O conto publicado em 1873, foi convertido para o português atual pelo editor do blog.
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Uma noite estávamos quatro reunidos no gabinete de uma das nossas mais festejadas artistas. Noêmia, a sedutora atriz, acabava de desempenhar no teatro um desses papéis criados pela fantasia do poeta, impossíveis sem dúvida na realidade da vida, mas que produzem sempre efeito no ânimo das plateias.
No último ato do drama, Noêmia tivera de aparecer aos espectadores vestida de negro, pálida, desgrenhados os cabelos, as faces cavadas, e fundos e empanados os olhos, como uma visão de além túmulo, mais sombra do que mulher, mais ficção do que realidade.
Naquela cena desenvolvera Noêmia tamanho talento, que o efeito fora completo: a atriz desaparecera; representara o espectro.
Findo o espetáculo, acompanharam-na à casa, Estanisláo Pimentel, o ator consciencioso tão justamente aplaudido, e tão cedo roubado á vida, M..., o mimoso folhetinista, e eu.
Noêmia fizera servir o chá em seu gabinete, onde permanecemos depois, entretidos em uma dessas variadas palestras que eram ali habituais. A conversação voltara naturalmente sobre o gênero da peça em que a interessante atriz conquistara-o aquela noite novos louros para o seu diadema de glória.
Negava M... com pertinência e cerrada lógica a possibilidade do personagem representado por Noêmia. A espirituosa atriz, com aquela linguagem fácil, tão singela quanto graciosa, e que fazia uma das mais brilhantes seduções que possuía, sustentava a verdade do papel.
Durava já alguns minutos a discussão, quando Noêmia, voltando-se para o ator, que até então conservara-se silencioso a fumar no canto de um divã, e como alheio ao que se falava no gabinete, perguntou-lhe sua opinião.
— Eu creio no espectro - respondeu Estanisláo, dando à voz uma harmonia lúgubre e tal acentuação de verdade, que não ousamos rir.
Apenas o folhetinista fez um gesto de negação.
— Creio, porque vi - acrescentou o ator.
E depois, com voz mais lobrega ainda e certo tom cavernoso, ajuntou como sob a pressão de uma dolorosa reminiscência:
— E senti!...
Seguiu-se um momento de silêncio.
Passados, porém, aqueles primeiros instantes, a espirituosa atriz prorrompeu em estrepitosa gargalhada, em que a imitamos, M... e eu.
Mas o ator, erguendo-se hirto, bradou:
— Riam-se de mim, que não minto!...
Aí então fitamos os olhos nele.
Estava terrível de ver-se.
O semblante decompusera-se-lhe, cobrindo-se de estranha lividez, seus cabelos estavam ouriçados. Nos olhos tinha aquela expressão assustadora do pavor, e a boca, entreaberta e deixando aparecer os dentes alvos, contraía-se-lhe em franzimentos angustiados e dolentes.
Ele erguera-se de um só movimento, como se fora impelido por estranha força, e conservara-se de pé.
Nenhum de nós três ousou aproximar-se-lhe; ninguém ousou rir, nem se atreveu a falar-lhe. Após alguns momentos de completa imobilidade, Estanisláo estendeu o braço, tomou de sobre a mesa um copo d'água e esvaziou-o com devoradora ansiedade. Em seguida sacudiu os vastos cabelos negros e pôs-se a cruzar silencioso o gabinete.
Nós olhávamos para ele, e não procurávamos sequer com a palavra, com o menor gesto, pôr um termo àquela agitação. Parecia que recebíamos no ânimo a contra-pancada da emoção, qualquer que ela fosse, que daquele modo operava no espírito do ator.
Alguns minutos decorreram assim. Finalmente Estanisláo pareceu ir serenando, aproximando-se do grupo que formávamos a um canto do gabinete, sentou-se junto de nós, e disse com certa irritação na voz:
— Ouçam!
Depois como fazendo um esforço sobre a própria vontade, começou a falar assim:
“—Há cinco anos que isto foi. Passara a tarde na oficina do Querino, o hábil escultor que todos nós conhecemos, e ali impressionara-me a mascara de uma mulher, vazada em gesso, que pendia entre outras na parede escura.
“Olhara distraidamente para todas aquelas figuras, mas a minha atenção fixava-se com irritante pertinência na máscara de mulher. Não sei se pela posição por que ao acaso fora pendurada ali, não sei se pela gradação frouxa da luz que recebia, ela sobressaia às outras.
“Deveria ter sido formoso o semblante morto sobre o qual fora moldada aquela máscara. A morte, gelando-lhe a fronte ampla, não conseguira apagar de todo o sorriso com que a sua vítima acolhera-lhe talvez a aproximação. E naquele sorriso que sobrevivera havia um certo tom de escárnio, ou antes uma pungente ironia que lhe crispava os lábios, arregaçando-os no canto da mimosa boca. A tudo isto notava eu, e vezes havia que a imaginação por tal modo se me prendia a expressão gravada na máscara, que chegava a supor viva e como que entrevia movimentos vagos, indecisas contrações naquele semblante de gesso.
« Querino notou a persistência com que eu fixava o molde, e em uma das vezes em que mais presa eu tinha nele a atenção disse-me o escultor :
“— Era uma linda mulher.
“— Era? – perguntei eu.
“— Pois se morreu!
“ — Ah!1
“Passaram-se alguns momentos, durante os quais não afastei o olhar da máscara, e tornei a perguntar;
“— Aquela mulher morreu?
“— Já te disse que sim. Ha seis meses.
“ — É pena! – murmurei.
“Entraram então algumas pessoas na oficina, e eu logo após saí.
“Durante o resto da tarde, à noite, durante o espetáculo, não se me afastava da ideia a lembrança daquele rosto.
“Era uma perseguição desesperadora, a que não podia esquivar-me.
“Tínhamos tido essa noite espetáculo no Lírico. Eu entrara no último ato, até a ultima cena, e demorara-me no camarim lavando-me e vestindo-me, de modo que fui talvez o último a sair. Dirigia-me para casa, quando ao deixar o campo, descendo para a cidade, distingui a pouca distância de mim e caminhando à minha frente, no mesmo sentido que eu. um vulto de mulher.
“Moço, ardente, impetuoso, apressei o passo e aproximei-me dela.
“A noite era de luar: mas naquele momento uma ampla nesga de nuvens sombrias ocultava a lua. Não obstante, havia claridade bastante para eu adivinhar uma mulher moça naquela que caminhava perto de mim.
“Trajava de negro. Era esbelta. De estatura elevada, delgada e flexível, mais a resvalar do que caminhando, cingia-se como de uns tons vaporosos e sutis, o que realizava aquela ideia da conhecida gravura da Virgem da noite, onde há a luta da sombra com o corpo, em que a forma some-se na nuvem, em que a nuvem desenha a forma. Espécie de sonho através da invisibilidade.
“O semblante não lhe podia eu distinguir. Denso véu da cor do vestido caia-lhe ao longo das faces em espessas pregas.
“Mas devia ser bela. Que o era, sentia-o eu.
“Caminhei a seu lado em silêncio durante alguns minutos, e notei que nenhum gesto de esquiva ela fizera.
“Aquela indiferença, ao mesmo tempo que impunha-me respeito, incitava-me o espírito. Mas era moço, já disse, e o sangue nessa idade desconhece a razão. Falei-Ihe. Disse não sei que trivialidade dessas que são tão comuns em condições idênticas. Não obtive resposta. Mas, se ela não respondeu, não se mostrou também esquiva. Insisti.
“Sempre o mesmo silencio. E deste modo, ela calada, eu continuando a falar-Ihe, descemos juntos até o Rocio. Aquele silêncio pertinaz, aquela calma sombria, produziram em mim nervosa irritação.
“Entrevira uma aventura fácil, encontrava a indiferença, a resistência mais difícil de vencer. Entendi que devia romper. E, pois, disse-lhe despeitado, mas disfarçando o despeito com certo tom displicente :
“— Ora tenho sido parvo! Gastar o tempo em fazer a corte a uma mulher feia!... Que estupidez!...
“Havia brutalidade nesta frase. Esperava eu que ela se agastasse e seguisse direção oposta. Pois não foi. Parou e endireitou-se com a altiva imponência de uma doida. Depois, com a mesma graça e altivez no gesto, ergueu de um só movimento o véu.
“As nuvens tinham-se espalhado no céu, descortinando a lua, e os raios daquela luz refletida cabiam obliquamente sobre o lugar onde paráramos.
“Ao movimento feito por ela eu me aproximara. Apenas, porém, fitei os olhos no seu semblante, recuei horrorizado e trêmulo, curvando-me para o chão.
“Sobre aquele corpo gentil, sobre aquele colo onde eu sonhara a mais faceira e graciosa cabeça, repousava a máscara de gesso.”
Estanisláo calou-se. Limpou o suor que lhe corria da raiz dos cabelos, e depois de passados instantes continuou:
“— E era bela aquela mulher, prosseguiu ele.
“Foi há cinco anos, e tenho ainda nos recessos da memória gravados aqueles traços puros e corretos da sua divinal formosura.
“Suponham um semblante de mármore, e essa alvura aumentada ainda pelo clarão do luar. Nesse semblante de ideal beleza imaginem uns olhos negros, mas de um brilho aveludado e frouxo, como o dos olhos que ainda não extintos parecem estar olhando já para a vida de além. Depois a boca contraída em um sorriso entre irônico e pungente, mas em lábios descorados, quase sem vida.
“E era belo aquele semblante; mas da beleza da morte! Havia nele não sei que angélica candura que atraía, ao mesmo tempo que despertava a ideia do cadáver!
“Ao ver aquela mulher, por semelhante hora da noite, trajada de negro, acreditava-se na sombra fugida de alguma tumba!
“Tinha o encanto da mulher que seduzia, mas revestia o fúnebre prestigio da visão que afastava. Parecia feita de um raio de lua e envolta em uma dobra de nuvem. No clarão que a iluminava adivinhavam-se fogos fátuos.
“Não sei quanto tempo durou aquela fascinação. Quando ousei erguer novamente os olhos, ela afastava-se ao longe.
“Apoderara-se de mim estranha vertigem. Sentia arrastar-me para ela, como a atração que experimenta-se à borda do abismo. Eu não exercia uma vontade: obedecia. Mulher ou sombra, estátua ou cadáver, cumpria que fosse minha.
“Havia nesta irritação uma animalidade feroz.
“Segui após ela. Momentos depois eu a tinha alcançado. Ela voltara à rua dos Inválidos, e parara em frente de uma porta que se conservava fechada. Ao aproximar-se, voltou-se para mim e disse-me:
“— Persiste ?
“Era a primeira palavra que pronunciava. Nunca mais ouvi falar assim. A voz saia-lhe como sumida e coada. Era mais sopro que voz. Tinha à vezes acentuação de gemidos, mas graduada com esquisita harmonia. Ao mesmo tempo que encantava o ouvido, produzia no ânimo sepulcral impressão. Parecia vir através de mortalhas.
“A sua voz participava daquele pavoroso prestígio do cadáver, que lhe marcava o semblante lívido.
“— Persiste? – perguntou ela.
“— Sim! - respondi, procurando disfarçar no laconismo da frase o calafrio que aquela palavra fez-me coar nas veias.
“— Sabe a quanto se expõe?
“— Não, mas não importa. Aceito tudo!
“— E se no fim houvesse a morte?
“— A morte! – repeli com um novo estremecimento.
“— Sim.
“— Morrerei!
“Ela pareceu contemplar-me por alguns segundos; meneou tristemente a cabeça, e murmurou em uma daquelas acentuações dolentes do gemido:
“— Mas o senhor é tão moço....
“— E tu és tão bela !
“A amargura acrimoniosa (amarga) do sorriso, que então franzia-lhe o lábio, não se descreve. Sente-se-lhe o efeito doloroso pungir no coração.
“— O senhor tem um futuro....
“— Quero que seja o teu.
“— O meu!....
E seus lábios fizeram um desses movimentos que traduzem a displicência.
“— O meu futuro é… o desmanchamento do cadáver!
“Estas palavras foram ditas com uma acentuação tão lúgubre, que percorreu-me o corpo um estremecimento de morte. Mas a decisão estava tomada. Não vinha de mim. Era estranho poder que me impunha. Assim, respondi:
“— Embora ainda que eu te sinta cadáver desfazendo-te em meus braços; ainda que eu me decomponha contigo, aceito!
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Uma noite estávamos quatro reunidos no gabinete de uma das nossas mais festejadas artistas. Noêmia, a sedutora atriz, acabava de desempenhar no teatro um desses papéis criados pela fantasia do poeta, impossíveis sem dúvida na realidade da vida, mas que produzem sempre efeito no ânimo das plateias.
No último ato do drama, Noêmia tivera de aparecer aos espectadores vestida de negro, pálida, desgrenhados os cabelos, as faces cavadas, e fundos e empanados os olhos, como uma visão de além túmulo, mais sombra do que mulher, mais ficção do que realidade.
Naquela cena desenvolvera Noêmia tamanho talento, que o efeito fora completo: a atriz desaparecera; representara o espectro.
Findo o espetáculo, acompanharam-na à casa, Estanisláo Pimentel, o ator consciencioso tão justamente aplaudido, e tão cedo roubado á vida, M..., o mimoso folhetinista, e eu.
Noêmia fizera servir o chá em seu gabinete, onde permanecemos depois, entretidos em uma dessas variadas palestras que eram ali habituais. A conversação voltara naturalmente sobre o gênero da peça em que a interessante atriz conquistara-o aquela noite novos louros para o seu diadema de glória.
Negava M... com pertinência e cerrada lógica a possibilidade do personagem representado por Noêmia. A espirituosa atriz, com aquela linguagem fácil, tão singela quanto graciosa, e que fazia uma das mais brilhantes seduções que possuía, sustentava a verdade do papel.
Durava já alguns minutos a discussão, quando Noêmia, voltando-se para o ator, que até então conservara-se silencioso a fumar no canto de um divã, e como alheio ao que se falava no gabinete, perguntou-lhe sua opinião.
— Eu creio no espectro - respondeu Estanisláo, dando à voz uma harmonia lúgubre e tal acentuação de verdade, que não ousamos rir.
Apenas o folhetinista fez um gesto de negação.
— Creio, porque vi - acrescentou o ator.
E depois, com voz mais lobrega ainda e certo tom cavernoso, ajuntou como sob a pressão de uma dolorosa reminiscência:
— E senti!...
Seguiu-se um momento de silêncio.
Passados, porém, aqueles primeiros instantes, a espirituosa atriz prorrompeu em estrepitosa gargalhada, em que a imitamos, M... e eu.
Mas o ator, erguendo-se hirto, bradou:
— Riam-se de mim, que não minto!...
Aí então fitamos os olhos nele.
Estava terrível de ver-se.
O semblante decompusera-se-lhe, cobrindo-se de estranha lividez, seus cabelos estavam ouriçados. Nos olhos tinha aquela expressão assustadora do pavor, e a boca, entreaberta e deixando aparecer os dentes alvos, contraía-se-lhe em franzimentos angustiados e dolentes.
Ele erguera-se de um só movimento, como se fora impelido por estranha força, e conservara-se de pé.
Nenhum de nós três ousou aproximar-se-lhe; ninguém ousou rir, nem se atreveu a falar-lhe. Após alguns momentos de completa imobilidade, Estanisláo estendeu o braço, tomou de sobre a mesa um copo d'água e esvaziou-o com devoradora ansiedade. Em seguida sacudiu os vastos cabelos negros e pôs-se a cruzar silencioso o gabinete.
Nós olhávamos para ele, e não procurávamos sequer com a palavra, com o menor gesto, pôr um termo àquela agitação. Parecia que recebíamos no ânimo a contra-pancada da emoção, qualquer que ela fosse, que daquele modo operava no espírito do ator.
Alguns minutos decorreram assim. Finalmente Estanisláo pareceu ir serenando, aproximando-se do grupo que formávamos a um canto do gabinete, sentou-se junto de nós, e disse com certa irritação na voz:
— Ouçam!
Depois como fazendo um esforço sobre a própria vontade, começou a falar assim:
“—Há cinco anos que isto foi. Passara a tarde na oficina do Querino, o hábil escultor que todos nós conhecemos, e ali impressionara-me a mascara de uma mulher, vazada em gesso, que pendia entre outras na parede escura.
“Olhara distraidamente para todas aquelas figuras, mas a minha atenção fixava-se com irritante pertinência na máscara de mulher. Não sei se pela posição por que ao acaso fora pendurada ali, não sei se pela gradação frouxa da luz que recebia, ela sobressaia às outras.
“Deveria ter sido formoso o semblante morto sobre o qual fora moldada aquela máscara. A morte, gelando-lhe a fronte ampla, não conseguira apagar de todo o sorriso com que a sua vítima acolhera-lhe talvez a aproximação. E naquele sorriso que sobrevivera havia um certo tom de escárnio, ou antes uma pungente ironia que lhe crispava os lábios, arregaçando-os no canto da mimosa boca. A tudo isto notava eu, e vezes havia que a imaginação por tal modo se me prendia a expressão gravada na máscara, que chegava a supor viva e como que entrevia movimentos vagos, indecisas contrações naquele semblante de gesso.
« Querino notou a persistência com que eu fixava o molde, e em uma das vezes em que mais presa eu tinha nele a atenção disse-me o escultor :
“— Era uma linda mulher.
“— Era? – perguntei eu.
“— Pois se morreu!
“ — Ah!1
“Passaram-se alguns momentos, durante os quais não afastei o olhar da máscara, e tornei a perguntar;
“— Aquela mulher morreu?
“— Já te disse que sim. Ha seis meses.
“ — É pena! – murmurei.
“Entraram então algumas pessoas na oficina, e eu logo após saí.
“Durante o resto da tarde, à noite, durante o espetáculo, não se me afastava da ideia a lembrança daquele rosto.
“Era uma perseguição desesperadora, a que não podia esquivar-me.
“Tínhamos tido essa noite espetáculo no Lírico. Eu entrara no último ato, até a ultima cena, e demorara-me no camarim lavando-me e vestindo-me, de modo que fui talvez o último a sair. Dirigia-me para casa, quando ao deixar o campo, descendo para a cidade, distingui a pouca distância de mim e caminhando à minha frente, no mesmo sentido que eu. um vulto de mulher.
“Moço, ardente, impetuoso, apressei o passo e aproximei-me dela.
“A noite era de luar: mas naquele momento uma ampla nesga de nuvens sombrias ocultava a lua. Não obstante, havia claridade bastante para eu adivinhar uma mulher moça naquela que caminhava perto de mim.
“Trajava de negro. Era esbelta. De estatura elevada, delgada e flexível, mais a resvalar do que caminhando, cingia-se como de uns tons vaporosos e sutis, o que realizava aquela ideia da conhecida gravura da Virgem da noite, onde há a luta da sombra com o corpo, em que a forma some-se na nuvem, em que a nuvem desenha a forma. Espécie de sonho através da invisibilidade.
“O semblante não lhe podia eu distinguir. Denso véu da cor do vestido caia-lhe ao longo das faces em espessas pregas.
“Mas devia ser bela. Que o era, sentia-o eu.
“Caminhei a seu lado em silêncio durante alguns minutos, e notei que nenhum gesto de esquiva ela fizera.
“Aquela indiferença, ao mesmo tempo que impunha-me respeito, incitava-me o espírito. Mas era moço, já disse, e o sangue nessa idade desconhece a razão. Falei-Ihe. Disse não sei que trivialidade dessas que são tão comuns em condições idênticas. Não obtive resposta. Mas, se ela não respondeu, não se mostrou também esquiva. Insisti.
“Sempre o mesmo silencio. E deste modo, ela calada, eu continuando a falar-Ihe, descemos juntos até o Rocio. Aquele silêncio pertinaz, aquela calma sombria, produziram em mim nervosa irritação.
“Entrevira uma aventura fácil, encontrava a indiferença, a resistência mais difícil de vencer. Entendi que devia romper. E, pois, disse-lhe despeitado, mas disfarçando o despeito com certo tom displicente :
“— Ora tenho sido parvo! Gastar o tempo em fazer a corte a uma mulher feia!... Que estupidez!...
“Havia brutalidade nesta frase. Esperava eu que ela se agastasse e seguisse direção oposta. Pois não foi. Parou e endireitou-se com a altiva imponência de uma doida. Depois, com a mesma graça e altivez no gesto, ergueu de um só movimento o véu.
“As nuvens tinham-se espalhado no céu, descortinando a lua, e os raios daquela luz refletida cabiam obliquamente sobre o lugar onde paráramos.
“Ao movimento feito por ela eu me aproximara. Apenas, porém, fitei os olhos no seu semblante, recuei horrorizado e trêmulo, curvando-me para o chão.
“Sobre aquele corpo gentil, sobre aquele colo onde eu sonhara a mais faceira e graciosa cabeça, repousava a máscara de gesso.”
Estanisláo calou-se. Limpou o suor que lhe corria da raiz dos cabelos, e depois de passados instantes continuou:
“— E era bela aquela mulher, prosseguiu ele.
“Foi há cinco anos, e tenho ainda nos recessos da memória gravados aqueles traços puros e corretos da sua divinal formosura.
“Suponham um semblante de mármore, e essa alvura aumentada ainda pelo clarão do luar. Nesse semblante de ideal beleza imaginem uns olhos negros, mas de um brilho aveludado e frouxo, como o dos olhos que ainda não extintos parecem estar olhando já para a vida de além. Depois a boca contraída em um sorriso entre irônico e pungente, mas em lábios descorados, quase sem vida.
“E era belo aquele semblante; mas da beleza da morte! Havia nele não sei que angélica candura que atraía, ao mesmo tempo que despertava a ideia do cadáver!
“Ao ver aquela mulher, por semelhante hora da noite, trajada de negro, acreditava-se na sombra fugida de alguma tumba!
“Tinha o encanto da mulher que seduzia, mas revestia o fúnebre prestigio da visão que afastava. Parecia feita de um raio de lua e envolta em uma dobra de nuvem. No clarão que a iluminava adivinhavam-se fogos fátuos.
“Não sei quanto tempo durou aquela fascinação. Quando ousei erguer novamente os olhos, ela afastava-se ao longe.
“Apoderara-se de mim estranha vertigem. Sentia arrastar-me para ela, como a atração que experimenta-se à borda do abismo. Eu não exercia uma vontade: obedecia. Mulher ou sombra, estátua ou cadáver, cumpria que fosse minha.
“Havia nesta irritação uma animalidade feroz.
“Segui após ela. Momentos depois eu a tinha alcançado. Ela voltara à rua dos Inválidos, e parara em frente de uma porta que se conservava fechada. Ao aproximar-se, voltou-se para mim e disse-me:
“— Persiste ?
“Era a primeira palavra que pronunciava. Nunca mais ouvi falar assim. A voz saia-lhe como sumida e coada. Era mais sopro que voz. Tinha à vezes acentuação de gemidos, mas graduada com esquisita harmonia. Ao mesmo tempo que encantava o ouvido, produzia no ânimo sepulcral impressão. Parecia vir através de mortalhas.
“A sua voz participava daquele pavoroso prestígio do cadáver, que lhe marcava o semblante lívido.
“— Persiste? – perguntou ela.
“— Sim! - respondi, procurando disfarçar no laconismo da frase o calafrio que aquela palavra fez-me coar nas veias.
“— Sabe a quanto se expõe?
“— Não, mas não importa. Aceito tudo!
“— E se no fim houvesse a morte?
“— A morte! – repeli com um novo estremecimento.
“— Sim.
“— Morrerei!
“Ela pareceu contemplar-me por alguns segundos; meneou tristemente a cabeça, e murmurou em uma daquelas acentuações dolentes do gemido:
“— Mas o senhor é tão moço....
“— E tu és tão bela !
“A amargura acrimoniosa (amarga) do sorriso, que então franzia-lhe o lábio, não se descreve. Sente-se-lhe o efeito doloroso pungir no coração.
“— O senhor tem um futuro....
“— Quero que seja o teu.
“— O meu!....
E seus lábios fizeram um desses movimentos que traduzem a displicência.
“— O meu futuro é… o desmanchamento do cadáver!
“Estas palavras foram ditas com uma acentuação tão lúgubre, que percorreu-me o corpo um estremecimento de morte. Mas a decisão estava tomada. Não vinha de mim. Era estranho poder que me impunha. Assim, respondi:
“— Embora ainda que eu te sinta cadáver desfazendo-te em meus braços; ainda que eu me decomponha contigo, aceito!
“— Pois segue-me! – disse ela com voz incisiva.
“E penetrou na casa, cuja porta abriu-se sem que eu visse como. Entrei após ela. Subimos longa escada e paramos afinal em uma vasta sala, iluminada por quatro grandes candelabros; mas cuja luz amortecia-se, coada frouxamente através de espessos véus. Ao tom suavizado daquela luz os móveis tomavam aspecto pesado e sombrio, e nas cortinas do leito, levantado era meio do aposento, desenhavam-se figuras estranhas, que moviam-se com desesperador capricho à mais leve agitação do estofo, ao tremor mais sutil da chama das velas.
“O ar ali dentro era quente e saturado de um perfume sutil, e que se entranhava no olfato com dolorosa suavidade, de modo que, em vez do langor, que habitualmente produzem os cheiros melindrosos, causava uma acerbada irritação no cérebro. A minha fantástica visão sumira-se por momentos, deixando-me a sós. Vinham-me então ímpetos de fugir. Chegara mesmo a erguer-me; mas sobrenatural atração prendia-me e obrigara-me a ficar.
“Tudo estava silencioso. Apenas o movimento do pêndulo de um relógio denunciava vida naquela sala. Entretanto esse relógio, que era o único a romper o silêncio ali, tinha o ponteiro persistentemente fixo na hora da meia-noite.
“Afinal consegui fazer um esforço sobrehumano, ergui-me e dirigi-me para uma porta que me pareceu ser aquela por onde houveramos entrado. Ia transpo-la, quando a mais sedutora visão conteve-me o passo.
“Era ela.
“Estava em frente de mim, sem o véu que lhe tapava o rosto, sem as roupas negras que amortalhavam-lhe o corpo, tal como a primeira mulher aparecera ao primeiro homem, como Phrynéa mostrara-se aos velhos juízes no tribunal de Atenas.
“Recebi-a nos braços, ébrio, febril e convulso, apesar do frio que ao seu contato me arrepiava os lábios, tocando nos lábios dela!”
O ator interrompeu-se, derreou a cabeça no respaldo da cadeira, e, semi-fechando os olhos, entregou-se por momentos à intima meditação, como se a memória lhe estivesse reproduzindo as emoções todas daquela noite.
Ele falava com tamanha impressão de verdade, a sua fisionomia revelava tão ao vivo os sentimentos que exprimia com a palavra, que a nossa atenção estava presa, e nenhum de nós se atrevia a interrompe-lo.
Depois prosseguiu, enxugando a fronte suada:
“— Foi uma noite infernal! Todos os prazeres, todos os sonhos, todas as doces agonias, tudo experimentei naquela noite de febre e delírio!
“Ela sentia! Naqueles estremecimentos, naqueles espasmos soluçados, naquelas contorções do gozo arfava-lhe o seio túmido, e os ossos estalavam-lhe nas vibrações da sensualidade. Ao recebe-la nos braços estava pálida e fria. Depois... a febre incendera-se, formara-se a vida, fervera o sangue e o cadáver gozava.
“Era uma cobra que se enroscava nas sensações cruentas do prazer, e que sugava a vida no próprio veneno que nos consumia a ambos! Quando, lânguido e exausto, seu corpo desprendeu-se dos meus braços, e a cabeça rolou-lhe no travesseiro, quis com os lábios sedentos ainda cevar nos lábios dela os últimos ressalvos de volúpia. Nesse momento, porém, desprendeu-se o véu de um dos candelabros, e ao clarão, que de súbito iluminou o aposento, vi de novo. pronunciados, distintos, em vez daqueles lábios quentes e úmidos de lascívia, os amargurados e descorados lábios da máscara de gesso; em vez daquele semblanle divino, de olhos lânguidos e negros, o semblante lívido e olhos cavados da máscara do cadàver!
“Ergui-me horrorizado e fugi.
“No dia seguinte despertei em minha casa. De nada me recordava. Sentia apenas o corpo cansado e o semblante pálido e desfeito. Querendo ver a hora, em vão procurei o meu relógio. Ou me o haviam roubado, ou eu o tinha perdido.
“Dirigi-me à outra sala, onde havia um pêndulo. Estava parado, e o ponteiro marcava as doze horas.
“Então acudiu-me de súbito à memória toda a ocorrência da noite antecedente. Vesti-me e saí. No caminho encontrei o escultor meu amigo.
“— Aquela mulher é morta? – foi a minha primeira pergunta.
Querino parou, fitou-me com sorriso irônico que lhe é habitual, e por sua vez me perguntou:
“— Que mulher?
“— A da máscara de ontem.
“— Ah! Pois como queres que te o diga?
“— Mas tens a convicção de que ela morreu?
“— Afirmo-lhe que sim. Há seis meses. Eu próprio moldei a máscara que viste.
“— Pois eu afirmo-te que te enganas!
“— Oh! – exclamou o escultor encarando-me admirado. E que razões tens para afirma-lo?
“— Vi-a ontem.
“— Viste-a?
“— Ainda mais: passei a noite em seus braços.
“Querino olhou-me fixamente, sorriu com desdém, encolheu os ombros e afastou-se lentamente, murmurando:
“— Estás doido!
“Tinha ele dado alguns passos quando o tornei a chamar. Aproximei-me e perguntei-lhe:
“— Diga-me uma coisa. Onde morava? Aonde foste tirar-lhe a máscara?
“—A casa onde ela morreu, na rua dos Inválidos.
“— Oh! Então não morreu, é ela!
“— Decididamente estás doido – repetiu Querino.
“A opinião que ele formava de meu espírito não me ofendia. De nenhuma informação mais eu carecia. Deixei-o, pois, e segui para a rua dos Inválidos. Ao chegar à casa, onde passara a noite, deparei com a porta fechada. Bati. Ninguém me respondeu.
“Um homem que passava fez-me ver que a casa estava para alugar, chamando-me a atenção para os escritos que tinha às janelas, e que na minha perturbação eu não vira. Um outro escrito na porta indicou-me onde estava depositada a chave. Guardava-a um padeiro da vizinhança.
“Dirigi-me a ele e perguntei-lhe pela pessoa que na véspera morava ali. Respondeu-me que a casa achava-se vazia havia seis meses. Insisti; ele persistiu. Fiz-lhe ver que eu passara a noite lá. O homem sorriu compadecidamente e voltou-me costas.
“Pedi-lhe então a chave, e ele não só me a entregou, como acompanhou-me à casa. Subimos. Em uma grande sala, que ficava no centro da casa, reconheci aquela onde passara a noite. Somente estava despida de móveis.
“A duvida, porém, não podia subsistir, nem para mim, nem para o padeiro. No chão, em meio do aposento, no lugar onde deveria ter estado o leito, deparamos com o meu relógio. O relógio, para mais convencimento nosso, estava trabalhando. Apenas os ponteiros tinham ficado fixos na hora da meia-noite.
“Saí dali verdadeiramente louco e dirigi-me à casa. Mais tarde ganhou-me uma febre impetuosa, e pela manhã do dia seguinte eu estava morto!”
Quando Estanisláo pronunciou esta ultima palavra quisemos rir. Mas seu semblante revestira tal aspecto cadavérico, que nos contivemos e instintivamente recuamos dele, aproximando-nos um dos outros.
Depois de gozar por alguns momentos ainda da nossa estupefação, o ator soltou estrepitosa gargalhada, acrescentando:
— Não se assustem: foi um sonho. De real em tudo isto há apenas a máscara de gesso.
Fonte:
Diversos Autores. Mosaico n.2. Rio de Janeiro: Typ. Academica, agosto 1873.
Diversos Autores. Mosaico n.2. Rio de Janeiro: Typ. Academica, agosto 1873.
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