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quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Hans Christian Andersen (A menina que pisou no pão)

Era uma vez uma menina pobre, mas de natureza rebelde, que revelou más inclinações desde muito cedo. Quando pequenina, seu maior prazer era apanhar moscas e arrancar-lhes as asas, para vê-las depois andar se arrastando. Apanhava besouros e grilos e espetava-os em um alfinete; punha depois uma folha de livro, ou qualquer pedaço de papel bem próximo dele, para que pudessem segurá-lo com as patinhas - só pelo prazer de vê-los agitarem-se e torcerem-se, na ânsia de se libertar do alfinete.

   - O besouro está lendo - dizia a pequena Inger. - Vejam como ele vira a página!

   E, ao passo que ia crescendo, tornava-se cada vez pior. Era muito bonita, mas foi isso a sua infelicidade, sem dúvida.

   - Será preciso um rude golpe para te fazer curvar a cabeça. - dizia a mãe. - Quando eras menor, muitas vezes pisoteaste meu avental; receio muito que, quando fores grande, me pisoteies o coração!

    E assim aconteceu.

   Inger teve de ir para o campo, para servir em casa de uma família rica. Tratavam-na como se fosse filha e vestiam-na muito bem. Ia ficando cada vez mais bonita, mas o seu caráter não melhorava.

   Um ano após estar lá, disseram-lhe os patrões:

   - Deves ir visitar teus pais, Inger!

    Ela foi, mas apenas com a intenção de se mostrar, para que vissem como andava bem vestida. Ao chegar aos portões da cidade, viu alguns moços e moças que conversavam à beira do lago, e, sentada entre eles, sua mãe, com um feixe de lenha ao ombro.

   Inger deu a volta. Sentiu-se envergonhada de ter por mãe - ela, tão fina! - aquela velha esfarrapada, que juntava lenha no mato. Não ficou nem de leve compadecida; ao contrário, sentia-se irritada com aquilo.

   Passou-se mais meio ano, e sua ama disse-lhe:

  - Inger, é preciso que vás visitar teus pais. Leva-lhes este pão de trigo. Hão de ficar bem contentes de te ver.

  Inger vestiu suas melhores roupas e calçou os sapatos mais finos que tinha. Ergueu as saias e caminhava com muito cuidado para não sujar os sapatos. Certamente não merece censura por isso; mas quando chegou àquele ponto em que o caminho atravessa o brejo, e viu que estava todo cheio de lama, atirou no barro o pão que trazia, para passar por cima dele sem sujar os sapatos. Quando estava assim, com um pé sobre o pão e o outro erguido para dar mais um passo, o pão afundou-se e foi se enterrando cada vez mais, até que desapareceu, levando-a consigo. E nada mais se viu ali a não ser o charco negro e cheio de bolhas.

   Mas a menina? Que foi feito dela?  Inger foi dar onde estava a mulher do Brejo, que tem uma cervejaria lá embaixo. A mulher do Brejo é irmã do rei dos Duendes e tia das Bruxas, que são muito conhecidas. Muita gente tem escrito versos a respeito delas; outros pintaram os seus retratos; mas só o que sabemos a respeito da mulher do Brejo é que, quando o nevoeiro se ergue nos campos, no verão, é que ela está fabricando sua cerveja. E foi nessa cervejaria que Inger caiu; mas lá ninguém pode permanecer muito tempo. Um carro de lixeiro é coisa suave, comparado com a cervejaria da mulher do Brejo. O cheiro dos barris é o quanto basta para deixar uma pessoa doente, e estão tão juntos que não se pode passar entre eles; além disso, onde há por acaso alguma frestinha, está cheia de sapos asquerosos e cobras viscosas. E foi entre todas estas horrendas imundícies vivas que caiu a pequena Inger. O frio era tão intenso que ela tremia e já sentia os membros rígidos. O pão aderiu firmemente aos seus pés e levou-a para baixo.

   A mulher do brejo estava em casa. O velho Trasgo e seu bisavô encontravam-se lá de visita. A bisavó é uma mulher venenosa e nunca está ociosa. Nunca sai sem levar o seu trabalho, e tinha-o à mão naquele dia. Estava ocupada em fabricar couro andejo para pôr nos sapatos das pessoas, de modo que quem os usasse não podia ter descanso. Bordava mentiras e juntava todas as palavras inúteis que caíam no chão, para fazer dano com elas. Sim! A velha bisavó pode fazer tricôs e bordados muito finos!

   Assim que avistou Inger, pôs os óculos e olhou-a de alto a baixo, dizendo logo:

  - Esta menina me interessa! Gostaria de levá-la como lembrança da minha visita. Daria uma boa estátua para o corredor exterior da casa do meu bisneto.

Desse modo, Inger foi à Terra dos Trasgos. Nem sempre as pessoas vão lá por esse caminho direto, visto que é fácil ir por caminhos mais extensos.

      Era um corredor que nunca se acabava: dava vertigem olhar para diante ou para trás. Lá estava uma multidão ignominiosa, à espera de que se abrisse a porta da misericórdia; mas muito tinham que esperar! Grandes e gordas aranhas agitavam-se, tecendo teias de mil anos ao redor de seus pés: e aquelas teias pareciam parafusos, que a prendiam fortemente, como se estivessem amarradas com correntes de cobre. Além disso, todas as almas padeciam um eterno desassossego; um tormento perpétuo. O infeliz que tinha esquecido a chave do seu cofre sabia que a deixara na fechadura. Mas seria um nunca acabar, se eu quisesse enumerar todas as torturas daquele lugar. Inger sofria o tormento de parar em pé como uma estátua, com um pão colado aos pés.

  - Foi o que ganhei, por querer conservar os sapatos limpos! - dizia ela consigo. - Vejam como eles olham para mim!

   Era verdade que todos olhavam para ela, e todas as suas más paixões brotavam dos olhos, falando sem que os lábios se abrissem em palavras. Era uma visão terrível!

    - Deve dar grande prazer olhar para mim! - pensava Inger. - Tenho um rosto lindo e belas roupas.

    Voltou então os olhos para se ver; o pescoço também estava rígido. Mas, oh! Como se sujasse na cervejaria da esposa do Brejo! Nunca se lembrará de semelhante coisa... A roupa estava coberta de lama viscosa; uma cobra se lhe enroscara no cabelo e caía-lhe pelas costas. De cada prega do vestido espiava um sapo, coaxando sem parar. Era horrível! Mas sentia consolo, pensando:

    - Todos os outros que se encontraram aqui embaixo estão tão medonhos como eu!

     Mas o pior era a fome devoradora que sentia; e não podia abaixar-se para tirar um pedaço do pão que tinha nos pés. Não; não podia; mãos e braços haviam endurecido, e todo o seu corpo era como um pilar de pedra. Só podia mover os olhos, mas isso, sim! Podia movê-los em redor e olhar para trás. E que medonha visão aquela! Vieram as moscas, que lhe andavam por cima dos olhos, e por mais que ela pestanejasse, não iam embora; não, as moscas não podiam sair, porque ela lhes tinha arrancado as asas, virando-as em insetos rastejantes.

Era um grande suplício da fome que a devorara por dentro; parecia-lhe que já estava completamente vazia.

   - Se isto durar muito, eu não poderei suportar - pensou Inger.

   Mas aquilo continuou, ela teve de suportar.

   Foi então que uma lágrima escaldante lhe caiu sobre a fronte, e foi escorrendo pela face e pelo peito abaixo, até cair sobre o pão; e depois outra, e mais outra, e aquilo já parecia uma chuva.

   Mas quem estaria chorando pela pequena Inger? Pois ela não tinha uma mãe na terra? As lágrimas de tristeza que uma mãe chora pelo seu filho sempre o alcançam; contudo, não lhe trazem alívio; elas queimam e tornam o tormento cinquenta vezes pior. E a fome terrível de novo a assaltou, e ela sem poder apanhar o pão que tinha nos pés! Afinal, experimentou uma sensação estranha: parecia-lhe que estava a se comer a si própria, e que já nada mais era senão um caniço oco, que conduz todos os sons. Ouvia distintamente tudo o que se dizia na terra a seu respeito, e tudo o que ouvia eram palavras duras.

   Sua mãe, é certo, chorava triste e amargurada, mas dizia:

   - O orgulho sempre precede a queda! Foi a tua infelicidade, Inger! Como magoaste tua mãe!

   Não só sua mãe, mas todos na terra sabiam o que ela havia feito; sabiam que tinha pisado no pão e que submergira no paul. Souberam pelo pastor, que tinha visto tudo de cima do montículo onde se achava.

  - Como afligiste tua mãe, Inger! - dizia a pobre mulher. - Mas eu bem te avisava!

   - Antes eu nunca tivesse nascido! - pensava Inger. - Seria muito melhor para mim. As lágrimas de minha mãe não me servem de nada agora!

Ouviu também seus antigos patrões, pessoas tão boas, que tinham sido para ela o mesmo que pais, falando a seu respeito:

   - Era uma menina pecadora. Não dava valor aos dons de Deus e pisava-os aos pés. Será difícil para ela abrir a porta da misericórdia!

   Mas Inger pensava lá embaixo;

  - Deviam ter-me educado melhor! Deviam ter dominado a minha soberba, se eu a tinha.

   Ouviu também uma canção que escreveram, que era cantada por toda parte:
                 
" Menina tão arrogante.
Que caminhou sobre um pão
Para não sujar os sapatos!"

- E terei de ouvir sempre esta velha história, e sofrer com isso! - pensava ela. - Mas os outros também deviam ser punidos pelos seus pecados. Haveria muito o que castigar! Oh! Como sofro!

E seu coração se endurecia ainda mais que a casca de fora.

Ninguém poderá melhorar nada nesta companhia em que estou!  E eu não quero mesmo ficar melhor... Oh! Agora estão todos olhando para mim!

E Inge tinha o coração cheio de ódio e má vontade para com todos.

- Agora terão assunto para conversar lá em cima! Que tortura!

Ouvia as pessoas contarem sua história às crianças; e estas diziam sempre:

- Malvada Inger! Era tão perversa que teve de sofrer tormentos!

E só ouvia da boca das crianças palavras duras.

Mas um dia, quando sentia o ódio e a fome a lhe roerem a casca vazia, ouviu o seu nome; alguém contava a sua história a uma criancinha inocente, uma meninazinha, e a criança rompeu a chorar, ouvindo a história da orgulhosa e vaidosa Inger. E perguntou:

- Ela nunca subirá para a terra outra vez?

- Ela nunca tornará a subir para a terra. - disse a outra voz.

- Mas e se ela pedir perdão e prometer não tornar a fazer isso? - perguntou a criança.

- Ela não pedirá perdão. - disseram-lhe.

- Mas eu queria que ela pedisse! - insistiu a criancinha, que não aceitava explicações. - Eu dou a casa da minha boneca para ela subir outra vez... É horrível o que aconteceu com a pobre da Inger!

Aquelas palavras chegaram ao coração de Inger, e parece que lhe fizeram bem. Era a primeira vez que alguém dizia: " Pobre da Inger!" sem acrescentar alguma coisa a respeito das suas más ações. Uma criancinha inocente chorava e orava por ela, e aquilo lhe causava uma sensação estranha: desejaria chorar também, mas seus olhos não podiam derramar uma só lágrima, e isso ainda lhe aumentava o tormento.

Assim como os anos iam passando em cima, foram também correndo lá embaixo, sem que coisa alguma se modificasse: Inger já não ouvia falar tanto de si. Mas um dia percebeu um suspiro:

- Inger, Inger, quanto desgosto me causaste! Eu bem sabia que havia de ser assim!

Era sua mãe que estava moribunda.

Ouviu também o seu nome repetido pelos seus antigos patrões, e as palavras menos cruéis que sua ama disse foram estas:

- Chegarei a ver-te outra vez, Inger? A gente nunca sabe para onde irá!

Mas Inger sabia bem que sua ama, tão boa, tão virtuosa, jamais iria ter o lugar onde ela estava.

Passou-se um novo e longo período cheio de amargura. Inger tornou a ouvir o seu nome e viu acima da sua cabeça duas coisas que pareciam duas estrelas cintilantes; eram de fato dois olhos que se fechavam na terra, tantos anos se passaram depois que aquela criança tinha chorado tão sentidamente ao ouvir a história da "pobre Inger", que ela era agora uma anciã, a quem o senhor chamava para ao Seu lado. No último momento, quando a vida inteira da criatura lhe volta à memória, ela se lembrou das lágrimas que derramara por causa de Inger. E a impressão era tão clara na hora da morte, que a velhinha exclamou em voz alta:

- Senhor! Oxalá eu não tenha jamais, como Inger, calçados aos pés, sem o saber, teus dons abençoados. Oxalá também eu não tenha jamais nutrido orgulho no coração. Não me abandones agora na minha última hora!

Fecharam-se os olhos da velha dama, e os olhos de sua alma se abriram para ver as coisas ocultas; e como Inger tinha estado tão nitidamente presente nos seus últimos pensamentos, via agora quão profunda fora a queda da menina. E, àquela vista, desatou a chorar. E ficou, feito uma criança, chorando pela pobre Inger, no reino dos Céus. Suas lágrimas e suas preces ecoaram na casca oca e vazia que encerrava a alma prisioneira e torturada, agora completamente vencida por todo aquele amor vindo de cima. 

Um anjo de Deus, chorando por ela! Por que lhe era feita esta concessão? A alma torturada lembrava-se de cada ação terrena que praticara, e afinal desatou a chorar, e Inger chorou, como jamais fizera. Sentia-se agora cheia de tristeza pelos seus atos; chorou como se a grande porta de misericórdia nunca pudesse abrir-se para ela. Mas quando reconheceu isso em humildade e contrição, um raio de luz brilhou no abismo em que caíra. 

O poder daquele raio de luz era muito maior do que o da luz do sol que derrete o homem de neve feito pelos meninos no jardim; e mais depressa, muito mais depressa do que se derrete um floco de neve dos lábios quentes de uma criança, dissolveu-se diante dele a forma petrificada de Inger, e um passarinho voou com a rapidez do relâmpago para o mundo de cima. Estava muito assustado e tinha medo de tudo. Sentia-se vexado; receava encontrar o olhar de qualquer ser vivente; e procurou mais que depressa abrigar-se em uma fenda da parede. Naquele esconderijo, encolheu-se todo, tremendo da cabeça aos pés; não podia articular som algum, porque não tinha voz. E ali ficou muito tempo, antes que pudesse olhar com calma as coisas admiráveis que o cercavam. 

Sim, eram na verdade admiráveis! O ar era tão suave e tão fresco, a lua brilhava com tanto fulgor, as árvores e arbustos exalavam tanto perfume! E, além de tudo isso, já tão agradável, ainda suas penas estavam limpas, tão brilhantes! Como toda a criação falava de amor e de beleza! O passarinho bem desejaria cantar alegremente, exprimindo todos os sentimentos que lhe brotavam no peito; entretanto, não lhe era possível cantar. Teria gorjeado com a maior alegria, como os cucos e os rouxinóis fazem no verão. 

O bom Deus, que ouve até os mudos hinos de louvor de um verme, compreendia também aquele cântico de gratidão que tremia no peito do passarinho, da mesma maneira que os salmos de David ecoavam no seu coração antes que tomassem forma em palavras e melodia. Aqueles pensamentos e aqueles cânticos sem voz foram crescendo e foram aumentando durante semanas; deviam expandir-se, e à primeira tentativa para praticar uma boa ação, achariam a saída.

Era o tempo da Festa de Natal. Os camponeses ergueram um mastro contra um muro e amarraram um feixe de aveia na ponta, para que os passarinhos pudessem ter um bom repasto naquele dia feliz.

O sol surgiu brilhante e iluminou o molho de aveia, e os passarinhos cercaram o mastro, pipilando. Foi então que daquela fresta da parede veio um pio fraquinho; os sentimentos sempre em aumento do passarinho tinham achado uma voz, e aquele débil pipilar era o seu hino de louvor. Tinha despertado nele o pensamento de uma boa ação, e o passarinho voou, abandonando seu esconderijo; no Reino dos Céus, era ele bem conhecido.

O inverno corria áspero e toda a água estava coberta por uma camada de gelo. Era com grande dificuldade que as aves e os outros animais encontravam alimento. O passarinho voava à beira da estrada, encontrava de vez em quando um grão de trigo nos sulcos dos trenós. Achava também alguns farelos de pão perto das hospedarias, mas comia apenas uma migalha, pois queria deixar bastante alimento para os outros passarinhos que ali aparecessem. Voou então para as cidades e espiava nas cercanias. Onde quer que alguma mão carinhosa tivesse espalhado migalhas de pão para os passarinhos, ele comia apenas uma só e deixava o restante.

No decorrer do inverno, o passarinho tinha assim renunciado, em favor dos outros, tantas migalhas de pão que elas já igualavam em peso aquele pão inteiro que a pequena Inger calçara aos pés, para não sujar os sapatos. Então as asas cinzentas do passarinho ficaram brancas e foram se distendendo, e as crianças que viram aquela ave branca disseram:

- Lá anda uma gaivota, voando sobre o mar.

A ave ora mergulhava nas águas, ora voava e remontava muito alto. E, contra a intensa luz que brilhava no espaço, não foi possível ver que fim levou.

As crianças afirmaram que ela entrou no sol.
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Hans Christian Andersen foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.
Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente em 1859. Disponível em Domínio Público
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segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Zitkala-Ša (O Grande Espírito)

Quando o espírito me incha o peito, adoro vagar tranquilamente entre as colinas verdes; ou, às vezes, sentado à beira do murmurante Missouri, maravilho-me com o imenso azul acima. Com os olhos semicerrados, observo as enormes sombras das nuvens em seu jogo silencioso sobre os altos penhascos à minha frente, enquanto em meus ouvidos ondulam as cadências doces e suaves da canção do rio. Mãos postas repousam em meu colo, por um tempo esquecido. Meu coração e eu jazemos pequenos sobre a terra como um grão de areia pulsante.

Nuvens flutuantes e águas tilintantes, juntamente com o calor de um agradável dia de verão, revelam com eloquência o amoroso mistério que nos cerca. Durante o tempo em que fiquei sentado à beira ensolarada do rio, cresci um pouco, embora minha resposta não fosse tão claramente manifesta quanto na grama verde que margeia a borda do penhasco alto atrás de mim.

Por fim, refazendo a trilha incerta que sobe o barranco íngreme, procuro as terras planas onde crescem as flores selvagens da pradaria. E elas, as pequenas e adoráveis pessoas, acalmam minha alma com seu hálito perfumado.

Seus rostos redondos e pitorescos, de tonalidade variada, convencem o coração, que salta de alegre surpresa, de que eles também são símbolos vivos do pensamento onipotente. Com o olhar ávido de uma criança, absorvo as miríades de formas estelares moldadas em cores exuberantes sobre o verde. Bela é a essência espiritual que elas personificam.

Deixo-os balançando ao vento, mas levo comigo a marca deles em meu coração. Paro para descansar sobre uma rocha incrustada na encosta de uma colina, de frente para o leito baixo do rio. Ali, o Menino-da-Pedra, de quem o aborígene americano fala, brinca, atirando suas flechas de bebê e gritando de alegria para os minúsculos raios que saem dos bicos das flechas voadoras. Que guerreiro ideal ele se tornou, frustrando o cerco das pragas de toda a terra até triunfar sobre seu ataque unido. E ali jazia ele — Inyan, nosso tataravô, mais velho que a colina em que descansou, mais velho que a raça dos homens que amam contar sobre sua maravilhosa carreira.

Entrelaçado com o fio desta lenda indígena da rocha, eu gostaria de traçar um conhecimento sutil do povo nativo que os permitisse reconhecer um parentesco com toda e qualquer parte deste vasto universo. Seguindo uma trilha antiga, sigo em direção à aldeia indígena.

Com a forte e feliz sensação de que tanto o grande quanto o pequeno estão tão seguramente envolvidos em sua magnitude que, sem perder, cada um tem seu campo individual de oportunidades, estou flutuando com boa natureza.

Peito Amarelo, balançando no caule esguio de um girassol selvagem, gorjeia uma doce certeza disso enquanto passo por perto. Interrompendo a canção cristalina e clara, ele vira sua cabecinha de um lado para o outro, observando-me sabiamente enquanto eu lentamente ando com os pés calçados com mocassins. Então, novamente, ele se entrega à sua canção de alegria. Voa, voa de um lado para o outro, ele preenche o céu de verão com sua melodia rápida e doce. E realmente parece que sua vigorosa liberdade reside mais em seu pequeno espírito do que em suas asas.

Com esses pensamentos, chego à cabana de madeira, para onde sou fortemente atraído pelo laço de uma criança com uma mãe idosa. Meu amigo de quatro patas sai ao meu encontro, saltitando pelo meu caminho com inconfundível deleite. Chän é uma cadela preta e peluda, "uma vira-lata puro-sangue" de quem gosto muito. Chän parece entender muitas palavras em Sioux e vai para o tapete mesmo quando sussurro a palavra, embora geralmente eu ache que ela se guia pelo tom de voz.

Muitas vezes, ela tenta imitar a inflexão deslizante e a voz arrastada para o divertimento dos nossos convidados, mas sua articulação está além do meu ouvido. Com as duas mãos, seguro sua cabeça peluda e olho em seus grandes olhos castanhos. Imediatamente, as pupilas dilatadas se contraem em minúsculos pontos pretos, como se o espírito travesso interior escapasse do meu questionamento.

Finalmente, ao retomar a cadeira à minha escrivaninha, sinto uma profunda simpatia por meus semelhantes, pois pareço ver claramente novamente que todos são semelhantes. As linhas raciais, que antes eram amargamente reais, agora não servem mais do que delinear um mosaico vivo de seres humanos. E mesmo aqui, homens da mesma cor são como as teclas de marfim de um instrumento onde cada uma se assemelha a todas as outras, mas difere delas em tom e qualidade de voz. E aquelas criaturas que são por um tempo meros ecos da nota de outra não são diferentes da fábula do homem magro e doente cuja sombra distorcida, vestida como uma criatura real, veio até o velho mestre para fazê-lo seguir como uma sombra. Assim, com compaixão por todos os ecos em forma humana, saúdo o "pregador nativo" de rosto solene que encontro à minha espera. Escuto com respeito pela criatura de Deus, embora ele pronuncie de forma estranha as frases estridente de um credo intolerante.

Como nossa tribo é uma grande família, onde cada pessoa é parente de todas as outras, ele se dirigiu a mim:

"Prima, vim do culto matinal para conversar com você."

"Sim?", perguntei, interrogativamente, enquanto ele parava para me dizer alguma coisa.

Mexendo-se inquieto na cadeira de encosto reto em que estava sentado, ele começou: "Todos os dias santos (domingo), olho ao redor da casa do nosso pequeno Deus e, não o vendo lá, fico decepcionado. É por isso que venho hoje.

Prima, observando-o de longe, não vejo comportamento impróprio e ouço apenas bons relatos a seu respeito, o que me faz desejar ainda mais que você fosse membro da igreja. Prima, fui ensinado há muitos anos por missionários gentis a ler o livro sagrado. Esses homens piedosos também me ensinaram a loucura de nossas antigas crenças.

"Há um Deus que recompensa ou castiga a raça dos mortos. Na região superior, os mortos cristãos reúnem-se em cânticos e orações incessantes. No poço profundo abaixo, os pecadores dançam em chamas torturantes.

"Pense nessas coisas, prima, e escolha agora evitar a condenação do fogo do inferno!" Seguiu-se um longo silêncio no qual ele apertou e desfez os dedos entrelaçados com mais força.

Como relâmpagos instantâneos, surgiram imagens criadas por minha própria mãe, pois ela também agora é seguidora da nova superstição.

"Apagando a fresta da nossa cabana de madeira, uma mão maligna enfiou uma vela acesa feita de capim seco trançado, mas não conseguiu, pois o fogo se apagou e o tição meio queimado caiu no chão. Bem acima dele, em uma prateleira, estava o livro sagrado. Foi isso que encontramos após nosso retorno de uma visita de vários dias. Certamente, algum grande poder está oculto no livro sagrado!"

Afastando dos meus olhos muitas imagens semelhantes, ofereci o almoço ao índio convertido, sentado sem dizer nada e com o rosto abatido. Assim que ele se levantou da mesa com "Prima, eu o saboreei", o sino da igreja tocou.

Para lá, ele saiu apressado com seu sermão da tarde. Observei-o enquanto ele se apressava, com os olhos fixos na estrada empoeirada, até desaparecer ao final de um quarto de milha.

O pequeno incidente me fez lembrar do exemplar de um artigo missionário que me foi trazido à mente há alguns dias, no qual um pugilista "cristão" comentou um artigo meu recente, pervertendo grosseiramente o espírito da minha pena. Ainda assim, não me esqueceria de que o missionário de rosto pálido e o aborígene encapuzado são ambos criaturas de Deus, embora suas próprias concepções de Amor Infinito sejam realmente pequenas. Uma criança pequena engatinhando em um mundo maravilhoso, prefiro aos seus dogmas minhas excursões aos jardins naturais, onde a voz do Grande Espírito é ouvida no chilrear dos pássaros, no ondular das águas caudalosas e no doce sopro das flores.

Aqui, em um silêncio fugaz, sou despertado pelo manto esvoaçante do Grande Espírito. Para minha consciência mais íntima, o universo fenomenal é um manto real, vibrando com Seu sopro divino. Presos em suas franjas esvoaçantes estão as lantejoulas e os brilhantes oscilantes do sol, da lua e das estrelas. 
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ZITKALA-ŠA (1876-1938), que em Lakota significa 'Pássaro Vermelho', nasceu na Reserva Indígena Yankton em Dakota do Sul, filha de mãe Dakota e pai francês, que a abandonou quando criança. Aos oito anos, foi obrigada a deixar a liberdade e a felicidade da vida entre seu povo – como ela mesma dizia - para ser educada nos costumes e crenças europeus em um internato missionário Quaker. Lá ela recebeu o nome de Gertrude Simmons, seus longos cabelos foram cortados, ela foi forçada a suprimir todos os sinais e costumes de sua cultura e a rezar como uma quaker. As únicas coisas boas que resultaram disso para ela foram aprender a ler, escrever e tocar violino. Três anos depois, ela voltou para a reserva de Yankton apenas para descobrir, para sua consternação, que as pessoas na reserva estavam começando a adotar os costumes e modos de pensar dos europeus e que mesmo ela tinha um pé em cada mundo. Depois de mais três anos na reserva, ela voltou ao mundo dos brancos com a intenção de continuar sua formação musical. Ela aprendeu piano e violino e acabou ensinando música e estudando no Earlham College em Richmond, onde exibia publicamente sua bela oratória. Ao longo dos anos, cruzando repetidamente a ponte entre sua cultura e a cultura europeia, entre a reserva e o mundo branco, Zitkala-Ša acabaria se tornando escritora, editora, tradutora e ativista política, além de musicista e educadora. Ela chegaria a compor uma ópera com o compositor William F. Hanson, intitulada The Sun Dance Opera, baseada na Lakota Sun Dance, que o governo federal havia proibido o povo Ute de realizar em sua reserva. 

Em 1916, aos 30 anos, ela começou seu ativismo nativo americano ao ser nomeada secretária da Society of American Indians, uma associação dedicada à preservação do modo de vida nativo americano. Ela também fez lobby em círculos políticos pelo direito de seu povo à plena cidadania americana. De Washington DC, Zitkala-Ša fez duras críticas ao Bureau of Indian Affairs, chegando a pedir sua dissolução por causa de suas políticas de internato, pelo levantamento da proibição de crianças indígenas usarem sua própria língua e preservar seus costumes culturais. Ela denunciou os abusos que aconteciam nesses internatos sempre que um menino ou uma menina nativa se recusava a rezar de acordo com a maneira cristã.

Também de Washington ela começou a dar palestras em todo os Estados Unidos e, durante a década de 1920, começou a promover a ideia de criar um movimento pan-indígena que unisse todas as tribos da América do Norte para fazer lobby em nome dos povos nativos. Em 1924, graças em parte aos seus esforços, foi aprovada a Lei da Cidadania Indígena, concedendo direitos de cidadania americana à maioria dos povos indígenas que ainda não os possuíam. Em 1926, ela e o marido fundaram o Conselho Nacional dos Índios Americanos (NCAI), com o objetivo de unir as tribos dos Estados Unidos em sua luta pelos direitos dos índios. No entanto, Zitkala-Ša não era apenas um ativista pelos direitos das Primeiras Nações da América do Norte. Ela também esteve envolvida no ativismo pelos direitos das mulheres na década de 1920, quando ingressou na Federação Geral de Clubes Femininos. Zitkala-Ša morreu em 1938, aos 61 anos, e foi enterrada no Cemitério Nacional de Arlington, em Washington. Para homenageá-la, a União Astronômica Internacional nomeou uma cratera em Vênus "Bonnin", seu sobrenome de casada, Gertrude Simmons Bonnin.

Fontes:
Zitkala-Ša. American indian stories. Publicada originalmente em 1921. 
(tradução do inglês por Jfeldman)
Disponível em Domínio Público. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Hans Christian Andersen (A flor de sabugueiro)

Era uma vez um menino que apanhou um resfriado, porque saiu de casa e molhou os pés. Ninguém conseguia descobrir, contudo, como chegou a molhar os pés, pois o tempo estava seco. A mãe despiu-o e meteu-o na cama, e mandou trazer os apetrechos para fazer uma boa taça de chá de flor de sabugueiro, que logo aquece a gente. Naquele momento chegou o amável velhote que morava no último andar, e vivia sozinho - porque não tinha mulher nem filhos. Gostava muito de crianças, e sabia uma infinidade de histórias de fadas, e de contos muito bonitos, e contava com tanta graça, que era um encanto ouvi-lo.

- Se tomares teu chá - disse a mãe - quem sabe se o vizinho te contará alguma história bonita, enquanto vais bebendo?

- E quem me dera saber uma nova! - acudiu o bom velho, sacudindo a cabeça e sorrindo. - Mas como foi que esse gurizinho molhou os pés?

- Pois é isso mesmo que eu pergunto - disse a mamãe. - Ninguém o sabe?

- Então o senhor vai contar uma história? - perguntou o menino.

- Sim! Mas primeiro hás de me dizer com certeza que profundidade tem a calha daquela travessa por onde passas para a escola. Sabes?

- Dá-me pela barriga da perna, quando entro no buraco mais fundo.

- Então foi lá que molhaste os pés. Agora é justo que te conte uma história, como prometi, mas o caso é que não sei mais nenhuma.

– Oh! A mamãe diz que o senhor converte em histórias as coisa que vê; e que pode tirar um conto de fadas de tudo quanto toca...Invente uma agora!

- É verdade, mas são histórias que não prestam para nada. As boas, as verdadeiras histórias, sãos as que vem de si mesmas, batem-me na testa e dizem: " Aqui estamos, aqui estamos!"

- E não está batendo uma agora?

A mãe ria, enquanto ia deitando no bule as flores de sabugueiro, e água fervendo.

- Um conto! Quero uma história! - dizia o doentinho. 

– Conto! - respondeu o velho. - Mas as histórias são gente de alto coturno, e só aparecem quando lhes dá na cabeça...Mas espera...Ah! Já temos uma! Olha para o bule de chá: lá dentro está uma história.

O menino olhou para o bule. A tampa ia se erguendo, se erguendo...e de dentro foram brotando ramos cheios de folhas e de flores, alvas e frescas, que se estendiam em todas as direções. Até do bico saía um broto, também florescido. E os raminhos iam crescendo, crescendo, e formaram uma árvore, que chegou até a cama, afastando as cortinas para um lado. E que perfume delicioso espalhavam aquelas flores! E no meio da árvore estava uma velhinha de ar bondoso, com um estranho vestido, de cor verde, como as folhas, e todo estampado de flores de sabugueiro, e assim não se distinguia bem se era feito de um tecido, ou de folhas e flores vivas.

- Como se chama aquela dama? - perguntou o menino.

- Os gregos e romanos diziam que era uma Dríade (A Dríade é um ser da natureza que tem sua alma contida em uma árvore muito antiga).  - respondeu o velho. - Mas nós não entendemos essas palavras, e achamos um nome que lhe assenta mais: no bairro onde moram os marinheiros chamam-na " A Mãe Sabugueira". E agora deves olhar bem para ela, e escutar sem despregar os olhos da linda árvore.

E o velhinho começou:

" Em um canto de um pátio pequenino, no bairro de Niburgo, há uma árvore assim, grande e cheia de flores, como esta. Em uma tarde de verão um casal idoso estava sentado à sombra do grande sabugueiro, num pátio sombrio: era um velho marujo e sua mulher, tão idosa como ele. Tinham muitos netos e bisnetos, e pouco faltava para celebrarem as "Bodas de Ouro":  sim, faltava pouco tempo, mas nenhum deles se lembrava da data exata do casamento. A Mãe Sabugueira, que estava sentada na árvore, e olhava para eles com simpatia, como nos está olhando agora, disse-lhes:

" - Eu sei a data.

"Mas eles não a ouviram, porque estavam falando dos seus tempos passados. O velhinho dizia:

"- Lembras-te de quando éramos pequenos, como brincávamos juntos, neste mesmo pátio? E o dia em que enterramos galhinhos de plantas, formando um jardim?

"- Sim! Lembro-me de tudo, como se fosse hoje - disse a velhinha. - E nós regávamos as varinhas, e uma delas, um galho de sabugueiro, enraizou, e brotou, e cresceu, cresceu tanto que veio a ser esta grande árvore, que agora nos dá sombra na velhice.

"- Isso mesmo! E ali naquele canto está o tonel onde eu gostava de por a flutuar meu barquinho, que eu mesmo talhara na madeira. E como ele navegava!... Mas em breve naveguei de outra maneira...

"- Sim - disse a velhinha. - Mas antes disso estivemos na escola, onde aprendemos muitas coisas. E um dia fomos passear em Frederiscburgo, e vimos e o rei e a rainha que passavam no canal, no seu magnífico bote.

"- É, mas eu teria de navegar depois muito mais longe do que eles, e anos e anos, por mares longínquos!

"- E eu quantas vezes chorei por ti - acudiu a velhinha - julgando-te morto lá longe, no fundo do mar, embalado pelas vagas!! E quantas vezes me levantei de noite, para ver se o cata-vento tinha virado... Sim, dava muitas voltas, mas tu, tu não voltavas! Um dia - lembro-me como se tivesse sido ontem - chovia tanto, tanto, que parecia que o céu vinha abaixo. O lixeiro chegou à casa aonde eu servia, e eu peguei na tina de lixo  e desci a escada, e parei à porta. Mas que tempo! Chovia a cântaros! E enquanto eu esperava ali parada, chega o carteiro e entrega-me  uma carta. Era tua - e Deus sabe quanto tinha viajado! Abri-a imediatamente, e li-a ali mesmo, chorando e rindo de alegria. Nela contavas que estavas naquelas terras quentes, onde nasce o café. Que lindo devia ser esse país! Era uma terra maravilhosa, conforme dizias, e eu ali fiquei, lendo a tua carta, sem me lembrar mais da chuva que caía, com a tina do lixo na mão - quando alguém me passou o braço pela cintura...

"- Ah! Mas tu me assentaste um belo soco na orelha, que até hoje ainda chia...

"- Pois se eu não sabia que eras tu, ora essa! Chegavas ao mesmo tempo que a carta, e vinhas tão guapo - e ainda o és, isso é verdade! Tinhas no bolso um grande lenço de seda amarela, e trazias um chapéu todo lustroso... Que elegante estavas! Mas que tempo espantosos, aquele! E a enxurrada enchia a rua...

"- E casamos, lembras-te? E quando nos nasceu o primeiro menino, e depois a Maria, e o Niels, e o Hans Cristian...Lembras-te?

"- Como não hei de, lembrar? Cresceram, enfim, e são hoje gente prestante, a quem todos apreciam.

"- E  agora seus filhos também tem filhos - continuou o velho marinheiro. - Sim, tens netos em quantidade! E feitos de boa cepa, isso sim! Se não estou enganado, foi nesta época do ano mesmo que casamos...

- Sim, é hoje o dia das bodas de ouro! - disse a Mão Sabugueira, metendo a cabeça entre os dois velhinhos.

"Mas eles pensaram que era o vizinho que os cumprimentava. E nisto entraram no pátio seus filhos, e os filhos de seus filhos, que sabiam bem que era aquele o dia das bodas de ouro, e já tinham dado os parabéns aos velhos naquela manhã, pela data feliz: mas eles, que recordavam tanta coisa tão remota, não se lembravam daquele fato que era mais recente,

"E o sabugueiro desprendia seu perfume suave, e o sol poente iluminou o rosto dos velhos, dando-lhes uma suave colorido às faces, e o menor dos netos cantou e dançou em redor deles, proclamando, cheio de alegria, que naquela noite iam celebrar uma grande festa, e que à ceia comeriam as batatas assadas. E a Mãe Sabugueira inclinava a cabeça, saudando-os, e dizendo como as outras pessoas:

" - Parabéns! Parabéns!"

- Ora, isso não é história! - observou o menino, que escutara com muita atenção.

Tu achas que não? - disse o velho. - Mas vamos perguntar à Mãe Sabugueira.

- Não, não é uma história - confirmou ela. - Mas agora é que a história principia. As histórias mais estranhas tem, muitas vezes um fundo de verdade - senão, como teria a minha linda árvore brotado do bule de chá?

Dizendo isso, tirou o menino da cama e aconchegou-o ao seio. Os ramos de sabugueiro fecharam-se  em redor deles, de sorte que parecia um caramanchão (Dá-se no nome de caramanchão a uma construção utilizada em diversos espaços públicos, nomeadamente em espaços verdes, com o intuito de poderem ser utilizados para efeitos de descanso, abrigo, entre outros. Na sua construção é habitual serem utilizados materiais como ripas, canas ou estacas, e servirem de suporte a espécies vegetais tais como trepadeiras) pequenino e saíram a voar pelos ares, levando-os assim abrigados - e era lindo , aquele voo!  Mãe Sabugueira converteu-se em uma bela menina ainda rajada com o mesmo vestido verde da cor das folhas, recamado de flores alvas, que a velha vestia. Tinha no peito uma flor de sabugueiro, de verdade, e cingia-lhe a cabeça, adornando-lhe os cabelos dourados, uma coroa das mesmas flores. Os olhos eram tão grandes, e tão azuis... oh! ela era na verdade muito, muita linda! Beijaram-se as duas crianças, porque eram da mesma idade agora, e alegravam-se por igual, vendo coisas tão belas.

Saíram do pequenino caramanchão de mãos dadas, e encontraram-se em casa, no seu jardim. Viram a bengala do pai, amarrada a um pilar, perto do gramado, e correram a encarapitar-se nela, pois a bengala criou vida imediatamente, por amor das crianças, o castão brilhante converteu-se em uma cabeça de cavalo de verdade, que até relinchava, coberta de longa crina negra e já brotaram quatro pernas, delgadas, mas vigorosas e lépidas, no corpo do cavalo. E o petiço saiu a galopar com as duas crianças no lombo, ao redor do gramado.

- Viva! Vamos correr agora milhas e milhas! - disse o menino - Vamos àquela granja onde estivemos o ano passado, a linda morada daquele senhor tão opulento!

E galopavam assim ao redor do prado, enquanto a menina -  que não era outra senão a Mãe Sabugueira, como sabemos - gritava de alegria, dizendo:

- Agora estamos no campo. Olha aquele chalezinho, com um forno saliente na parede, que até parece um ovo gigantesco! Um sabugueiro estende os galhos por cima do chalé, e no pátio está o galo muito atarefado! Um sabugueiro estende os galhos por cima do chalé, e no pátio está o galo, muito atarefado em esgaravatar para os pintos. Olha como se pavoneia! Já chegamos perto da igreja, lá em cima do morro, à sombra de um imenso carvalho, já meio seco. Agora lá está a forja, o fogo brame, enquanto homens seminus vibram os martelos, fazendo saltar faíscas, que voam para todos os lados. Vamos, vamos! Lá está a granja do homem rico!

E tudo quanto a menina ia nomeando, ia aparecendo, e o menino via tudo. Depois varreram o caminho, para brincar de jardineiros: ela tirou do cabelo as flores de sabugueiro e plantou-as, e as flores cresceram imediatamente, e ficaram árvores  tão altas e tão copadas como aquela que o casal de velhinhos tinha plantado, quando eram crianças. Caminharam de mãos dadas, justamente como tinham feito também os velhinhos, quando eram crianças; não foram, porém, até o jardim de Fredericsburgo. Não! A menina segurou o menino pela cintura e saíram voando por sobre a terra. passavam alternando-se a primavera, o verão, o outono e o inverno; mil imagens flutuavam diante dos olhos do menino, gravando-se-lhe no coração, e a menina ia cantando para ele:

"Oh! Nunca, nunca, nunca 
Hás de esquecer tudo isto!"

E voavam, voavam, e o sabugueiro nunca se cansava do desprender seu aroma suave. O menino via lá embaixo roseirais, e faias verdejantes, mas o perfume do sabugueiro era mais penetrante, porque se exalava da flor que estava presa ao peito da menina, junto do seu coraçãozinho, sobre o qual o menino reclinava às vezes a cabeça, naquele voo maravilhoso.

- Que linda é aqui a primavera! - disse ela, quando andavam pela alameda de faias.

As árvores estavam cobertas de brotos novinhos; o lírio do vale perfumava o chão que iam pisando, e as anêmonas rosadas brilhavam entre a grama verde. Que maravilha se a primavera nunca acabasse nos bosques de faia da fragrante Dinamarca!

Passavam agora pelos velhos castelos do fidalgo, e a menina dizia:

- Como isto aqui é belo no verão!

As altas muralhas e os telhados pontudos espalhavam-se nas águas dos canais, onde nadavam cisnes, procurando a sombra das frescas alamedas. Nos campos ondulava o trigo, como o fluxo e refluxo das águas de um lago, nos fossos brilhavam flores vermelhas e amarelas, e nas sebes entrelaçavam-se o lúpulo e as clematites silvestres. À boca da noite apareceu a lua cheia, avermelhada, e as mechas de feno espalhadas no prado recendiam perfume. Eram visões que nunca poderiam ser esquecidas!

- Como é belo o outono! - Dizia agora a menina.

E o céu parecia mais alto e mais azul, enquanto a floresta ostentava um manto vermelho, amarelo e verde. Os galgos corriam nos campos, e bandos da aves silvestres passavam, guinchando, por sobre os montículos, onde as amoreiras silvestres se enroscavam nos ásperos penhascos. O mar, de um azul profundo, estava cheio de velas brancas, e, na beira, velhas, moças e crianças recolhiam o lúpulo em enormes tonéis. As moças cantavam. Era na verdade uma cena encantadora!

- Que belo é o inverno aqui! - dizia ainda a menina.

E todas as árvores estavam cobertas de geada, de modo que pareciam de coral brando. A neve estalava debaixo dos pés; parecia que eles nadavam de botinas novas. e estrelas cadentes riscavam o céu, uma após outra. Nas salas aquecidas via-se a árvore de Natal, toda iluminada, e os presentes eram distribuídos, em meio as festas. No campo, sob o teto humilde do camponês, soavam as notas dos violinos; distribuíam-se maças cortadas em quartos, e até as crianças mais pobrezinhas diziam:

- Como é lindo o inverno!

Sim! Lindo era tudo quanto a menina ia mostrado ao seu companheiro, e o sabugueiro continuava a envolvê-los no seu suave perfume, enquanto a bandeira vermelha, com a cruz branca, ondulava à brisa fresca. Era a bandeira sob a qual navegara o velho marinheiro da história. O menino de outrora, agora moço, teve de ir por esse mundo fora, para o país quente, onde nasce o café. Mas, ao  despedir-se a moça tirou do peito uma das flores de sabugueiro e deu-lhe, como lembrança. Guardou-a ele no seu livro de orações, e onde quer que o abrisse, em terra estrangeira, era sempre naquela folha que estava o símbolo florido. E quanto mais olhava para a flor, mais fresca ela ia ficando, de sorte que podia sentir o perfume das florestas dinamarquesas, e até via a menininha ensaiando no meio da folhagem e das flores, com aquele olhar tão azul e tão claro, e murmurando baixinho:

- Como é lindo aqui, na primavera, e no outono, e no inverno!

Correram muitos e muitos anos. Agora é ele um velho, e está sentado, ao lado de sua mulher, à sombra de um sabugueiro em flor, e estão de mãos dadas, bem como tinham feito antes deles o tataravô e a tataravó: e, como  eles, falavam dos tempos passados e das suas bodas de ouro. Então a menina de olhos azuis e coroa de flor de sabugueiro, que estava sentada na árvore, fez-lhes um aceno, dizendo:

- É hoje o dia das bodas de ouro!

E tirou de sua coroa duas flores, que beijou: elas brilharam a ficaram cor de prata, mas imediatamente resplandeceram como ouro, e quando ela as colocou sobre a cabeça dos velhinhos, ambas as flores se transformaram em coroas de ouro puro. E o velho casal, sentado à sombra do sabugueiro cheio de perfume, parecia um casal de reis. E o velho narrou à velha esposa a história da Mãe Sabugueira, tal qual a ouvira contar quando era menino, e acharam ambos que era uma história muito parecida com a sua, por isso gostaram muito dela.

- Sim, é verdade- disse a menina lá em cima da árvore. - Uns chamam-me Mãe Sabugueira, outros dizem que sou uma Dríade, mas meu nome verdadeiro é Saudade. Sou a alma da árvore, que nasce e cresce, e vivo sempre nela. Tenho boa memória, e lembro-me sempre de tudo, por isso posso contar muitas coisas do passado.

Depois disse ainda, dirigindo-se ao velhinho:

- Quero ver se ainda guardas a tua flor!

E ele, abrindo o livro de orações mostrou a flor de sabugueiro que lá estava ainda, e tão fresca como se tivesse sido posta naquele instante entre as páginas.

A Saudade sorriu, contente, e os dois velhos, coroados de ouro, sentados ali, iluminados pela luz chamejante do sol poente, fecharam os olhos, e...e...e...

...e acabou-se a história!

O menino, deitado na sua caminha, não sabia mais se sonhara, ou se tinha ouvido uma história. O bule lá estava sobre a mesa, mas já não brotava dele árvore nenhuma, o velho, que contara a história, ia saindo naquele momento, e fechava a porta do quarto.

- Que lindo! Que lindo era! - disse a criança. - Mamãe, eu estive no país quente, sabe?

- Sim, não o duvido - respondeu a mãe. - Quando a gente toma duas taças de chá de sabugueiro, bem quentinho, pode bem viajar pelos países quentes!

Aconchegou-lhe as cobertas, para que não apanhasse frio, e disse-lhe:

- Dormiste um bom sono, enquanto eu discutia com teu velho amigo - se isto era uma história real ou uma lenda.
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Hans Christian Andersen foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.
Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público
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segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Contos e Lendas de Portugal (Os Doze de Inglaterra)

A história conta que doze damas inglesas tinham sido acusadas por doze cavaleiros ingleses de falta de virtude, honra e nobreza. As damas insultadas pediram aos seus parentes que as defendessem, mas a reputação dos difamantes, de grandes guerreiros, esmoreceu qualquer vontade de defender a honra das senhoras, por parte das respectivas famílias.

As damas apelaram, então, ao Duque de Lencastre, sogro do rei de Portugal (D. João I), para que as ajudasse a encontrar defensores para o pleito. O Duque de Lencastre solicitou a ajuda dos portugueses, pois conhecia as qualidades cavaleirescas deste povo, de quando andara em guerra na Península Ibérica. O pedido foi imediatamente aceito pelos doze cavaleiros, que se propuseram a partir, o mais cedo possível, em defesa das damas inglesas.

O navio que transportou os doze portugueses partiu do Porto, no entanto, um dos cavaleiros, D. Álvaro Gonçalves Coutinho, o Magriço, decidiu ir por terra, para ter oportunidade de alcançar grandes glórias e fama, até se juntar, mais tarde, aos companheiros.

No dia do combate, já em Inglaterra, quando os cavaleiros portugueses se alinharam perante os doze cavaleiros ingleses, reparam na desigualdade entre os dois partidos, pois Magriço ainda não tinha chegado. Estava a justa para iniciar-se, quando a população começou a produzir grande burburinho pela aproximação do Magriço, que se juntava, então, aos companheiros.

Primeiro combateram a cavalo e depois a pé, terminando a contenda com a vitória dos Portugueses que, perante a sociedade inglesa, recuperaram a honra e a nobreza das damas. Os valorosos Portugueses ficaram, a partir daquele momento, conhecidos como os Doze de Inglaterra.

Narrado por Fernão Veloso, o mítico episódio dos Doze de Inglaterra foi imortalizado no canto VI (estrofes 42 a 49) de Os Lusíadas, de Luís de Camões, que terá recolhido, provavelmente, a história do manuscrito quinhentista, Crônica Breve das Cavalarias dos Doze de Inglaterra. Quanto à veracidade da existência do Magriço, ela é indiscutível, bem como a veracidade da sua valentia. Não há certeza de que este episódio tenha acontecido, o que não impede que faça parte do imaginário dos ideais cavaleirescos da Época Medieval.

Fontes:
Porto Editora – Os Doze de Inglaterra. Infopédia https://www.infopedia.pt/recursos/lendas-portuguesas/$os-doze-de-inglaterra
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segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Contos e Lendas de Portugal (Lenda do Bálsamo na Mão)


 Na freguesia de Chapim, concelho de Macedo de Cavaleiros, existiu outrora um rei mouro que exercia o seu domínio sobre aquela região. Este rei tinha muito mau feitio e aproveitava todas as oportunidades para humilhar os seus súditos.

Um dia, decidiu instituir um novo tributo, diferente de todos aqueles que tinha mandado executar antes: todos os homens que se casassem eram obrigados a entregar-lhe a noiva logo após a cerimônia do casamento. Este tributo tornou-se um hábito que gerou ódios e vergonha. Mas quem se atrevesse a contestar as ordens do rei seria severamente castigado.

Um dia o cristão Joaquim resolveu casar-se com Marianinha, a moça mais bela de toda a região. Marianinha nem queria pensar em pagar o infame tributo, mas Joaquim disse-lhe que não se preocupasse porque tinha um plano e, com a ajuda de Nossa Senhora, Marianinha não cairia nas mãos do cruel rei mouro.

Casaram-se numa pequena igreja e, logo à saída, estavam os soldados à espera de Marianinha. Joaquim convenceu-os a juntarem-se a ele e a alguns amigos com o propósito de levarem ofertas ao senhor mouro daquelas terras.

O rei mouro já tinha ouvido falar da beleza de Marianinha e mal podia esperar para tê-la nos seus braços. Porém, quando lhe retirou o véu, verificou que não era ela mas Joaquim que apertava nos braços.

Desembaraçando-se das suas roupas de mulher, Joaquim retirou um punhal que tinha escondido e cravou-o no peito do rei mouro antes de fugir. Agonizante, o rei pediu as cabeças de Joaquim e de Marianinha para as pisar antes de morrer.

Os guerreiros mouros lançaram-se na caça ao homem. Joaquim e os seus amigos ainda lhes fizeram resistência mas a desproporção era grande e foram quase todos dizimados.

Marianinha prometia fervorosamente um novo templo à Virgem enquanto Joaquim caía no chão ferido de morte. Então, por milagre, Joaquim reparou que nas suas mãos nascia um bálsamo que curava as feridas e começou a gritar aos seus companheiros moribundos que esfregassem as mãos com aquela substância.

Os guerreiros mouros, aterrorizados, viram os mortos e os moribundos a erguerem-se do chão, a pegarem nas armas e entregarem-se à luta com uma paixão desmedida. Apesar da desvantagem numérica, os cristãos conseguiram fazer com que os mouros partissem em debandada.

Desde então, aquela terra conquistada aos mouros ficou a ser conhecida como Terra de Nossa Senhora de Bálsamo na Mão e, mais tarde, Lugar de Balsemão onde ainda hoje existe uma ermida em honra de Nossa Senhora de Balsemão, no alto do Monte Carrascal.

Fontes:
Porto Editora. in Infopédia
https://www.infopedia.pt/recursos/lendas-portuguesas/$lenda-do-balsamo-na-mao
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quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Beatrix Potter (O conto dos coelhinhos Flopsy)

Dizem que o efeito de comer muita alface é "soporífero".

Nunca senti sono depois de comer alface; mas eu não sou um coelho.

Elas certamente tiveram um efeito muito soporífero sobre os Coelhinhos Flopsy!

Quando Benjamin Bunny cresceu, casou-se com sua prima Flopsy. Eles tinham uma família grande e eram muito previdentes e alegres.

Não me lembro dos nomes separados de seus filhos; eles eram geralmente chamados de "Coelhinhos Flopsy".

Como nem sempre havia o suficiente para comer, Benjamin costumava pegar repolhos emprestados do irmão de Flopsy, Pedro Coelho, que cuidava de uma horta.

Às vezes, Pedro Coelho não tinha repolhos sobrando.

Quando isso aconteceu, os Coelhinhos Flopsy atravessaram o campo até um monte de lixo, na vala em frente ao jardim do Sr. McGregor.

O monte de lixo do Sr. McGregor era uma mistura. Havia potes de geleia e sacos de papel, montanhas de grama cortada da máquina de cortar grama (que sempre tinha gosto de óleo), algumas abobrinhas podres e uma ou duas botas velhas.

Um dia — que alegria! — havia uma quantidade enorme de alfaces que tinham "brotado" em flor.

Os Coelhinhos Flopsy simplesmente encheram as alfaces. Aos poucos, um após o outro, foram tomados pelo sono e se deitaram na grama cortada.

Benjamin não estava tão tomado quanto seus filhos. Antes de dormir, ele estava suficientemente acordado para colocar um saco de papel sobre a cabeça e se proteger das moscas.

Os Coelhinhos Flopsy dormiam deliciosamente sob o sol quente. Do gramado além do jardim, vinha o som distante e metálico da máquina de cortar grama. As varejeiras-azuis zumbiam perto do muro, e um ratinho velho catava o lixo entre os potes de geleia.

(Posso dizer o nome dela: chamava-se Thomasina Tittlemouse, uma ratazana com uma cauda longa.)

Ela farfalhou sobre o saco de papel e acordou Benjamin Bunny.

O rato se desculpou profusamente e disse que conhecia Peter Rabbit.

Enquanto ela e Benjamin conversavam, perto do muro, ouviram passos pesados acima de suas cabeças; e de repente o Sr. McGregor esvaziou um saco cheio de grama cortada bem em cima dos Coelhinhos Flopsy adormecidos! Benjamin se encolheu sob seu saco de papel. O rato se escondeu em um pote de geleia.

Os coelhinhos sorriram docemente durante o sono sob a chuva de grama; eles não acordaram porque as alfaces estavam muito sonolentas.

Eles sonharam que sua mãe Flopsy os estava aconchegando em uma cama de feno.

O Sr. McGregor olhou para baixo depois de esvaziar seu saco. Ele viu algumas pequenas pontas marrons engraçadas de orelhas se projetando através da grama cortada. Ele as encarou por algum tempo.

Nesse momento, uma mosca pousou em uma delas e ela se moveu.

O Sr. McGregor desceu para o monte de lixo.

"Um, dois, três, quatro! Cinco! Seis coelhinhos!", disse ele enquanto os jogava no saco. Os Coelhinhos Flopsy sonharam que a mãe os estava virando na cama. Eles se mexeram um pouco durante o sono, mas ainda assim não acordaram.

O Sr. McGregor amarrou o saco e o deixou na parede.

Ele foi guardar a máquina de cortar grama.

Enquanto ele estava fora, a Sra. Flopsy Bunny (que havia permanecido em casa) cruzou o campo.

Ela olhou desconfiada para o saco e se perguntou onde estavam todos?

Então o rato saiu do pote de geleia, Benjamin tirou o saco de papel da cabeça e eles contaram a triste história.

Benjamin e Flopsy estavam desesperados, não conseguiam desfazer o barbante.

Mas a Sra. Tittlemouse era uma pessoa engenhosa. Ela mordiscou um buraco no canto inferior do saco.

Os coelhinhos foram puxados para fora e beliscados para acordá-los.

Seus pais encheram o saco vazio com três abobrinhas podres, um velho pincel de graxa e dois nabos podres.

Então todos se esconderam debaixo de um arbusto e ficaram à espera do Sr. McGregor.

O Sr. McGregor voltou, pegou o saco e o levou embora.

Ele o carregou pendurado, como se fosse bastante pesado.

Os Coelhinhos Flopsy o seguiram a uma distância segura.

Eles o observaram entrar em casa.

E então se aproximaram sorrateiramente da janela para ouvir.

O Sr. McGregor jogou o saco no chão de pedra de uma forma que teria sido extremamente dolorosa para os Coelhinhos Flopsy, se por acaso estivessem lá dentro.

Eles o ouviam arrastar a cadeira nas lajes e dar risadinhas...

"Um, dois, três, quatro, cinco, seis coelhinhos!" disse o Sr. McGregor.

"Hã? O que é isso? O que eles estavam estragando agora?" perguntou a Sra. McGregor.

"Um, dois, três, quatro, cinco, seis coelhinhos gordos!" repetiu o Sr. McGregor, contando nos dedos - "um, dois, três..."

"Não seja bobo; o que você quer dizer, seu velho bobo?"

"No saco! Um, dois, três, quatro, cinco, seis!" respondeu o Sr. McGregor.

(O Coelhinho Flopsy mais novo subiu no parapeito da janela.)

A Sra. McGregor pegou o saco e o apalpou. Disse que conseguia sentir seis, mas deviam ser coelhos  velhos, porque eram muito duros e tinham formatos diferentes.

"Não servem para comer; mas as peles servem para forrar minha velha capa."

"Forrar sua velha capa?" gritou o Sr. McGregor. "Vou vendê-las e comprar tabaco para mim!"

"Tubo de coelho! Vou esfolá-las e cortar suas cabeças."

A Sra. McGregor desamarrou o saco e colocou a mão dentro.

Quando apalpou os vegetais, ficou muito, muito brava. Disse que o Sr. McGregor tinha "feito aquilo de propósito".

E o Sr. McGregor também ficou muito bravo. Uma das abóboras podres entrou voando pela janela da cozinha e atingiu o mais novo Coelhinho Flopsy.

Ficou bastante magoado.

Benjamin e Flopsy acharam que era hora de ir para casa.

Então o Sr. McGregor não recebeu seu tabaco, e a Sra. McGregor não recebeu suas peles de coelho.

Mas no Natal seguinte, Thomasina Tittlemouse ganhou de presente lã de coelho suficiente para fazer uma capa e um capuz, um lindo regalo e um par de luvas quentinhas.
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HELEN BEATRIX POTTER (Londres, 1866 — Lakeland/Inglaterra, 1943) foi uma escritora, ilustradora, micologista e conservacionista inglesa, célebre por seus livros infantis de grande originalidade e valor intemporal. Sua obra mais famosa é A História do Pedro Coelho. Ela estudou em casa e recebeu das governantas uma educação vitoriana.  O Coelho Benjamim foi uma das primeiras personagens que Beatrix Potter vendeu a uma editora. Beatrix começou por ilustrar contos tradicionais como "Cinderela", "A Bela Adormecida", "Ali Babá e os Quarenta Ladrões", "O Gato das Botas" etc, mas muitas das suas ilustrações incluíam os seus animais de estimação. Beatrix Potter teve bastantes dificuldades em encontrar uma editora que publicasse as suas histórias. Depois de receber várias cartas de rejeição, ela decidiu tratar do assunto sozinha e criou um livro pequeno a preto e branco com a histórias dos quatro coelhinhos e publicou 250 cópias do mesmo que pagou com o seu próprio dinheiro. Frederick Warne & Co, que já tinha rejeitado as histórias de Beatrix, decidiu publicar o que apelidou de "livro dos coelhinhos". A mudança de posição deveu-se ao fato de a editora querer entrar no mercado dos livros infantis de formato pequeno. A História do Pedro Coelho foi publicado em 1902 e foi um enorme sucesso, vendendo 20 000 cópias até ao Natal desse ano. No ano seguinte, foram publicados A História do Esquilo Trinca-Nozes e O Alfaiate de Gloucester. Nos anos seguintes, Beatrix trabalhou com o editor Norman Warne e publicou entre dois e três livros de formato pequeno todos anos, atingindo um total de 23 obras publicadas na sua carreira. Em 1905, Beatrix e Norman Warne, o seu editor, ficaram noivos. O noivado foi mantido em segredo pois a família de Beatrix desaprovava um noivo que vivia de sua profissão de editor, por considerá-lo de classe inferior. Tragicamente, em 25 de agosto de 1905, um mês depois do pedido, Norman morreu de leucemia, quando tinha 37 anos. Isso deixou Beatrix devastada, mas ela fez o máximo para superar esse momento difícil, trabalhando ainda mais do que o costume. Em 1913, aos quarenta e sete anos, Beatrix casou-se com William Heelis, um procurador local, e foi morar em Sawrey. Ela passou a desenhar e a escrever menos, dedicando-se às atividades da fazenda, à criação de carneiros e a comprar muitas terras em Lakeland, para preservá-las. Quando Beatrix Potter morreu, em 1943, deixou mais de 4 000 acres e 15 fazendas para o National Trust, uma organização destinada a preservar lugares de interesse histórico ou de grande beleza cênica, na Inglaterra. Beatrix e William tiveram um casamento feliz que durou trinta anos. Apesar de não terem filhos, Beatrix era um elemento importante da família de William e teve uma relação muito próxima com as suas sobrinhas, que ajudou a educar. Beatrix faleceu em 1943, devido a uma pneumonia e complicações cardíacas em sua residência, chamada Castle Cottage, localizada em Lake District. Os seus restos mortais foram cremados. O seu marido continuou cuidando das propriedades e do trabalho literário e artístico da esposa até à sua morte, em agosto de 1945. Em 2006, a vida de Beatrix Potter foi transformada em um filme, Miss Potter, com Renée Zellweger e Ewan McGregor como protagonistas. 

Fontes:
Beatrix Potter. The Tale of the Flopsy Bunnie. Publicado originalmente em 1909. 
Disponível em Domínio Público.  
Biografia =https://pt.wikipedia.org/wiki/Beatrix_Potter
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing