quinta-feira, 30 de setembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 8: Ademar Macedo

 


Júlia Lopes de Almeida (Ondas de ouro)

Palavras com *, vocabulário no final do texto.
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Sim, era preciso acabar a tarefa antes da noite... o caixeiro já lhe dissera três vezes da parte do patrão: – Olhe, Sr. Mendonça, as tranças foram encomendadas para hoje às seis horas, sem falta, e daqui a nada estão por aí a buscá-las...

Ele, o Sr. Mendonça, levantava os olhos, abanava afirmativamente a cabeça calva e, sempre calado, baixava de novo os olhos pequeninos e secos para o trabalho. O caixeiro descia rápido a escada de caracol, para a loja, e o oficial lá ficava no primeiro andar, separando com os dedos, engelhados* pela velhice e amarelecidos pelo fumo, umas madeixas muito loiras, muito sedosas, muito flexíveis, que lhe caíam sobre o peito e os joelhos numa cascata luminosa e ondeante. Aquele ouro fulvo* tocado pela réstia do sol da janela, aquela massa de cabelos finos, agitados pela viração, entoava num grande reverbero metálico a sinfonia triunfal da luz.

O velho, mal vestido, com o colarinho amarrotado e o casaco luzente nas costuras, parecia um nababo avarento, sumindo os dedos gostosamente naquele tesouro opulento e flácido. Não quisera que o auxiliassem; irritou-se contra um aprendiz por se ter oferecido com insistência. Nada! aquilo era coisa sagrada; nenhuma pessoa lhe tocaria sem profanação. E os companheiros sorriam atônitos, vendo o Sr. Mendonça, geralmente desleixado, escovar muito e polir as unhas, perfumando as mãos, antes de começar o seu querido trabalho.

A pouco e pouco foram-no deixando; vendo-se só, o velho beijou repetidas vezes a trança loira, assim como um crente beija uma relíquia santa. Negara-se a trabalhar na oficina, e pedira um recanto isolado, onde não levasse sumiço um único fio do precioso cabelo...

Fora-lhe concedida, sem exemplo, a permissão de ir para a pequena sala da frente, alcatifada* e com cortinas. Ali estava só. Nos armários de vidro, em roda, como únicas testemunhas, cofres de perfumarias, estojos para unhas, tondeuses*, pompons de arminho, escovas de luxo, pattes de lièvre*, esponjas, águas de toilette* enfrascadas, caixas completas de maquillage*, cosméticos, elixires, óleos e sabonetes arrumados em caixinhas de três, com rótulos coloridos e brilhantes, ou separados e envoltos em papéis prateados, azuis, ou cor de gravanço*.

Entre aquela variedade infinita de aromas e de tons, aqui e ali, rumas* de pentes de todos os feitios, da mais fina tartaruga ao mais negro búfalo, do melhor marfim ao mais grosseiro osso. Pendentes e cuidadosamente alisadas, tranças negras, castanhas, loiras, grisalhas, restos de uma multidão incógnita, destroçada, perdida na noite escura da miséria, na podridão da vala comum, nas enfermarias dos hospitais, ou nas células das penitenciárias.

De espaço a espaço, sobre cabeças de pau, um chinó* preto, reluzente, e caricatamente garrido, ou umas cuias de arame muito fino, cobertas de caracóis alvos, jeitosos e macios.

A envolver tudo isto, o enervante cheiro do heliotropo branco, ou os suavíssimos e esquisitos aromas do Musc* ou do Psidium*.

No relógio de metal bronzeado, sobre o dunquerque*, em frente ao espelho, os ponteiros giravam, giravam implacavelmente para o pobre Mendonça, que supunha, talvez, ter entre os dedos não uma pobre cabeleira loira, desfeita, mas o próprio sol, eternamente irradiante e puro.

Antes que subisse o quarto recado do patrão, beijou o velho muitas vezes aqueles fios de ouro; e, acabado o trabalho, fingia ainda ocupar-se dele, temendo a angústia da separação.

Era o único vestígio da sua adorada Angelina, morta havia um mês, um anjo de docilidade e de meiguice, que suportara sorrindo a cruz da sua pobreza, sempre consoladora, sempre resignada. Levara-a a tísica, a mesma moléstia que arrebatara a mulher e os outros dois filhos mais velhos! Tinha-lhe ficado aquela só, e nela concentrara todo o seu carinho; e um dia, que triste dia de verão fora esse! o médico da Policlínica dissera-lhe: “A sua menina está mal... alivie-a do peso dos cabelos, mande-a tomar ares num arrabalde... leve-a imediatamente para fora.”

E ele, estrangulado de angústia, empenhara tudo, relógio de prata, corrente, joiazinhas de família, uma cômoda antiga. Apurado o dinheiro, transportou para Santa Teresa a sua doentinha; mas Angelina piorou de tal sorte, que no fim de um mês teve de torná-la à cidade; aí durou pouco. E o velho, acariciando os cabelos loiros, lembrava-se daquelas horas negras: a pequena, muito desfigurada, estendida no leitozinho estreito, enquanto ele piedosamente enxotava com o lenço branco as moscas que a assaltavam. Foi então, horrorizado com a ideia de entregar à vala aquele corpo idealmente puro, sonhando como uma felicidade comprar para o seu branco lírio um canteiro separado de todos mais, que ele se lembrou, como único recurso, de ir vender as tranças loiras da filha, guardadas havia muitos dias, desde a consulta da Policlínica.

Antes isso... separar-se-ia desse amado despojo, mas a sua casta, a sua angélica, a sua imaculada filha teria um canteirinho condigno!

E, como um negociante banal, foi fazer o preço, propor o negócio e ao mesmo tempo contratar a obra! Tudo assentado, fizeram-se as cerimônias do ritual, e ele acompanhou serenamente a filha ao cemitério...

Eram cinco horas. Subira o quinto recado do patrão. A réstia de sol já não entrava pela janela. Embaixo, nas calçadas da rua, muita bulha de passos e um rumor alto de vozes. Mendonça tinha concluído a obra. Pela escada de caracol ouviu uns passos de homem e outros leves, rápidos, evidentemente de mulher; depois um ruge-ruge de vestido do seda, e umas gargalhadinhas em falsete.

– Pronta a encomenda, Sr. Mendonça? perguntou, num acentuado sotaque francês, o dono da casa.

O velho quis responder ao patrão, mas não pôde; ergueu a trança, e delicadamente pôs-a sobre a alcatifa do balcão.

Tirando às pressas as luvas altas, num gesto petulante, a recém-chegada estendeu as mãos alvas, carregadas dos anéis caros, para o cabelo tão carinhosamente tratado pelo velho, e pôs-se a examiná-lo, separando com força as três madeixas da trança, cheirando-a, olhando-a de perto, de longe, e deixando-a por fim cair sem caridade sobre o veludo escuro de um sofá.

Mendonça estremeceu; imaginara ingenuamente que os cabelos da filha iriam adornar a cabeça de uma virgem, que se engrinaldasse de rosas frescas, e tivesse com eles todo o desvelo de uma menina educada. Vendo em frente aquela mulher arrogante e brutal atirá-los sem cuidado sobre o traste mais próximo, mordeu os beiços e amparou-se ao balcão. O suor corria-lhe pela calva, as mãos crispavam--se-lhe com ódio.

Diante do alto espelho, a freguesa tirava o chapéu de abas reviradas, com bouquets de flores. Ele via refletido no cristal o seu vestido de seda escarlate, a jaquette* cor de café com leite, aberta na frente, com uma grande rosa vermelha na lapela; a descomunal aranha de pérola e brilhantes a luzir-lhe no peito, os pulsos cheios de braceletes; as bichas de brilhantes nas orelhas, o rosto coberto de veloutine rose* sobre pastas de cold-cream*; os beiços tintos a carmim, os olhos engrandecidos, o cabelo sujo por tintas cor de cenoura, com louros claros e escuros, em manchas desiguais. Colocava no penteado a trança, que o dono da casa, muito solícito, erguera do sofá; via-se de frente, de perfil, desvanecidamente; depois, voltando-se para o francês:

– Fica-me bem esta cor, não acha?

– Oh! perfeitamente, é de um tom belíssimo, ravissant*!

– Sim?... Vou fazer com ela esta noite um papel de fada, no Sant’Anna... Que diz, farei sensação?

E em uns requebros amaneirados, prolongou o diálogo, diante do velho Mendonça, dizendo muitas coisas fúteis, em gíria de bastidores.

O desgraçado homem olhava, olhava para os cabelos da sua pura, da sua casta, da sua imaculada filha, com os olhos rasos de lágrimas, numa grande mágoa que o abatia.

No fim de meia hora, a atriz, arranjados os frisados da testa e abotoadas as luvas, segurava o grande leque pintado, a sombrinha de cabo extravagante e alto, e descia a escada de caracol, calcando os degraus com os pés calçados em meias de seda e sapatinhos estreitos.

Mendonça ficou colado ao mesmo sítio, com os olhos fixos no mesmo ponto e o pensamento preso à mesma ideia... Nunca mais veria os cabelos da sua Angelina, aquelas opulentas ondas de ouro, aquele precioso espólio! Que sol o aqueceria então?

Não tornar a vê-los! a isso não se resignava o desgraçado pai, mas... e lembrou-se do que a atriz dissera:

– Esta noite no Sant’Anna vou fazer um papel de fada...

Às oito horas lá estava à porta do teatro o oficial de cabeleireiro. Era cedo e ele já tinha na algibeira o seu bilhete de galeria. Foi o primeiro a subir, e sentou-se num bom lugar, à frente. O gás muito amortecido, os camarotes e a plateia vazios davam um aspecto taciturno ao teatro. Ah! no tempo da filha não fora nunca a um espetáculo; a pequena morrera sem ter visto isso... E sentia remorsos, o Mendonça, como se ele tivesse ido agora com o propósito de se divertir! E lá, na galeria, sozinho, limpava as lágrimas, que lhe corriam em fio, embebendo-se nas suas barbas brancas.

Principiava a aparecer gente, em pontos desgarrados da sala, até que uma onda grossa veio enchê-la quase de repente; o gás abriu em grandes leques a sua luz forte e a orquestra rompeu num tango alegre, vibrando no ar uns estalidos de castanholas e os sons metálicos dos pistons.

Erguido o pano, o velho Mendonça abriu muito os olhos, debruçando-se avidamente. Agitava-se em cena um bando de coristas, pintadas e quase nuas, esganiçando-se num coro alegre; depois, vinham as damas principais, os atores; e a plateia ria, e os aplausos ecoavam sem que o Mendonça tomasse parte em nada. Todo o primeiro ato rolou indiferentemente para ele. Durante o intervalo não se levantou; temia perder o lugar, e não ver depois bem os cabelos da filha; mas no segundo ato não entrou a fada, nem tampouco no terceiro! Mendonça sentia-se fatigado e desiludido ao começar o quarto e último ato, em que os quadros se sucediam animados e com brilhantes cenários.

Ia ele quase em meio quando, de entre umas nuvens de gaze azul celeste, salpicadas de estrelas luminosas, apareceu, em maillot* e cetim branco, com diadema, varinha de condão e o manto de cabelos loiros espalhado nas costas, a fada protetora da desventurada ingênua.

Era ela! Mendonça levantou-se, pôs toda a atenção naquela grande cabeleira solta, sedosa, fulgurante, resplendendo, numa prodigiosa magnificência, centelhas de ouro, refrangível*, ondeante e vivo! Tantas vezes vira a sua Angelina coberta por aquelas madeixas longas!

E à luz da ribalta, os virginais cabelos da filha pareciam-lhe mais formosos e mais ofuscadores ainda! Não via mais nada; nem o corpo esbelto da atriz, nem as transfigurações que ela ia produzindo com a sua magia; todo o seu espetáculo era aquela trança desatada, que lhe mandava, da falsidade do palco, num perfume de saudades, uma piedosa ilusão da vida!

Sim! Revivia um pouco a sua adorada morta, e ele batia as palmas, chorava como um doido e, em um delírio frenético, pedia bis, em altos gritos, vendo sumir-se a Fada entre nuvens de gaze azul celeste, salpicadas de estrelas luminosas.

Mandaram-no calar-se; ele continuou sempre, até que a polícia interveio. O velho Mendonça foi tirado à força do teatro; alguns espectadores riram; e lá dentro, a atriz, muito orgulhosa, convenceu-se de que realmente fizera sensação.
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* VOCABULÁRIO EM ORDEM ALFABÉTICA
Alcatifada = atapetada.
Chinó = cabeleira postiça para o alto da cabeça.
Cold-cream =“Creme frio”: creme refrescante para a pele.
Dunquerque = armário constituído de prateleiras e geralmente de portas envidraçadas de modo a permitir a exposição de objetos de valor material e/ou afetivo.
Engelhado = Enrugado, encarquilhado.
Fulvo = De cor amarelo-tostada; alourado.
Gravanço = grão de bico.
Jaquette = Jaqueta, terninho.
Lièuvres = Pata-de-lebre; isto é, objeto feito de pata de lebre (esponja de pó, pente ou escova).
Maillot = Maiô.
Maquillage = Maquiagem.
Musc = Almíscar.
Psidium = Gênero de plantas do qual faz parte a goiabeira.
Ravissant = Encantador.
Refrangível = suscetível de sofrer refração.
Rumas = pilhas, montão.
Toilette = Banho; no caso, água de banho, colônia.
Tondeses = Cortadores.
Veloutine rose = Marca de pó de arroz, um tipo de talco utilizado para maquiagem.


Fontes:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Dicionário Houaiss Eletrônico – junho de 2009.

Ronnaldo de Andrade (Album de Spinas) 2

À ESPERA

Anseio, sem receio,
pela doce presença:
sentença de paixão!

Vejo o coração sendo coração,
o amor desabrochar qual rosa
deixando de ser sublime botão.
Quando a amada chega muda
o ambiente. Amo-a com razão!
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A SAUDADE VIROU TATUAGEM NA MEMÓRIA

Sentado no alpendre
do casebre solitário,
cheio de lembrança,

volto outra vezes ser criança.
Vejo-me a brincar no terreiro,
um beija-flor com sua dança
beijocando as flores (logo ali).
Ah, bom tempo! Que mudança!
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EM QUESTIONAMENTO

Aumento meus vícios
destruo meus sonhos,
produzo meus versos

áridos, ásperos, azedos qual limão,
causas da estrada infinita amoroso!
A cabeça pesada, passos dispersos,
sinto-me alucinado, em um labirinto
de dúvidas; gostos vis, contraversos.
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SEM VOCÊ SOU UM LIVRO
À ESPERA DO PREFÁCIO


Desabo em felicidade,
em sonhos profundos;
em desejos afogo-me.

Jogo-me para fora de mim,
assim eu enxergo meu riso,
o seu, você perto. Jogo-me
calmo nos seus braços; faço
o que nunca fiz. Prologo-me!
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SOLILÓQUIO REFLEXIVO

Divago nas ruas
cheio dos sonhos
que sempre trago,

vagos, na memória do pretérito.
Observo que minha nova história
está me cometendo seu estrago.
Amargo: o amanhã nunca chega;
meu presente: Cigarro que trago.
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5x9

Aceitar a morte,
viver nosso luto,
avançar em paz

mesmo com as feridas abertas
expelindo pus, com forte cheiro,
faz-se essencial. Quem é capaz?
Morrem vida, os amores, paixões;
lembranças a morte não desfaz!

Fonte:
Versos enviados pelo autor.

Fernando Bonassi (Corações vagabundos)

O carro dobrou na Cesário Mota Jr., e Cibele logo percebeu que era o homem esquisito. Já passava de seis meses agora. Toda semana. Toda sexta-feira à noite. Nove horas em ponto o sujeito aparecia. Banho tomado, roupa passada. Ele vinha escorregando com o carro pro lado dela. Parava, mas deixava o motor ligado. Destravava a porta. Às vezes dizia alguma coisa.

— Boa noite.

— Boa.

Às vezes, nem isso... Mas sempre aquele cheiro de água de colônia. Enjoativo. Cibele sentia falta de ar. Procurava pelo botão do vidro. Não achava. Não tinha coragem de perguntar onde ficava. Contava até dez. Passava.

— Aposto que eu sei onde a gente vai...

O homem fez que sim com a cabeça. Ele a levava pra comer frango à passarinho com caipirinha em Pinheiros. Bebiam e comiam em silêncio aquelas irresistíveis desgraças cheias de gordura até perderem o juízo. Ela não conseguia se controlar. Depois pediam sobremesa. Ela simplesmente não conseguia se controlar! E ainda tomavam cafezinho:

— Sem açúcar, por favor...

Ele pagava e a deixava no mesmo lugar. Pagava o preço mais caro. Perguntou na primeira vez:

— Quanto é pra fazer tudo?

Ela caprichou. Ele tirou o dinheiro do bolso. Não tinha muito mais do que ela pedira, mas fez questão de acertar antes. De lá pra cá era sempre igual. Uma vez perguntou:

— Teve aumento?

Cibele não teve coragem. Pediu o de sempre.

Portanto ele podia fazer tudo o que quisesse, mas sempre a devolvia na mesma esquina. "Sem um arranhão!", como costumava dizer às amigas. Toda semana. Toda sexta-feira, entre 11 e 11 e meia estava de volta ao ponto. Menos mal, pensava a mulher, que ainda contava com todo o movimento da madrugada pra aproveitar. Aproveitava mesmo, que Cibele não fazia questão de prestar e tinha muitos planos; mas aquele homem... Não sabia se tinha vergonha... Ou pena. O coração dela ficava espremido. Ruminava as razões dele. Passava a semana com esse troço por dentro. Não chegava a lugar nenhum.

Até esse dia tinha ficado quieta, mas, no restaurante, quando ele perguntou o que ela queria, Cibele pôs a língua pra fora e disse:

— Você.

O garçom se fez de morto. Era um bom garçom. Ficou brincando de estátua com a caneta e o bloquinho. Passou um bom tempo assim, porque o homem deu uma risada comprida e só então virou pra pedir:

— Duas caipirinhas de pinga e um frango à passarinho.

O garçom se afastou e a mulher continuou provocando:

— Você gosta de beber, né?

— É bom, fica tudo mais fácil...

— Devia comer de vez em quando.

Dessa vez o homem não riu.

— Você é casado?

— Hum-hum.

— Mentira. Se fosse casado a tua mulher ia desconfiar da rotina.

— Não é uma questão de confiança.

— Ela é doente?

O homem voltou a rir.

— Você é doente?

— Não.

— Gay?

Chegou o pedido. Cibele ficou desacorçoada. Costumava dizer que se um dia fosse executada, frango à passarinho seria sua última refeição. Tentou escolher um pedaço bem sequinho. Difícil. Ficou mordiscando. Depois pegou mais. E foi pegando, querendo morrer. Seus lábios brilhavam quando perguntou:

— Eu não sou boa pra você?

O homem teve a coragem de fazer Cibele esperar que pegasse um cigarro do maço, tirasse caixa de fósforos do bolso da calça, um palito de dentro dela, acendesse esse maldito cigarro e só então se dignasse a responder:

— Você é a melhor coisa da minha semana.

— "Coisa"?!

O homem bufou diante da mulher, levantou a palma da mão pro garçom e fez que escrevia nela com um dedo. Cibele ficou pescando os restinhos de alho da bandeja.

— Você me engorda.

Cibele fechou a cara. De cara fechada esperou que o homem pagasse a conta e a levasse de volta à esquina de sempre. Nessa noite Cibele não sentiu o enjoo da água de colônia quando ele se debruçou nela pra destravar a porta. Desceu e ficou de costas. O homem baixou o vidro. "Aqueles botões...”

— Até sexta-feira...

Cibele pensou em ofender, mas quando virou, aquele homem esquisito estava bem ali... Ela sem saber se era vergonha ou pena... O coração espremido...

— Tá bom, te espero aqui.
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Fernando Bonassi é paulistano, nascido em 1962. Escritor, roteirista e cineasta, tem inúmeros livros lançados, dentre os quais: A incrível história de Naldinho, um bandidão o bandidinho?, O céu e o fundo do mar, 100 coisas, Declaração universal do moleque invocado (indicado para o Prêmio Jabuti em 2002), O amor é uma dor feliz, Tá louco! e Passaporte. Tem contos e livros publicados na França, Alemanha e EUA. É formado em Cinema pela ECA-USP, tendo participado como diretor/roteirista dos filmes Castelo Rá Tim Bum e O trabalho dos homens.

Estante de Livros (A Literatura Brasileira através dos Textos, de Massaud Moisés)


Este volume oferece um panorama do que a literatura brasileira ostenta de melhor e de mais representativo ao longo de sua evolução histórica. Dentro de cada uma das sete épocas em que se divide a história literária - Época de Formação e Origens, Barroco, Arcadismo, Romantismo, Realismo, Simbolismo e Modernismo -, são focalizados os autores de maior importância, apresentando-se de cada um deles, um ou mais excertos antológicos, os quais são precedidos de uma notícia que os situa cronologicamente no quadro de nossas letras e seguidos de um comentário crítico que lhes destaca os principais pontos de interesse, orientando assim a atenção do estudante para a correta apreciação do texto antológico.

A literatura brasileira é prodigiosa. Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade estão entre seus principais representantes.

Machado de Assis é o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Na literatura brasileira, o “Bruxo do Cosme Velho” é associado ao Realismo Machado de Assis é o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Na literatura brasileira, o “Bruxo do Cosme Velho” é associado ao Realismo

A literatura brasileira conta com mais de quinhentos anos de história. O primeiro documento produzido no Brasil, a Carta de Pero Vaz de Caminha, é considerado também como o primeiro texto literário do Brasil, embora tenha sido escrito por um português. O texto só ganhou status de literatura porque Pero Vaz de Caminha não era um mero escrivão e, por isso, não se contentou em fazer um simples relato de viagem: basta ler a carta para perceber o cuidado com as palavras e as metáforas construídas para descrever a terra recém-descoberta.

As primeiras manifestações da literatura brasileira foram fortemente marcadas pelo modelo literário de Portugal, já que nossos primeiros escritores ou eram portugueses de nascimento ou brasileiros com formação universitária em Portugal. Sendo assim, é importante conhecer também a literatura portuguesa para que possamos entender o modelo que serviu de referência para a construção de nossa literatura. Por terem sido tão influenciados pelo cânone lusitano, muitos autores preferem referir-se aos textos produzidos nessa época como “manifestações literárias” ou até mesmo como “ecos da literatura no Brasil”. Isso mudou apenas na segunda metade do século XVIII, quando surgiram os primeiros escritores brasileiros comprometidos com as causas políticas nacionais, importante condição para a formação de uma literatura genuinamente brasileira.

Embora jovem, especialmente quando comparada à milenar literatura europeia, a literatura brasileira é prodigiosa. É inquestionável seu papel social de transmitir os conhecimentos e a cultura de nossa sociedade. Passeando por nossas diversas escolas literárias e em diferentes períodos históricos, podemos observar vários pontos de contato entre a literatura e a História do Brasil, comprovando assim que o fazer literário do escritor não é indiferente à realidade. Todos, inclusive os artistas, participam dos problemas vividos pela sociedade e tentam, por intermédio da palavra, retratá-la ou denunciá-la.

Por motivos didáticos, a literatura brasileira é dividida em escolas literárias, o que facilita seu ensino e estudo.

José de Anchieta, Gregório de Matos, Gonçalves Dias, José de Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac, Lima Barreto, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Lygia Fagundes Telles, Manoel de Barros e Mario Quintana estão entre os principais representantes da literatura brasileira, que conta com muitos outros nomes fundamentais para a compreensão de nossa identidade literária, nomes que contribuíram de maneira indelével para a formação da cultura nacional.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Adega de Versos 48: Antonio Manoel Abreu Sardenberg

 


Sofia Lobo (Marés)

No mar ninguém irá tocá-la. Ela mergulha, depois sobe em cima da prancha, de pé, e começa um lento trabalho de remar em direção ao horizonte. O sol a faz suar sob a camiseta anti-UV, não pode arriscar se queimar, isso sempre acaba mal.

Respira devagar, exalando a cada remada, enchendo os pulmões de sal. Há várias pessoas no litoral, algumas de máscara, outras não, a maioria não, mas crianças correm pela areia e seus pais bebem água de coco nos quiosques.

Ela se ajoelha sobre a prancha e apoia o remo à sua frente, deixando que a maré a guie. Inspira uma vez, expira, inspira de novo, expira. Se ela pudesse fazer qualquer coisa para conter as lágrimas, teria feito, mas ali era só o que tinha: água salgada.

Aprendeu a chorar em silêncio, à noite, e, quando começou a dormir acompanhada, aprendeu também a chorar com o mínimo de movimento, dissolvendo os espasmos dos soluços em suspiros. Com o tempo, percebeu que não sabia mais como gritar, como tremer, como jogar um copo de vidro contra a parede e se encolher no chão. Sabia apenas abraçar os próprios ombros e ofegar.

Uma onda maior faz a prancha balançar. Ela cai dentro da água, afundando no abraço turvo até seus ouvidos doerem e suas costas baterem contra a areia, sentindo o forte puxão no seu tornozelo direito.

Soube de corpos afogados que eram encontrados quilômetros longe de suas cidades. Poderia se afogar. Poderia morrer assim. Esperava morrer sempre que entrava no mar, longe de qualquer controle. Ali dentro, com a pressão apertando seus ouvidos e a água abraçando seu corpo todo, não sentia medo, no mar ninguém, ninguém mesmo, iria tocá-la. Seria levada quilômetros pelo litoral, gostava de pensar onde ele a devolveria, queria que fosse numa praia bonita, com um pôr-do-sol espetacular.

Outra onda empurra a prancha, puxando-a pelo tornozelo até a superfície. Segura a prancha e apoia a testa nela, com a ponta dos pés sem tocar o chão. Felizmente o remo não tinha caído. À sua frente está apenas aquela linha marcada de azul sobre azul. Decide sair da água. Por enquanto.

Ialmar Pio Schneider (Versos Diversos) – 4 –

AFLIÇÃO

Cipreste verde-triste
que sonhas sem cessar,
a minha mágoa assiste
meu sono vem velar.

Em mim já não existe
a glória de lutar...
Estou de lança em riste
e tenho que esperar.

A força me abandona,
o pranto me condena,
estou prendido à zona

de um pantanal sem fim.
A vida que me acena
não tem pena de mim.
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CANTILENA

Hoje penso nos versos que escrevi
e aos poucos vou me convencendo, enfim,
que muitos deles viverão em ti
como lembranças eternais de mim !

Representando as mágoas que sofri,
os teus ouvidos, num rumor sem fim,
vão beijar, semelhando um colibri
que beija as lindas flores de um jardim...

E não esquecerás meu canto infindo,
onde estiveres, fada dos meus sonhos,
pois docemente irá se definindo

minha voz melancólica e serena,
com lamentos talvez até tristonhos,
porém inconfundível cantilena !
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NOSTALGIA

Certa noite disseste aos meus ouvidos
que gostavas dos versos que te fiz
e ouvindo teus encômios incontidos
nem sabes como me senti feliz !

E então ficamos algum tempo unidos,
fazendo-nos carícias pueris
pra sermos hoje dois desconhecidos
pensando que o destino assim o quis...

Eu guardo na memória, todavia,
todo teu ser, com tanta nostalgia,
tal um golpe daqueles que fatais

a gente sofre sempre por alguém.
Sei que outras poderão surgir, porém...
Por que, afinal, só tu não voltas mais!?
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SONETO DE SONHADOR

Já não me encontro só nem desgraçado
pois te levo total em meu olhar;
nem poderei viver sem teu agrado
enquanto não consiga te olvidar.

Quando às vezes passeio pelo prado,
a natureza em flor a contemplar,
parece que tu segues ao meu lado
e os dois formamos um ditoso par.

E prossigo sonhando à luz do dia,
que estás presente em todos os momentos,
na tarde calorosa ou noite fria,

e também de manhã andando a esmo;
porque vencendo obstáculos violentos
sinto que fazes parte de mim mesmo.
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UM SONETO ARDENTE

Beijar-te os lábios num delírio mudo,
prender-te toda nos meus fortes braços,
amar-te num amor sincero e rudo,
depois cantar-te nos meus versos lassos.

Cantar a sensação dos teus abraços
quando por ti das dores me desnudo,
fazer das ilusões mil estilhaços,
estar feliz atrás do flóreo escudo

que ostentas em tua alma virginal,
era trilhar a estrada da ventura
num sonho límpido e descomunal

e achar a fonte cristalina e pura
que torna o coração sempre jovial
e os nossos males mais profundos cura.

Fonte:
www.sonetos.com. Acesso em 15.01.2016. (site fora do ar)

Hélia Andrade (Romance vintage moderno)

arte de Monika Luniak (Polônia)
Moravam no mesmo condomínio. Em torres diferentes, mas no mesmo condomínio. Ela, no 14º, ele no 16º andar. Se bem observassem, veriam que, da cozinha dela, dava para ver um pouco da sala dele. Se a cortina estivesse aberta. Aliás, quase sempre estava, era meio desligado o Igor. Mas a Letícia nunca tinha visto a sala dele antes, pela janela de sua cozinha. Às vezes até ficava na varanda da sala, olhando para o horizonte, sem mirar nada específico. O apartamento do Igor nunca tinha lhe chamado a atenção.

Eram vizinhos, mas nunca tinham se olhado. Nunca se cruzaram pela piscina do prédio, ou pela academia. Pelo salão de jogos, pelos jardins do condomínio, pela garagem. Nem mesmo um oi apressado nos elevadores, enquanto olhavam as telas de seus smartphones. Ou já haviam se encontrado nessas situações? Nenhum dos dois tinha certeza. Talvez até tivessem se esbarrado, mas nunca se notaram. Nunca! Para o encontro, precisaram de uma ajudinha específica...

Da tecnologia. Sim, eram jovens, modernos, conectados. Foi um aplicativo que proporcionou o encontro. Sem o empurrão tecnológico, talvez continuassem sendo dois vizinhos desconhecidos. A vida moderna é assim, não? São tantas atividades diárias, tanta correria, atribulação, metas de trabalho, de saúde, de vida. Sobra pouco tempo para conhecer os vizinhos. Se acaba o açúcar (opa, açúcar não foi um bom exemplo, olha as dietas restritivas!), quem, hoje em dia, bate na porta do vizinho com uma xícara e alonga o papo, sem pressa, como faziam nossos avós?

Foi ele quem a viu primeiro. Pelo aplicativo, claro. Ficou interessado, era bonita, dizia gostar de grunge, como ele. Morava perto. Muito perto! Eram vizinhos, seria possível? Se tudo estivesse certo, ela morava no seu condomínio. Quanta coincidência! Ele resolveu arriscar e a chamou. Ela viu sem acreditar. Um vizinho? Ficou receosa, parecia arriscado. E se ele fosse um maníaco perseguidor? Decidiu ignorá-lo. Ele persistiu. Ela não deu bola. Ficou assustada com a insistência e deu um tempo no aplicativo.

Ele não se deu por vencido. Eram vizinhos, poderia forjar um encontro casual. E assim o fez. Por várias vezes esperou-a em locais possíveis de encontrá-la ao acaso: na academia, na piscina, no pilotis. Mas esses encontros casuais forçados nunca aconteciam. Quando já estava desistindo, por fim, encontrou-a na portaria, aparentemente esperando uma carona, enquanto ele saía para correr. Ele não acreditou. Ela pareceu reconhecê-lo de sua foto no perfil e disfarçou. Ele não podia perder aquela chance. Chamou-a pelo nome e se apresentou como o Igor, do aplicativo. Ela sorriu, um riso tímido, incrédulo e resistente. Falaram amenidades, ela fingiu desinteresse e disse que sua carona já ia chegar. Ele pediu que ela voltasse a usar o aplicativo, para poderem conversar. Ela disse que não estava mais, que havia cansado daquilo. Ele insistiu. Ela cedeu. Pelo aplicativo, se conheceram, se curtiram e engataram uma relação que já dura quase um ano. Quem disse que a tecnologia não ajuda as coisas? Quem disse que não pode surgir um romance sério por meio de um aplicativo?

Quem disse? Eles diziam, mas a história não era bem assim. Ensaiaram esse enredo e o repetiam à exaustão a quem perguntasse. As pessoas se interessavam por essa versão da história. Dava-lhes um pouco de esperança. Era uma história que dera certo em meio a milhares de encontros de uma noite só, promovidos por aplicativos. Nem tudo estava perdido, enfim. Quando incitados por interlocutores esperançosos e curiosos, eles sempre aumentavam um detalhe aqui, outro ali, dando mais glamour ao seu romance moderno de mentirinha. Porque não foi bem assim.

Viram-se, de verdade, pela primeira vez, foi na fila da padaria. Sim, encontraram-se na fila do pão! Ele a viu, disfarçou o nervosismo e engatou uma conversa. Descobriram-se vizinhos e seguiram caminhando até o condomínio. A rápida caminhada foi agradável e resolveram dar uma chance aos dois. Trocaram telefones, descobriram afinidades além da localização geográfica, estreitaram a convivência e logo os dois apartamentos no mesmo condomínio passaram a ter dimensões mais fluidas, confundindo-se. A cozinha da Letícia passou a observar a sala do Igor e vice-versa. Já não eram mais dois vizinhos desconhecidos.

Depois do segundo mês de relacionamento, a Letícia apresentou o Igor à avó. Era bem moderninha a avó da Letícia. Em nada lembrava aquelas vovós do nosso imaginário, com seus bordados e gatos, a casa cheirando a café e bolo de fubá. Era uma vovó que estava em todas as redes sociais, postava fotos de suas viagens pelo mundo e arrumava uns cobertores de orelha por aí de vez em quando.

- Vocês se conhecem há muito tempo, lá do prédio? – quis saber a avó da Letícia.

- Na verdade, a gente se conheceu na padaria, por acaso. Nunca havíamos nos encontrado pelo condomínio – Letícia respondeu.

A avó olhou meio séria, meio marota e soltou uma risada irônica.

- Vocês são demais. Quase acreditei. Vão me dizer que se conheceram na fila do pão? Isso é tão... 1930! Podem falar a verdade, sei que, no mínimo, se encontraram por algum aplicativo de paquera. Isso, sim, é normal para a época de vocês.

E deu uma piscadela para os dois. Letícia e Igor ficaram sem graça. Confirmaram a versão da avó. Parecia mais verossímil que a real, da padaria. Aperfeiçoaram a versão moderna, do aplicativo, combinaram detalhes e passaram a adotá-la para contar aos outros. E assim faziam desde então. A história real, guardavam só para eles. Quem sabe, um dia, falariam do quão difícil é encontrar a pessoa da sua vida na fila do pão.

Fonte:
Isso Rende uma História. 21 maio 2017.

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Varal de Trovas n. 526

 


Sammis Reachers (O valente Marcondes e o ancião larápio)

Atualmente, Marcondes abandonou a vida de rodoviário e está trabalhando no comércio. Vários podem ser os motivos, e quem sabe um deles é o que passaremos a relatar...

Jovem despachante, Marcondes iniciou sua carreira como cobrador, na empresa Ingá. Moleque malandro, desenrolado, gente fina mas também valente, "brabo" que só ele.

Efetivo no ponto em frente à estação das Barcas, no centro de Niterói, nos finais de semana ele costumava ser escalado para trabalhar do outro lado da rua, em frente à loja Leader, próximo ao Plaza Shopping. Não me pergunte como, mas nessas vezes Marcondes aparecia por lá com um banquinho de madeira, que era pra poder ficar sentado quando houvesse uma trégua na frenética movimentação de ônibus.

Posicionando seu banquinho tranquilamente encostado na parede da loja, nosso amigo costumava pôr sua mochila embaixo do mesmo, pois não havia mais onde guardá-la e ele não queria ficar com a mesma pendurada nas costas, durante oito longas horas. No mais, ali era prático e fácil de vigiar, pois ele só precisava levantar-se, ir até o veículo da vez e marcar a ficha, a apenas uns quatro metros do tal banquinho.

Certo dia, durante uma dessas marcações, um homem, já bastante idoso, viu o banco de apoio desocupado e simplesmente sentou-se nele. Marcondes percebeu, mas resolveu ficar quieto, pois isso acontecia às vezes, e geralmente com idosos: o cidadão ou cidadã via um banco solitário, parado no meio do nada, e já devia imaginar que era público, pois ia logo sentando-se, como se estivesse no sofá de casa. Nosso amigo então permaneceu em pé, e seguiu com as atividades. Marca carro daqui, marca carro dali, e nada de o velhinho levantar-se. Entretido com o trabalho, Marcondes    esqueceu-se momentaneamente do velhote.

De repente, sentiu    uma pontada, uma intuição latejando lá no fundo de seu ser, mandando observar o tal banquinho. Ao olhar, percebeu que o banco estava lá, mas agora vazio. "Ufa!", pensou nosso amigo, já cansado de ficar em pé. Mas sua alegria durou pouco; a parte abaixo do banco também estava 'vazia': sua mochila havia desaparecido!

Naquela região, num tremendo domingo, as ruas ficavam bastante desertas. O valente do Marcondes passou a vista para todos os lados, como uma águia, quando viu, a certa distância, o velhote, meio capenga, correndo e levando sua mochila. Imagine a fúria do nosso despachante!

Dando uma forte arrancada, já de punhos fechados, certo de que alcançaria rapidamente o ancião larápio, nosso herói sentiu algo atravancando o seu avanço: sua calça nova e da melhor qualidade, que ele comprara recentemente... Acontece que nosso amigo, vaidoso, mandara uma costureira apertar bem as pernas da calça, para que ficassem bem justinhas e sexys. Só que ficaram tão, mas tão justas, que impediam o valente de correr!

Imagine a tristeza do bruto, preso em suas calças apertadas, vendo o coroa capenga fugindo com sua mochila, sozinho, em plena luz do dia... e ele sem poder alcançá-lo. Por sorte do nosso amigo, a cidade estava tão deserta àquela hora que praticamente nem testemunhas havia para presenciar aquele ultraje, aquela humilhação de nosso guerreiro gladiador e sua calça de cantor sertanejo...

E assim nosso herói, mano sagaz, malandro bom de briga mestrado e doutorado na faculdade da favela, dentro dela, seus tesouros: três moedas de um real, uma penca de bananas d'água (era o almoço do bruto), uma garrafa de água (quente), um boné encardido da Cyclone e dois cuecões samba-canção sujos, que era tudo o que ele tinha...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Carolina Ramos (Folclore em Versos) O Canto do Uirapuru*

Lenda da Amazônia


Tudo é quietude! Dolente,
trina a flauta de bambu:
- e a mata escuta, silente,
o canto do Uirapuru!
--------------------------
 
Pequenina e graciosa,
a índia, cor de canela,
tinha voz meiga, maviosa...
e a tanga verde e amarela.

Olhos de corça amansada,
mais negros do que o saci,
era feliz... porque amada
por um guerreiro tupi.

Na verde mata, fez ninho.
E a cantar seu grande amor,
parecia um passarinho,
a adejar de flor em flor!

Mas... o guerreiro, malvado,
seu carinho desprezou,
e por outra apaixonado,
o ninho antigo deixou!

Foi definhando, angustiada,
aquela índia menina,
pelo noivo abandonada...
e a guardá-lo na retina!

Enfim... Tupã, condoído,
a abrandar-lhe a triste sorte,
dá-lhe à vida outro sentido,
para poupá-la da morte;

- Numa avezinha encantada,
cor auri-verde-canela,
foi a índia transformada
e voz maviosa revela!

Uirapuru é seu nome
e pelas frondes viçosas,
toda a angústia que a consome,
canta... em notas dolorosas!

Seu trinar, límpido e triste,
a mata escuta silente!
E a mágoa que nele existe,
é a mágoa que a gente sente!

Numa pergunta constante,
dorida. Uirapuru diz
ao seu amado distante:
- Tão triste estou!... És feliz?!..
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* Nota do blog sobre a lenda: Existem várias versões da lenda do Uirapuru. Abaixo coloco três delas:

01

Tupã estava zangado por causa do barulho ensurdecedor que havia na floresta.

– Isto não pode continuar, dizia consigo o Todo-Poderoso.

Era só surgir por ali um guainumbi, com seus trilos estridentes, que a passarada toda se punha a arreliar: as acauãs gritavam, berravam os araçaris, chilreavam os maracanãs, martelavam as guirapongas, chalravam as anhumas e os araporós. Um inferno! Tupã não agüentava mais! Sentara-se numa branca nuvem a pensar, a pensar, quando ouviu certo murmúrio:

- Araã! Araã!

Baixou os olhos e sorriu. Poucas vezes Tupã sorria, mas, desta vez, luziu-lhe pelo semblante um ar de simpatia. Lá estava, debruçada sobre a relva, uma linda menina. Chorava a pobrezita. Tupã condoeu-se e desceu ao campo.

– Que tens? Por que choras?

Ouvindo a voz de Tupã, ofegante o peito e suspensa a respiração, calou-se a indiazinha. Assim, volveu ao Deus os olhos tão úmidos como a várzea no tempo de enchente.

– Que tenho? Ururau, o cacique, comigo não quis casar… Preferiu Araúna que melhor soube flechar…

Tupã se enterneceu. Ururau, chefe da tribo, para escolher a esposa, havia determinado a prova: venceria quem flechasse no vôo o nobre anajé. Araúna acertara.

– Teu nome?

- Chamo-me Oribici… Ó Tupã, faze de mim uma ave, para que eu possa ver se, de fato, Ururau ama Araúna…

- Oribici! – disse Tupã – atenderei a teu pedido. Porém, teu nome daqui para frente será Uirapuru.

No mesmo instante, no céu límpido e sereno, um raio esfuziou. Tupã desapareceu, e da relva, onde até então jazera Oribici, derramando lágrimas sem fim, nascia uma fonte de água clara. Tão copioso fora seu pranto, que dele surgiu um novo córrego.

E Oribici? Ninguém mais a viu. Entretanto, apareceu naquele sítio um pequeno pássaro vermelho-telha – o uirapuru.

Momentos depois, pousava num alto jacarandá, próximo à taba do cacique. Lá estava Ururau abraçado à Araúna. Eles se amavam. E o uirapuru fez:

- Araã! Araã!

O cacique ouviu-o e sobressaltou-se.

– Que houve? – perguntou Araúna.

– Estranho o canto desse pássaro… Espere. Volto já…

E lá se foi o guerreiro como que fascinado pelo Araã que ouvia… Quanto mais se distanciava, mais longe ouvia os sons daquela voz.

Escureceu, mas Ururau caminhava… caminhava sem cessar.

– Araã! – gritava lá longe.

– Araã! – respondia o eco.

– Araã! Araã! – seu ouvido escutava.

Em dado momento, no meio da noite, na densa floresta escura, o uirapuru cantou. Era um canto divino, cheio de uma desconhecida melodia, como que trazida do céu. Ururau ficou enfeitiçado e, assim, caminhou durante vários dias, sem caçar, sem pescar, sem comer, através da mataria.

– Araã! – soavam os rios.

– Araã! – faziam até seus passos.

Ele, que tinha suas tabas nos campos frios de Curirama, começou a sentir os calores excessivos das ipueiras do Pindorama. E a antiga tribo nunca mais viu de volta o seu valoroso chefe.

Não se sabe o que aconteceu, porém diz o povo que Ururau enlouqueceu e anda à procura do uirapuru pelas matas. Esse destino é a vingança de Oribici que o amava tanto.
= = = = = = = = = = = 
 
02

Unauá é uma índia de voz encantadora que um dia se vê cercada por três índios de uma tribo inimiga. Temendo ser atacada, faz o que pode para fugir. Primeiro, busca abrigo no alto de uma árvore.

Depois, canta para pedir ajuda aos guerreiros de sua própria tribo. Abençoada pelo deus Anhum, Unauá consegue escapar ao transformar-se no uirapuru, pássaro dono do mais belo e raro canto da floresta.
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03

Certo jovem, não muito belo, era admirado e desejado por todas as moças de sua tribo por tocar flauta maravilhosamente. Deram-lhe então, o nome de Catuboré, flauta encantada. Entre as moças, a bela Mainá conseguiu o seu amor; casar-se-iam durante a primavera.

Certo dia, já próximo do grande dia, Catuboré foi à pesca e de lá não voltou.

Saindo a tribo inteira à sua procura, encontraram-no sem vida, à sombra de uma árvore, mordido por uma cobra venenosa. Sepultaram-no no próprio local.

Mainá, desconsolada, passava várias horas a chorar sua grande perda. A alma de Catuboré, sentindo o sofrimento da sua noiva, lamentava-se profundamente pelo seu infortúnio. Não podendo encontrar paz, pediu ajuda ao Deus Tupã. Este, então, transformou a alma do jovem no pássaro irapuru, que, mesmo com escassa beleza, possui um canto maravilhoso, semelhante ao som da flauta, para alegrar a alma de Mainá.

O cantar do irapuru ainda hoje contagia com seu amor os outros pássaros e todos os seres da natureza.

Fontes:
A Lenda em Versos (trova e poema):
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.
Livro enviado pela autora.

Textos da Lenda:
- Waldemar de Andrade e Silva. Lendas e mitos dos índios brasileiros. 
São Paulo, FTD, 1997.
- Hermínio de Campos Melo. In MELO, Anísio (org.). Estórias e lendas da Amazônia. São Paulo, Livraria Literat Editora, 1962. Antologia ilustrada do folclore brasileiro.
- Paulinho Tapajós. A lenda do Uirapuru. Ed. Nova Fronteira, 2012.

Jaqueline Machado (Aruanda entre nós) 4 – Zé Pelintra


Seu Zé vem muito faceiro,
cheio de ginga e molejo...
Com seu jeito feiticeiro,
não dispensa um bom festejo...


O negro Zé, subia o morro, cantarolando: “Chora viola para saudar a malandragem que chegou aqui agora... Malandro sobe e desce o morro para dar o seu recado, é melhor andar sozinho do que mal acompanhado”.

Dono de uma irreverência indissociável a sua elegância, dentro de um palácio, de um bordel ou na favela, fazia questão de manter-se sempre bem alinhado, com seu terno e chapéu branco, de costura bem-feita. Cigarro entre os dedos, gestos gentis e palavras agradáveis, também faziam parte das marcantes características do negro mais charmoso da Providência/RJ.

Zé Pelintra, como costumava ser chamado por muitos amigos. Era sem dúvida, um sujeito muito amigável, mas na presença de qualquer gesto de covardia, uma personalidade à parte o transformava, ora em um bravo guerreiro, ora em um safo e esperto malandro. Devido a essas peculiaridades, para alguns ele era tido como um justiceiro, para outros, não passava de um vilão em trajes de bom moço.

Num dia ensolarado, próximo ao seu nobre barraco, uma imagem corta–lhe o canto. Era Pedrito, o bandido chefe do morro, com sua cara ruiva e magra, cheia de cicatrizes, apontando uma arma para a cabeça do garoto Joãozinho, mais conhecido pelo codinome Feijão, devido ao seu tom de pele que era tão enegrecido quanto a pele de uma pessoa nascida no seio da África.

Pelintra conhecia bem a fama de Pedrito. Um assassino asqueroso que não costumava ter dó de ninguém, nem mesmo de crianças. Alma dominada pelo demo. Difícil de ser dobrada. Mesmo perante a dificuldade, sentia–se no dever de fazer alguma coisa para livrar o menino das garras daquele monstro. Precisava ser hábil. Caso contrário, a vida do Feijão e, quem sabe a dele também, estaria perdida.

Pisando firme, mas sem perder a leveza no olhar, Zé se aproxima e uma espécie de batalha santa se inicia.

- Camarada Pedrito, o porquê de tanta fúria?

- Virei a noite trabalhando. E, hoje cedinho, ao chegar em casa cansado, louco de sono, dou de cara com esse moleque sem eira nem beira assaltando meus armários. Todo mundo aqui sabe que não importa se é menino ou homem feito, mexeu comigo tá ferrado – disse o bandido com os olhos vermelhos pelo consumo de drogas.

- Calma, Pedrito. O garoto não deve ter feito por mal, provavelmente estava com fome. Só isso. Vai dizer que nunca fez o mesmo.

- Já roubei dinheiro e comida pra matar a fome sim. Mas de companheiro meu nunca roubei, não senhor.

- Não vale a pena sujar as mãos por motivo pequeno – disse Zé com voz mansa.

- Vá cuidar das suas negas, Zé. Vá! Me deixa terminar o serviço. Gosto do amigo e não quero que o seu terno todo branquinho fique respingado pelo maldito sangue desse moleque.

- Me...me...sal...va ...va, seu Zé – pedia o garoto gaguejando.

- Agradeço a preocupação do amigo por não querer sujar a minha roupa, mas peço–lhe em nome das coisas boas que já vivemos juntos, solte o menino. Olha para ele. Está roxo de medo com essa arma apontada para seus miolos. Ele já aprendeu a lição.

Nesse momento surgem os pais do Joãozinho.

– Pelo amor de Deus não mata meu filho – diz a mãe aos prantos.

O pai, sabendo da fama do bandido Pedrito, logo diz:

– Eu fico no lugar dele.

- Mas quem tem que pagar pelo erro é quem comete.

- O que ele fez? – perguntou o pai.

- Tava assaltando comida na minha casa.

- Releve. A miséria se abateu sobre nós. Ele não queria roubar nada. A fome o induziu ao erro. Perdoe. É só uma criança – implora a mãe do garoto. - Larga mão disso, homem. Se cometer um assassinato vai ter que ficar um bom tempo foragido, com grandes possibilidades de ser pego pela polícia. Vamos aproveitar a vida. E festar por aí...

- Sei não. - A mulata Jandira ficou de aparecer. E não será por minha causa. Está querendo ver você. Pedrito se para pensar...

– Mas nunca deixo um serviço pela metade.

Zé, ao perceber que a raiva nos olhos do bandido cedera lugar ao desejo de farrear com a mulata mais bela que o morro da Providência já tinha visto, toma-lhe a arma da mão. Na breve confusão, Feijão escapa e corre para os braços dos pais.

- Qual é cara! Devolve minha arma.

- Ela está segura comigo.

- Tudo bem. Vocês venceram. Mas fiquem certos de que não dei o assunto por encerrado.

- Esquece o caso, homem.

- Tem pra mais ano que não vejo Jandira. Sou louco por aquela mulher – diz Pedrito com um risinho maledicente.

- Agora vá descansar. Passou a noite em claro.

- Trabalhando... Preciso dormir umas doze horas. Mas antes, me devolve a arma.

- Claro – diz Zé calmamente ao entregar a pistola calibre 12.

O bandido pega a sua arma e sobe o morro como se nada tivesse acontecido. Zé Pelintra, senta numa pedra, puxa o cordão com a medalha de são Jorge que costumava guardar por dentro da camisa, com devoção beija a imagem e olhando para o firmamento celestial agradece ao santo pela proteção e pela batalha ganha.

Meia hora depois, vai até o barraco do Pedrito verificar se ele foi mesmo dormir. E o encontra deitado sobre a cama com os braços e as pernas abertas, roncando feito um porco. Com a situação sob controle, retorna para casa, apanha um pouco de leite, café, pão e vai até a moradia daquela família sofrida.

- Trouxe para vocês – diz ele, alcançando a sacola com os mantimentos para a mãe do menino Feijão.

Zé desce o morro relembrando a sua infância. Quando tinha a idade do Feijão, teve que afanar o único bem que a família tinha, um violão. Herança do seu avô paterno. Era relíquia de família, mas vez ou outra pedia licença aos pais para tocar o instrumento no quintal de casa. Com seresta e violão, aquele cenário de seca, fome e morte lhe parecia menos cruel. Cedo, partiu. E junto de si, levou a viola. Precisava ganhar o mundo e passando o seu chapéu, foi juntando tostão a tostão.

Mais tarde, já um homem feito, no centro de Ilhéus/BA - sempre bem vestido, fez de tudo um pouco, trabalhou como engraxate, foi feirante, auxiliar de armazém etc. Depois conheceu a boêmia, e virou o rei da malandragem. Vivendo à noite e com as arteirices que acontecem pelas madrugadas afora, arranjou muita confusão.

- Pra mais de cem... Às vezes, por causa de jogo.

Era mestre no carteado e isso gerava desavenças entre os quais perdiam pra ele no vício e no bolso... Mas na grande maioria das vezes as confusões eram geradas por causa de mulher. Zé se orgulhava por fazer sucesso com as damas... Tanto com as solteiras quanto com as comprometidas. Vilão ou bom moço, a verdade é que o rapaz, em momentos difíceis nunca fugia da raia. E costumava ser brilhante em tudo o que se propunha a fazer. Por estar sempre bem vestido, muitos o chamavam de doutor.

Reza a ladainha que por motivos de dívidas de jogo, Zé Pelintra foi atocaiado e morto à porta de um cabaré. E que hoje vive no mundo astral trabalhando em prol das pessoas viciadas em jogo e bebida. Protegendo também, pessoas indefesas. Se ele foi bom moço, vilão ou as duas coisas não se sabe ao certo. A verdade é que Zé Pelintra, o rei da malandragem, virou lenda.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

V Concurso de Trovas da UBT – Seção São José dos Campos/SP (Prazo: 1 outubro a 15 de novembro)


Tema: Mudança

A União Brasileira de Trovadores, Seção de São José dos Campos, Estado de São Paulo, Brasil, tem a honra e o dever de vir comunicar e convidar a todos, em continuação, para a 6ª Etapa do Concurso do Projeto de Trovas Para Uma Vida Melhor, cujo objetivo sempre foi e continua sendo a divulgação de princípios e valores universais e humanitários, por meio desta modalidade poética: a Trova que os senhores trovadores tão bem têm demonstrado.

Nessa 6ª ETAPA, o quinto item – MUDANÇA irá compor o V Concurso de Trovas desta UBT, desenvolvendo e fortalecendo princípios e valores que falam sobre o que há nos cotovelos da vida. Não apenas nos cotovelos da rua de cada um, como as surpresas, as crises, os desafios, que pedem criatividade, compromisso, mudança, tudo dentro  do respeito.

Atenciosamente,

Maria Inez Fontes Ricco
Presidente da União Brasileira de Trovadores
Seção de São José dos Campos - SP - Brasil


Síntese dos critérios:

5º Concurso de trovas da UBT. São José dos Campos, SP.

Apenas - UMA Trova

TEMA: - MUDANÇA

CALENDÁRIO: DE 01/10/2021   à   15/11/2021

RESULTADO E ENTREGA DE DIPLOMAS: a partir de 01/12/2021

ENVIAR PARA : 'Helio Castro' <helio.castro@techsearch.com.br>
******************

Nome
Cidade – Estado - País
E-mail
Tel (opcional)
*********
TROVA
Veterano ou novo trovador(Assinalar)

Fonte:
Enviado por MIFORI

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Solange Colombara (Portfolio de Spinas) *1*


Silmar Böhrer (Croniquinha) – 32 –

Caminhar pode se mais do que apenas o destino lúdico em busca de exercícios.

Quando caminhamos vamos dando asas à imaginação, olhando aos quatro ventos, observando tudo que não enxergamos embarcados num veículo. Minutos e segundos de pescaria, puxamos a linha dos horizontes à nossa volta, beliscamos conversas, sensações, imagens. E são tantas, e nos absorvem.

O trecho que parecia tão longo vai diluindo entre olhares, sentires, dizeres, - porque alguém que nos encontra também tem as sensações que levam a um lugar qualquer, a um qualquer lugar, percorrendo o caminho íngreme, subidas e descidas, beirando riachos, ouvindo os cantos da mata, sendeiros que nunca pensáramos pisar.

São assim as estradas, as trilhas, as picadas nos andares da existência - tantas vezes precisamos nos dispor a iniciar uma jornada para ver e sentir quanta coisa interessante, útil até, estamos deixando de conhecer e aproveitar, em nome da inércia, da preguiça, do desinteresse.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (parte 47) Na cumeeira do telhado

EPARMINONDAZINHO RESOLVEU mandar bilhetinhos para Luluzinha, a menina mais bonita da sala. Aliás, não só da sala. Da escola inteira, da rua e do bairro onde moravam. Ele paquerava com ela onde desse pé. Nos corredores, na hora do recreio, na entrada e na saída, na porta do banheiro, na cantina, no instante em que ela se sentava reservadamente para falar ao telefone celular com a mãe. Embora nunca tivessem permutado um toque de mãos, ou um beijinho, o menino insistia em espalhar para seus amiguinhos  que ela era a sua namoradinha oficial.

Luluzinha sabia de tais conversas. Não dizia nem sim, nem não, não confirmava, nem desconfirmava. Simplesmente aceitava, de bom grado os olhares compridos, as espiadelas carinhosas e brejeiras pelos corredores. Se sentia lisonjeada e saltitante. Quando as amigas próximas vinham tirar satisfações, saia com elegância estudada, fugia pela tangente, sorria, mudava de assunto.  Eparminondazinho, com o passar do tempo, resolveu usar uma tática diferente, com a princesa que povoava seu mundinho vazio e carente, desejoso, todavia, daquela bonequinha charmosa.

Extremamene tímido e pessimista, sempre que queria dizer alguma coisa à adorável, fazia um bilhetinho, ou melhor, compunha um versinho e mandava entregar diretamente em mãos da sua doce amada. O escolhido, não outro, senão o Dirceu, um garoto cadeirante que dava todo apoio ao colega que torcia pelos pombinhos de forma incondicional. Nesse tom de romance solto por todos os poros, logo que a donzela atravessava o portão da escola, o piá chamava o Dirceu. Um dia se excedeu. Foi mais longe. Na emoção, escreveu:

...Você que amo tanto,
Sei não quer me escutar...
para aumentar o meu encanto,
só me falta te beijar...


Luluzinha, de antemão, tinha pleno conhecimento que bastava o Eparminondazinho vê-la em algum lugar dentro das dependências do estabelecimento de ensino, logo a seguir  seria procurada pelo Dirceu. Curiosa, ela lia com a rapidez que atropelava a sua alma em festa e respondia, em seguida, igualmente da mesma forma. Aproveitava a boa vontade do coleguinha que se prestava a se fazer de arauto e a esperar para devolver a réplica. Luluzinha se baseava no gancho das palavras que o ‘apaixonado’ lhe endereçava. Num deles, ousou:

...Sem querer te ofender,
Fale o que pensa, de frente.
Caso contrário irá perder,
O meu amor muito ‘eloquente...’.


Eparminondazinho, neste dia, com o sabor adocicado da imediata e inesperada resposta, se abarrotou de alegria. Ficou eufórico. Manhã  seguinte foi o primeiro a chegar e o primeiro a entrar em sala. Endereçou uma rápida olhadela à Luluzinha (quatro carteiras atrás da sua) que não desviou às vistas e se manteve firme à fitá-lo. Sem se desfazer do sorriso que bailava em seu rosto, o moleque se acomodou e abriu o caderno. De dentro, em meio às folhas, sacou um papel de guardanapo. E lá, de novo, os acuros do porta-voz Dirceu, na sua barulhenta cadeira de rodas.

Desta  feita, o emissário retornou ligeiro e entregou à Eparminondazinho o que ela escrevera com uma emoção diferente e uma tremura nunca vista em suas mãos. Ao findar a aula, ele mesmo resolveu seguir por um caminho diferente.   Levantou, catou as suas coisas e,  antes de deixar o recinto, se dirigiu à jovenzinha. Sem pensar duas vezes, lhe atirou o bilhetinho. Saiu correndo, estabanado, o coração quase a lhe saltar do peito. Luluzinha, ato contínuo leu, devorou cada palavrinha com um misto de satisfação a lhe inundar o semblante:   

...Se seu amor é ‘eloquente?’.
o meu há muito pegou fogo...
Você é o meu melhor presente
Em breve farei de seu pai, meu sogro!...


Luluzinha leu e releu e se sentiu imensamente feliz. Mais que feliz. Amada, admirada, querida. Pretendia dizer algo ao moleque, mas não o fez porque ele chegou ligeiro, atirou o papel no colo dela, e, no mesmo pique, saiu em desabalada carreira. Aline e Sandrinha, duas bisbilhoteiras que sentavam lá nos fundos, marcavam em cima. E não foi igual neste dia. Não deram espaço de Luluzinha raciocinar. A mocinha só teve tempo de esconder o papel.

- E aí, tá rolando um clima? - perguntou, de chofre a Aline.

Luluzinha se fez de boba.

- Rolando? Rolando um clima? Que clima, Aline?

- Você sabe. Não se faça de besta...

- Não estou me fazendo...

- Então está fazendo a nós —, berrou a Sandrinha. – Pensa que já não sacamos que rodopia, à solta, no ar, uma paquera entre você e o Eparminondazinho?

- Eparminondazinho, aquele chato? - desdenhou fingindo  não ter entendido onde ambas queriam chegar.

- Chato de verdade, amiga? — voltou à carga a Aline - Cadê o bilhetinho que ele acabou de jogar pra você?

- Não era nenhum bilhetinho...

- O que, então? - completou Sandrinha - Um sorvete de chocolate?

- Desde quando eu tenho que dar satisfações à vocês, uma dupla de mal amadas?  

- Somos amigas ou não?

- Neste caso, acho que se enganaram. As minhas melhores amigas, sou eu mesma e a minha querida sombra...

Sem dar mais trela às fofoqueiras, Luluzinha virou as costas e foi embora.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 4

CARIDADE E PERDÃO

Caridade verdadeira,
em todos os seus caminhos,
quando oferece uma rosa
sabe tirar os espinhos.
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ESQUECE

Repara a terra pobre, humilde e boa,
enlameada ao temporal violento...
A golpes rudes de granizo e vento,
olvida em paz a injúria que a magoa.

Depois, a vida tece-lhe a coroa
de pétalas luzindo ao firmamento...
E, feliz ante o mundo desatento,
mais se embeleza quanto mais perdoa.

Assim também, esquece o lodo e a ofensa.
Que a tormenta de trevas te não vença
a nobreza dos sonhos redentores!...

Seja o perdão o apoio a que te arrimes,
e desabrocharás em dons sublimes
como a terra insultada ri-se, em flores.
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ESSA MIGALHA

No reino de teu lar em paz celeste,
repara quantas sobras de fartura!...
O pão dormido que ninguém procura,
o trapo humilde que não mais se veste...

Do que gastaste, tudo quanto reste,
arrebata o melhor à varredura
e socorre a aflição e a desventura
que respiram gemendo em noite agreste!...

Teu gesto amigo florirá perfume,
bênção, consolo, providência e lume
na multidão que segue ao desalinho...

E quando o mundo te não mais conforte,
essa leve migalha, além da morte,
fulgirá como estrela em teu caminho.
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GLÓRIA DO BEM

A anônima semente pequenina
atirada por mão piedosa e boa,
parecia dormir no charco, à toa,
sorvendo o sol aos beijos da neblina...

Depois cresceu, abrindo-se em coroa,
árvore nobre a frondejar, divina,
fruto a fazer-se pão que nutre e ensina,
flor que perfuma, tronco que perdoa!...

Assim é o humilde que semeias
pelo espinheiral das dores alheias
que sombra, provação e angústia encerra...

Hoje, singela dádiva perdida,
amanhã será luz, beleza e vida
dulcificando as lágrimas da Terra.
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INSTRUÇÕES DA VIDA

Ofensa, pedrada, espinho,
injúria, maldade ou lama...
Tudo vence no caminho
o coração de quem ama.
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LÁGRIMAS

Benditas sejam, torturando embora,
as lágrimas que a vida transfigura
na fonte generosa, viva e pura
de perfeição e luz para quem chora.

Lírios e estrelas de celeste alvura,
entre as sombras da mágoa que aprimora,
rolam do coração, lembrando a aurora
no imenso caos da imensa noite escura!...

Benditas sejam! Lágrimas divinas
como flores brilhando sobre as ruínas,
que a provação estende, véspera e franca...

Mas, acima da bênção que as alveja,
ante a glória do amor, bendita seja
a mão da caridade que as estanca!
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LEMBRANÇA DE IRMÃ

Ah! minha Nina amada, abelha mansa
da colmeia a que o Mestre se afeiçoa.
Guarda contigo, ovelha humilde e boa,
a saudade no escrínio da esperança!

Alma de arminho, cândida criança,
mensageira do bem que aperfeiçoa,
Deus te enriqueça! Aureole-te a coroa
de eternidade e bem-aventurança!

Flor! – guarde-te o sol do amor divino,
Estrela! – acende o lume peregrino,
Irmã! – toda a ternura te reveste!

Espera e ama! exulta de alegria,
que os teus amados chegarão, um dia,
ao teu templo de luz no Lar Celeste!…

Fonte:
Francisco Cândido Xavier. Auta de Souza. Ebook obtido na Biblioteca Espírita.

Lima Barreto (Contos Argelinos) Boa Medida; Hóspede Ilustre

BOA MEDIDA


O faustoso sultão de Kambalu, Abbas I, que tinha por avós, em linha direta, Manuel José Fernandes, de Trás-os-Montes, reino de Portugal, e Japira, índia de nação potiguara, a qual nação habitou antigamente o império do Brasil e desapareceu, à vista da penúria do seu povo e da fome e da peste que o dizimavam, resolveu certo dia reunir em conclave as pessoas mais graduadas do reino, fossem elas de que credo fossem, professassem as teorias que professassem, a fim de se aconselhar e resolver a situação. Vieram um bispo, um mago oriental, um sábio doutor em medicina, uma cartomante, um jurista, um engenheiro e um brâmane.

Abbas I assim falou, abrindo a sessão:

— Meus senhores: todos sabeis o motivo da nossa reunião. É a dor e a piedade pelo meu querido povo que me movem a pedir-vos conselho para lhe dar lenitivo. Falai com franqueza que vos ouvirei com prazer. Falai!

O bispo levantou-se, fez o sinal-da-cruz, orou durante alguns minutos, contando as contas do rosário e começou:

— “Ad victum quae flagitat usus — Omnia jam mortalibus esse parata”. Precisamos de igrejas, conventos, recolhimentos — Majestade!

O Mago — Não concordo. A luz é tudo, de luz é feito o mundo e Deus. Precisamos mais luz elétrica.

O Doutor— Isto tudo é delírio; é pura paranoia, temperada com psicastenia, frenastenia. Na etiologia da peste há duas fases: primeira, a do aparecimento, dúbio, auroral, das auroras claras de maio, que é imperceptível; depois: manifestação ostensiva, horrível, de um belo horrível que só os médicos conhecem. Keats diz: "Our songs are...

O Engenheiro — Que diabo é isto? Uma encampação é mais útil…

A Cartomante — Vou deitar as cartas...

O Jurista — Cuidado com a polícia! O Código Penal, no seu livro V, art. 1824, parágrafo...

O Brâmane — Tudo o que vem de mim, o boi, a vaca...

Abbas I — Ora bolas! Vocês não me aconselham coisa alguma... São uns tagarelas aborrecidos. Vou decidir por mim; vou construir um palácio magnífico. Vão-se embora, e já!

Abbas I cumpriu a sua palavra. Cobriu o reino de impostos; mandou vir jaspe e ouro e mármore e pórfiro; contratou no estrangeiro hábeis arquitetos e operários e construiu o palácio, para enriquecimento de seu povo e extinção das moléstias que o dizimavam.

Acabada a construção, meteu-se nele. Daí a dias, porém, nem mais um criado tinha para servi-lo. Toda a gente do país havia morrido de fome e de moléstia; e ele veio também a morrer de fome porque não havia mais quem plantasse, quem colhesse, quem criasse, etc., etc.
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HÓSPEDE ILUSTRE

Todos os dias, anunciam as folhas a chegada de um hóspede ilustre, estampando-lhe algumas vezes o retrato. O Rio de Janeiro, se não está ficando o Instituto de França ou a Royal Society de Londres, pode bem ficar sendo o Museu do Trocadero.

Não me canso de ler tais notícias e causa-me assombro que semelhantes sumidades não figurem no Larousse e em outras publicações congêneres. Não vem isto, porém, ao caso. O que estas linhas tencionam é protestar contra a omissão que eles fizeram, do nome do ilustre marroquino Mulay Mâlek Ben-Bélek.

Ele vem superintender a construção do pavilhão de Marrocos que será erguido no estilo original daquele próspero império.

Os materiais empregados, como se sabe, são caniços e uma argamassa feita de bosta de camelo e lã de carneiro. Como aqui não havia camelos, portanto, o primeiro elemento da aludida argamassa, o imperador de Marrocos fretou um barco suíço e atestou-o daquele primordial elemento dos partenons dos seus domínios.

Vai ser uma lindeza, debaixo da féerie iluminativa que o senhora Carlos Sampaio contratou com os seus amigos americanos e vai nos custar os olhos da cara. Diz-se o mesmo que as experiências realizadas, no morro da Favela, mostraram de que forma mágica iluminações ianques transformam, em palácios de “Mil e uma Noites", cubatas africanas.

O emir Mulay Málek Ben-Bélek é especialista em agricultura. Ele já ensinou ao senhora Carlos a fazer brotar do caroço da uva, pés de algodão do mais estimável fio.

Além disto, conhece os outros gregos da mais alta antiguidade do que ele lê, não só em grego, como em árabe, tais como Aristóteles, Ptolomeu, Estrabão, etc. até dos propriamente árabes, persas e hindus.

Uma tal sabedoria está a indicá-lo para professor de “relatividade", na Escola Politécnica, ao lado das "Máquinas" do senhora Frontin.

O emir Mulay tem oitenta e três mulheres e cento e cinquenta concubinas. Não as trouxe por dois motivos: a) por não haver grande necessidade; b) porque supôs que, aqui, não houvesse carros "especiais" em que as suas mulheres e concubinas pudessem passear pela cidade, islamicamente enclausuradas como manda o Corão. Desconhecia que, entre nós, há os carros-fortes da polícia...

Este homem eminente, entretanto, segundo dizem, está disposto a fazer-se bufarinheiro (mascate), no Rio.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

domingo, 26 de setembro de 2021

Versejando 78

 

Murilo Rubião (Alfredo)


"Esta é a geração dos que o buscam, dos que buscam a face do Deus de Jacó." (Salmos, XXIII, 6)


Cansado eu vim, cansado eu volto.

A nossa primeira desavença conjugal surgiu quando a fera ameaçou descer ao vale. Joaquina, a exemplo da maioria dos habitantes do povoado, estava preocupada com os estranhos rumores que vinham da serra.

Inicialmente pretendeu incutir-me uma tola superstição. Ri-me da sua crendice: um lobisomem?! Era só o que faltava!

Ao verificar que ela não gracejava e se punha impaciente com o meu sarcasmo, quis explicar-lhe que o sobrenatural não existia. Os meus argumentos não foram levados a sério: ambos tínhamos pontos de vista bastante definidos e irremediavelmente antagônicos.

Com o passar dos dias, os gemidos do animal tornaram-se mais nítidos e minha mulher, indignada com o meu ceticismo, praguejava.

Silencioso, eu refletia. Procurava desvendar a origem dos ruídos. Neles vinha uma mensagem opressiva, uma dor de carnes crivadas por agulhas.

Esperei, por algum tempo, que a fera abandonasse o seu refúgio e viesse ao nosso encontro. Como tardasse, saí à sua procura, ignorando os protestos de minha esposa e as ameaças de romper definitivamente comigo, caso eu persistisse nos meus propósitos.

Iniciara a excursão ao amanhecer. Pela tarde, depois de estafante caminhada, encontrei o animal. Nenhum receio me veio ao defrontá-lo. Ao contrário, fiquei comovido, sentindo a ternura que emanava dos seus olhos infantis.

Sem fazer qualquer movimento agressivo, de vez em quando levantava a cabeça - pequenina e ridícula - e gemia. Quase achei graça no seu corpo desajeitado de dromedário.

O riso brincou frouxo dentro de mim e não aflorou aos lábios, que se retorceram de pena. Com muito cuidado para não assustá-lo, fui me aproximando. Uma pequena distância nos separava e, tímido, perguntei o que desejava de nós e a quem dirigia a sua desalentadora mensagem. Nada respondeu.

Não me dei por vencido ante o seu silêncio. Insisti com mais vigor:

-  De onde veio? Por que não desceu ao povoado? Eu o esperava tanto!

O meu constrangimento aumentava à medida que renovava inutilmente as perguntas. Em dado momento, vendo que falava em vão, perdi a paciência:

-  E o que faz aí, plantado como um idiota no cimo desta montanha?

Parou de gemer e fitou-me com indisfarçável curiosidade. Em seguida, sem tirar o chapéu, murmurou:

- Bebo água.

A frase, pronunciada com dificuldade, numa voz cansada, cheia de tédio, desvendou-me o sentido da mensagem.

Na minha frente estava o meu irmão Alfredo, que ficara para trás, quando procurei em outros lugares a tranquilidade que a planície não me dera. Tampouco eu viria encontrá-la no vale. Por isso vinha buscar-me.

Depois de beijar a sua face crespa, de ter abraçado o seu pescoço magro, enlacei-o com uma corda. Fomos descendo, a passos lentos, em direção à aldeia.

Atravessamos a rua principal, sem que ninguém assomasse à janela, como se a chegada do meu irmão fosse um acontecimento banal. Ocultei a revolta e levei-o pela ruazinha mal calçada que nos conduziria à minha residência.

Joaquina nos aguardava no portão. Sem trocarmos sequer uma palavra, afastei-a com o braço. Contudo, ela voltou ao mesmo lugar. Deu-me um empurrão e disse não consentir em hospedar em nossa casa semelhante animal.

- Animal é a vó. Este é meu irmão Alfredo. Não admito que o insulte assim.

- Já que não admite, sumam daqui os dois!

Alfredo, que assistia à nossa discussão com total desinteresse, entrou na conversa, dando um aparte fora de hora:

-  Muito interessante. Esta senhora tem dois olhos: um verde e outro azul.

Irritada com a observação, Joaquina deu-lhe um tapa no rosto, enquanto ele, humilhado, abaixava a cabeça.

Tive ímpetos de espancar minha mulher, mas meu irmão se pôs a caminhar vagarosamente, arrastando-me pela corda que eu segurava nas mãos.

Ao anoitecer, encontramo-nos novamente no alto da serra. Lá embaixo, pequenas luzes indicavam a existência do povoado. A fome e o cansaço me oprimiam: todavia, não pude evitar que o meu passado se desenrolasse, penoso, diante de mim. Veio recortado, brutal.

(- Joaquim Boaventura, filho de uma égua! - As mãos grossas, enormes, avançaram para o meu pescoço. Deixei cair o pedaço de mão que roubara e esperei, apavorado, o castigo.)

Filho de uma égua. Como tinha sido ilusória a minha fuga da planície, pensando encontrar a felicidade do outro lado das montanhas. Filho de uma égua!

Alfredo pediu-me que descansássemos um pouco. Sentou-se sobre as pernas e deixou que eu lhe acariciasse a cabeça.

Também ele caminhara muito e inutilmente. Porém, na sua fuga, fora demasiado longe, tentando isolar-se, escapar aos homens, ao passo que eu apenas buscara no vale uma serenidade impossível de ser encontrada.

De início, Alfredo pensou que a solução seria transformar-se num porco, convencido da impossibilidade de conviver com seus semelhantes, a se entredevorarem no ódio. Tentou apaziguá-los e voltaram-se contra ele.

Transformado em porco, perdeu o sossego. Levava o tempo fuçando o chão lamacento. E ainda tinha que lutar com os companheiros, sem que, para isso, houvesse um motivo relevante.

Imaginou, então, que fundir-se numa nuvem é que resolvia. Resolvia o quê? Tinha que resolver algo. Foi nesse instante que lhe ocorreu transmudar-se no verbo resolver.

E o porco se fez verbo. Um pequenino verbo, inconjugável.

Entretanto, o verbo resolver é, obviamente, a solução dos problemas, o remédio dos males. Nessa condição, não teve descanso, resolvendo assuntos, deixando de solucionar a maioria deles. Mas, quando lhe pediram que desse um jeito em mais uma briga familiar, recusou-se:

- Isso é que não!

E transformou-se em dromedário, esperando que beber água o resto da vida seria um ofício menos extenuante.

A madrugada ainda nos encontrou no alto da serra. Espiei pela última vez o povoado, sob a névoa da garoa que caía. Perdera mais uma jornada ao procurar nas montanhas refúgio contra as náuseas do passado. De novo, teria que peregrinar por terras estranhas. Atravessaria outras cordilheiras, azuis como todas elas. Alcançaria vales e planícies, ouvindo rolar as pedras, sentindo o frio das manhãs sem sol. E agora sem a esperança de um paradeiro.

Alfredo, enternecido com a melancolia que machucava os meus olhos, passou de leve na minha face a sua áspera língua. Levantando-me, puxei-o pela corda e fomos descendo lentamente a serra.

Sim. Cansado eu vim, cansado eu volto.

Fonte:
Murilo Rubião. Os dragões e outros contos. Publicado em 1965.