebês, espiando através da aba da porta atrás do urso peludo, viu-o desaparecer no bosques próximos.

Dia após dia, o crepitar dos galhos na floresta falava de pesados passos. Era o mesmo urso preto. Ele nunca levantou a aba da porta, mas empurrando-a para o lado entrou lentamente. Sempre no mesmo lugar na entrada, ele se sentou com as canelas cruzadas.

Suas visitas diárias eram tão regulares que a mãe texugo colocava um tapete de pele em seu lugar. Ela não queria que um hóspede em sua casa se sentasse no solo duro.

Por fim, uma vez, quando o urso voltou, seu nariz estava brilhante e preto. Seu casaco era brilhante. Ele engordou com a hospitalidade do texugo.

Quando ele entrou na habitação, um par de brilhos perversos disparou de sua desgrenhada cabeça. Surpreso com o comportamento estranho do hóspede que permaneceu de pé sobre o tapete, encostando as costas na parede, o texugo pai perguntou: "Hau, meu amigo! O quê?"

O urso deu um passo à frente e balançou a pata no rosto do texugo. Ele disse: "Eu sou forte, muito forte!"

"Sim, sim, então você é", respondeu o texugo. Do outro lado da sala, a mãe texugo murmurou sobre seu trabalho de contas: "Sim, você ficou forte com nossas tigelas bem cheias."

O urso sorriu, mostrando uma fileira de dentes grandes e afiados.

"Eu não tenho moradia. Não tenho sacos de carne seca. Eu não tenho flechas. Todo estes eu encontrei aqui neste local", disse ele, batendo o pé pesado. "Eu os quero! Ver! Eu sou forte!" repetiu ele, levantando suas terríveis patas.

Baixinho, o pai texugo falou: "Eu te alimentei. Eu te chamei de amigo, no entanto você veio aqui um estranho e um mendigo. Pelo bem dos meus pequeninos deixe-nos em paz."

A mãe texugo, em seu jeito excitado, perfurou com força a pele de gamo e enfiou os dedos repetidamente com seu furador afiado até que ela deixou seu trabalho de lado. Agora, enquanto seu marido conversava com o urso, ela gesticulou com as mãos para as crianças. Na ponta dos pés, eles correram para o lado dela.

Como resposta, veio um rosnado baixo. Ficou mais alto e mais feroz. "Wa-ough!" ele rugiu e, à força, expulsou os texugos. Primeiro o pai texugo; então a mãe. Os pequenos texugos ele jogou aos pares. Ele os jogou com força o chão. De pé na entrada e mostrando seus dentes feios, ele rosnou: "Vá embora!"

O pai e a mãe texugo, tendo se levantado, pegaram seus bebês e, gemendo alto, puxou o ar para dentro de seus pulmões achatados até que pudessem ficar sozinhos em seus pés. Assim que os texugos bebês recuperaram o fôlego, uivaram e gritaram com dor e medo. Ah! Que grito sombrio foi o deles, como a família inteira de texugo saiu chorando de sua própria habitação! Um pouco de distância, longe de sua casa roubada, o pai texugo construiu uma pequena cabana redonda. Ele fez de salgueiros dobrados e cobriu-o com grama seca e galhos.

Este foi o abrigo para a noite; mas, infelizmente! estava vazio de comida e flechas. Durante todo o dia, o pai texugo rondou a floresta, mas sem suas flechas ele não conseguia comida para seus filhos. Ao retornar, o grito do pequeninos pela carne, o silêncio triste da mãe com a cabeça baixa, ferido como uma flecha envenenada.

"Vou implorar carne por você!" disse ele com uma voz instável. Cobrindo a cabeça e todo o corpo em um manto longo e solto ele foi ao lado do grande urso preto. O urso estava cortando carne vermelha para pendurar na prateleira. Ele não parou por uma olhada no canto. Enquanto o texugo estava ali sem ser reconhecido, ele viu que o urso trouxe consigo toda a sua família. Filhotes brincavam sob as novas carnes penduradas. Eles riram e apontaram com seus narizes pequeninos para cima nas carnes finas cortadas sobre os postes.

"Você não tem coração, Urso Negro? Meus filhos estão morrendo de fome. Dê-me um pequeno pedaço de carne para eles", implorou o texugo.

"Wa-ough!" rosnou o urso furioso e atacou o texugo. "Vá embora!" disse ele, e com sua grande pata traseira ele jogou o pai texugo, esparramando no chão.

Todos os pequenos ursos rufiões piaram e gritaram "ha-ha!" para ver o mendigo cair sobre seu rosto. Houve um, no entanto, que nem mesmo sorriu. Ele era o filhote mais novo. Seu casaco de pele não era tão preto e brilhante quanto os que os mais velhos usavam. O cabelo estava seco e sujo. Parecia muito mais uma lã excêntrica. Ele era o filhote feio. Pobre bebê urso! ele sempre foi ridicularizado por seus irmãos mais velhos. Ele não podia deixar de ser ele mesmo. Ele não podia mudar as diferenças entre ele e seus irmãos. Assim mais uma vez, embora o resto tenha rido alto da queda do texugo, ele não viu a piada. Seu rosto era comprido e sério. Em seu coração, ele estava triste ao ver os texugos chorando e morrendo de fome. Em seu peito espalhou-se um desejo ardente de compartilhar sua comida com eles.

"Não vou pedir carne ao meu pai para dar. Ele diria 'Não!' Então Meus irmãos ririam de mim", disse o urso bebê feio para si mesmo.

Em um instante, como se sua boa intenção tivesse passado, ele estava cantando alegremente e pulando em torno de seu pai no trabalho. Cantando em voz baixa e alta e arrastando os pés em longos passos atrás dele, como se um espírito brincalhão escorria de seus calcanhares, ele se desviou pela grama alta. Ele estava caminhando em direção à pequena cabana redonda. Quando diretamente na frente da entrada, ele deu um chute lateral rápido com a pata traseira esquerda. caiu na cabana do texugo um pedaço de carne fresca. Era carne dura, cheio de tendões, mas era a única peça que ele poderia pegar sem avisar o pai.

Assim, tendo dado carne aos texugos famintos, o feio bebê urso correu rapidamente para seu pai novamente.

No dia seguinte, o pai texugo voltou mais uma vez. Ele se levantou observando o grande urso cortando fatias finas de carne.

"Dê" ele começou, quando o urso se virou para ele com um rosnado, empurrou-o cruelmente para o lado. O texugo caiu por suas mãos. Ele caiu onde o a grama estava molhada com o sangue do búfalo recém-esculpido. Seu afiado olhos famintos avistaram um pequeno coágulo vermelho brilhante sobre o verde. Olhando com medo para o urso e vendo sua cabeça estava virada longe, ele pegou o pequeno sangue grosso. Debaixo de seu cobertor cingido ele o escondeu na mão.

Ao voltar para sua família, ele disse consigo mesmo: "Vou rezar para o Grande Espírito para abençoá-lo." Assim, ele construiu uma pequena cabana redonda. Aspergiu água sobre a pilha aquecida de pedras sagradas dentro, ele se preparou para purgar seu corpo. "O sangue de búfalo também deve ser purificado antes que eu peça uma bênção sobre ele", pensou o texugo. 

Ele o carregou para o vapor sagrado. Depois de colocá-lo perto das pedras sagradas, ele se sentou ao lado dele. Depois de um longo silêncio, ele murmurou: "Grande Espírito, abençoe este pequeno sangue de búfalo." Então ele se levantou e, com uma dignidade silenciosa, saiu da cabana. Logo atrás dele, alguém o seguiu. O texugo se virou para olhar por cima de seu ombro e para sua grande alegria, ele viu um Dakota corajoso em camurças bonitas. Na mão, ele carregava uma flecha mágica. Nas costas balançava um aljava com franjas longas. Em resposta à oração do texugo, o vingador surgiu dos glóbulos vermelhos.

"Meu filho!" exclamou o texugo com a mão direita estendida.

"Hau, pai", respondeu o bravo; "Eu sou seu vingador!"

Imediatamente o texugo contou a triste história de seus pequeninos famintos e o urso mesquinho.

Ouvindo atentamente, o jovem ficou olhando fixamente para o chão.

Por fim, o texugo pai se afastou.

"Onde?" perguntou o vingador.

"Meu filho, não temos comida. Vou novamente implorar por carne", respondeu o texugo.

"Então eu vou com você", respondeu o jovem corajoso. Isso fez o velho texugo feliz. Ele estava orgulhoso de seu filho. Ele ficou encantado em ser chamado de "pai" pela primeira criatura humana.

O urso viu o texugo vindo à distância. Ele estreitou os olhos para o estranho alto caminhando ao lado dele. Ele avistou a flecha. Imediatamente ele adivinhou que era o vingador de quem ele tinha ouvido falar há muito, muito tempo. Quando eles aproximaram-se, o urso ficou ereto com a mão na coxa. Ele sorriu para eles.

"Hau, texugo, meu amigo! Aqui está minha faca. Corte suas peças favoritas de o cervo", disse ele, segurando uma lâmina longa e fina.

"Hau!" disse o texugo ansiosamente. Ele se perguntou o que havia inspirado o grande urso a uma ação tão generosa. O jovem vingador esperou até que o texugo levasse o faca longa na mão.

Olhando fixamente para o rosto do urso negro, ele disse: "Venho fazer justiça. Você devolveu apenas uma faca ao meu pobre pai. Agora devolva a ele seu habitação." Sua voz era profunda e poderosa. Em seus olhos negros ardia um fogo constante.

Os dentes longos e fortes do urso chacoalharam um contra o outro, e seu corpo desgrenhado tremia de medo. "Ahow!" gritou ele, como se tivesse sido baleado. Correndo para dentro da habitação, ele engasgou, sem fôlego e tremendo, "Saiam todos vocês! Esta é a morada do texugo. Devemos fugir para a floresta por medo do vingador que carrega a flecha mágica."

Eles correram para fora, e todos os ursos desapareceram na floresta.

Cantando e rindo, os texugos voltaram para sua própria habitação.

Então o vingador os deixou.

"Eu vou", disse ele ao se despedir, "sobre a terra".

= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = = = =  
ZITKALA-ŠA (1876-1938), que em Lakota significa 'Pássaro Vermelho', nasceu na Reserva Indígena Yankton em Dakota do Sul, filha de mãe Dakota e pai francês, que a abandonou quando criança. Aos oito anos, foi obrigada a deixar a liberdade e a felicidade da vida entre seu povo – como ela mesma dizia - para ser educada nos costumes e crenças europeus em um internato missionário Quaker. Lá ela recebeu o nome de Gertrude Simmons, seus longos cabelos foram cortados, ela foi forçada a suprimir todos os sinais e costumes de sua cultura e a rezar como uma quaker. As únicas coisas boas que resultaram disso para ela foram aprender a ler, escrever e tocar violino. Três anos depois, ela voltou para a reserva de Yankton apenas para descobrir, para sua consternação, que as pessoas na reserva estavam começando a adotar os costumes e modos de pensar dos europeus e que mesmo ela tinha um pé em cada mundo. Depois de mais três anos na reserva, ela voltou ao mundo dos brancos com a intenção de continuar sua formação musical. Ela aprendeu piano e violino e acabou ensinando música e estudando no Earlham College em Richmond, onde exibia publicamente sua bela oratória. Ao longo dos anos, cruzando repetidamente a ponte entre sua cultura e a cultura europeia, entre a reserva e o mundo branco, Zitkala-Ša acabaria se tornando escritora, editora, tradutora e ativista política, além de musicista e educadora. Ela chegaria a compor uma ópera com o compositor William F. Hanson, intitulada The Sun Dance Opera, baseada na Lakota Sun Dance, que o governo federal havia proibido o povo Ute de realizar em sua reserva. 

Em 1916, aos 30 anos, ela começou seu ativismo nativo americano ao ser nomeada secretária da Society of American Indians, uma associação dedicada à preservação do modo de vida nativo americano. Ela também fez lobby em círculos políticos pelo direito de seu povo à plena cidadania americana. De Washington DC, Zitkala-Ša fez duras críticas ao Bureau of Indian Affairs, chegando a pedir sua dissolução por causa de suas políticas de internato, pelo levantamento da proibição de crianças indígenas usarem sua própria língua e preservar seus costumes culturais. Ela denunciou os abusos que aconteciam nesses internatos sempre que um menino ou uma menina nativa se recusava a rezar de acordo com a maneira cristã.

Também de Washington ela começou a dar palestras em todo os Estados Unidos e, durante a década de 1920, começou a promover a ideia de criar um movimento pan-indígena que unisse todas as tribos da América do Norte para fazer lobby em nome dos povos nativos. Em 1924, graças em parte aos seus esforços, foi aprovada a Lei da Cidadania Indígena, concedendo direitos de cidadania americana à maioria dos povos indígenas que ainda não os possuíam. Em 1926, ela e o marido fundaram o Conselho Nacional dos Índios Americanos (NCAI), com o objetivo de unir as tribos dos Estados Unidos em sua luta pelos direitos dos índios. No entanto, Zitkala-Ša não era apenas um ativista pelos direitos das Primeiras Nações da América do Norte. Ela também esteve envolvida no ativismo pelos direitos das mulheres na década de 1920, quando ingressou na Federação Geral de Clubes Femininos. Zitkala-Ša morreu em 1938, aos 61 anos, e foi enterrada no Cemitério Nacional de Arlington, em Washington. Para homenageá-la, a União Astronômica Internacional nomeou uma cratera em Vênus "Bonnin", seu sobrenome de casada, Gertrude Simmons Bonnin.

Fonte:
Zitkala-Ša. Old Indian Legends. Publicada originalmente em 1901. Disponível em Domínio Público. (tradução do inglês para o português por Jfeldman)
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

sexta-feira, 14 de março de 2025

Monteiro Lobato (A rainha que saiu do mar)

Houve um rei que encasquetou casar-se com a moça mais bonita que houvesse. Seus oficiais já tinham percorrido todas as cidades, e esmiuçado todas as casas, sem que descobrissem a beleza que o contentasse. Só faltava serem apresentadas ao rei as filhas de um lavrador, as únicas que ele não tinha visto. Estavam as coisas nesse pé quando entrou na igreja um rapaz de ar abobalhado, que olhou para a imagem de uma santa e pôs-se a chorar.

Perguntaram-lhe o que era, se estava sentindo alguma dor.

— Não sinto dor nenhuma — respondeu o rapaz — mas é que olhei para aquela imagem ali e senti grandes saudades de minha irmã, que é o retrato da santa.

Todos comentaram aquelas palavras, uns caçoando, outros a sério, e de tanto diz-que-diz o caso chegou aos ouvidos do rei, o qual fez vir o moço à sua presença e lhe perguntou se era verdade o que dissera na igreja.

— É, sim — respondeu o rapaz — tenho uma irmã muito linda, o retrato daquela santa da igreja.

— E onde mora?

— Nas grotas do monte Escarpado, a dez mil léguas daqui, por terra, ou cinco mil por mar.

O rei mandou preparar uma esquadra que levasse os seus mensageiros ao pai da moça, a fim de pedi-la em casamento — e o rapaz que dera a informação seguiu junto.

Quando a esquadra chegou à terra do monte Escarpado, os mensageiros desceram, seguindo para a tal grota. A moça estava à janela. Oh, que maravilha! Todos ficaram tontos diante de sua beleza. Os mensageiros entregaram a carta do rei e o pai concordou em dá-la em casamento. Feitos os preparativos, a linda criatura entrou num dos navios e a esquadra partiu.

Em certo ponto da viagem o mar ficou tão bravo que os emissários resolveram descer com a moça em terra, por algum tempo. Recolheram-se à casa de uma velha que morava por ali. Mas a velha não passava da pior das pestes, pois tendo ouvido a história da moça, convidou-a a um passeio pela horta, e lá zupt! — jogou-a dentro de um poço.

Quando chegou a hora do embarque a velha levou à esquadra uma filha sua, muito feia, com a cara coberta por um véu, de modo que os emissários não perceberam a troca. A esquadra partiu.

Assim que os navios desapareceram ao longe, a peste foi ao poço e pescou a moça, cortou-lhe o cabelo, furou-lhe os olhos e botou-a dentro dum caixão, que lançou ao mar. Esse caixão foi parar no reino do rei antes que os navios chegassem, sendo recolhido por um pescador.

Mas alguém que viu o pescador recolhendo o caixão deu denúncia ao rei, o qual mandou investigar. As autoridades vieram, abriram o caixão e muito se assombraram de ver dentro uma tão linda moça, de olhos furados e cabelos cortados.

Lá levaram a cega para o palácio, mas por esse tempo também os navios já tinham chegado e os emissários iam entrando com a filha da velha. O chefe do grupo, muito desapontado, declarou ao rei:

— Fui alegre, senhor, e volto triste. Muito esperei e pouco alcancei, e se nisto há culpa minha, pronto estou para sofrer o castigo que Vossa Majestade haja por bem impor-me.

O rei, entretanto, era homem de bem. Apenas disse:

— Ninguém tem culpa de nada. Prometi, cumpro. Casar-me-ei com esta moça feia.

E casou-se na maior tristeza, vestido de luto. Só depois disso é que lhe apresentaram a moça de olhos furados. Mas o irmão dela, que estava presente, reconheceu-a de pronto e contou ao rei o desembarque no meio do caminho, a ida à casa da velha, o passeio da velha pela horta e por fim falou da substituição da sua irmã pela filha da velha.

O rei mandou trazer a velha à sua presença. A peste negou tudo e até renegou a própria filha, dizendo que nunca tinha visto semelhante feiura. Mas a semelhança de traços entre a mãe e filha era muito grande para que alguém pudesse ter a menor dúvida, e o rei deu ordem para que cortassem os cabelos e furassem os olhos da velha.

Assim que isso foi feito, os olhos da moça bela ficaram perfeitinhos, e sua cabeleira cresceu num instante. Virou uma criatura ainda mais formosa do que havia sido. Estava tudo salvo. As duas embusteiras foram lançadas ao mar e o rei viu-se, finalmente casado com a criatura mais linda que havia.

Fontes:
Monteiro Lobato. Fábulas. Publicado originalmente em 1922.
Imagem criada por Feldman com Microsoft Bing 

segunda-feira, 10 de março de 2025

Hans Christian Andersen (O Isqueiro)

Ia um soldado andando pela estrada com passo marcial: um dois! um, dois! Levava o sabre ao lado e a mochila às costas. voltava da guerra, e ia a caminho de casa.

Encontrou no caminho uma feiticeira velha, de feiura espantosa! O lábio inferior pendia-lhe até o peito. Ela o cumprimentou:

  - Bom dia, soldado! Que linda espada levas, e que mochila grande! Também, se quiseres, poderás ter tanto dinheiro como te der na imaginação.

- Obrigada, velha feiticeira! - replicou o soldado.

- Vês essa enorme árvore? Pois está toda oca. Sobe até o topo e verás que tem um buraco. Por ele poderás descer até o interior da árvore. Levarás esta corda amarrada ao corpo, e eu te içarei quando me deres o sinal.

- E que terei de fazer lá embaixo? - indagou ele.

- Apanhar dinheiro. Devo dizer-te que lá embaixo, no fundo da árvore, há uma enorme sala muito bem iluminada, pendem do teto mais de cem lâmpadas. Verás três portas, que poderás abrir, porque as chaves estão na fechadura. Abrindo a primeira, verás no meio da sala uma arca de madeira e deitado em cima dela um cão, cujos olhos são do tamanho de um pires. Não tenhas medo: vou dar-te meu avental azul, que estenderás no chão e, sem perder tempo, porás o cão em cima dele. Só então abrirás a arca, e tirarás dela quanto dinheiro quiseres. São só moedas de cobre e se preferes prata, terás de abrir a segunda porta. Lá verás outro cão, de olhos do tamanho de mós de moinho. Não tenhas medo: mete-o no meu avental e junta quanto dinheiro quiseres. Agora, se preferes ouro, poderás também tirar quanto quiseres, mas no terceiro quarto. Ah! Mas lá encontrarás um cão de olhos tão grandes como a torre redonda de Copenhague. Aquele sim, é um senhor cão! Não tenhas medo: pondo-o no meu avental poderás apanhar quanto ouro quiseres, tirando-o do terceiro cofre.

- Tudo isso é muito bom- disse o soldado – mas que queres que eu faça em troca disso? Porque certamente que hás de querer alguma coisa, velha feiticeira.

- Não, não quero nem um vintém, só te peço que me tragas um isqueiro velho, que minha avó esqueceu lá embaixo, da última vez que entrou na árvore.

- Pois bem: ata-me a corda à cintura.

- Pronto! E aqui está também o meu avental.

O soldado subiu à arvore, escorregou pelo tronco oco, e foi ter a uma grande sala, toda iluminada, conforme dissera a feiticeira.

Abriu a primeira porta. Credo! Lá estava o cão, que fixava nele olhos do tamanho de um pires!

- És um belo rapaz! - disse logo o soldado, enquanto pegava no cão e o depositava sobre o avental da bruxa. 

Encheu então os bolsos de moedas de cobre, fechou de novo a arca, pôs de novo o cão em cima dela e dirigiu-se para a segunda porta. Abriu-a, e a primeira coisa que viu foi o cão de olhos enormes, do tamanho de mós de moinho.
 
- Não me olhes assim, tão fixamente - disse ele. - Podes ficar vesgo!

E pôs o cão no avental, mas quando viu quanta prata havia no cofre, deitou fora todas as moedas de cobre e atulhou os bolsos e a mochila de moedas de prata. E dali foi para a terceira porta, que abriu. 

E... que horror! Aquele cão tinha, na verdade, os olhos do tamanho da torre de Copenhague! E ainda por cima, girava nas órbitas, como rodinhas de fogo de artifício.

- Boa tarde! - disse ele, levando a mão ao boné.

Cumprimentava o cão, porque jamais na vida vira animal que inspirasse tanto respeito. Encarou-o um instante, como se lhe pedisse licença, e depois ergueu-o e o depôs no avental e abriu a arca. 

Deus nos acuda! Quanto ouro! Daria para comprar a cidade inteira de Copenhague, com todas as confeitarias, e todos os soldadinhos de chumbo, e chicotinhos, e cavalos de balanço do mundo! Era muito dinheiro! 

O soldado lançou fora toda a prata que recolhera, para levar ouro, só ouro. Encheu os bolsos, a mochila, o boné, até nas botas meteu moedas de ouro - tantas e tantas que quase  nem podia andar. Agora sim, que estava rico!

Pôs o cão outra vez sobre o cofre, fechou a porta e gritou:

- Puxa a corda, velha feiticeira!

- Achaste o isqueiro? - perguntou ela antes de içá-lo.

- E esta! Tinha-se esquecido dele!

Foi em busca do isqueiro, e, quando o achou, deu o sinal. A velha puxou-o para cima, e logo o soldado se viu de novo na estrada, com os bolsos, as botas, a mochila e o boné cheios de ouro.

- Para que queres tu este isqueiro? - perguntou à bruxa.

- Isso agora não é da tua conta, já tens o dinheiro, dá-me o que me pertence.

- Escuta, velha feiticeira, se não me disseres para que queres este isqueiro, corto-te a cabeça com o meu sabre!

- Pois não te digo!

E então o soldado cortou-lhe a cabeça. A velha ficou ali estendida. Ele fez uma trouxa de dinheiro com o avental dela, lançou a trouxa aos ombros, meteu o isqueiro no bolso e marchou para a cidade.

Era uma cidade muito bonita. Ele se dirigiu ao melhor hotel, pediu o melhor apartamento, o melhor jantar, já que era agora rico, havia de aproveitar bem a riqueza.

O criado que o servia estranhou que homem tão opulento tivesse botas tão velhas e acalcanhadas, mas é que ele não tivera tempo de comprar outras. 

No dia seguinte, porém, tratou de se vestir e calçar como lhe convinha. Agora sim, parecia um cavalheiro  elegante, e todos lhe falavam nas grandezas da cidade, e no seu rei, e na amável princesa, sua filha.

- E onde poderei vê-la? - indagou o soldado.

- Ah! quanto a isso, não é possível. Ela mora em um castelo de bronze, cheio de torres, e cercado de altas muralhas. Ninguém lá entra, a não ser o rei, porque uma profecia diz que ela casará com um soldado raso, e o rei quer impedir a todo o custo que a profecia se realize.

- Ah! Se eu pudesse vê-la - pensou o soldado.

Mas era impossível obter licença para entrar no castelo.

Começou então a levar uma vida muito alegre e divertida: ia ao teatro, passeava de carro no Parque Real, e dava muito dinheiro aos pobres - coisa muito digna de louvor. Lembrava-se bem de quanto é triste não ter a gente dinheiro para gastar! Agora que estava tão rico, também tinham muitos amigos, todos o elogiavam, dizendo que era um moço muito distinto - um perfeito cavalheiro - palavras que muito lisonjeavam a sua vaidade.

Mas, como gastava sem medida, e nada ganhava, chegou por fim um dia em que se viu com duas moedas apenas. Acabara o dinheiro e viu-se forçado a deixar os quartos elegantes em que morava, trocando-os por um sótão. Tinha de limpar as botinas e até  remendá-las, com uma agulha de cerzir. E já nenhum amigo ia mais visitá-lo - eram muitos degraus para subir até lá.

Uma noite não tinha já nem um vintém para comprar uma vela, e estava às escuras, quando se lembrou do velho isqueiro que tirara do oco da árvore. Foi buscá-lo. Quando bateu com o fuzil na pederneira, saltou dela uma faísca, abriu-se a porta e apareceu um cão - aquele cão de olhos do tamanho de pires, que vira lá dentro da árvore. E o cão perguntou-lhe:

- Que ordena, meu senhor?

- Mas que é isto! - exclamou o soldado. - Este isqueiro não tem preço, se eu puder obter dele tudo o que desejo!

Dirigindo-se então ao cão, disse-lhe:

- Traze-me dinheiro.

Desapareceu o cão como um relâmpago, e voltou também com a mesma presteza, tendo na boca um saquinho cheio de moedas de cobre.

Via agora o soldado que tesouro possuía naquele isqueiro velho, de poder prodigioso. Se dava uma pancada, aparecia o cão do cofre de cobre, se dava duas, vinha o da arca de prata e se dava três batidas era o da arca de ouro que aparecia.

Pôde assim o soldado voltar à sua vida regalada, vestir-se com a mesma elegância, e morar em quartos de luxo. E de novo seus amigos antigos o conheciam, e testemunhavam-lhe tanta amizade com dantes.

Mas um dia veio-lhe à memória o caso da princesa.

- Afinal é estranho que ninguém a possa ver! Dizem todos que é tão linda - mas de que serve isso, se tem de viver sempre encerrada em um castelo de bronze cheio de torres? Não poderei mesmo vê-la? Onde está meu isqueiro?

Fez fogo e apareceu o cão de olhos do tamanho de pires.

- É tarde da noite - disse o soldado - mas eu estou ansioso por ver a princesa, ainda que seja por um só momento!

Sumiu-se o cão no mesmo instante, e, antes que o soldado tivesse tempo sequer de pensar, já estava de volta com a princesa. Estava adormecida, sobre o lombo do animal, e era de fato tão formosa que logo se via que era uma princesa! O soldado - porque era um verdadeiro soldado - não pode deixar de lhe dar um beijo.

Saiu o cão levando a princesa, mas, à hora do almoço, disse ela aos pais que tinha tido um sonho maravilhoso, em que entravam um cão e um soldado: tinha andado nas costas do cão, e o soldado a beijara.

- É uma história linda - disse a rainha.

E naquela noite ficou uma dama de honra ao pé da cama da princesa para lhe velar o sono e ver se de fato ela sonhara, ou se haveria nisso alguma coisa estranha.

O soldado tinha  um desejo tão grande de rever a princesa, que o cão tornou a ir buscá-la. Mas a velha dama de honra se pôs no encalço do animal, e quando viu que ele desaparecia com a princesa em uma grande casa, fez na porta uma cruz, com um pedaço de giz, para poder reconhecê-la mais tarde. Foi então para casa e deitou-se. 

Dali a um momento tornou o cão a sair com a princesa, e, ao ver a cruz branca na porta, pegou também em um pedaço de giz e fez cruzes em todas as portas da cidade. Era um cão sagaz, pois assim a dama de honra não poderia saber qual a casa marcada por ela, uma vez que todas as portas tinham cruzes de giz. 

De manhã cedo saíram o rei, a rainha, a dama de honra e todos os oficiais da casa real, para ver onde tinha estado a princesa.

- É ali - disse o rei, ao ver a primeira a porta com uma cruz.

- Não, querido, foi aqui - disse a rainha, vendo uma cruz em outra porta.

- Mas...ali está outra, e outra, e mais outra! - gritavam agora todos os da comitiva.

E viram que era inútil continuar a busca - pois que havia uma cruz em cada porta.

Mas a rainha era dama de muito engenho, e sabia mais coisas do que andar de carro pelas ruas. Ela tomou sua tesoura de ouro e cortou e recortou um pedaço de seda, fez dali um saquinho e encheu-o de trigo mourisco. Amarrou-o na cintura da princesa e depois fez um buraquinho na ponta do saco; assim iriam caindo os grãozinhos por onde a princesa andasse.

À noite voltou o cão e levou a princesa de novo para o quarto do soldado, subindo com ela pela parede: estava o rapaz tão enamorado dela, que só desejava ser um príncipe, para poder casar com a linda princesa.

Não notou o animal que a princesa ia semeando trigo por onde passava. No dia seguinte não foi difícil ao rei e à rainha descobrir a casa onde estivera sua filha, e mandaram logo prender o soldado, que foi parar na cadeia. Sentado no calabouço, refletia ele na sua triste situação. Como era escuro e desagradável aquele lugar! E pior ainda foi quando ouviu a sentença:

- Serás enforcado amanhã!

Não era nada alegre a notícia, e ainda por cima verificou que tinha deixado seu isqueiro no hotel.

De manhã viu a multidão de gente que ia correndo para as portas da cidade, para assistir à execução. Através das grades da janelinha viu também passar o pelotão de soldados que marchavam para o lugar da forca. Ouvia o toque dos tambores, via que todos estavam ansiosos para vê-lo enforcado, e entre aquela gente toda avistou um aprendiz de sapateiro, de avental de couro e chinelas. Corria tão açodado que uma das chinelas lhe escapou do pé e foi bater mesmo na grade da janela, onde estava o soldado, que gritou por ele:

– Olá! Não corras tanto! A festa não começará enquanto eu não  chegar. Escuta: se queres ir à minha casa e trazer-me um isqueiro que ficou lá, dar-te-ei quatro xelins. Mas tens que correr com vontade, rapaz!

Ora, a aprendiz ficou muito contente de poder apanhar aquelas moedas, saiu pois a toda a pressa e voltou num instante com a caixinha, e... mas vamos ver o que aconteceu.

Tinham erguido uma forca alta; em torno dela premia-se enorme multidão - centenas de milhares de pessoas. Os soldados mal conseguiam manter toda aquela gente no lugar a ela destinado.  Os reis ocupavam um trono magnífico, em frente dos juízes e do Conselho.

Já o soldado tinha subido ao patíbulo, e iam passar-lhe a corda pelo pescoço, quando pediu que lhe concedessem uma graça insignificante, conforme era costume fazer-se com todos os criminosos antes da execução. Desejava muito tirar algumas fumaçadas do seu cachimbo antes de morrer, pois seria a última vez que fumava neste mundo.

Não quis o rei negar essa graça, e o soldado puxou pelo isqueiro e feriu a pederneira - uma, duas, três vezes! E num relance estavam ali todos os cães -  dos olhos do tamanho de um pires, o dos olhos do tamanho de mós de moinho, e os dos olhos tão grandes como a torre redonda de Copenhague.

– Acudam-me, que não me enforquem! - disse-lhes o soldado.

Caíram os cães imediatamente sobre os juízes e todo o Conselho, apanharam um pelas pernas, outro pelo nariz e atiraram-nos tão alto, que quando caíram em terra estavam em pedaços.

- Não consinto...- gritou o rei, ao ver aquilo.

Mas o maior de todos atirou-se a ele e à rainha, e num instante estavam ambos também rodopiando no ar, como acontecera com os outros.

Então os soldados e o povo, amedrontados, puseram-se a gritar:

- Soldadinho, soldadinho! Serás agora o nosso rei, e casarás com a bela princesa!

Instalaram o soldado na carruagem real, e os três cães iam à frente, bradando:

- Viva! Viva!

Os moleques assobiavam nos dedos, e os soldados apresentavam armas. A princesa saiu enfim do seu castelo de bronze, e foi proclamada rainha, o que muito lhe agradou, na verdade!

As festas do noivado duraram uma semana; os três cães também se sentaram à mesa do festim, arregalando mais que nunca os enorme olhos para tudo quanto viam. 
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = 
HANS CHRISTIAN ANDERSEN foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.

Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

domingo, 2 de março de 2025

Conto das Mil e Uma Noites (Destino ou merecimento?)

Minha história é simples. Fui um cordoeiro por toda a minha vida, especializado em cânhamo, como meu pai e meu avô tinham sido antes de mim. Minha renda mal dava para sustentar a mulher e os filhos. Mas como não tinha capacidade para exercer outra profissão, estava satisfeito e não me queixava a Deus nem atribuía minha pobreza senão à minha ignorância e estupidez. 

Conheci dois homens ricos, Saad e Saadi, que vinham habitualmente descansar e conversar perto de minha loja e assim tornaram-se meus amigos. Um dia, ouvi-os discutir um assunto que me interessou: 

– Será a riqueza adquirida por certos homens o resultado de sua capacidade e aplicação ou um presente do destino? 

- Ó Saadi, disse finalmente Saad, vejo que nenhum de nós irá convencer o outro sem provas. Proponho, portanto, que localizemos um homem pobre e honesto e coloquemos um pequeno capital em suas mãos. O estado de sua fortuna nos meses seguintes provará quem de nós dois está certo: tu que deixas tudo por conta do destino, ou eu que acredito que cada homem é o arquiteto de sua vida. 

Escolheram-me para sua experiência e deram-me duzentos dinares de ouro, perguntando: “Achas que com este capital poderás desenvolver teu negócio e tornar-te rico?” 

Respondi: “Serei mais rico que todos os cordoeiros de Bagdá juntos.” 

Ao ver os dinares de ouro na mão, senti-me num êxtase e procurei escondê-los em algum lugar seguro. Após muito deliberar comigo mesmo, tirei dez dinares para minhas despesas e coloquei o restante nas dobras da barra com que costumo envolver meu turbante. Depois, comprei um lombo de carneiro e dirigi-me para casa. 

Mas enquanto caminhava, a cabeça agitada por sonhos de riqueza, um falcão faminto desceu do céu e, antes que me desse conta do que estava acontecendo, arrebatou meu lombo de carneiro no bico e meu turbante nas garras e voou. 

Após gastar os dez dinares, recaí na miséria anterior. 

Dez meses depois, os dois amigos vieram visitar-me para verificar quem deles tinha acertado. Recebi-os com olhos baixos, e disse-lhes: “O destino continuou a antagonizar-me, e estou em piores condições do que antes.” E contei-lhes o que havia acontecido. 

Saadi sorriu maliciosamente pela decepção do amigo. Mas Saad disse-me: “Não duvido de tuas palavras, embora possa suspeitar que gastaste os duzentos dinares na devassidão. Seja como for, não quero deixar meu amigo Saadi triunfar tão facilmente. Eis outros duzentos dinares de ouro. Tenta novamente a sorte, e não vás escondê-los no teu turbante.” E foram embora. 

Voltei para casa, procurando onde esconder o dinheiro. Reparei numa velha jarra cheia de farelo. Amarrei o dinheiro num pano e enfiei-o no fundo da jarra. Enquanto saí para fazer compras, um vendedor ambulante passou na rua, vendendo pacotes de um preparado de ervas com o qual as mulheres lavam o cabelo no hammam (sauna a vapor). Não tendo dinheiro, minha mulher trocou dois pacotes daquela pasta pela jarra de farelo. 

Quando voltei, procurei a jarra com os olhos para me tranquilizar e, não a vendo, perguntei à mulher por ela. Contou-me. 

“Ó mulher desafortunada!” gritei. “Trocaste meu destino, teu destino e o destino de nossos filhos por um punhado de ervas.” 

Sabendo o que fizera sem querer, ela pôs-se a lamentar-se, censurar-me por não lhe ter revelado o segredo em tempo e falar sem parar como fazem as mulheres diante das desgraças. “Uê! Uê! Vendi o destino dos meus filhos a um mascate que não conheço e que nunca poderei encontrar de novo.” 

Quando, longos meses depois, Saad e Saadi reapareceram, recebi-os com ar ainda mais constrangido e contei-lhes o que acontecera. Saad disse que não iria refazer a experiência mais uma vez; mas Saadi declarou: “Ó Hassan, eu também gostaria de ajudar-te. Como não sou tão favorecido quanto meu amigo Saad para seguir-lhe o exemplo, só posso dar-te este pedaço de chumbo que algum pescador parece ter perdido quando arrastava sua rede pelo caminho. Se tal for o decreto do destino, este pedaço de chumbo virá a ser-te mais útil que minas de prata.” 

À noite, voltei para casa, coloquei o pedaço de chumbo em qualquer lugar, julgando que de nada me serviria, e dormi. Ora, na manhã seguinte, ao preparar sua rede, um pescador vizinho reparou que faltava nela o pedaço de chumbo indispensável, e veio perguntar-me se dispunha, por acaso, de tal pedaço. Dei-lhe o pedaço que Saadi me oferecera. 

Grato, o pescador disse-me: “Jogarei a rede da primeira vez em teu nome e o que recolher será teu.” 

O curioso é que, o dia todo, ele pescou peixes pequenos e, somente na primeira vez, apanhou um peixe grande, de um cúbito de comprimento, e fiel à sua promessa, trouxe-me. O peixe sendo maior que nossas panelas, minha mulher teve que cortá-lo em pedaços para fritá-lo. Dentro dele encontrou uma bola de vidro do tamanho de um ovo de pomba. 

À noite, essa bola de vidro iluminou a casa mais que a lâmpada. No dia seguinte, a história de nossa descoberta espalhou-se por toda a cidade graças à língua comprida de minha mulher. Logo recebeu ela a visita de uma certa judia da vizinhança, cujo marido era um joalheiro. Após contemplar longamente a bola de vidro, disse à minha mulher: “Agradece a Deus esse pedaço de vidro sem valor. Tenho outro igual e gostaria de completar o par. Ofereço-te, pois, por esta coisa insignificante, a enorme importância de dez dinares de ouro.” 

Minha mulher, preferindo usar a bola como lâmpada, recusou a oferta. Quando voltei para casa, contou-me. Disse-lhe: “Se a coisa não tivesse valor, jamais uma filha de judeus ofereceria dinheiro por ela. Tenho a certeza de que ela voltará e aumentará sua oferta. Aconselho-te a não vender a bola sem me consultar.” 

Falei assim, lembrando-me das palavras de Saadi de que aquele pedaço de chumbo me tornaria rico se o destino assim o determinasse. Por Alá, a judia voltou e, usando as mesmas manhas e chamando a joia “aquela coisinha sem valor” e “aquela miséria”, ofereceu por ela assim mesmo cem dinares de ouro. Era óbvio naquela altura que o achado era uma joia rara, de valor inestimável. 

Ofereci-a à judia por 100 mil dinares, dizendo: “Outros joalheiros que conhecem essas raridades melhor que teu marido me ofereceriam mais ainda. Mas eu nunca fui ganancioso. E juro por Alá que não aumentarei este preço.” 

Após protestar como diante de uma ousadia escandalosa, a judia disse: “Comprar e vender não é comigo. Falarei a meu marido. Se ele se interessar, virá procurar-te. Até lá, promete-me não vender a outrem esse vidrinho de nada.” 

Prometi, e a mulher saiu apressada. Como previra, o joalheiro apresentou-se em nossa casa naquela mesma noite. Via-se no seu rosto toda a astúcia de seu povo e sua determinação de arrancar-me o destino das mãos. Após queixar-se do tempo, dos maus negócios, das dificuldades que atravessava, após dizer que mal ganhava o pão dos filhos, jurando constantemente por Aarão e Jacó, disse que só queria aquela brincadeira de vidro para agradar à mulher grávida, pois “nós os homens devemos submeter-nos às fantasias de nossas esposas nesta fase, senão corremos o risco de ter filhos deformados.” 

Pediu-me ver o ovo. Mandei tirá-lo das mãos das crianças que brincavam com ele; fechei portas e janelas e coloquei o ovo em cima de um consolo. A casa ficou iluminada como se fosse meio dia. O judeu ficou tão maravilhado que deixou escapar o segredo de que aquela bola era uma das joias que haviam pertencido a Soleiman (Salomão). Lamentou, logo em seguida, suas palavras, mas não soube como retirá-las. 

Finalmente, perguntou-me que preço pretendia pelo ovo; respondi: “100 mil dinares, como disse à tua mulher. E se não tivesse dado minha palavra, que um bom muçulmano sempre respeita, aumentaria o preço dez vezes ou mais, agora que sei que a joia pertenceu a Soleiman.” 

O joalheiro levantou-se com ar trágico: “Queres arruinar-me?” perguntou. “Se vendesse minha joalheria e minha casa e meus filhos e minha mulher e a mim mesmo, não conseguiria juntar esta soma. Pensei que a tivesses mencionado a minha mulher por brincadeira.” 

Vendo-me, todavia, firme, e receando que eu voltasse atrás na minha palavra, disse: “O dinheiro está aí.” E chamou pela janela seus servidores que esperavam com sacos cheios de dinares. 

Achando-me assim fabulosamente rico, parei de trabalhar, fechei a loja e construí uma casa suntuosa. Dei à minha família todo o conforto e luxo possíveis e distribuí presentes generosos a
parentes, amigos e aos necessitados. 

Um dia, Saad e Saadi procuraram saber de mim. Encontrando a loja fechada, pensaram que eu tinha morrido. Mas os vizinhos indicaram-lhes minha nova morada. Vieram até mim, surpresos e alegres e, após ouvirem minha história, Saadi regozijou-se e disse triunfalmente a Saad: “Vês?” 

Estávamos ainda conversando, quando meus filhos que brincavam no jardim entraram em casa, carregando o ninho de uma grande ave que um de meus escravos apanhara no alto de uma palmeira. Para meu espanto, verifiquei que este ninho tinha sido construído na base de uma banda de turbante - minha banda e meu turbante. Dentro deles encontrei os cento e oitenta dinares embrulhados exatamente como os havia colocado. 

Não tínhamos ainda nos recuperado da excitação produzida por esse milagre, quando um dos meus servidores entrou com uma jarra de farelo que reconheci logo ser aquela jarra. 

O servidor explicou que a comprara para um de nossos cavalos. Procurei dentro da jarra e encontrei os duzentos dinares. Desde então, eu e meus dois amigos temos dirigido nossas vidas pela hipótese de que ninguém é capaz de prever as maravilhas do destino quando ele for generoso. 

Saad, que era um pouco poeta, compôs estes versos: Quando o destino for generoso para contigo, sê generoso para com os outros: Nem a liberalidade te perderá se ele for favorável; nem a parcimônia te salvará se e1e for adverso.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Bento Serrano (O castelo encantado ou o monte do castelo das fadas)

(Tradição prussiana)

Ao pé do rio Memer, e não longe da cidade de Tilsit, levanta-se um monte alto e redondo que se chama  “Monte do Castelo”. Há muitos e muitos anos houve ali um grande castelo, como ainda hoje se pode ver pelas ruínas das paredes, e por um fosso muito fundo e duas linhas de muralhas que estão ao redor. A quem pertence e quem agora lá mora, é coisa que ninguém sabe dar notícia, mas corre na terra uma tradição que reza que ele se aluiu de repente, e ainda hoje se mostra no cume do monte, mesmo no meio dele, um largo e escuro boqueirão, cujo fundo ainda ninguém pôde achar com cordas: diz-se que deve ter sido a chaminé do antigo castelo. Nesses muros tombados reza a mesma tradição que é guardado um tesouro imenso por um porteiro, velhinho de cabelos brancos, que já tem sido visto muitas vezes pelos viajantes que sobem ao monte, e que ninguém até hoje tem podido ir aproveitar-se dele.

Um dia andavam muitos rapazes de uma aldeia próxima de Tilsit a pastorear o gado no monte do castelo. Já era mais de meio do dia, o sol queimava e os rapazes deitaram-se à sombra de um roseiral bravo e puseram-se a contar histórias. Entre outras coisas falaram no muito ouro que estava no monte por debaixo deles, e mostraram desejos de que lhes aparecesse o porteiro do castelo para irem atrás dele e deitarem mão no tesouro. Mas mostravam esse ânimo por ser dia claro, porque nenhum deles era capaz de se deixar ficar só no monte do castelo depois de escurecer.

— Sim, dizia o mais novo, fazia-me boa conta o ouro, e ainda mais a minha mãe que está velha, corcunda e trôpega e ainda se assenta à roda de fiar, ganhando assim com muito trabalho mas honestamente o escasso pão de cada dia; que alegria não seria a dela se eu pudesse levar-lhe para casa uma boa mão cheia de dinheiro! Mas eu não quero nada com o tal fantasma do homem pequenino.

— Tolo! – disseram os outros – Ele não faz mal a ninguém, provavelmente descansaria e não lhe seria preciso andar a vaguear pelo monte, se alguém achasse o tesouro, porque então não teria mais que guardar.

Assim palravam eles até que um se lembrou de irem todos ao boqueirão e atirarem pedras para baixo. Mas por maiores que fossem as pedras que arrastassem até ao buraco e lançassem dentro, não ouviam cair nenhuma no fundo.

— Se houvesse uma corda bem comprida, disse Fernando que era o mais velho, e rapaz forte e animado, poderia um de nós descer um bom pedaço, e ver se acharia alguma porta ou coisa semelhante que fosse dar onde está o ouro.

— Na casa de meu amo, disse outro, há um poço, e está uma corda no guindaste que com certeza é duas vezes tão comprida como este monte. Querem que a vá buscar? Em casa não está agora ninguém porque meu amo e minha ama saíram para longe para um batizado.

A proposta foi bem recebida por todos, menos pelo pequeno Teófilo.

— Nós, disse Fernando com os olhos afogueados (ardentes), podemos talvez ser ricos com pouco custo, não precisando mais guardar gado pelo ardor do sol, podemos mesmo comprar casa e campos e ter rapazes para o gado, se enchermos bem os bolsos lá em baixo. Vai buscar a corda, depois tiraremos à sorte quem há de descer à cova, os outros ficarão a segurar a corda em cima, e o que descer será içado logo que dê sinal puxando por ela.

Todos estavam muito contentes, menos o pequeno Teófilo, que sendo medroso, se opunha àquela resolução, mas foi ludibriado pelos camaradas. Quando chegou a corda e foram lançadas as sortes, a quem tocou a vez foi justamente ao timorato Teófilo, que bem fugiria dali para longe se os camaradas não o segurassem e não o atassem à força com a corda. 

Gritando e bracejando, com grandes risadas dos companheiros foi lançado no boqueirão redondo e descido devagar. A ponta da corda foi atada com muita segurança ao tronco de uma árvore, e pouco a pouco foram os rapazes deixando ir cada vez mais para o fundo o seu pequeno camarada. 

Passados alguns minutos curvaram-se na borda do buraco e disseram: “Que vês lá embaixo, Teófilo?” Mas Teófilo só pedia que o puxassem para fora.

Afinal já não se entendia o que ele dizia: a corda, que era mais comprida do que a altura da torre da igreja de Tilsit, estava já a chegar ao fim, e ainda se sentia retesada e pesada, sinal certo de que Teófilo ainda não tinha chegado ao fundo. 

Mas de repente sentiu-se que estava bamba. Os moços do gado deram gritos de alegria, vendo que por fim estava Teófilo em terra firme: estenderam meio corpo por sobre a borda do boqueirão, chamaram e puseram-se a escutar, mas o silêncio era de mortos. Assim esperaram muito tempo, uma hora e ainda mais. 

Agora, diziam eles, já Teófilo tem tido tempo de ver tudo e de encher os bolsos com ouro e prata. 

Puxaram a corda para cima, mas a corda não trazia nada. Como esperassem ainda uma hora e outra hora sem que a corda trouxesse alguma coisa acima, começaram a afligir-se e a inquietar-se. Depois correram muito pesarosos à aldeia, e com medo de castigo disseram à velha mãe doente do seu camarada perdido, que Teófilo tinha trepado sozinho às ruínas do monte do castelo e de repente tinha desaparecido.

Foi grande a angústia da pobre mãe do rapaz, cuja alegria única era o seu Teófilo. Chorou e gemeu toda a noite, não houve sono que lhe fechasse os olhos, e bem quisera ela morrer para ir ter com seu filho ao céu, porque ele decerto tinha caído no fundo do boqueirão do monte do castelo, e lá estava despedaçado e morto.

Quando na manhã seguinte Fernando e os outros moços do gado levavam outra vez os rebanhos para o pasto da véspera, ainda aflitos pelo que tinha acontecido, correu Teófilo ao encontro deles na raiz do monte. Todos os seus bolsos, e o barrete, e mesmo as mãos, estavam cheias de ouro, e ele com grande alegria contou aos camaradas como tudo lhe tinha corrido bem. Disse ele:

— Logo que me senti em chão firme e que me desatei da corda, vi uma porta diante de mim e por ela entrei em uma cozinha muito grande. Ardia no lar uma grande fogueira que não fazia fogo nenhum, e em toda a parte não se via senão coisas de ouro e de prata. De repente, veio direto a mim um velhinho pequeno, pegou-me na mão com muito bons modos e me disse que não tivesse medo porque me assegurava que não havia ali ninguém que me fizesse mal. Então perdi o medo e atravessei com o bom velho muitas salas cada vez mais bonitas, onde havia montes de ouro. Então deu-me o castelão diferentes iguarias muito boas para comer, e mostrou-me uma cama em que eu podia dormir. O vinho muito doce que bebi pesou-me na cabeça, e eu dormi como um morto até que o mesmo velhinho foi me acordar. Então encheu-me de ouro o barrete e os bolsos tanto quanto podiam levar, e disse-me: “Guarda isto como lembrança do porteiro do castelo e trata de tua velha mãe.” E pegando-me uma mão, abriu uma porta pequena, e quando pus os pés fora, vi o céu azul e o sol da manhã, e ouvi o sino da aldeia que tocava as ave-marias. Ele não saiu, disse-me adeus com a mão, e desapareceu. A porta por onde tinha saído não a tornei a ver. Graças a Deus, tudo foi bem até o fim. Como minha mãe vai ficar contente!

E Teófilo correu logo à aldeia, sem dar mais ouvidos aos seus camaradas que bem queriam ouvir contar mais alguma coisa.

— Agora, disseram eles uns para os outros quando viram as grandes riquezas com que Teófilo apareceu, devemos ir também ao bom porteiro velho e trazer alguma coisa do seu tesouro. Vamos ver a quem por sorte caberá a vez de ir lá abaixo.

— Para que há de ser à sorte? disse Fernando, eu sou o mais velho de todos e hei de ser o primeiro a descer. A quem não concordar com o que digo, provarei que está ao meu lado o direito do mais forte.

Os camaradas resmungaram, mas não se atreveram a resistir ao rapaz robusto, e por isso foi Fernando descido ao boqueirão, depois de ter primeiro tirado o seu pão da sacola pastoril, para ter onde deitar muito ouro que esperava receber do porteiro do castelo em ruínas. 

De novo se mostrou a corda retesada quase até ao fim, e os outros a colheram sem que trouxesse nada, mas não esperaram que o camarada saísse para fora naquele mesmo dia, porque sabiam que ele tinha lá embaixo boas coisas para comer e uma cama bem fofa para passar a noite, e que lhes apareceria de manhã muito alegre, como o pequeno Teófilo, ao pé do monte. A ausência de Fernando foi pouco notada na aldeia, os companheiros levaram-lhe a casa o gado e ele não tinha uma mãe que o chorasse.

Na manhã seguinte todos os outros cheios de impaciência saíram com o gado mais cedo do que costumavam, mas não encontraram Fernando. Esperaram um pouco, depois correram ao alto do monte, deitaram a corda ao boqueirão, e inquietos chamaram o camarada pelo nome. Mas não houve resposta. Depois ninguém tornou a ver Fernando, nem apareceu ninguém que tivesse ânimo para descer ao fundo do monte do castelo, e apanhar o tesouro que lá está enterrado.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = 

BENTO SERRANO nasceu em Portugal, em meados do século XIX e faleceu em 1939) foi um astrólogo, escritor e ativista republicano. Ferrenho defensor do republicanismo, produzindo diversos periódicos publicados pela Editora Livraria Portuguesa em prol da república e contra a monarquia em seu país. Retirou-se para uma gruta na região de Serra da Estrela em Portugal, onde montou seu improvisado gabinete de estudos astronômicos e astrológicos, dedicando grande parte da sua vida ao estudo dos astros e à recolha da sabedoria tradicional e popular portuguesa. É autor de diversos livros esotéricos e de sabedoria popular, tendo publicado diversos almanaques e outros periódicos a partir de 1883 até o ano de sua morte em 1939. Conhecido por sua habilidade em misturar elementos de mistério e fantasia com uma narrativa envolvente. Oráculo do passado, do presente e do futuro, é uma das mais completas obras sobre "o verdadeiro modo de aprender no passado a prevenir o presente, e a adivinhar o futuro".

Fonte:
Bento Serrano. Oráculo do Passado, Presente e Futuro. vol. VII: O oráculo da mágica. Publicado originalmente em 1883. Disponível em Domínio Público.  
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing