segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Carolina Ramos (O Golpe)

Quando viu a bagagem deslizar de manso para o bojo do avião, admitiu que cinquenta por cento de seu plano dera certo. Plano de cinco fases, cuidadosamente elaborado anos a fio, à espera do momento propício para o desfecho.

Trabalhara como um leão a vida toda, sem nunca lograr ser rico. E, somente sendo rico, teria condições de tornar concreto seu mais acalentado sonho; - Viajar e escrever! – binômio mágico que traduzia integralmente a essência de tudo o quanto aspirava na vida!

Mas... viajar, como?! Tinha nada mais que o necessário para sobreviver! E escrever, como? – se o tempo gasto para garantir-lhe a sobrevivência não lhe deixava a menor sobra?! Nem migalhas restavam para que pudesse comprar, com liberdade, aqueles míseros minutos que, afinal, eram tão somente improvisados graças aos instantes roubados ao sono e que lhe permitiam sentar-se ao computador e digitar pensamentos acumulados na massa cinzenta de um cérebro irresistivelmente engajado no mundo das letras, desde que nascera!

Com base nestas ponderações, surgira a primeira célula do seu ousado plano. Deixou que ela se expandisse e evoluísse, em surdina, trabalhando muito e muito, nas horas mortas, sonolento e determinado a levar avante, a qualquer custo, aquele plano urdido em segredo. Plano quase maquiavélico... mas que o tomaria rico, em tempo hábil!

Mais cedo que o programado, conseguiu um pé-de-meia. Murcho, furado... mas... sempre alguma coisa.

Com esse começo, abriu algumas contas na rede bancária. E depois destas, outras. E outras tantas, mais tarde.

Graças ao bom-papo, infiltrou-se nas gerências. Fez amigos. Ter amigos, naquele caso, era fonte de renda. Apadrinhou-se.

Conseguiu favores, cheques especiais com limites não sonhados – polpudos empréstimos de pai para filho... E muita coisa mais.

Em dado momento, somando cifras e parcelas, em sua maioria virtuais, reconheceu que estava rico!

Chegava a hora de por em execução a segunda fase do arriscado plano: - Vendeu a casa em que morava. Pediu prazo para desocupá-la. Enquanto isso, preparou a modesta bagagem. Desfez-se de tudo o que lhe pareceu supérfluo.

Com pesar, deu o cachorro, leal amigo, a um outro amigo, tão leal quanto ele. Escolheu a dedo roteiros e agências de viagens. Preparou o passaporte com os vistos especiais, indispensáveis.

Às vésperas do embarque, sacou polpudamente tudo o que tinha em caixa, indo até quase o limite dos cheques especiais de todas as contas bancárias das quais era correntista.

Pediu empréstimos. Ao embolsá-los, viu seus sonhos crescerem além do que imaginara! Abriu contas no Exterior.

E, então, a terceira fase do plano impôs-se. Cômoda... e bem menos trabalhosa que as anteriores:

– Refestelado numa classe executiva, atirou-se ao espaço, rumo às maiores capitais e principais cidades europeias. – Deliciado com os encantos do Velho Mundo, deu larga volta ao redor dele, sentindo-se um nababo! Sem medir e nem poupar coisa alguma!

Divertiu-se como se a vida estivesse para acabar! Não perdeu um só espetáculo digno de ser visto! Não se excedeu na compra de roupas, joias ou presentes, mas... comeu e bebeu do bom e do melhor! Adquiriu alguns livros. As bibliotecas sempre exerciam sobre ele fascínio especial, em qualquer tempo. Jamais entrara numa, sem sair com um ou dois volumes sob o braço. Mesmo que da própria mesa não usufruísse de igual fartura.

Reconhecia que a fome do saber era mais compulsiva que a fome física.

Mochila murcha... E sem um centavo nas algibeiras, retomou, certo dia, ao ponto de origem.

Trazia de volta, nos olhos maravilhados, paisagens e visões inesquecíveis!

Entesourara, na alma feliz, emoções sem conta!... Riquíssimo tesouro que a vida jamais lhe conseguiria roubar!

– Daí, para a parte final do plano, apenas um passo.

Na praça de origem, seu nome fervia escaldado nos caldeirões do mundo financeiro!

Sem a menor tentativa de defesa, admitiu a inadimplência irresponsável.

Uma vez julgado e condenado por estelionato, foi trancafiado num xadrez.

Por que voltara?! Por que não se perdera nos labirintos do Velho Mundo, ficando por lá mesmo?!

– Explicara: – Não era desonesto! Era apenas um devedor consciente... que não só admitia a dívida, mas também a absoluta impossibilidade de quitá-la!

Queria, sim, com todo empenho, pagar à sociedade tudo o quanto lhe devia! E, já que não tinha bens, a cadeia era o lugar mais do que apropriado para a expiação da sua culpa. Por isso mesmo entregava-se... Aceitava a pena que lhe quisessem dar... sem qualquer relutância.

Levou para a cela grande volume de blocos de papel, algumas esferográficas e aquela modesta e ultrapassada máquina de escrever, companheira inseparável das vigílias literárias anteriores, antes de embrenhar-se nos ínvios labirintos virtuais, passados para trás pelas dificuldades apresentadas.

Outro companheiro fiel foi com ele – o radiozinho de pilha – pequena janela por onde entravam os ecos da vida lá de fora – e do qual jamais se separaria.

Começava assim a quinta e última fase do seu bem elaborado plano:

– Teria casa, comida, roupa lavada e privilégios adquiridos de um diploma... até ali mal aproveitado, reconhecia. Tudo isso e muito mais calculadamente conquistado e garantido por lei! Enrustidas nesse acervo, as promessas de horas e horas de ócio infinito!

Horas livres de compromissos e obrigações. Horas inteiras ao seu inteiro dispor! Para escrever e escrever como e quanto quisesse!

Sentiu-se rico!... Por ter conseguido tempo de sobra para narrar, sem ser interrompido, as fartas impressões colhidas e vividas fora daquelas grades! E sem relógios por perto a lhe imporem limites, sem telefones a lhe atazanarem os ouvidos e sem ninguém a lhe dar ordens ou cobrar datas. Sua única responsabilidade: – manter-se vivo e ativo para trabalhar por conta própria, sem patrões!

Teve absoluta certeza de que, afinal – longe de sentir-se preso, estava, como nunca, livre por inteiro!

Aspirou fundo, como a querer engolir todo o ar do mundo! E, dono do espaço e dono de si mesmo... abriu, satisfeito, as asas do pensamento!...

Aquele seu ousado e bem elaborado plano... dera certo!... E ponto final!

- Ponto final?! Claro que não! Não foi assim que tudo terminou.

Os tempos haviam mudado... E o arquiteto daquele sonho desassombrado sequer notara!

– Tudo estava diferente! Quem devia, pagava, entre grades, as despesas da "hospedagem" e com o próprio suor do seu trabalho – nada de ócio gratuito!

E foi assim... que aquele plano, elaborado com minúcia extrema, acabou por fracassar redondamente, uma vez que o trabalho imposto jamais deu folga para que a ousadia do ingênuo escritor pudesse funcionar como sonhara.

Tarde demais, entendeu ele a sabedoria do dito popular: – "O crime não compensa!"

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

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