terça-feira, 28 de setembro de 2021

Jaqueline Machado (Aruanda entre nós) 4 – Zé Pelintra


Seu Zé vem muito faceiro,
cheio de ginga e molejo...
Com seu jeito feiticeiro,
não dispensa um bom festejo...


O negro Zé, subia o morro, cantarolando: “Chora viola para saudar a malandragem que chegou aqui agora... Malandro sobe e desce o morro para dar o seu recado, é melhor andar sozinho do que mal acompanhado”.

Dono de uma irreverência indissociável a sua elegância, dentro de um palácio, de um bordel ou na favela, fazia questão de manter-se sempre bem alinhado, com seu terno e chapéu branco, de costura bem-feita. Cigarro entre os dedos, gestos gentis e palavras agradáveis, também faziam parte das marcantes características do negro mais charmoso da Providência/RJ.

Zé Pelintra, como costumava ser chamado por muitos amigos. Era sem dúvida, um sujeito muito amigável, mas na presença de qualquer gesto de covardia, uma personalidade à parte o transformava, ora em um bravo guerreiro, ora em um safo e esperto malandro. Devido a essas peculiaridades, para alguns ele era tido como um justiceiro, para outros, não passava de um vilão em trajes de bom moço.

Num dia ensolarado, próximo ao seu nobre barraco, uma imagem corta–lhe o canto. Era Pedrito, o bandido chefe do morro, com sua cara ruiva e magra, cheia de cicatrizes, apontando uma arma para a cabeça do garoto Joãozinho, mais conhecido pelo codinome Feijão, devido ao seu tom de pele que era tão enegrecido quanto a pele de uma pessoa nascida no seio da África.

Pelintra conhecia bem a fama de Pedrito. Um assassino asqueroso que não costumava ter dó de ninguém, nem mesmo de crianças. Alma dominada pelo demo. Difícil de ser dobrada. Mesmo perante a dificuldade, sentia–se no dever de fazer alguma coisa para livrar o menino das garras daquele monstro. Precisava ser hábil. Caso contrário, a vida do Feijão e, quem sabe a dele também, estaria perdida.

Pisando firme, mas sem perder a leveza no olhar, Zé se aproxima e uma espécie de batalha santa se inicia.

- Camarada Pedrito, o porquê de tanta fúria?

- Virei a noite trabalhando. E, hoje cedinho, ao chegar em casa cansado, louco de sono, dou de cara com esse moleque sem eira nem beira assaltando meus armários. Todo mundo aqui sabe que não importa se é menino ou homem feito, mexeu comigo tá ferrado – disse o bandido com os olhos vermelhos pelo consumo de drogas.

- Calma, Pedrito. O garoto não deve ter feito por mal, provavelmente estava com fome. Só isso. Vai dizer que nunca fez o mesmo.

- Já roubei dinheiro e comida pra matar a fome sim. Mas de companheiro meu nunca roubei, não senhor.

- Não vale a pena sujar as mãos por motivo pequeno – disse Zé com voz mansa.

- Vá cuidar das suas negas, Zé. Vá! Me deixa terminar o serviço. Gosto do amigo e não quero que o seu terno todo branquinho fique respingado pelo maldito sangue desse moleque.

- Me...me...sal...va ...va, seu Zé – pedia o garoto gaguejando.

- Agradeço a preocupação do amigo por não querer sujar a minha roupa, mas peço–lhe em nome das coisas boas que já vivemos juntos, solte o menino. Olha para ele. Está roxo de medo com essa arma apontada para seus miolos. Ele já aprendeu a lição.

Nesse momento surgem os pais do Joãozinho.

– Pelo amor de Deus não mata meu filho – diz a mãe aos prantos.

O pai, sabendo da fama do bandido Pedrito, logo diz:

– Eu fico no lugar dele.

- Mas quem tem que pagar pelo erro é quem comete.

- O que ele fez? – perguntou o pai.

- Tava assaltando comida na minha casa.

- Releve. A miséria se abateu sobre nós. Ele não queria roubar nada. A fome o induziu ao erro. Perdoe. É só uma criança – implora a mãe do garoto. - Larga mão disso, homem. Se cometer um assassinato vai ter que ficar um bom tempo foragido, com grandes possibilidades de ser pego pela polícia. Vamos aproveitar a vida. E festar por aí...

- Sei não. - A mulata Jandira ficou de aparecer. E não será por minha causa. Está querendo ver você. Pedrito se para pensar...

– Mas nunca deixo um serviço pela metade.

Zé, ao perceber que a raiva nos olhos do bandido cedera lugar ao desejo de farrear com a mulata mais bela que o morro da Providência já tinha visto, toma-lhe a arma da mão. Na breve confusão, Feijão escapa e corre para os braços dos pais.

- Qual é cara! Devolve minha arma.

- Ela está segura comigo.

- Tudo bem. Vocês venceram. Mas fiquem certos de que não dei o assunto por encerrado.

- Esquece o caso, homem.

- Tem pra mais ano que não vejo Jandira. Sou louco por aquela mulher – diz Pedrito com um risinho maledicente.

- Agora vá descansar. Passou a noite em claro.

- Trabalhando... Preciso dormir umas doze horas. Mas antes, me devolve a arma.

- Claro – diz Zé calmamente ao entregar a pistola calibre 12.

O bandido pega a sua arma e sobe o morro como se nada tivesse acontecido. Zé Pelintra, senta numa pedra, puxa o cordão com a medalha de são Jorge que costumava guardar por dentro da camisa, com devoção beija a imagem e olhando para o firmamento celestial agradece ao santo pela proteção e pela batalha ganha.

Meia hora depois, vai até o barraco do Pedrito verificar se ele foi mesmo dormir. E o encontra deitado sobre a cama com os braços e as pernas abertas, roncando feito um porco. Com a situação sob controle, retorna para casa, apanha um pouco de leite, café, pão e vai até a moradia daquela família sofrida.

- Trouxe para vocês – diz ele, alcançando a sacola com os mantimentos para a mãe do menino Feijão.

Zé desce o morro relembrando a sua infância. Quando tinha a idade do Feijão, teve que afanar o único bem que a família tinha, um violão. Herança do seu avô paterno. Era relíquia de família, mas vez ou outra pedia licença aos pais para tocar o instrumento no quintal de casa. Com seresta e violão, aquele cenário de seca, fome e morte lhe parecia menos cruel. Cedo, partiu. E junto de si, levou a viola. Precisava ganhar o mundo e passando o seu chapéu, foi juntando tostão a tostão.

Mais tarde, já um homem feito, no centro de Ilhéus/BA - sempre bem vestido, fez de tudo um pouco, trabalhou como engraxate, foi feirante, auxiliar de armazém etc. Depois conheceu a boêmia, e virou o rei da malandragem. Vivendo à noite e com as arteirices que acontecem pelas madrugadas afora, arranjou muita confusão.

- Pra mais de cem... Às vezes, por causa de jogo.

Era mestre no carteado e isso gerava desavenças entre os quais perdiam pra ele no vício e no bolso... Mas na grande maioria das vezes as confusões eram geradas por causa de mulher. Zé se orgulhava por fazer sucesso com as damas... Tanto com as solteiras quanto com as comprometidas. Vilão ou bom moço, a verdade é que o rapaz, em momentos difíceis nunca fugia da raia. E costumava ser brilhante em tudo o que se propunha a fazer. Por estar sempre bem vestido, muitos o chamavam de doutor.

Reza a ladainha que por motivos de dívidas de jogo, Zé Pelintra foi atocaiado e morto à porta de um cabaré. E que hoje vive no mundo astral trabalhando em prol das pessoas viciadas em jogo e bebida. Protegendo também, pessoas indefesas. Se ele foi bom moço, vilão ou as duas coisas não se sabe ao certo. A verdade é que Zé Pelintra, o rei da malandragem, virou lenda.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

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