Marcadores

Mostrando postagens com marcador Contos e Lendas do Mundo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Contos e Lendas do Mundo. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

J. E. Hanauer (Sátira) 1


Havia certa vez em Jerusalém um jovem padre que, além de saber de cor a liturgia do dia-a-dia, aprendera a ler um capítulo da Bíblia em árabe que adorava recitar diante da sua congregação. Ele sempre começava:”Então Deus disse a Moisés...”.

A primeira vez que leu isto, os fiéis se deleitaram e se surpreenderam com a sua erudição; mas logo cansaram deste sermão, que era repetido domingo após domingo. 

Então uma manhã, antes do serviço, um dos fiéis entrou na igreja e retirou a marcação da bíblia do padre. Quando, durante o serviço religioso, chegou o momento daquela leitura, o padre abriu a bíblia e começou, confiante: “Então Deus disse a Moisés...”. Mas ao olhar para a página diante dele, não a reconheceu; só aí percebeu que a sua marcação fora removida. 

Perturbado, começou a virar as páginas freneticamente, esperando encontrar o seu capítulo. Mais de uma vez imaginara tê-lo encontrado, e então recomeçava: “Então Deus disse a Moisés...”, mas não sabia como continuar. 

Finalmente um ancião da congregação, intrigado com a repetição daquela frase, perguntou: “Padre, o que Deus disse a Moisés?”

E o padre respondeu furiosamente: 

“Ele disse: Que Deus destrua a casa do desgraçado que retirou a marcação do meu livro!”.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = 
James (John) Edward Hanauer (Damasco/Síria, 1850–1938, Jerusalém) foi autor, fotógrafo e cônego de São. Catedral de Jorge em Jerusalém. Hanauer nasceu de pais judeus e suíços bávaros em Damasco e batizado em Jaffa (então Síria otomana); ele se mudou para Jerusalém ainda jovem. Seu pai, Christian Wilhelm Hanauer, nasceu na Baviera, em 1810, mas foi para Jerusalém e converteu-se do judaísmo ao cristianismo em 1843. J.E. Hanauer foi contratado para Expedição Arqueológica de Carlos Warren na Transjordânia, como tradutor e fotógrafo assistente, o início de seu interesse em pesquisas sobre as antiguidades e folclore da região o levaram ao seu envolvimento com o Fundo de Exploração da Palestina. Seus artigos e correspondência foram publicados no Declaração Trimestral da sociedade britânica depois de 1881, que também publicou seu livreto Tabela das Eras Cristã e Maometana em 1904; ele recebeu equipamentos fotográficos de alta qualidade para complementar suas produções. Algumas de suas coleções de fotografias foram reproduzidas em sua obra de 1910, Caminhadas sobre Jerusalém; seu irmão e o filho também atuavam neste campo. Em 1907 lança o Folclore da Terra Santa: muçulmano, cristão e judeu, publicado em Londres. Hanauer morreu em sua casa em Jerusalém em 1938. Foi posteriormente enterrado no Cemitério Protestante de Jerusalém, Cemitério Monte Sião.

Fontes:
J.E. Hanauer. Mitos, lendas e fábulas da Terra Santa. SP: Landy, 2005. Disponível em Domínio Público.  
Biografia = https://en.wikipedia.org/wiki/J._E._Hanauer
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Zitkala-Ša (Manstin, o coelho)

(tradução do inglês por José Feldman)
MANSTIN era um aventureiro valente, mas muito bondoso. Batendo o pé com um mocassim enquanto calçava suas perneiras de pele de veado, disse:

“Vovó, cuidado com Iktomi! Não deixe que ele a atraia para alguma armadilha astuta. Estou indo para o norte em uma longa caçada.”

Com essas palavras de cautela para a avó coelha curvada com quem vivia desde pequeno, Manstin partiu em direção ao norte. Mal havia atravessado as grandes colinas altas quando ouviu o grito de uma criança humana.

"Wan!", exclamou, apontando suas longas orelhas na direção do som; "Wan! Isso é obra do cruel Duas-Caras. Covarde sem-vergonha! Ele se deleita em torturar criaturas indefesas!"

Murmurando palavras indistintas, Manstin subiu correndo a última colina e eis que na ravina além estava o terrível monstro com um rosto na frente e outro atrás da cabeça!

Este gigante marrom estava sem roupas, exceto por uma pele de gato selvagem em volta dos lombos. Com um olhar perverso e brilhante, ele observava o pequeno bebê de cabelos negros que segurava em seu braço forte. Com uma voz risonha, cantarolou uma canção de ninar de uma mãe indígena: "A-bu! Abu!" e, ao mesmo tempo, trocou o bebê nu com uma roseira brava espinhosa.

Rapidamente, Manstin pulou para trás de um grande arbusto de sálvia no topo da colina. Dobrou o arco e a corda vigorosa vibrou. Uma flecha se cravou acima da orelha de Duas-Caras. Era uma flecha envenenada, e o gigante caiu morto. 

Então, Manstin pegou o pequeno bebê marrom e correu para longe da ravina. Logo chegou a uma tenda de onde vinham altas vozes de lamento. Era a tenda do bebê roubado e os enlutados eram seus pais de coração partido.

Quando o galante Manstin devolveu a criança aos braços ávidos da mãe, um terror repentino surgiu nos olhos de ambos os Dakotas. Eles temiam que fosse Cara-Dupla vindo com uma nova roupagem para torturá-los.

O coelho compreendeu o medo deles e disse: "Eu sou Manstin, o bondoso, — Manstin, o famoso caçador. Eu sou seu amigo. Não tenha medo.”

Naquela noite, algo estranho aconteceu. Enquanto o pai e a mãe dormiam, Manstin pegou o bebezinho. Com os pés colocados gentilmente, porém com firmeza, sobre os dedinhos da criança, ele puxou para cima, com cada mãozinha, a criança adormecida até que se tornasse um homem adulto. Com o indicador, traçou uma fenda no lábio superior; e quando, no dia seguinte, o homem e a mulher acordaram não conseguiam distinguir o filho de Manstin, tão parecidos eram os bravos.

“De agora em diante, somos amigos, para nos ajudarmos”, disse Manstin, apertando a mão direita em despedida. “A terra é o nosso ouvido comum, para carregar de seus extremos o menor desejo de um pelo outro!”

“Oh! Que assim seja!” respondeu o homem recém-criado.

Ao deixar o amigo, Manstin correu em direção à região do Norte para onde se dirigia para uma longa caçada. 

De repente, chegou à beira de um largo riacho. Seu olhar atento avistou uma corda de couro cru presa à beira da água, que levava a uma pequena cabana redonda ao longe. O chão estava pisado em um sulco profundo sob a corda de couro cru, que estava frouxa.

"Hun-he!" exclamou Manstin, curvando-se sobre as pegadas recém-feitas na margem úmida do riacho. "Pegadas de um homem!", disse para si mesmo.

"Um cego mora naquela cabana! Esta corda é o guia que ele usa para buscar água todos os dias!", supôs Manstin, que conhecia todos os costumes peculiares das pessoas. Imediatamente, seus olhos se fixaram na morada solitária e para lá seguiu sua curiosidade — uma verdadeira corda de um cego.

Silenciosamente, levantou a portinhola e entrou. Um velho avô desdentado, cego e trêmulo pela idade, estava sentado no chão. Ele não era surdo, porém. Ouviu a entrada e sentiu a presença de um estranho.

"Hau, neto", murmurou, pois tinha idade suficiente para ser avô de todos os seres vivos, "Hau! Não consigo te ver. Por favor, diga seu nome!"

"Vovô, eu sou Manstin", respondeu o coelho, olhando o tempo todo com olhos curiosos ao redor da tenda. "Vovô, o que é isso tão apertado em todos esses sacos de pele de veado colocados contra os postes da tenda?".

“Meu neto, essas são carne de búfalo e veado secas. São sacos mágicos que nunca se esvaziam. Sou cego e não posso caçar. Por isso, um Criador bondoso me deu estes sacos mágicos com os melhores alimentos.”

Então, o velho curvado puxou uma corda que estava em sua mão direita.

“Isso me leva ao riacho onde bebo! E isso”, disse ele, virando-se para o que estava à sua esquerda, “me leva para a floresta, onde procuro gravetos secos para o meu fogo.”

“Avô, eu queria viver com tanto luxo! Eu me encostaria em um mastro de tenda e, com os pés cruzados, fumaria casca de salgueiro-doce pelo resto dos meus dias”, suspirou Manstin.

“Meu neto, seus olhos são o seu luxo! Você seria infeliz sem eles!”, respondeu o velho.

“Avô, eu lhe daria meus dois olhos pelo seu lugar!”, exclamou Manstin.

“Hau! Você disse isso. Levante-se. Arranque seus olhos e me dê. De agora em diante, você estará em casa aqui, em meu lugar.”

Imediatamente, Manstin arrancou os dois olhos e o velho os colocou! Alegrando-se, o velho avô se afastou com seus olhos jovens enquanto o coelho cego enchia seu cachimbo dos sonhos, encostado preguiçosamente no mastro da tenda. Por um breve período, foi um passatempo muito agradável fumar casca de salgueiro e comer dos sacos mágicos.

Manstin sentiu sede, mas não havia água na pequena casa. Pegando uma das cordas de couro cru, ele se dirigiu ao riacho para matar a sede. Ele era jovem e não estava disposto a caminhar lentamente pela trilha do velho. Estava cheio de alegria, pois fazia muitas luas desde que comera uma comida tão boa. Assim, ele saltou confiantemente, sacudindo o couro cru velho e desgastado pelo tempo espasmodicamente até que, de repente, ele cedeu e Manstin caiu de cabeça na água.

"En! En!", grunhiu ele, chutando freneticamente em meio à correnteza. Ao longo da ribanceira escorregadia, ele tentou em vão escalar, até que finalmente encontrou a velha estaca e a trilha profundamente desgastada. Exausto e interiormente enojado com seus percalços, rastejou com mais cautela, de quatro, até a porta de sua tenda. Pingando água do mergulho recente, sentou-se com os dentes batendo dentro de sua tenda sem fogo.

O sol havia se posto e o ar da noite estava frio, mas não havia lenha na casa. "Hin!" murmurou Manstin e corajosamente tentou a outra corda. "Vou buscar lenha!" disse ele, seguindo a corda de couro cru que levava para a floresta. Logo tropeçou em gravetos secos de salgueiro densamente espalhados. Ansiosamente, com as duas mãos, juntou a lenha em seu cobertor estendido. Manstin era um sujeito naturalmente enérgico.

Quando tinha uma grande pilha, amarrou duas pontas opostas do cobertor e levantou o feixe de lenha sobre as costas, mas, ai de mim! Inconscientemente, havia deixado cair a ponta da corda e agora estava perdido na floresta!

"Hin! hin!" gemeu ele. 

Então, parando por um momento, aguçou as orelhas em forma de leque para captar qualquer som de passos se aproximando. Não havia nenhum. Nem mesmo um pássaro noturno piou para ajudá-lo a sair daquele apuro.

Com uma expressão ousada, ele se assustou ao acaso.

Ele caiu em um emaranhado de madeira, onde estava preso. Manstin largou seu fardo e começou a lamentar ter doado seus dois olhos.

“Amigo, meu amigo, preciso de você! O velho avô carvalho foi com meus olhos e estou perdido na floresta!”, gritou ele com os lábios próximos à terra.

Mal havia falado, o som de vozes se tornou audível na orla da floresta. As vozes se aproximavam e se tornavam mais altas — uma era o som claro da flauta de um jovem guerreiro e a outra os guinchos trêmulos de um velho avô.

Era o amigo de Manstin com a Orelha da Terra e o velho avô.

"Aqui, Manstin, tome os olhos", disse o velho, "Eu sabia que você não ficaria contente em meu lugar, mas queria que aprendesse a lição. Eu tive prazer em ver com seus olhos e experimentar seu arco e flechas, mas como estou velho e fraco, prefiro muito mais minha própria tenda e minhas bolsas mágicas!"

Assim falando, os três retornaram à cabana. O velho avô se esgueirou para dentro de sua tenda, que muitas vezes é confundida com um mero carvalho por meninas e meninos indígenas.

Manstin, com seus próprios olhos brilhantes novamente encaixados na cabeça, partiu alegremente para caçar nas terras do Norte.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
ZITKALA-ŠA (1876-1938), que em Lakota significa 'Pássaro Vermelho', nasceu na Reserva Indígena Yankton em Dakota do Sul, filha de mãe Dakota e pai francês, que a abandonou quando criança. Aos oito anos, foi obrigada a deixar a liberdade e a felicidade da vida entre seu povo – como ela mesma dizia - para ser educada nos costumes e crenças europeus em um internato missionário Quaker. Lá ela recebeu o nome de Gertrude Simmons, seus longos cabelos foram cortados, ela foi forçada a suprimir todos os sinais e costumes de sua cultura e a rezar como uma quaker. As únicas coisas boas que resultaram disso para ela foram aprender a ler, escrever e tocar violino. Três anos depois, ela voltou para a reserva de Yankton apenas para descobrir, para sua consternação, que as pessoas na reserva estavam começando a adotar os costumes e modos de pensar dos europeus e que mesmo ela tinha um pé em cada mundo. Depois de mais três anos na reserva, ela voltou ao mundo dos brancos com a intenção de continuar sua formação musical. Ela aprendeu piano e violino e acabou ensinando música e estudando no Earlham College em Richmond, onde exibia publicamente sua bela oratória. Ao longo dos anos, cruzando repetidamente a ponte entre sua cultura e a cultura europeia, entre a reserva e o mundo branco, Zitkala-Ša acabaria se tornando escritora, editora, tradutora e ativista política, além de musicista e educadora. Ela chegaria a compor uma ópera com o compositor William F. Hanson, intitulada The Sun Dance Opera, baseada na Lakota Sun Dance, que o governo federal havia proibido o povo Ute de realizar em sua reserva. 

Em 1916, aos 30 anos, ela começou seu ativismo nativo americano ao ser nomeada secretária da Society of American Indians, uma associação dedicada à preservação do modo de vida nativo americano. Ela também fez lobby em círculos políticos pelo direito de seu povo à plena cidadania americana. De Washington DC, Zitkala-Ša fez duras críticas ao Bureau of Indian Affairs, chegando a pedir sua dissolução por causa de suas políticas de internato, pelo levantamento da proibição de crianças indígenas usarem sua própria língua e preservar seus costumes culturais. Ela denunciou os abusos que aconteciam nesses internatos sempre que um menino ou uma menina nativa se recusava a rezar de acordo com a maneira cristã.

Também de Washington ela começou a dar palestras em todo os Estados Unidos e, durante a década de 1920, começou a promover a ideia de criar um movimento pan-indígena que unisse todas as tribos da América do Norte para fazer lobby em nome dos povos nativos. Em 1924, graças em parte aos seus esforços, foi aprovada a Lei da Cidadania Indígena, concedendo direitos de cidadania americana à maioria dos povos indígenas que ainda não os possuíam. Em 1926, ela e o marido fundaram o Conselho Nacional dos Índios Americanos (NCAI), com o objetivo de unir as tribos dos Estados Unidos em sua luta pelos direitos dos índios. No entanto, Zitkala-Ša não era apenas um ativista pelos direitos das Primeiras Nações da América do Norte. Ela também esteve envolvida no ativismo pelos direitos das mulheres na década de 1920, quando ingressou na Federação Geral de Clubes Femininos. Zitkala-Ša morreu em 1938, aos 61 anos, e foi enterrada no Cemitério Nacional de Arlington, em Washington. Para homenageá-la, a União Astronômica Internacional nomeou uma cratera em Vênus "Bonnin", seu sobrenome de casada, Gertrude Simmons Bonnin.

Fontes:
Zitkala-Ša. Old Indian Legends. Publicada originalmente em 1901. 
Disponível em Domínio Público. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Leonardo da Vinci (A Amoreira)

A pobre amoreira não suportava mais aquilo. Agora, que seus galhos estavam novamente carregados de amoras, os insolentes melros bicavam e estragavam todos os ramos com o bico e com as patas.

- Por favor - suplicou a amoreira, dirigindo-se ao melro mais importuno - poupe ao menos minhas folhas! Sei que vocês gostam muito dos meus frutos, que são seus preferidos. Porém não me privem da sombra de minhas folhas, que me protegem contra os raios do Sol. E não me estraguem com as patas, não arranquem minha casca macia.

A essas palavras o melro, ofendido, respondeu:

- Silêncio, sua mal-educada! Você não sabe que a natureza fez você produzir essas frutas apenas para me alimentar? Não sabe, sua estúpida, que quando chegar o inverno você vai servir apenas para alimentar o fogo?

Ao ouvir essas palavras a amoreira pôs-se a chorar baixinho.

Algum tempo depois o insolente melro caiu numa armadilha preparada por um homem. A fim de construir uma gaiola para o pássaro, o homem cortou os galhos de uma sebe, e coube à amoreira fornecer a madeira para as barras da gaiola.

- Oh! Melro, disse a amoreira - ainda estou aqui. Quando você era livre vinha me importunar, e agora são meus galhos que impedem sua liberdade. Ainda não fui consumida pelo fogo, como você disse que ia acontecer. Você não me viu queimada, mas eu estou vendo você prisioneiro.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = 
Leonardo de Ser Piero da Vinci nasceu em 1452 na Itália e morreu em 1519, na França, era para seus contemporâneos um personagem discutido e controvertido. Como pintor era mal visto, porque jamais terminava as obras iniciadas; como escultor despertou suspeitas por não ter forjado em bronze o monumento equestre a Francisco Sforza; como arquiteto era perigosamente ousado; como cientista era de fato um louco. Sobre um ponto, no entanto, seus contemporâneos viam-se obrigados a concordar: Leonardo era um argumentador fascinante, um polido conversador, um contador de histórias “mágico” e fantástico, um gênio da palavra acompanhada da mímica. Falando da ciência, fazia calar os cientistas; argumentando sobre filosofia, convencia os filósofos; inventando fábulas e lendas, conquistava os favores e a admiração das cortes. Sempre, e em qualquer lugar, Leonardo era o centro das atenções. E jamais decepcionava seu auditório porque tinha sempre, alguma história nova para contar. As fábulas e lendas de Leonardo têm um objetivo e finalidade moral, algumas foram traduzidas por Bruno Nardini e publicadas no Brasil em 1972. O único personagem constante dessas fábulas e lendas é a natureza: a água, o ar, o fogo, a pedra, as plantas e os animais têm vida, pensamento e palavras. O homem, pelo contrário, aparece como instrumento inconsciente do destino, e sua ação, cega e implacável, destrói vencidos e vencedores.
“O homem é o destruidor de todas as coisas criadas”, escreveu Leonardo no “Livro das Profecias”; e nunca, como hoje em dia, na longa história de nosso planeta, uma asserção foi mais verdadeira e tão tragicamente atual..

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

domingo, 7 de setembro de 2025

Contos Tradicionais da Irlanda (O homem que não sabia nenhuma história)

Há muito, muito tempo, os campos estavam cheios de pessoas, na sua maioria malabaristas, cantadores, tocadores de violino e outros músicos. Chegou um momento em que os habitantes expulsavam da sua porta quem não soubesse tocar música ou executar qualquer outra diversão.

Mas houve uma vez, um jovem caminhante chamado Paití Nábla Móire, que não sabia histórias, nem canções, e era tão triste que ninguém fazia caso dele, nem o queria receber em sua casa. 

Uma noite, chegou a Teilionn e andou de porta em porta à procura de alojamento, mas ninguém o aceitava. Continuou, então, a caminhar e não se deteve até chegar a Glen, onde também não encontrou acolhimento. Por fim, bateu à porta de um homem que não era dali, cuja mulher disse:

— Como não tens qualquer diversão para oferecer, não te recebo com gosto, mas, em todo o caso, não acho acertado bater com a porta na cara de ninguém, sobretudo a uma hora tão avançada. Podes ficar até amanhã no palheiro que há aí fora.

— Agradeço-te de todo o coração.

Paití Nábla Móire encaminhou-se para lá e instalou-se o melhor possível entre a palha.

Havia algum tempo que estava deitado, quando entraram três homens que transportavam um cadáver, um dos quais lhe deu um pontapé.

— Levanta-te, Paiti Nábla Móire, e vela este homem até ao amanhecer — ordenou-lhe. — É o nosso pai, que morreu, e temos de ir procurar comida. — Acenderam uma fogueira junto do corpo sem vida. — Aconteça o que acontecer, não deixes as chamas chegarem à mortalha.

O infortunado Paití ficou a guardar o cadáver o melhor que podia. Um pouco mais tarde, pareceu-lhe que o morto o olhava, pelo que se encolheu a um canto atrás da porta, fora do seu campo visual. De repente, levantou-se uma forte rajada de vento, que abriu a porta violentamente e espalhou o lume, pelo que a mortalha também ardeu, ante o profundo pavor de Paiti. Só Deus sabia a angústia terrível que o assolou!

Pouco depois, regressaram os três irmãos.

— Fizeste um bonito serviço, Paití Nábla Móire! A mortalha ardeu! Vais ter de pagar por isso. Lançar-te-emos ao lume, para que ardas também.

Dois deles seguraram-no pela cabeça e pelos pés, mas o terceiro disse:

— Larguem-no. Talvez nos possa ajudar a enterrá-lo.

Por conseguinte, levaram-no para fora do palheiro e começaram a abrir uma fossa com a pá. Ao mesmo tempo, puseram-se a discutir — um achava que era suficientemente grande e o outro pensava o contrário.

— Está bem — acabou por dizer um. — O Paití e o nosso pai são da mesma estatura. Atiremo-lo a ele para a cova. Se couber, também servirá para o pai.

Assim, pegaram no cada vez mais alarmado Paití, largaram-no na abertura e lançaram-lhe em cima algumas pazadas de terra. Quando tentava levantar-se, um dos irmãos atingiu-o com a pá na cabeça. Deste modo, permaneceu deitado até que ficou totalmente coberto, enquanto soltava uivos de medo tão intensos que quase poderiam comover as pedras. 

Finalmente, o dono da casa ouviu os gritos e inteirou-se da loucura que se desenrolava no palheiro. Levantou-se da cama, correu para lá e, quando abriu a porta, o infortunado Paiti já perdera o juízo em virtude do pânico.

— Céus! — bradou. — Que aconteceu?

— Fiz mal em ficar na tua casa — lastimou-se Paiti. — Deus e a Virgem Maria sabem bem a noite que passei.

— Vem comigo — indicou o outro. — Dar-te-ei de comer antes que sigas o teu caminho.

— Não, obrigado.

— Tens de me acompanhar, para que te compense de certo modo dos aborrecimentos que sofreste.

— Passei a noite mais horrível de toda a minha vida.

Quando terminaram de tomar o pequeno almoço, o homem disse:

- Tiveste muita sorte em vir ontem à minha casa, depois de vagueares por aí sem que ninguém quisesse receber-te. Doravante, não haverá nenhuma em que queiras entrar sem que sejas bem recebido, pois já tens uma bela e longa história para contar!
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = 
OS CONTOS TRADICIONAIS DA IRLANDA, são um rico legado cultural que reflete a história, as crenças e as experiências do povo irlandês ao longo dos séculos. Esses contos frequentemente giram em torno de temas como magia, heroísmo, amor e tragédia, e são povoados por uma variedade de personagens fascinantes, incluindo fadas, gigantes, heróis e deuses. Um dos aspectos mais notáveis destes contos é a presença de criaturas mágicas, como os "leprechauns", pequenos duendes associados à sorte e ao tesouro, e as "sídhe", que são espíritos das colinas, muitas vezes vistos como os antigos habitantes da terra. Os contos frequentemente exploram a interação entre os humanos e essas entidades, refletindo uma profunda crença na magia que permeava a vida cotidiana dos irlandeses. Os heróis das histórias, como Cú Chulainn e Fionn mac Cumhaill, são frequentemente retratados como figuras valentes que defendem sua terra e seu povo. Suas aventuras não apenas entretêm, mas também transmitem valores como coragem, lealdade e honra, fundamentais para a identidade irlandesa. Além disso, muitas narrativas abordam temas de amor e perda, como em "Deirdre de Lamentações", uma tragédia que fala sobre amor proibido e sacrifício. 

O impacto desses contos na vida dos irlandeses é profundo, servindo como uma forma de preservação da cultura e da história. Eles são frequentemente contados em reuniões familiares, festivais e celebrações, ajudando a manter viva a conexão com as tradições ancestrais. Além disso, esses contos influenciaram a literatura e as artes irlandesas modernas, inspirando escritores como W.B. Yeats e James Joyce. A tradição da narrativa oral influenciou a forma como os escritores irlandeses estruturam suas histórias. Elementos como repetição, diálogo vibrante e personagens arquetípicos são comuns na literatura irlandesa. O uso de símbolos e metáforas, como a natureza e os seres mágicos, é uma característica marcante na obra de escritores como W.B. Yeats, que frequentemente buscava transmitir significados mais profundos através de seus poemas. A literatura contemporânea irlandesa, como a obra de Colm Tóibín e Anne Enright, frequentemente dialoga com essas tradições, mantendo viva a conexão com o passado.

As crenças expressas nos contos refletem uma visão de mundo onde o sobrenatural é parte integrante da realidade. A reverência pela natureza, a importância da comunidade e a conexão com os ancestrais são temas recorrentes que evidenciam a espiritualidade do povo irlandês. Assim, os contos tradicionais não são apenas histórias; são um espelho da alma da Irlanda, que continua a ressoar nas gerações atuais. 

Fontes:
Contos Tradicionais da Irlanda. in Ulf Diederichs. Palácio dos Contos. Lisboa: Círculo de Leitores,  maio de 1999. Disponível em http://guida.querido.net/contos/irlanda.htm#homem
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Hans Christian Andersen (A história que a Velha Joana contou)

O vento murmurava na copa do velho salgueiro. Parece que o vento canta uma velha cantiga, e a árvore a repete. Se não a entendermos, pergunta à velha Joana do Asilo, a velha Joana que envelheceu na aldeia...

Há muitos, muitos anos, no tempo em que a estrada real ainda passava por ali, já a árvore era alta e bonita. Erguia-se, como ainda hoje se ergue, em frente à cabana de taipa do alfaiate, junto ao charco, onde naquele tempo o gado ia beber, e os filhos dos camponeses, nos dias de verão, corriam nus chapinhando na água. À sombra da árvore erguia-se um marco milionário, de pedra talhada - mas está deitado no chão, coberto da ramagem da amoreira silvestre.

A estrada nova, foi aberta para além da quinta grande, enquanto a antiga se transformava em um atalho que corta os campos, e o lago se convertia em um charco, coberto de lentilhas d'água. De vez em quando pula lá dentro um sapo; abre-se então a superfície verde, e aparece a água negra. Ainda crescem em roda os mesmos caniços, trevos do banhado e espadanas douradas.

A casa do alfaiate foi ficando cada vez mais velha, mais inclinada. O telhado era um viveiro de musgos e sempre-vivas. O pombal, em ruínas, servia de morada aos estorninhos. E as andorinhas iam construindo os ninhos, um atrás do outro, no beiral do telhado e na empena, para trazer sorte àquele lugar.

Em outros  tempos, era esse o aspecto da casa. Morava ali, solitário, o velho Rasmus, meio idiota. Ali nascera, ali brincara, saltando pelas valetas e pelas sebes, varando o charco, todo despido, e trepando ao velho salgueiro.

Esse erguia, magnífico, a copa cerrada e vasta, apesar de ter o tronco fendido e curvado ao peso dos anos e das tempestades, ainda era muito lindo. O vento enchera-lhe as fendas de terra, e brotavam nelas a grama e as ervilhas. Até uma sorveira lá se criara.

Na primavera as andorinhas, já de volta, esvoaçavam ao redor da árvore e do velho telhado, e remendavam e cimentavam seus ninhos. Mas o velho Rasmus deixava o seu ir-se mantendo como estava, ou ir caindo em ruínas, não o remendava nem o escorava . E repetia a frase que já o pai usara:

   - De que serve?

Ficava em casa, quando as andorinhas iam embora, elas, porém, retornavam, como animaizinhos fiéis. Também os estorninhos iam embora e voltavam assobiando a sua canção. Dantes Rasmus cantava ao desafio com eles.

O vento murmurava na copa do velho salgueiro. Murmura ainda hoje. Parece que o vento canta uma velha cantiga, e a árvore a repete. Se não a entenderes, pergunta à velha Joana do Asilo. ela sabe a  cantiga. Sabe tanta história, que até parece uma crônica viva, cheia de velhas recordações...

Quando o alfaiate de aldeia, Ivar Olsen, foi morar ali com sua esposa, Maren Olsen, a casinha ainda estava nova e bonita. Naquele tempo a velha Joana era ainda criança. Era filha do tamanqueiro, um dos homens mas pobres da paróquia. A esposa do  alfaiate, que não precisava preocupar-se com o sustento da família, dava-lhe muitas vezes um pedaço de pão. Maren mantinha boas relações com a senhora da quinta. Andava sempre alegre e risonha, e jamais desanimava. Servia-se tão bem da boca como das mãos, e manejava a agulha com a mesma rapidez que a língua. Ainda assim achava tempo para cuidar da casa e dos filhos, que chegavam quase a uma dúzia: eram onze ao todo, porque o décimo-segundo não aparecera.

O morgado resmungava:

- Gente pobre sempre tem o ninho cheio de filhotes. Se ao menos pudessem afogá-los, como os gatinhos novos, conservando somente um ou dois robustos, ainda vá!

- Deus me livre! - dizia a mulher do alfaiate. - Os filhos são uma benção de Deus, e enchem a casa de alegria. Cada um deles vale um Padre-Nosso a mais. Se houver falta de víveres e forem muitas as bocas a encher, a gente trabalha mais e acha uma solução honesta para o caso. Deus Nosso Senhor não nos abandona, se nós não o abandonarmos.

Apoiou-a a morgada com um gesto amável, acariciando-lhe as faces, como costumava fazer. Dantes até a beijava: era então uma meninazinha, e Maren a sua aia. Estimavam-se, pois, com uma feição constante e fiel.

Todos os anos, pelo Natal, iam da quinta para a casa do alfaiate provisões de inverno: uma barrica de farinha, um porco, dois gansos, um barrilzinho de manteiga, queijos e maças. Nessa ocasião Ivar Olsen aparecia contente, de rosto corado; mas dentro de poucos dias tornava à sua frase favorita:

- De que serve?

Reinava na casa o asseio e o conforto. As janelas eram veladas por cortinas, e no peitoril floresciam cravos e balsaminas. Da parede pendia, esticado em uma moldura, o pano com os nomes da família, e ao pé dele a carta de noivado, redigida em versos feitos pela própria Maren. E ela mostrava, com prazer, como combinavam bem as rimas. Orgulhava-se muito do nome de Olsen, por ser essa a única palavra da língua dinamarquesa a rimar com "polse".

– É um tanto agradável ser diferente dos outros em alguma particularidade- dizia ela, rindo.

Maren estava sempre de bom humor. Nunca dizia, a maneira de seu marido: " Que adianta?" A sua locução preferida era: " Confia no bom Deus!" E cumpria à risca o preceito garantido, assim, o equilíbrio na vida do lar. Os filhos cresciam e prosperavam. Saíam pelo mundo, em busca de ocupação, e tornavam-se homens de valor. Rasmus era o mais moço. Fora criança tão linda que um pintor o tomou por modelo para um de seus quadros. E a tela se achava no castelo do rei: a senhora do morgado a vira num salão e reconhecera nela, imediatamente, o pequeno Rasmus.

Mas sobreveio uma época difícil. O alfaiate contraiu a gota em ambas as mãos. Nenhum médico pode aliviar o mal, e a benzedeira da sábia Stine também nada adiantou.

- Não se deve perder a coragem - disse Maren. - A tristeza não ajuda. E, se pararam as mãos que nos sustentavam, é preciso que eu aprenda a usar as minhas com mais rapidez. Além disso, Rasmus também já é capaz de manejar bem a agulha.

- Ele não deve ficar preso ao trabalho o dia todo - disse a mãe. - Seria um crime contra a criança. É preciso que também tenha tempo para brincar.

E nas horas de folga estava ele sempre com a Joana do tamanqueiro. A menina era muito pobre e nada bonita, Andava descalça e com roupas rasgadas, não tinha ninguém que as remendasse e ela mesma não se lembrava de que poderia fazer isso com as próprias mãos. Era criança e vivia alegre como um pássaro, à benéfica luz do sol de Deus.

Rasmus e Joana costumavam brincar junto ao marco de pedra, à sombra do grande salgueiro. Ele arquitetava grandes planos: queria tornar-se um alfaiate de nome, que morasse na cidade e ocupasse muitos oficiais, como um que o pai conhecia. Lá, principiaria como oficial e chegaria a mestre. Então Joana iria visitá-lo e, se entendesse de cozinha, poderia tratar da comida para todos e ter o seu quarto na casa.

Joana hesitava em acreditar nesses projetos, apesar de Rasmus falar neles com uma convicção e uma fé inabaláveis.

E assim permaneciam sob a velha árvore, com o vento a murmurar na ramaria. No outono, caía uma folha após outra, enquanto a chuva pingava dos galhos desnudos.

- Eles voltarão a brotar - disse Maren.

- Que adianta? - retrucou o marido. - Ano novo, cuidado novo.

- A despensa está cheia - tornou Maren - graças à senhora do morgado. E eu ando bem de saúde e com muita força. Seria um crime a gente queixar-se.

Os senhores demoraram-se no morgado durante as festas de Natal, mas após o dia de Ano Bom seguiram para a cidade, onde passaram o inverno entre prazeres e divertimento. E recebiam convites até para os bailes e festas da Corte.

A morgada mandara vir da França dois riquíssimos vestidos, tão perfeitos no corte e no acabamento que a mulher do alfaiate não se cansava de admirá-los. Nunca vira coisa igual. E pediu licença para que o marido também os apreciasse.

- Não houve ainda alfaiate de aldeia que pusesse os olhos em uma obra perfeita assim - disse ela.

O alfaiate olhou-os e não fez nenhum comentário. De caminho para casa, porém, como se pensasse alto, lá veio a sua frase habitual:" Que adiante? " Mas desta vez suas palavras se tornaram verdade.

Havia começado  a série de bailes e festas. Os senhores mal tinham chegado à cidade, quando, em meio àquela magnificência toda, faleceu o velho dono do morgado - e sua esposa nem teve oportunidade de usar os esplêndidos vestidos. Andava de luto fechado, de roupas pretas da cabeça aos pés, não tolerava nem sequer uma renda branca. Todos os criados usavam crepes, e até a carruagem de gala foi revestida de negro.

Era uma noite fria de inverno; a neve cintilava à luz das estrelas. O carro fúnebre - novo em folha - transportou o féretro da cidade para a igreja do morgado, onde seria feita a inumação no jazigo da família. O administrador das terras e o burgo-mestre da aldeia vinham à frente do cortejo, a cavalo, com tochas acesas. A igreja estava iluminada. O pároco, no portão aberto, aguardava a chegada do morto. O caixão foi colocado em um catafalco, no meio do templo. A congregação toda o rodeou. Fez-se um belo necrólogo e cantou-se um salmo. A senhora também estava presente às cerimônias fúnebres; acompanhara a translação do féretro na carruagem de gala revestida de preto, por dentro e por fora. A congregação nunca presenciara uma solenidade assim, com tanta pompa. Durante todo o inverno se falou do enterro.

- Por aí se vê o prestígio que tinha o finado - dizia a gente da aldeia. - Nasceu de família distinta e teve um enterro de verdadeiro fidalgo.

- Que adianta? - retrucava o alfaiate. - Agora ele não possui nem vida nem fortuna. A nós, pelo menos, resta a vida.

- Não fales assim - lhes disse Maren. - Ele tem a vida eterna, lá no outro mundo.

- Como sabes isso? - perguntou o alfaiate. - Um homem morto dá mas é um bom adubo. E até para isso o morgado era fino demais. Tiveram de enterrá-lo na cripta...

- Deixa de proferir blasfêmias! - acudiu a mulher. - Repito: ele tem agora a vida eterna.

- Como sabes isso? - insistiu o alfaiate.

Maren cobriu com o avental a cabeça do pequeno Rasmus, para que o menino não ouvisse as palavras do pai. Levou-o ao galpão e explicou-lhe, em voz baixa:

- O que acabas de ouvir, meu filho, não foi dito por teu pai. O diabo é que passou pela sala e imitou a voz dele. Reza comigo um Padre-Nosso.

E ela juntou as mãos da criança, para a oração.

- Bem, estou contente outra vez - disse Maren.

Terminara o ano de recolhimento e pesar. A senhora do morgado trajava meio-luto, e a alegria começou a voltar ao seu coração. Comentava-se que havia um pretendente e que já pensavam nas bodas. No Domingo de Ramos, à hora do sermão, deviam ser feitos os proclamas. Segundo se soube, o novo dono das terras era canteiro ou escultor: a gente do lugar não sabia bem como chamar àquela profissão. O noivo, diziam ainda, não pertencia à alta aristocracia, mas tinha uma bonita figura e era dono de grande saber.

- Que adianta? - disse o alfaiate.

Os proclamas foram feitos no Domingo de Ramos. A igreja estava cheia de fiéis. Lá se achavam também o alfaiate, Maren e Rasmus. Nos último tempos a família do alfaiate tivera de reduzir as despesas com o vestuário. As roupas haviam sido viradas uma e outra vez, depois foram cerzidas e remendadas. Agora, pai, mãe e filho andavam de roupas novas, mas essas roupas eram pretas, como se eles estivessem de luto. É que haviam aproveitado o revestimento da carruagem fúnebre. Ninguém devia saber isso, mas todo o mundo descobriu. A sábia Stine e outras mulheres - também sábias, embora não fizessem profissão disso - disseram que aquelas roupas trariam enfermidades à casa do alfaiate.

A Joana do tamanqueiro chorou ao ouvir essas palavras. E, realmente, a profecia cumpriu-se: no primeiro domingo depois da Trindade falecia o alfaiate Olsen. Maren tinha agora de cuidar de tudo, e foi o que fez, corajosamente.

Um ano após seguia Rasmus para o seu estágio de aprendizagem na casa de um mestre, na cidade. É certo que esse alfaiate tinha apenas um oficial e não dez. Mesmo assim, Rasmus ficou contente, e estava sempre de cara alegre. Joana, entretanto, chorava. Ela mesma não sabia que lhe ia custar tanto a separação. Maren ficou na velha casa, atendendo  o antigo negócio.

Por aqueles tempos, a nova estrada foi concluída. A velha, que passava pelo salgueiro e pela casa do alfaiate, tornou-se um carreiro invadido pelo capim. Lentilhas dos rios estenderam-se na superfície do lago. O marco milionário caiu, já que terminara a sua função. Mas a árvore conservou-se bela e vigorosa. O vento murmurava nas folhas e nos longos galhos do velho salgueiro.

Foram-se as andorinhas; foram-se os estorninhos. Mas voltaram na primavera; e quando voltaram pela quarta vez também Rasmus regressou ao lar. Passara pelo exame de oficial. Tornara-se um rapaz bonito e esbelto. Tencionava preparar-se para uma viagem ao estrangeiro. Mas a mãe o reteve: seus irmãos se haviam sumido, e sendo ele o único que lhe restava, deveria ficar em casa. Poderia arranjar bastante trabalho pelas redondezas, costurando ora numa quinta, ora noutra. Isso também era viajar. E Rasmus seguiu o conselho da mãe.

Assim, tornou a dormir sob o antigo teto; tornou a sentar ao pé do velho salgueiro, e a ouvir o murmúrio do vento nas folhas verdes. Rasmus, além de ser um rapaz de bela aparência, sabia cantar que nem um pássaro; era entendido em velhas e novas canções. A sua chegada causava sempre alegria nas quintas grandes, principalmente na de Klaus Hansen, o segundo em fortuna entre os camponeses da aldeia.

Klaus tinha uma filha, Elsa, bela como as rosas do jardim e alegre como um pássaro em liberdade. É verdade que algumas pessoas maliciosas diziam que ela vivia rindo para exibir a alvura dos dentes, mas o que é certo é que aquele modo brincalhão assentava bem na sua pessoa.

Elsa e Ramus enamoraram-se um do outro, mas nenhum dos dois se atreveu a falar. E foi daí que ele se tornou melancólico: herdara uma parte demasiada da mentalidade do pai. Só estava alegre quando via Elsa. Então cada qual ficava mais contente, riam, gracejavam e até pequenas diabruras faziam um para o outro. Mas, apesar das melhores oportunidades, ele não lhe disse palavra alguma sobre o seu afeto. " Que adianta? " - remoíam seus pensamentos. "Os pais dela hão de exigir que o pretendente seja rico. Seria melhor que eu me fosse embora. " Mas era incapaz de apartar-se da moça.

Joana, a filha do tamanqueiro, servia como criada, e por sinal das mais humildes, na mesma quinta. Empurrava o carro do leite até o curral, onde ordenhava as vacas, em companhia de outras serviçais. Tinha também de remover o esterco, e só raras vezes via a Rasmus e Elsa. Notou, entretanto, que ambos se queriam como noivos.

- Que sorte tem Ramus! - disse ela consigo. - E ele bem merece.

Mas seus olhos estavam rasos de lágrimas, embora nada houvesse de que chorar.

Havia uma feira na cidade. Klaus Hansen convidou Rasmus para ir no seu carro. E ele se viu sentado ao lado de Elsa, tanto na ida como na volta. O contentamento transparecia no rosto do rapaz, e no entanto ele não dizia palavra sobre o seu amor.

- Ele tem de ser o primeiro a falar - pensava Elsa, e nisso tinha razão. - Se não quiser abrir a boca, vou dar-lhe um susto.

E logo correu o boato pela quinta de que o proprietário mais rico da aldeia pedira a mão de Elsa - o que era verdade. Mas ninguém conhecia a resposta que ela lhe dera.

Os pensamentos faziam a zunir a cabeça de Rasmus. Certa noite Elsa enfiou no dedo um anel de ouro e perguntou-lhe o que significava aquilo.

- Um noivado - disse ele.

- E com quem achas que seja? - perguntou a moça.

Rasmus, contra a vontade, disse o nome do pretendente.

- Adivinhou - disse ela, fugindo da sala. 

Mas ele também se sumiu. Voltou para casa, atordoado de desespero e de mágoa. e  preparou o saco de viagem. Nada adiantaram as lágrimas da mãe. Queria correr o mundo.

Quando cortou um bordão do grande salgueiro, Rasmus assobiava, como se estivesse contente por poder partir  e ver as maravilhas todas de outras terras. Despediu-se da mãe e ganhou a estrada nova. Joana vinha por ali com um uma carroça cheia de estrume. Ela não lhe notara  a presença e ele fez como se não a visse. Escondeu-se atrás da sebe e ali ficou, até que Joana passasse...

Rasmus saiu, assim, para o mundo, sem que ninguém soubesse para  onde se dirigia.

A mãe estava certa de que ele voltaria antes do fim do ano.

- De que qualquer jeito, voltará, não pode abandonar nem a mim nem a casa.

Elsa, porém, tinha menos confiança, depois de um mês de ansiosa espera, foi consultar, clandestinamente, a sábia Stine. A velha nada mais sabia além do Padre-Nosso, mas era capaz de, benzendo, provocar, milagres e de interpretar as cartas e a borra de café. Por esse meio, chegou a ver Rasmus, através da borra de café. Estava numa cidade estrangeira, cujo nome, entretanto, não conseguiu identificar. Ali haviam soldados e belas raparigas, e ele intencionava tomar o fuzil ou uma dentre as jovens.

Elsa não podia suportar essa ideia. Estava disposta a dar todas as suas  economias para vê-lo regressar. Mas ninguém deveria saber da sua interpretação.

E a velha Stine explorava o caso, afirmando que sabia um meio, se bem que perigoso para aquele a quem se destinava a magia. Contudo, não havia outro remédio. Ela poria no fogo uma panela, e a faria ferver em direção a Rasmus. Nesse caso, ele tinha de regressar, por mais longe que se encontrasse. Poderiam decorrer meses, é verdade, mas que ele voltaria, isso podia garantir, se ainda estivesse vivo.

Então ele teria de caminhar sem trégua nem descanso, de dia e de noite, através de montes e lagos, ao longo de caminhos escorregadios e pedregosos, por mais fatigado que se sentissem seus pés. Mas deveria regressar! Não poderia senão regressar!

A lua se achava no primeiro quarto. A velha Stine asseverou que essa era a época mais apropriada para começar o trabalho. Lá fora uivava a tempestade, sacudindo o velho salgueiro. A feiticeira cortou um galho e dobrou-o, fazendo um nó, para que Rasmus sentisse necessidade de tornar à casa da mãe. Foram procurar no telhado musgos e sempre-vivas, que atiraram na panela de barro posta ao fogo. Elsa teve de arrancar uma página do seu livro de orações. Por acaso, tirou a última, a das erratas.

- Não faz mal - disse a velha, ao deitá-lo também à panela.

Muitas coisas entrava na cocção, que tinha de ferver e continuar a ferver até o regresso de Rasmus. O galo preto da feiticeira teve de desfazer-se da sua crista vermelha, que entrou na panela de barro.  O anel de ouro de Elsa teve igual destino. Ela nunca tornaria a vê-lo, preveniu a velha. Sim, senhores! Era muito sábia a velha Stine. Mas muitos outros ingredientes, que não sabemos mencionar, foram fervidos na panela de barro, que sempre se achava ao fogo, sobre carvões em brasas ou cinzas quentes. Apenas Elsa e a feiticeira sabiam da história.

Chegou a lua nova, e chegou a lua cheia. E Elsa sempre a perguntar:

- Ainda não o vês chegar?

- Vejo muita coisa - era a resposta.- Só não posso enxergar a distância que ele tem à sua frente. Agora já passou pelos primeiros montes. Acha-se no mar, com tempo desfavorável. Ah! agora atravessa grandes florestas. Ele anda com bolhas nos pés e febre na cabeça, mas tem de tocar para a frente.

- Não, não! - gritou Elsa. - Isso não!

- Agora não pode mais parar. - tornou a feiticeira. - E se nós suspendêssemos com isto ele cairá morto na estrada.

Decorreram dias e decorreram anos. A lua brilhava redonda e cheia. O vento murmurava no velho salgueiro. No céu apontou um arco-íris.

- É um sinal! - afirmou Stine. - Agora Rasmus há de chegar.

Mas ele não chegou.

- Estou farta disso! - queixou-se Elsa.

Ia à casa da velha mais espaçadamente, e já não levava presentes para ela. O seu pesar foi amortecedor, e um belo dia toda a gente da aldeia soube que Elsa estava noiva do rico proprietário, seu antigo pretendente.

O banquete de bodas durou três dias. Dançava-se ao som de violinos e flautas. Nenhum morador do lugar ficara esquecido. Maren Olsen também esteve presente e, finda a festa, lá voltou ela, com o pacote que recebera das sobras.

A tranca fora retirada na sua ausência e o portão se achava aberto. Rasmus estava sentado no seu quarto. Regressara justamente nesse dia!

- Rasmus! - gritou a mãe. - És tu mesmo? Estás doente? Mas ainda assim eu me sinto tão feliz por teres vindo!

Ele contou que nas últimas semanas o seu pensamento se voltava sem sossego para a mãe; sentia saudades da casa, da velha árvore. Era estranho como o salgueiro lhe aparecia repetidamente em sonhos; e, sempre, à sua sombra, a pobre da Joana. Não falou, porém, em Elsa.

Rasmus estava doente e teve de ficar de cama. Naturalmente não fora por influência da panela de barro, embora a velha Stine e Elsa acreditassem nisso. Mas tanto uma como outra silenciaram a respeito.

A febre que atacara Rasmus era contagiosa; por isso ninguém o visitava, com exceção da Joana do tamanqueiro, que chorou ao vê-lo naquele estado. O médico receitara um remédio, mas o doente não quis tomá-lo.

- Que adianta? - disse ele.

- Assim não te podes curar - observou a mãe. - Confia  em ti e no bom Deus! Quando novamente te ouvir cantar e assobiar, morrerei de bom grado.

E Rasmus se refez da enfermidade. Mas a mãe, por sua vez, adoeceu; e Deus a chamou.

A solidão reinava agora na casa; e a indigência ali entrou.

No estrangeiro, ele vivera uma vida desregrada. Isso, e não o cozimento da panela de barro, lhe devorara a medula e acendera a febre em seu corpo. Rasmus tinha agora o cabelo ralo e grisalho. não trabalhava, nem tinha gosto para isso.

- Que adianta? - dizia ele, preferindo a taverna à igreja.

Uma noite de outono, ia ele para casa, de volta da taverna, cambaleando, debaixo da tempestade e da chuva. Já fazia muito tempo que perdera a mãe. As andorinhas e estorninhos, sempre tão leais, haviam desaparecido. Mas Joana, a filha do tamanqueiro, essa não se fora. Ela o alcançou e seguiu um bom pedaço lado a lado com ele.

- Endireita-te, Rasmus! - disse ela.

- Que adianta? - retrucou ele.

- Essa locução é feia - tornou Joana. - Lembra-te das palavras de tua mãe: " Confia em ti e no bom Deus!" Não é isso o que andas fazendo, Rasmus. mas tens de te corrigir. Não tornes nunca a dizer: " Que adianta?" E assim hás de arrancar a raiz dessa fraqueza.

Ela o acompanhou até a porta e seguiu para a sua casa. Rasmus não entrou. Foi direto ao velho salgueiro e sentou-se na pedra do marco miliário, que caíra ao solo. O vento murmurava nos galhos da árvore; parecia que contava uma história. Rasmus respondeu ao vento, falando alto. Mas ninguém o ouviu, a não ser o próprio vento e o velho salgueiro.

- Como faz frio! Está na hora de ir para a cama. Dormir, dormir!

E lá se foi, ele não foi porém em direção à casa, mas ao charco, em cuja beirada tropeçou e caiu. A chuva batia e o vento era de enregelar. Ao nascer do sol, quando os galhos voavam sobre o lamaçal, Rasmus acordou.

Foi nesse dia que Joana se instalou na casa do alfaiate.

- A gente se conhece desde criança, Rasmus. Tua mãe me deu de comer e beber, e eu nunca poderei retribuir-lhe isso, Serei a tua enfermeira; e tu não morrerás, não.

E Deus quis que ele vivesse. Mas passou-se muito tempo, até que apresentasse alguma melhora. Seguido tinha colapsos, ou fantasiava coisas confusas.

Iam e voltavam andorinhas e estroninhos; e tornavam a ir embora. Rasmus envelhecera antes do tempo. A sua casa estava também cada vez mais decadente. E ele se via agora mais pobre do que a pobre Joana, a filha do tamanqueiro.

- Tu não tens fé! - disse ela. - Se nós não tivéssemos Deus, que nos restaria então? Deves acompanhar-me à Comunhão, Rasmus.

- Que adianta? - replicou ele.

- A mim sempre me dá consolo - respondeu ela, sentida.

- Joana tu te conservaste a mais fiel dentre todos.

E ele a olhou, com os olhos fatigados e enternecidos.

Rasmus tornara-se um homem velho. Mas Elsa, tampouco, ficara jovem. É preciso que a mencionemos, porque Rasmus nunca o fazia. Era avó, e tinha uma netinha muito galante. Um dia, brincava ela na rua, com outras crianças. Rasmus foi em sua direção, apoiando-se na bengala. Contemplou-a um instante e sorriu. Mas a neta de Elsa apontou com o dedo para ele, gritando: - Rasmus, o doente! - As demais crianças imitaram-lhe o exemplo, e começarem: - Rasmus, o doente! Rasmus, o doente! 

Vieram dias cinzentos e frios, mais raiou por fim uma manhã cheia de sol.

A igreja estava enfeitada de verdes ramos de bétula. O cheiro do bosque passava pelo recinto, enquanto o sol luzia através dos vitrais. Ardiam grandes círios no altar. Era o momento da Comunhão. Joana achava-se entre os fiéis; mas Rasmus não estava presente. Foi justamente a essa hora que Deus o chamou para si.

Desde então se passaram muitos anos. A casa do alfaiate ainda está de pé, mas ninguém a habita, e ela pode desmoronar à primeira tempestade. O charco está coberto de junco e trevo. o vento murmura uma cantiga na velha árvore. Se não a entenderes, pergunta à velha Joana ali do Asilo, a Joana do tamanqueiro...

Que coração leal!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
Hans Christian Andersen foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.

Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Contos das Mil e Uma Noites (A história de Kafur, o negro)

Irmãos, minha história começa quando eu tinha oito anos, pois já então era um mentiroso consumado. Nunca contei mais de uma mentira por ano, mas era uma mentira de tamanho brilho que meu dono, que era mercador de escravos, costumava cair no chão quando a ouvia. Finalmente, não podendo mais aguentar comigo, mandou oferecer-me à venda nestes termos: “Quem quer comprar um negro com um defeito?” 

Um comerciante perguntou qual era o defeito. Disseram-lhe que eu mentia uma vez por ano. Comprou-me, com defeito e tudo, por seiscentos dirhams. Meu novo amo vestiu-me com roupa que me caía muito bem, e vivi com ele pelo restante daquele ano. 

O ano novo chegou com promessas de colheitas abundantes nos campos e nas hortas, e os comerciantes festejaram-no e prestaram homenagens uns aos outros nos jardins fora da cidade. 

Quando chegou a vez de meu amo, este mandou preparar abundantes comidas e bebidas e ofereceu aos amigos na sua casa de campo uma festa suntuosa que duraria da manhã à noite. Mas aconteceu que ele esquecera algo em sua residência. Mandou-me, pois, montar uma mula e voltar à cidade. Devia pedir o objeto esquecido a minha ama e levá-lo de volta o mais rapidamente possível. 

Ao aproximar-me da casa, comecei a lamentar-me em alta voz e derramar abundantes lágrimas. Os vizinhos acorreram. As mulheres apareceram às janelas, acompanhadas pelas filhas. Todos me perguntavam o que tinha acontecido. 

Respondi através dos gemidos: “Meu amo estava no jardim com seus convidados quando uma muralha caiu sobre ele e o esmagou. Pulei sobre minha mula e vim avisar a família.” 

Ouvindo essa notícia, minha ama e suas filhas entraram em pranto, rasgaram os vestidos, bateram no rosto. E minha ama, querendo exibir a aflição conforme as tradições, pôs-se a destruir a casa, quebrando armários, portas e outros móveis e jogando na rua o que não conseguia quebrar. Manchou e sujou as paredes e pediu-me para ajudá-la nessa demolição generalizada.

Não me fiz de rogado. Comecei imediatamente a destruir os objetos mais pesados. Quebrei também a louça, queimei as camas, os tapetes, as cortinas, as almofadas. Depois, passei ao teto e às paredes até que toda a casa virou uma só ruína. Durante esse tempo, não parava de chorar e gemer: “Meu amo! Oh, meu Amo!”

Minha ama e suas filhas saíram à rua com os rostos descobertos e o cabelo desarrumado. Pediram-me para guiá-las ao lugar onde meu amo estava enterrado sob a muralha. Andei na frente delas, lamentando: “Meu amo! Oh, meu amo!” 

Breve, uma multidão juntou-se a nós. E alguém aconselhou à minha ama a comunicar a todos e ao uáli. Deixei-os dirigirem-se à residência do uáli e corri até o jardim onde estava meu amo; cobri meu cabelo com poeira, bati no rosto e aproximei-me do jardim gritando: ”Minha ama! Oh, minha ama! Minhas pequenas amas! Meus pobres pequenos amos!” 

Pulei no meio dos convivas numa manifestação extravagante de aflição, gemendo: “Oh, quem me ajudará? Que mulher será jamais tão boa quanto minha pobre ama! 

Naturalmente, meu amo mudou de cor e perguntou-me o que acontecera. “Meu amo, respondi, quando cheguei em casa, vi que ela havia caído sobre tua mulher e teus filhos.”

- Mas a minha mulher se salvou, não?

- Que pena, não, respondi. Ninguém escapou. Tua filha mais velha foi a primeira a morrer.

- E minha filha menor?

- Morta, morta!

- E meus dois filhos varões?

- Morreram. Morreram todos.

- E meu camelo?

- Morreu também. Oh, meu amo, ninguém escapou. As paredes da casa e as paredes do estábulo caíram juntas e esmagaram a todos, até os cabritos, os cachorros, as galinhas e os pássaros. Ninguém escapou. Oh, meu amo, o senhor não tem mais nem casa nem família.

A luz virou escuridão nos olhos de meu amo. Rasgou a roupa, arrancou a barba, bateu nas faces até que sangraram, gritando: “Meus filhos! Minha mulher!”

Os convivas cercaram-no, procurando fortalecê-lo. E todos se reuniram e se dirigiram para o local da tragédia quando viram ao longe uma multidão aproximar-se. Quando os dois grupos se encontraram, a primeira pessoa com quem meu amo cruzou foi a própria mulher. 

Ao constatar que estava cercada por todos os seus filhos, pôs-se a rir como um louco. Seus familiares jogaram-se por sua vez nos seus braços, gritando: “Meu marido, meu pai, graças a Deus estás salvo. Como conseguiste escapar da muralha que desabou sobre ti?” 

Gritava ele por sua vez: “Estais todos salvos, meus queridos. Como conseguistes vos salvar quando a casa desabou sobre vós?” 

Não demoraram uns e outros a dar-se conta de que tinham sido trágica e cinicamente enganados pelas minhas mentiras. 

Meu amo lançou-se sobre mim, berrando: “Escravo miserável, imundo, negro azarento, filho de uma prostituta e de um milhar de cachorros, amaldiçoado filho de uma raça maldita. Por que nos mergulhaste a todos nessa terrível aflição? Por Alá, vou separar tua pele de tua carne e tua carne de teus ossos.” 

Respondi sem medo: “Desafio-te a fazer-me o menor mal. Compraste-me com meu defeito na presença de testemunhas. Foste especificamente avisado de que meu defeito era dizer uma mentira por ano.” 

Quando chegamos a casa e ele a viu em ruínas, tendo a mulher lhe contado com algum exagero que tudo fora obra minha, ficou mais furioso ainda. 

“Bastardo, filho de uma cachorra,” gritou e levou-me ao uáli. Lá deram-me inumeráveis chicotadas até que perdi os sentidos. Enquanto estava inconsciente, chamaram um barbeiro que me castrou completamente. Acordei um eunuco de verdade, e ouvi meu amo dizer: 

“Destruíste coisas que me eram muito caras, e eu destruí coisas que te eram muito caras.” 

Depois, levou-me ao mercado e vendeu-me por um preço superior ao que tinha pago por mim porque eu já era um eunuco. Continuei a causar danos com minhas mentiras anuais. Mas sinto-me bastante enfraquecido desde então.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
As Mil e Uma Noites é uma coleção de histórias e contos populares originárias do Médio Oriente e do sul da Ásia e compiladas em língua árabe a partir do século IX. As histórias que compõem as Mil e uma noites têm várias origens, incluindo o folclore indiano, persa e árabe. Não existe versão definitiva da obra, uma vez que os antigos manuscritos árabes diferem no número e no conjunto de contos. O Imperador brasileiro Dom Pedro II foi o primeiro a traduzir diretamente do árabe para o português partes da obra mais conhecida da literatura árabe, e o fez com um rigor raro para a época. Já em idade avançada, aos 62 anos, ele começou o processo, o último registro de texto traduzido é de novembro de 1891, um mês antes de sua morte.

O que é invariável nas distintas versões é que os contos estão organizados como série de histórias em cadeia narrados por Xerazade, esposa do rei Xariar. Este rei, louco por haver sido traído por sua primeira esposa, desposa uma noiva diferente todas as noites, mandando matá-las na manhã seguinte. Xerazade consegue escapar a esse destino contando histórias maravilhosas sobre diversos temas que captam a curiosidade do rei. Ao amanhecer, Xerazade interrompe cada conto para continuá-lo na noite seguinte, o que a mantém viva ao longo de várias noites - as mil e uma do título - ao fim das quais o rei já se arrependeu de seu comportamento e desistiu de executá-la.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing