quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Paulo Mendes Campos (Balé do pato)

Sete horas da manhã quando o guarda-vidas Alexandrino, moreno bem brasileiro, chegou à praia de Botafogo. Sorte sua, pois o fiscal apareceu como se acabasse de materializar-se. Era homem de fiscalizar os minutos.

Manhã de vento, mais para fria e nebulosa, anunciando pouco serviço. Com uma vareta o guarda-vidas começou a desenhar na areia um excelente elefante, no qual tinha jogado ao passar no café da esquina. Só faltava o rabo quando a vaga veio e devorou o elefante. Alexandrino dedicou-se a criar o coração de Jesus envolto em labaredas de amor, e ficou só.

Não por muito tempo, pois, erguendo a cabeça, viu que entrava para dentro da praia uma linda senhora loura, vestida com simplicidade esportiva e elegância. Até aí tudo normal. Mas acontecia que a bonita senhora chorava a cântaros, tocando o coração do bom Alexandrino. Assim mesmo, até aí tudo mais ou menos normal. Mas acontecia uma coisa mais grave: a mulher trazia nos braços brancos um pato, preto e gordo. A golpes de pescoço e das patas membranosas, o pato se rebelava, grasnando dramaticamente.

Na folhinha da casa de Alexandrino tinha uma estampa linda - Leda e o Cisne - e ele se riu do prazer engraçado que existe nas analogias estéticas. Discreto, o guarda-vidas assumiu um ausente perfil profissional e ficou por ali paquerando. A senhora passou por ele: olhos azuis, vermelhos de choro, lágrimas caindo em cima do pato, o pato berrando, automóveis buzinando, aviões decolando, mar bramindo - um desconcerto insano. Apesar dos pesares, ela ao passar o cumprimentou polidamente:

"Bom dia, senhor".

Tem fala de francesa, adivinhou Alexandrino.

A senhora entrou dentro d'água, molhando as sapatilhas de pano, inclinou-se, molhando a barra da saia, e assentou cuidadosamente o pato sobre o mar, como se fosse um pato de dar corda.

Depois de tentar manter a cabeça do pato virada para o lado do Pão de Açúcar, a mulher largou o bicho e levou as mãos às orelhas, como se o pato pudesse explodir, num gesto mesclado de aflição e esperança.

Deu-se que o pato avançou um pouquinho só para o mar, virou logo o rabo e nadou em busca da praia. Madame tentou sustar-lhe a passagem, estendendo-lhe duas mãos abertas, mas ficou batida no lance como um lateral europeu marcando Garrincha*. Mané (Alexandrino batizou o pato em cima da finta) deu mais umas vigorosas patadas e atingiu a areia, onde começou a correr - quem, quem - na direção da avenida das Nações Unidas. Esbaldando-se em lágrimas, a gentil senhora disse em francês uma palavrinha de cinco letras.

O dever de Alexandrino é salvar criaturas que se afogam no mar, mas dessa vez ele inverteu o caminho, correndo para salvar o pato que os automóveis decerto iriam atropelar. O pato subiu desengonçado o passeio e já ia cruzando a rua, quando o gari que passava agarrou Mané pelo pescoço num gesto seco e impecável. Foi tão depressa tudo que Alexandrino ficou estatelado diante do gari e sorriu depois com uma compreensão infinita. O outro servidor, num relâmpago, abriu a portinhola da carrocinha, deu um beijo no bico do pato e o meteu lá dentro. Assoviando o "Samba duma nota só", foi levando a carrocinha como se não tivesse acontecido nenhum milagre naquela manhã em Botafogo.

Na praia, como a estátua de amargura do soneto, a mulher ficou chorando. Contou a Alexandrino que chorava porque o marido dela tinha fugido. O banhista continuou não entendendo nada.

- Meu marido, senhor, foi-se embora - repetiu madame com um sotaque que a fazia mais desconsolada.

Alexandrino hesitou um instante, mas teve a coragem de colocar o problema que o tumultuava:

- Mas, madame, era seu marido... aquele pato preto?

- Oh, claro que não, senhor. Mãe-de-santo mandou jogar pato no mar. Venho de entrar pelo cano, senhor.

Ela explicou entre soluços: num terreiro de Vigário Geral tinham lhe falado que lançasse um pato na praia de Botafogo às sete horas em ponto duma sexta-feira; se o pato nadasse para o mar, marido voltaria; se fugisse para a terra, adeus marido. E choramingava:

- Le canard a nagé vers la plage... le canard  a nagé vers la plage...**

Entre compadecido e sagaz, Alexandrino vislumbrou um plano perfeito:

- Mas acontece, madame, que nos casos como esse o pato não pode ser preto.

- Perdão, senhor.

- Tem de ser branco.

- Senhor compreende macumba?

- Pai-de-santo, madame.

A francesa parou de chorar e perguntou onde poderia comprar um pato àquela hora. Ali no comecinho da rua São Clemente ficava um aviário. Um quarto de hora depois, ela voltava com um pato, branco e soberbo como o cisne de Leda.

Repetiu-se a cerimônia de lançamento de pato ao mar, e o pato, para alvoroço de ambos, nadou assustado para fora, e por lá ficou em evoluções mansas. A mulher, emocionada, segurou as duas mãos de Alexandrino, deu-lhe um beijo quase na boca, correu para a calçada, entrou num Peugeot verde-garrafa e arrancou em disparada.

Alexandrino despiu incontinenti a camiseta, nadou umas braçadas, deu um mergulho e reapareceu com o pato agarrado pela perna. Na perna ainda estava o cartão com o preço do pato: Cr$ 1 800.

Alexandrino se rindo de puro gosto trouxe o pato para a praia, enfiou o indicador na boca e proferiu um assovio longo e agudo com modulações. Como por encanto, um pretinho de doze anos brotou do café do outro lado, cruzou em velocidade incrível as pistas todas e freou a um passo de Alexandrino com o fôlego em forma:

- Lumumbinha, meu nego: leva este pato aqui lá em casa e manda a patroa caprichar no molho pardo. Passa aqui na volta e apanha uma nota.
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* Garrincha: Manuel Francisco dos Santos (1933-1983), grande talento do futebol brasileiro reconhecido mundialmente. Ponta-direita famoso por seus dribles desconcertantes.

** Le canard a nagé vers la plage: "O pato nadou em direção à praia"


Fonte:
Paulo Mendes Campos. O colunista do morro. RJ: Ed.  do Autor, 1965

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