terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Roberto Pinheiro Acruche (Poemas Avulsos) 3


AQUELE MOMENTO
Depois de um tempo sem viver
aquele momento tentador,
estonteante, apaixonante,
que mais agita e pulsa o ser humano;
ocasião que o conduz ao planeta
do amor, do sonho, aspiração,
do desejo e do prazer;
que o faz suspirar
estabelecendo fantasias
quando beija, abraça, acaricia
o corpo de quem tanto ama
seduz e encanta!
A tristeza invade o coração
solitário.

Mas, quando acontece viver
aquele momento, o coração
é invadido pela alegria,
contentamento e exuberante
entusiasmo!
O deslumbramento flutua
na imaginação; tudo é doce,
romântico, lindo, belo,
sonhador e apaixonante;
é o momento que a felicidade
no melhor do seu sentido
embala a alma e o corpo,
encantando, enfeitando,
colorindo e florindo a vida!

A NOSSA CASINHA

Diga, por que isso agora?
Se durante tanto tempo
estivemos unidos
nos amamos, fomos amigos
tão queridos;
se trocamos juras, paixão,
ternura, carinho e emoção...
Por que isso agora?...
Se antes fora tão linda a nossa união!
Deixa-me entrar nesta casinha
que é tua, eu sei,
mas que também é minha.
Deixa-me senti-la de novo,
cheirar o teu cheiro,
teu cheiro gostoso.
Deixa-me invadi-la,
penetrá-la, não mais resisto, insisto...
Deixa que eu mexa e remexa como tanto fiz.
Foram tantas as intimidades,
já não resisto à saudade...
Deixa que eu faça e desfaça,
como tanto pedira para que fizesse.
Deixa-me entrar nesta casinha,
formosa, gostosa, mesmo sendo apertadinha,
que é tua eu sei, mas que também é minha.
Deixa-me entrar agora, sem demora,
já fazem horas que eu te peço...
Não me deixe aqui, assim, de fora...
Se ainda não está arrumada,
se está molhada, que importa?
Abra a porta, vai ser bom, me conforta...
Deixa-me entrar nesta casinha, que é tua,
eu sei, mas que também, foi sempre minha!

DESTE MODO

Ela disse assim:
Ame-me como te quero amar,
Se entregue a mim como
Desejo entregar-me a você,
Deixa-me te beijar
Matar essa sede
Que você me acende
E me deixa louca,
Esmaga-me em seus braços
Fortes, tantas vezes,
Até que meus suspiros
Se esgotem.
É assim que eu te quero!

RECORDAÇÕES

Passei hoje alguns momentos
relembrando o meu passado,
tantos acontecimentos...
Que acabei emocionado!
* * * * * * * *
Foram incontáveis lutas,
atravanques enfrentados...
Desejos, sonhos, disputas,
muitos esforços doados!
* * * * * * * *
Uma vida de histórias
e de muitos sofrimentos;
de derrotas e vitórias,
mas, sem arrependimentos!
* * * * * * * *
Lutei em favor do bem,
por grandes realizações
e resolvido fui além...
Mesmo com perseguições!
* * * * * * * *
Nunca fugi da batalha,
trabalho incansavelmente...
Pisei em fio de navalha
para ajudar muita gente!
* * * * * * * *
Com maldade descabida
tentaram me derrotar;
mas, dei uma lição de vida,
da qual posso me orgulhar!
* * * * * * * *
Não guardo ressentimento,
qualquer tipo de rancor...
Quem mal me fez, por momento,
me causando dissabor.
* * * * * * * *
O tempo passa correndo,
a velha idade chegando...
Espero, enquanto vivendo,
poder continuar sonhando!
* * * * * * * *
Sonho ver a minha terra
com todo o povo sorrindo...
Que a luz da vida descerra
dias cada vez mais lindo!
* * * * * * * *
Amigos, muito obrigado,
deixo aqui o meu carinho
por estar emocionado
estou chorando sozinho!

TEMOR OU FÉ

Pela vontade de Deus, estou vivendo
desempenhando essa minha missão;
ora cheio de esperança, querendo
viver mais, ora sem inspiração.

Esses momentos dúbios eu condescendo;
possivelmente não sejam em vão!
Ciência divina, que não compreendo;
provavelmente existe uma razão.

Temor, fé, será o que estou professando?
A vida ensina, sigo suplicando...
Pela paz, alegria e salvação.

Sigo enfrentando as minhas relutâncias!
Absorvendo as minhas inconstâncias...
Pelos pecados pedindo perdão.

Fonte:

Machado de Assis (Um Cão de Lata ao Rabo)


Publicado originalmente em O Cruzeiro, 1878

Era uma vez um mestre-escola, residente em Chapéu d’Uvas, que se lembrou de abrir entre os alunos um torneio de composição e de estilo; ideia útil, que não somente afiou e desafiou as mais diversas ambições literárias, como produziu páginas de verdadeiro e raro merecimento.

— Meus rapazes disse ele. Chegou a ocasião de brilhar e mostrar que podem fazer alguma coisa. Abro o concurso e dou quinze dias aos concorrentes. No fim dos quinze dias, quero ter em minha mão os trabalhos de todos; escolherei um júri para os examinar, comparar e premiar.

— Mas o assunto? perguntaram os rapazes batendo palmas de alegria.

— Podia dar-lhes um assunto histórico; mas seria fácil, e eu quero experimentar a aptidão de cada um. Dou-lhes um assunto simples, aparentemente vulgar, mas profundamente filosófico.

— Diga, diga.

— O assunto é este: — UM CÃO DE LATA AO RABO. Quero vê-los brilhar com opulências de linguagem e atrevimentos de ideia. Rapazes, à obra! Claro é que cada um pode apreciá-lo conforme o entender.

O mestre-escola nomeou um júri, de que eu fiz parte. Sete escritos foram submetidos ao nosso exame. Eram geralmente bons; mas três, sobretudo, mereceram a palma e encheram de pasmo o júri e o mestre, tais eram — neste o arrojo do pensamento e a novidade do estilo — naquele a pureza da linguagem e a solenidade acadêmica — naquele outro a erudição rebuscada e técnica — tudo novidade, ao menos em Chapéu d’Uvas. Nós os classificamos pela ordem do mérito e do estilo. Assim, temos:

    1º Estilo antitético e asmático.
    2º Estilo ab ovo.
    3º Estilo largo e clássico.

Para que o leitor fluminense julgue por si mesmo de tais méritos, vou dar adiante os referidos trabalhos, até agora inéditos, mas já agora sujeitos ao apreço público.
 
I: Estilo Antiético e asmático

O cão atirou-se com ímpeto. Fisicamente, o cão tem pés, quatro; moralmente, tem asas, duas. Pés: ligeireza na linha reta. Asas: ligeireza na linha ascensional. Duas forças, duas funções. Espádua de anjo no dorso de uma locomotiva.

Um menino atara a lata ao rabo do cão. Que é rabo? Um prolongamento e um deslumbramento. Esse apêndice, que é carne, é também um clarão. Diz-o a filosofia? Não; diz-o a etimologia. Rabo, rabino: duas ideias e uma só raiz.

A etimologia é a chave do passado, como a filosofia é a chave do futuro.

O cão ia pela rua fora, a dar com a lata nas pedras. A pedra faiscava, a lata retinia, o cão voava. Ia como o raio, como o vento, como a ideia. Era a revolução, que transtorna, o temporal que derruba, o incêndio que devora. O cão devorava. Que devorava o cão? O espaço. O espaço é comida. O céu pôs esse transparente manjar ao alcance dos impetuosos. Quando uns jantam e outros jejuam; quando, em oposição às toalhas da casa nobre, há os andrajos da casa do pobre; quando em cima as garrafas choram lacrima christi, e embaixo os olhos choram lágrimas de sangue, Deus inventou um banquete para a alma. Chamou-lhe espaço. Esse imenso azul, que está entre a criatura e o criador, é o caldeirão dos grandes famintos. Caldeirão azul: antinomia, unidade.

O cão ia. A lata saltava como os guizos do arlequim. De caminho envolveu-se nas pernas de um homem. O homem parou; o cão parou: pararam diante um do outro. Contemplação única! Homo, canis. Um parecia dizer: — Liberta-me! O outro parecia dizer: — Afasta-te! Após alguns instantes, recuaram ambos; o quadrúpede deslaçou-se do bípede. Canis levou a sua lata; homo levou a sua vergonha. Divisão equitativa. A vergonha é a lata ao rabo do caráter.

Então, ao longe, muito longe, troou alguma coisa funesta e misteriosa. Era o vento, era o furacão que sacudia as algemas do infinito e rugia como uma imensa pantera. Após o rugido, o movimento, o ímpeto, a vertigem. O furacão vibrou, uivou, grunhiu. O mar calou o seu tumulto, a terra calou a sua orquestra. O furacão vinha retorcendo as árvores, essas torres da natureza, vinha abatendo as torres, essas árvores da arte; e rolava tudo, e aturdia tudo, e ensurdecia tudo. A natureza parecia atônita de si mesma. O condor, que é o colibri dos Andes, tremia de terror, como o colibri, que é o condor das rosas. O furacão igualava o píncaro e a base. Diante dele o máximo e o mínimo eram uma só coisa: nada. Alçou o dedo e apagou o sol. A poeira cercava-o todo; trazia poeira adiante, atrás, à esquerda, à direita; poeira em cima, poeira embaixo. Era o redemoinho, a convulsão, o arrasamento.

O cão, ao sentir o furacão, estacou. O pequeno parecia desafiar o grande. O finito encarava o infinito, não com pasmo, não com medo; — com desdém. Essa espera do cão tinha alguma coisa de sublime. Há no cão que espera uma expressão semelhante à tranquilidade do leão ou à fixidez do deserto. Parando o cão, parou a lata. O furacão viu de longe esse inimigo quieto; achou-o sublime e desprezível. Quem era ele para o afrontar? A um quilômetro de distância, o cão investiu para o adversário. Um e outro entraram a devorar o espaço, o tempo, a luz. O cão levava a lata, o furacão trazia a poeira. Entre eles, e em redor deles, a natureza ficaria estática, absorta, atônita.

Súbito grudaram-se. A poeira redemoinhou, a lata retiniu com o fragor das armas de Aquiles. Cão e furacão envolveram-se um no outro; era a raiva, a ambição, a loucura, o desvario; eram todas as forças, todas as doenças; era o azul, que dizia ao pó: és baixo; era o pó, que dizia ao azul: és orgulhoso. Ouvia-se o rugir, o latir, o retinir; e por cima de tudo isso, uma testemunha impassível, o Destino; e por baixo de tudo, uma testemunha risível, o Homem.

As horas voavam como folhas num temporal. O duelo prosseguia sem misericórdia nem interrupção. Tinha a continuidade das grandes cóleras. Tinha a persistência das pequenas vaidades. Quando o furacão abria as largas asas, o cão arreganhava os dentes agudos. Arma por arma; afronta por afronta; morte por morte. Um dente vale uma asa. A asa buscava o pulmão para sufocá-lo; o dente buscava a asa para destruí-la. Cada uma dessas duas espadas implacáveis trazia a morte na ponta.

De repente, ouviu-se um estouro, um gemido, um grito de triunfo. A poeira subiu, o ar clareou, e o terreno do duelo apareceu aos olhos do homem estupefato. O cão devorara o furacão. O pó vencera o azul. O mínimo derrubara o máximo. Na fronte do vencedor havia uma aurora; na do vencido negrejava uma sombra. Entre ambas jazia, inútil, uma coisa: a lata.
 
II: Estilo Ab Ovo

Um cão saiu de lata ao rabo. Vejamos primeiramente o que é o cão, o barbante e a lata; e vejamos se é possível saber a origem do uso de pôr uma lata ao rabo do cão.

O cão nasceu no sexto dia. Com efeito, achamos no Gênese, cap. I, v. 24 e 25, que, tendo criado na véspera os peixes e as aves, Deus criou naqueles dias as bestas da terra e os animais domésticos, entre os quais figura o de que ora trato.

Não se pode dizer com acerto a data do barbante e da lata. Sobre o primeiro, encontramos no Êxodo, cap. XXVII, v. 1, estas palavras de Jeová: “Farás dez cortinas de linho retorcido”, de onde se pode inferir que já se torcia o linho, e por conseguinte se usava o cordel. Da lata as induções são mais vagas. No mesmo livro do Êxodo, cap. XXVII, v. 3, fala o profeta em caldeiras; mas logo adiante recomenda que sejam de cobre. O que não é o nosso caso.

Seja como for, temos a existência do cão, provada pelo Gênese, e a do barbante citada com verossimilhança no Êxodo. Não havendo prova cabal da lata, podemos crer, sem absurdo, que existe, visto o uso que dela fazemos.

Agora: — de onde vem o uso de atar uma lata ao rabo do cão? Sobre este ponto a história dos povos semíticos é tão obscura como a dos povos arianos. O que se pode afiançar é que os Hebreus não o tiveram. Quando Davi (Reis, cap. V, v. 16) entrou na cidade a bailar defronte da arca, Micol, a filha de Saul, que o viu, ficou fazendo má ideia dele, por motivo dessa expansão coreográfica. Concluo que era um povo triste. Dos Babilônios suponho a mesma coisa, e a mesma dos Cananeus, dos Jabuseus, dos Amorreus, dos Filisteus, dos Fariseus, dos Heteus e dos Heveus.

Nem admira que esses povos desconhecessem o uso de que se trata. As guerras que traziam não davam lugar à criação o município, que é de data relativamente moderna; e o uso de atar a lata ao cão, há fundamento para crer que é contemporâneo do município, porquanto nada menos é que a primeira das liberdades municipais.

O município é o verdadeiro alicerce da sociedade, do mesmo modo que a família o é do município. Sobre este ponto estão de acordo os mestres da ciência. Daí vem que as sociedades remotíssimas, se bem tivessem o elemento da família e o uso do cão, não tinham nem podiam ter o de atar a lata ao rabo desse digno companheiro do homem, por isso que lhe faltava o município e as liberdades correlatas.

Na Ilíada não há episódio algum que mostre o uso da lata atada ao cão. O mesmo direi dos Vedas, do Popol-Vuh e dos livros de Confúcio. Num hino a Varuna (Rig-Veda, cap. I v. 2), fala-se em um “cordel atado embaixo”. Mas não sendo as palavras postas na boca do cão, e sim na do homem, é absolutamente impossível ligar esse texto ao uso moderno.

Que os meninos antigos brincavam, e de modo vário, é ponto incontroverso, em presença dos autores. Varrão, Cícero, Aquiles, Aulo Gélio, Suetônio, Higino, Propércio, Marcila falam de diferentes objetos com que as crianças se entretinham, ou fossem bonecos, ou espadas de pau, ou bolas, ou análogos artifícios. Nenhum deles, entretanto, diz uma só palavra do cão de lata ao rabo. Será crível que, se tal gênero de divertimento houvera entre romanos e gregos, nenhum autor nos desse dele alguma notícia, quando o fator de haver Alcebíades cortado a cauda de um cão seu é citado solenemente livro de Plutarco?

Assim explorada a origem do uso, entrarei no exame do assunto que... (Não houvera tempo para concluir).

III: Estilo Largo e Clássico

Larga messe de louros se oferece às inteligências altíloquas, que, no prelo agora encetado, têm de terçar armas temperadas e finais, ante o ilustre mestre e guia de nossos trabalhos; e porquanto os apoucamentos do meu espírito me não permitem justar com glória, e quiçá me condenam a pronto desbaratamento, contento-me em seguir de longe a trilha dos vencedores, dando-lhes as palmas da admiração.

Manha foi sempre puerícia atar uma lata ao apêndice posterior do cão: e essa manha, não por certo louvável, é quase certo que a tiveram os párvulos de Atenas, não obstante ser a abelha-mestra da antiguidade, cujo mel ainda hoje gosta o paladar dos sabedores.

Tinham alguns infantes, por brinco e gala, atado uma lata a um cão, dando assim folga a aborrecimentos e enfados de suas tarefas escolares. Sentindo a mortificação do barbante, que lhe prendia a lata, e assustado com o soar da lata nos seixos do caminho, o cão ia tão cego e desvairado, que a nenhuma coisa ou pessoa parecia atender.

Movidos da curiosidade, acudiam os vizinhos às portas de suas vivendas, e, longe de sentirem a compaixão natural do homem quando vê padecer outra criatura, dobravam os agastamentos do cão com surriadas e vaias. O cão perlustrou as ruas, saiu aos campos, aos andurriais, até entestar com uma montanha, em cujos alcantilados píncaros desmaiava o sol, e ao pé de cuja base um mancebo pastava o seu gado.

Quis o Supremo Opífice que este mancebo fosse mais compassivo que os da cidade, e fizesse acabar o suplício do cão. Gentil era ele de olhos brandos e não somenos em graça aos da mais formosa donzela. Com o cajado ao ombro, e sentado num pedaço de rochedo, manuseava um tomo de Virgílio, seguindo com o pensamento a trilha daquele caudal engenho. Apropiando-se o cão do mancebo, este lhe lançou as mãos e o deteve. O mancebo varreu logo da memória o poeta e o gado, tratou de desvincular a lata do cão e o fez em poucos minutos, com mor destreza e paciência.

O cão, aliás vultoso, parecia haver desmedrado fortemente, depois que a malícia dos meninos o pusera em tão apertadas andanças. Livre da lata, lambeu as mãos do mancebo, que o tomou para si, dizendo: — De ora avante, me acompanharás ao pasto.

Folgareis certamente com o caso que deixo narrado, embora não possa o apoucado e rude estilo do vosso condiscípulo dar ao quadro os adequados toques. Feracíssimo é o campo para engenhos de mais alto quilate; e, embora abastado de urzes, e porventura coberto de trevas, a imaginação dará o fio de Ariadne com que sói vencer os mais complicados labirintos.

Entranhado anelo me enche de antecipado gosto, por ler os produtos de vossas inteligências, que serão em tudo dignos do nosso digno mestre, e que desafiarão a foice da morte colhendo vasta seara de louros imarcescíveis com que engrinaldareis as fontes imortais.

Tais são os três escritos; dando-os ao prelo, fico tranquilo com a minha consciência; revelei três escritores.

Fonte:
Wikisource

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 149


Chico Anysio (Seis Meses Depois)


Guido pertencera ao corpo (e corpo é o termo certo) de Polícias Especiais, de motocicleta Harley Davidson e chapeuzinho vermelho. Mesmo neste agrupamento de homens-touros, chegava a se destacar.

— O Guido é um trator — diziam seus colegas de corporação, num misto de orgulho e inveja.

Um "D-14" da Caterpillar, movido a gemada matinal, que não dispensava, e engrossado pela ginástica que todos os dias suportava para se pôr em condições de fraturar mandíbulas e clavículas, nas porradinhas que dava a cada batida pelos antros do crime.

Às cinco e meia, quando o sol apenas começava a botar a testa lá longe, quem chegasse à Praia do Inferno, já o encontrava em meio à centésima flexão. O preparo físico era sua obsessão, e tinha que ser assim, porque aí acabavam as virtudes. Do corpo para a mente a diferença era a do preto para o branco. Feito uma coisa que fosse parida por um bicho, em parceria com gente.

Diariamente media o bíceps e o tórax, crendo ainda ser possível aumentar aquela estupidez de musculatura, um centímetro que fosse.

A namorada não era maior do que uma menina. Um metro e cinquenta, medidos até com boa vontade, e o peso de um catálogo. Os amigos brincavam, chamando aquele namoro de "tentativa de homicídio", conceito que não podia ser encarado como mentiroso. Os dois, quando juntos, pareciam um PI traduzido: 3,1416. Ela era a vírgula. Ele a chamava de Tina, que Albertina — o nome da peça — lhe soava como nome de portuguesa.

— "Daquelas de perna cabeluda e mata no sovaco" — explicava aos colegas, entremeando as palavras da frase idiota com sorrisos alvares.

Guido podia fazer a folga de um guindaste do cais, mas não tinha capacidade cultural de substituir um bicheiro.

Do fim da PE em diante Guido passou a ser encontrado todas as noites — menos segunda, que era folga — à porta de uma boate, em Copacabana, onde o serviço era tão maneiro que o que mais lhe exigiam era, vez por outra, dar uns tapinhas nos fregueses. Mas era tapa em bêbado, não em bandido.

Se por um lado isso tranquilizava Tina e amansava a barra da vida de Guido, por outro foi desastroso.

Entrou na roda viva da vida do boêmio: acordava na hora do almoço, almoçava na hora do lanche, jantava na hora de dormir e dormia na hora de acordar. Esse ritmo de vida não favorece os músculos. E, daí, eles foram discretamente sendo expulsos pelas banhas que chegavam pedindo vaga. Principalmente os da barriga. Dois anos depois era outro. Como se lhe tivessem inflado, sabe-se lá por onde. Antes, Guido-touro; hoje, Guido-boi — homenagem póstuma à castração muscular.

No Beco da Fome, além da cervejinha acompanhando o ragu, já exigia "uma" para abrir o apetite. E deu de fumar. Deste modo, em 24 meses, não mais, o "D-14" se fez "D-8" ou menos.

Foi quando apanhou pela primeira vez.

Bigode era o apelido do que bateu. Era, igualmente, leão-de-chácara de uma boate — a única que não fechava às segundas-feiras.

Quando Tina pediu para ir a uma boate, Guido não a podia levar a outra. Folgava no dia em que apenas a boate do Bigode abria as portas. Não sei se os motivos foram bastante fortes para uma briga, mas o pau comeu.

— Você pensa que é o quê?

— Não folga, que eu te cubro.

— Tem que ser muito homem.

— Então vem, que tu encontra.

— Olha que eu te dou uma porrada.

— Dá uma, leva duas.

Ou não aconteceu o bate-boca. Mas — contou quem viu — de um momento para outro Guido fez referência à esposa do pai do Bigode, e o uppercut saiu. Seco, curto e grosso. Ponta de queixo. 135 quilos desabaram sobre o que na boate ainda insistiam em chamar de tapete com uma surpreendente ausência de barulho.

— Levanta o homem.

— Levantar como? Ele pesa uma tonelada.

— Que pancada!

— Pegou no queixo. E tu notou? Quando ele caiu nem fez barulho.

— Foi as banha que amorteceu.

Com esforço — quatro ajudando — foi levado para fora e depositado no banco da rua. Tina sentia-se culpada. Cuidou de arranjar explicação para a derrota inusitada.

— Ele te pegou desprevenido.

— Tu viu, né? — perguntou Guido numa demonstração de ter aceito a desculpa que a noiva inventara. — Eu vou pegar o Bigode, tu vai ver. E vou pegar "às traição", como ele me pegou, aquele safado.

Não fora nada "às traição", já que o bate-boca eliminava esta possibilidade. E, mesmo admitindo-se que não tivessem trocado palavras, é indiscutível que, a partir do momento em que se puseram frente a frente, com sangue nos olhos e beiços roxos, nada que acontecesse a seguir podia ser levado em conta de "às traição".

Foi lindo e triste, feito incêndio. O uppercut, de uma perfeição de Rocky Marciano, e a queda, parecia a de um prédio desabando. Lindo o soco, triste a queda.

— Ele merecia, pra deixar de ser folgado — já começou a comentar a voz do povo, o que nem era verdadeiro. Mas o mundo é uma selva: ao vencedor, os louros; ao vencido, as pedras.

— Não te falei sempre? É frouxão. Só tem tamanho e safadeza.

— Um amigo meu me contou que ele é mesmo meio covarde. Numa batida, na Favela do Esqueleto, um negrão engrossou com ele, e ele botou o galho dentro.

— Agora, o Bigode...

E os elogios ao vencedor deslizavam como se descessem de um tobogã de mil léguas.

Guido chorou. Olhava-se no espelho. "Como pode? Como é que um troço desse acontece? Tá certo isso? Num homem como eu alguém pode bater? Existe? Um cara parra como eu, levar uma bomba e cair? Cair? Mas isto não vai ficar assim".

Ficou de perfil para xingar a barriga, que já quase cobria a fivela do cinto. Estufou o tórax e já não percebeu a diferença — outrora marcante — dos músculos. Fez pose de Mr. América, e o bíceps parecia que se recusava a aparecer. Ali estava a razão.

— Estou fora de forma.

Era isso. E a boate era a responsável. A noite foi feita pra dormir, não para tomar conta de bêbado.

— Babá de cachaceiro, é isso o que eu sou!

E, além de parar com a bebida, uma decisão que só toma quem é homem!

— Vou parar com essa merda de cigarro.

Primeira providência: pedir as contas na boate. Foi ser massagista de um time de subúrbio. Depois a rentrée na Praia do Inferno, onde as flexões chegaram a ser duzentas. Não se soube mais dele no Beco da Fome, nem no Grego, da Barata Ribeiro. A barriga fugia, e o corpo voltava a ficar como o do tempo da PE. A cor que a noite deixa no rosto deu lugar a um saudável bronzeado. Parecia um cacique.

Foram seis meses de treinamento, repouso, vegetais, vitaminas, ginástica e pouco amor. Tina entendia que agora não podia ser mais todos os dias, mas apenas de vez em quando. O touro ia voltar à arena. Que viessem Dominguim e Manolete e Paco Camino e El Cordobés. Touro, na ponta dos cascos, com sangue na boca e fumaça nas narinas.

Não tinha contado nada a ninguém, e esta é a explicação, para que somente Tina soubesse que era chegada a hora da desforra.

Dormiu cedo na véspera. Pela manhã tomou uma gemada reforçada, almoçou rosbife e salada de batatas, pouco líquido, dormiu à tarde. Estava concentrado.

O táxi parou à porta da boate do Bigode, era meia-noite e bocadinho. Chegava à mesma hora em que chegara na noite fatal. Queria repetir tudo, igual. Até Tina estava com ele. Só que desta vez não ia pedir mesa, ia pedir revanche.

Olhou o porteiro, como se o simpático negrinho fosse um inimigo.

— Diga ao Bigode que o Guido está aqui. Diga que eu vim arrebentar-lhe os cornos.

— O Bigode tá de folga.

Pronto. Com essa ele não contava. Mas não foi esta pequena decepção que o arrefeceu.

— De araque. Nessa boate não tem folga.

— A boate não fecha, mas, às quartas, o leão é o Biju. Serve o Biju?

Não servia. O Biju, ele nem conhecia. Ele queria o Bigode, aquele filho das unhas do uppercut "às traição". Mas o Biju sabia quem ele era.

— Você não é o Guido, da PE? Prazer. Biju.

— Não tenho nada contra si. Eu vim aqui pra pegar o Bigode de pau. Cadê o Bigode?

— Ele folga às quartas.

— Onde ele mora?

— Na Rodolfo Dantas, perto de onde era o Jirau — explicou o negrinho porteiro.

— Então liga pra casa dele e diz que o Guido tá aqui. Diz que eu vim pra dar um cacete nele.

Não houve quem conseguisse tirar isso da cabeça do touro ferido. Nem pedido nem conselho. E tantos eram os conselhos e os pedidos, que a própria Tina já admitia a desistência como um bom negócio.

— Deixa isso pra lá, Guido.

— Me larga! — e empurrou a noiva sobre o balcão.

Já havia raiva, além do ranço, e isso era muito bom. Passava a mão no queixo seguidamente, como se esse gesto o ajudasse a lembrar o uppercut seco, curto e grosso. E bem que ajudava.

— Liga pro Bigode — ameaçou, segurando o negrinho da portaria pelo colarinho da farda. — Liga pro Bigode, antes que eu te dê uma bomba.

Foi o gerente quem telefonou.

Bigode dormia desde nove e meia da noite. Acordou quando o telefone chamava pela décima vez.

— Alô — disse a voz rouca e potente que açoitou os ouvidos do gerente.

— Bigode? Aqui é o Pacheco, da boate.

— Que é que manda, Seu Pacheco? O Biju faltou?

— Não. Biju tá aqui.

— Então, pra que tá me acordando?

O gerente explicou com medo, como se fosse ele o homem que procurava o leão.

— Diz pra ele voltar amanhã.

Com a mão trêmula, o gerente tapou o bocal do telefone e, falando baixo, transmitiu ao desafiante a sugestão do desafiado.

— Ele teve uma boa ideia. Disse pra você voltar amanhã.

Guido tomou o telefone da mão fria do gerente.

— Amanhã volta a sua velha. Se você é homem, como pensa que é, vem cá. Vem pra ser arrebentado, seu safado.

— Oh, Guido — falou manso o sonolento Bigode — eu tou dormindo! — e bocejou sincero, mostrando que não inventava.

— Tu tá tremendo.

— Esquece aquele negócio, procurava contemporizar o Bigode, homem que, no fundo, era bom, tanto que criava passarinhos. — Esquece aquilo, Guido. Eu tava de porre. Eu sou teu amigo, rapaz. Até parece!

— Meu amigo é os tomates. Vem, que eu vou te dar o troco.

— Guido, escuta, tu parece menino.

— E tu parece prostituta.

— Não tou a fim de brigar, meu velho.

— Teu velho é o cara que tu pensa que é teu pai. E quem falou que tu vai brigar? Tu vai apanhar nessa cara, pra deixar de ser folgado.

— Guido...

— Vem ou não vem, Maria Mijona?

Bigode não podia recuar.

— Tá OK. Vou tomar um banho e vou. Em meia hora tou aí.

— 15 minutos! — exigiu Guido, achando-se no direito de dar ele as ordens, na qualidade de desafiante.

— Vou ver o que posso fazer — prometeu Bigode.

Levantou-se, esticou os braços curtos e fortes, a patativa cantava, pensando que o dia nascera. Tinha água. Vestiu uma camisa de colarinho puído — camisa de briga como nós, que não brigamos, definimos — e foi.

Na calçada, uma plateia de Fla-Flu.

Tina comia um misto quente no bar ao lado da boate. A torcida dividida.

— Eu sabia que o Guido, um dia, ia "às forra".

— Quem não sabia?

— Fica falando aí. Tu até chegou a dizer que ele era bicha.

— Fala baixo, rapaz. Parece que tá fazendo comício.

— Eu sou mais o Bigode, quer valer uma Brahma?

— Tá falado.

— Meu amiguinho, o que vai voar de pena! Vê lá se não vai sobrar nada pra gente.

— Tu pensa que eu sou doido? Na hora do pau eu vou subir na marquise, pra ver de cima.

Guido estalava os dedos, comprimindo-os contra a palma da mão. Seis meses, meu nego! Sem farra, sem álcool, sem sexo. Ou quase sem. E, nesses seis meses, que ninguém esqueça de uns 15 dias de dieta macrobiótica. E o melhor é que pelo menos uns vinte caras que tinham presenciado a covarde agressão do Bigode estavam presentes. Viram o verso? Pois iriam ver o reverso.

Bigode veio de ônibus. O pagamento ainda não tinha saído.

Olhou para os dois lados da rua antes de atravessá-la. Isto provava que não estava fora da sua razão. Podia até mostrar tranquilidade.

Os olhos do Guido faiscavam, como se fabricassem zarabatanas de fogo. O sanduíche de Tina descansou no balcão, e suas mãos se juntaram, num entrelaçamento de dedos que tanto podia ser prece como dúvida. Bigode parou a dois metros.

— Guido...

— Não tem papo.

Foi a última vez que Bigode tentou contemporizar, contornar aquela situação até certo ponto ridícula. Daí, fez o seguinte: caminhou, chegou pertinho e deu um uppercut. Um só, no queixo, Guido caiu como um Gabinete Francês: sem ruído.

A torcida não entendeu. Foi um impacto semelhante ao de um gol aos 10 segundos. O gerente abriu e fechou os olhos, querendo checar se estava mesmo acordado; o negrinho porteiro acendeu um Continental; Tina mordeu o sanduíche; e Bigode pegou o ônibus para voltar pra casa. Quando entrou no apartamento, a patativa dormia no poleiro. Sono mais tranquilo do que o de Guido, que se esparramava na calçada. Um sono de seis meses jogados fora.

Tina não o ajudou a acordar. Foi embora de táxi, dormir na casa da mãe. Para sempre, aliás.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

J. G. de Araújo Jorge (Líricas) 4


Lírica Nº 46

Tocada de ventos
carregado de estranhas eletricidades,
me aproximo de ti, como uma nuvem...

De repente
desço como uma chuva
para intumescer os córregos e as fontes
e despertar a terra...
__________________________

Lírica Nº 47
   
Desfolhada rosa
é o coração do poeta
tocado por tua ausência.

Estás no ar, como uma essência...
__________________________

Lírica Nº 48
   
Dou a impressão, como toda gente,
de que estou me dirigindo para algum lugar.

Entretanto,
onde quer que me encontre,
meu destino é você.
__________________________

Lírica Nº 49
   
Ainda bem que as árvores permanecem...
Que o céu continua, entre os vultos
pesados dos arranha-céus
- muralhas cinzentas
de nosso presídio cotidiano...

Que a gente ainda pode certas horas,
velejando na madrugada
abordar a noite,
como uma ilha de ninguém...
__________________________

Lírica Nº 50
   
Estás muito próxima dos meus sentidos
para que possas te transformar
em poema.
__________________________

Lírica Nº 51
   
Ah! O sofrimento de que coisas é capaz...

Tu me feriste tanto, e tanto, e tanto,
que agora se voltasses, te admirarias de ver
como o meu coração não te conhece mais.
__________________________

Lírica Nº 52
   
Às vezes, quando penso no que fomos certo dia,
tenho a impressão de que andamos vivendo
duas vidas emprestadas.
__________________________

Lírica Nº 54
   
E porque eu te via até de olhos cerrados,
meus olhos abertos não percebiam
o que fazias de mim...
__________________________

Lírica Nº 55
   
Onde estarás? Que braços te colherão
sem que um estremecimento me perturbe?

E dizer que morria
se teus olhos não estavam nos meus…
__________________________

Lírica Nº 57
   
Meu Deus! - como estão longe aqueles instantes
que foram o mais belo amor do mundo...
..

"Viveste realmente? Ou te deixas como um louco
a imaginar coisas,
oh, pobre coração insano?"
__________________________

Lírica Nº 59
   
Afinal, agradeço-te por todas as mentiras
com que me fizeste acreditar no amor...

Por que haveria de desejar a verdade,
se com ela, nada teríamos colhido,
nada restaria de nós?
__________________________

Lírica Nº 60
   
Afinal, nem Deus, poderá mesmo nos tirar
aqueles instantes que vivemos...

Para que mais?
__________________________

Lírica Nº 62
   
E quando tivemos que dizer adeus,
já tínhamos partido.

Não encontramos mãos, nem lenços,
nem mesmo lágrimas,
não me chamaste: amor,
nem te chamei: querida...

- Já estávamos realmente muito longe
um do outro,
quando chegou a hora da despedida.

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 3. SP: Ed. Theor, 1965.

Affonso Celso (Caráter Mineiro)


CAPÍTULO 1

Grandes dificuldades deparava outrora ao governo de Minas Gerais a arrecadação das rendas públicas nas coletorias do sertão.

Não havia ainda estradas de ferro que se incumbissem de cobrar impostos de trânsito e consumo.

As enormes distâncias, os meios primitivos de transporte, a falta de recursos pelo caminho, tornavam sumamente árdua a remessa de somas avultadas por parte daquelas agências remotas para a tesouraria da capital.

Municípios há (Minas, não se ignora, excede a França em extensão) apartados de Ouro Preto centenas de léguas, e léguas de beiço, como lá chamam, isto é, sobrelevando de um apêndice as comuns.

Imaginai veredas aspérrimas, talhadas às vezes em matas espessas; constantemente morros a galgar e a descer; por única dormida, ranchos mal cobertos de sapê; rios sem pontes invadeáveis à menor chuva; atoleiros extensos, onde corre  gente o risco de se afogar em lama; carência absoluta de conforto; necessidade, não raro, de realizar a pé excursões que te prolongam por meses a fio; — e tereis aproximada ideia dos embaraços práticos para se fazer chegar, há anos, com segurança à repartição central as taxas fiscais apuradas nas aludidas localidades sertanejas.

Na impossibilidade de remeter as quantias pelo correio, pois os estafetas lutavam com os óbices indicados, nem lhe sendo dado igualmente servir-se de processos bancários, até então ali não usados, utilizava-se para aquele encargo o governo mineiro das praças do corpo de polícia provincial.

Dois ou três soldados de confiança recebiam a incumbência de percorrer as estações de certa zona longínqua, cobravam o dinheiro e voltavam com ele, depois de ausências de ordinário bastante longas.

Nunca se observou um desvio.

Mostra a estatística ser Minas Gerais uma das regiões do mundo, onde em mais diminuta escala se registram atentados contra a propriedade.

Delitos e delinquentes apontam-se lá, como em toda a parte.

Mata-se por ciúme, em razão de rixas ao jogo, honra de família, questões de terras, excessos alcoólicos nas festas populares.

Mas raríssimos os furtos e os roubos. Atestam o curioso fato os dados oficiais.

Possui uma companhia inglesa no arraial do Morro Velho, perto de Sabará, rica mina de ouro, de cuja exploração colhia ainda há pouco tempo resultados extraordinários.

Manipulado no lugar da extração, o precioso metal era, em seguida, remetido, em barras, no dorso de mulas até ao ponto terminal da estrada de ferro ou das diligências, e daí expedido ao Rio de Janeiro para a exportação.

A tropa que o conduzia, composta de meia dúzia de bestas, guiava-a um único tropeiro, auxiliado por um menino, avô e neto, dizia-se. A viagem durava dias.

Consoante a pontualidade britânica, efetuava a tropa o percurso em datas fixas, geralmente conhecidas.

E atravessava sítios totalmente despovoados, pousava em pontos isolados e certos, chegando sempre a seu destino na época previamente marcada, carregada de arrobas e arrobas de ouro.

Conheciam-na todos os viandantes com quem cruzava. Pelo número dos animais, calculavam precisamente a quantidade transportada, pois sabiam o que cada um podia levar. E, vendo desfilar tantas riquezas, murmuravam, como se consultassem uma folhinha:

— São tantos do mês. Aí vai a tropa do Morro Velho levando tanto de ouro...

O fato repetiu-se por lustros ininterruptamente.

Nunca sucedeu uma demora, um contratempo, um extravio.

Tomariam por doido quem externasse o receio de um assalto a mão armada.

Outro caso significativo:

Os viajantes do Serro e Diamantina para o Rio tornavam-se muito notados em Minas pelo modo como arreavam os seus animais, a boa qualidade destes e a rapidez com que caminhavam, acompanhados de pajens com libré, chapéu de oleado o copo do prata preso à corrente do mesmo metal que traziam a tiracolo.

Sabia-se também que aqueles viajantes eram sempre portadores de avultadas somas em brilhantes, ouro em pó ou trabalhado, numerário para encomendas etc.

No ano de 1860 ou 1861, subia um deles a serra de Ituverava por entre horrível tempestade, quando um raio, caindo sobre a comitiva, fulminou-o, a ele, um dos pajens e todos os animais.

O camarada, único sobrevivente, ficou desacordado.

Voltando a si, horas depois, largou a pé para Ouro Preto, não muito perto do local da catástrofe, chegando alta noite.

Ia dar parto às autoridades do ocorrido.

Só na tarde do dia seguinte compareceram no sítio do sinistro o juiz de ausentes, escrivão e policiais.

Junto aos dois cadáveres velavam pessoas miseráveis que residiam ou ranchos do sapo convizinhos.

Nas canastrinhas intactas encontrou-se para mais de mil contos de reis.

Nos bolsos do negociante as chaves das canastrinhas e grande quantia em papel; nas algibeiras do pajem dinheiro miúdo.

O morto, além disso, conservava no dedo magnífico anel de brilhantes, bem como os botões de camisa feitos da mesma pedra preciosa.

Como procurador fiscal, o pai de quem escreve estas linhas tomou conhecimento da arrecadação que a família declarou exatíssima.

Estes traços criaram merecida legenda em torno da probidade mineira.

Ilimitada a confiança que inspiravam ao antigo comércio da Corte os tropeiros de Minas, famosos pelos seus trajes e pela fidelidade com que solviam seus compromissos e levavam ao destinatário, sem a menor garantia material ou legal para o remetente, centenas de contos de réis.

Mas nenhum episódio dá do caráter mineiro ideia tão completa, como o que passo a narrar, episódio perfeitamente autêntico em todas as suas circunstâncias, salvo um ou outro pormenor alterado pela tradição.

CAPÍTULO 2

Sem embargo do referido quanto à segurança pública, assinalaram-se esse ano alguns fatos de depredação numa das mais afastadas comarcas de Minas Gerais.

Choças e fazendas haviam sido vítimas de saqueio.

Mais de um viajante fora trucidado em emboscada, para se lhe rapinar a bagagem.

Alarmou-se a população. As autoridades investigaram, e verificou-se tratar-se de cinco ou seis estrangeiros, que tinham formado uma quadrilha de salteadores.

Tomaram-se providências e os atentados cessaram. Mas nenhum dos bandidos caíra nas mãos da justiça.

Escondidos nos matos, onde difícil seria persegui-los, aguardavam naturalmente que arrefecesse o zelo policial para de novo entrarem em ação.

Em torno deles, arquitetou a imaginação popular uma lenda.

Cochichava-se que mantinham relações com cúmplices e protetores, habitantes de influentes povoações.

Haviam já decorrido meses depois do último delito, sem que a respectiva impressão se tivesse ainda esvaído, quando dois soldados e um cabo do corpo de polícia começaram a perlustrar a região infestada a coligir o produto de impostos antigos.

Três homens decididos e esforçados, escolhidos a dedo para a perigosa comissão.

Levavam consigo não pequena quantia. Viajavam a pé, bem armados, com as possíveis cautelas.

O dinheiro, conduzia-o o cabo num saco de couro, amarrado por meio de correias às costas.

No último ponto em que se detiveram, muita gente aconselhou-os a não prosseguirem sem reforço de companheiros e de armas.

Iam cortar comprido ermo mal afamado, — desfiladeiros sinistros.

Com a despreocupação e imprevidência habituais ao nosso povo a nada atenderam.

E partiram.

Partiram; e ninguém soube mais notícia deles.

Como não chegassem ao lugar a que se destinavam no prazo devido, começaram a circular boatos de que haviam sido atacados e mortos durante o trajeto.

Oito dias, quinze dias, um mês, dois, o nada de informações.

Avultou e tomou visos de veracidade a suspeita do crime.

A administração deliberou medidas extraordinárias para descobrir a verdade. Numerosas escoltas, coadjuvadas espontaneamente por bandos de particulares, percorreram em todos os sentidos a estrada pela qual os desaparecidos deveriam ter passado.

Organizou-se minucioso sistema de rigorosa pesquisa.

Afinal, após aturado esforço, orientados por uns corvos, encontraram num recôncavo da espessura, entre densa vegetação, dois cadáveres completamente putrefatos.

Difícil averiguar-lhes os traços. Entretanto, pelas roupas e vários sinais, convenceram-se de que um dos corpos era o do cabo e o segundo o de um dos soldados.

Sumira-se o terceiro.

Em roda, vestígios inequívocos denunciavam renhida luta. Pouco distante dos cadáveres achou-se dilacerado e vazio o saco de couro que continha o dinheiro.

Dias depois, toparam mais longe, no fundo de um precipício, com o outro corpo.

Irreconhecível este, de tão decomposto.

De tal feitio enlameada e consumida a roupa, que nenhum esclarecimento deparou.

Não havia dúvida: acometidos por uma horda de ladrões — os estrangeiros certamente, — superiores em número, as três praças tinham sucumbido no cumprimento do dever.

Uma delas, gravemente ferida, tentara fugir e expirara longe dos camaradas.

O dinheiro, cerca de cem contos, fora roubado.

A despeito das mais severas diligências empregadas para capturar os assassinos, nada se conseguiu.

O acontecimento produziu intensíssima sensação.

Mas, com o correr dispersador do tempo, apagou-se a pouco e pouco da memória pública.

Sucessos de maior monta preocupavam as atenções. Iniciara-se a guerra do Paraguai, exigindo do Brasil enormes sacrifícios de homens e de fortunas. O estrépito dos preparos bélicos abafava qualquer outro rumor.

Um ano depois, subsistia apenas dos três soldados massacrados duvidosa lembrança, como de um obscuro drama do passado, mais imaginário do que real.

CAPÍTULO 3

Já quase ninguém se recordava lucidamente do ocorrido, quando, certa manhã, apresentou-se no palácio do governo em Ouro Preto um homem sujo, aspecto selvagem, crestado do sol, o cabelo e a barba em triste estado.

Esse homem declarou à sentinela que queria falar sem demora ao presidente da província.

Recusou-se a princípio o alto funcionário; mas o desconhecido tanto insistiu, afirmando ter comunicações importantes a lhe fazer, que por fim foi admitido no gabinete oficial.

— Sou Manuel Cruz, praça de polícia, — murmurou achegando-se do administrador. — Cumprindo as ordens do meu falecido cabo, venho entregar em mão própria a vossa excelência os cem contos que arrecadamos no sertão.

Atônito, o presidente não compreendia.

— Explique-se, — exclamou com surpresa e mau humor.

Então o recém-chegado narrou com simplicidade a sua trágica e gloriosa história.

Era o terceiro dos soldados incumbidos da cobrança.

Ao entrarem na região deserta, onde o assalto dos bandidos podia ter lugar, dissera-lhe o cabo:

— “Todos sabem que o dinheiro vai comigo dentro do saco de couro. Pois tome lá você o cobre e esconda-o debaixo da roupa, eu fico com o saco vazio. Se formos atacados, eu e o camarada defenderemos com unhas e dentes o saco, para fingir que a soma aí está. Enquanto eles estiverem ocupados conosco, você trate de escapulir. Arranje as coisas de maneira a só entregar a chelpa ao presidente da província. A mais ninguém, olhe lá. E Deus o ajude.”

Realizou-se o que o cabo previra. Uma tarde, achavam-se arranchados por precaução em plena mata e preparavam a comida, quando foram agredidos pelos malfeitores.

Fizeram-lhes face o cabo e o companheiro com inaudito denodo. O estratagema do saco surtiu efeito. Sequiosos de se apoderarem desse saco, que os soldados defendiam ardentemente, não deram fé os agressores no portador da quantia, o qual, graças às trevas incipientes, conseguiu fugir.

Correra perigos indescritíveis, pois os assassinos, trucidados os outros e conhecido o embuste, saíram-lhe furiosos ao encalço.

Sem comer nem beber, passara dias e dias escondido em furnas, rastejando alta noite como um réptil, evitando as sendas batidas, com infinitos cuidados, curtindo incríveis privações.

Efetuara assim milagrosamente estupendo percurso. Mas cumprira à risca a ordem do seu cabo. Ali punha o maço de notas intacto. Quisesse o Sr. presidente ter a bondade de contar para verificar si estava certo.

O presidente quedara estupefato. Afinal inquiriu:

— Mas o terceiro cadáver que se achou? Bem se vê que não era o seu, como se assegurou.

— Era naturalmente o de um dos ladrões que nós baleamos logo no princípio da festa, — respondeu Manuel Cruz.

— E você sabia que o mundo inteiro supunha o dinheiro roubado e você morto?

— Desconfiava. Contava mesmo com essa crença para chegar até aqui, sem maior incômodo.

— Bem, concluiu o presidente, — você praticou uma bonita ação. Há de ser recompensado. E, voltando-se para o ordenança que da porta assistia à cena:

— Acompanhe este homem ao Tesouro Provincial para que ele deixe lá a quantia e se lhe passe recibo.

Aí o soldado agastou-se:

— Ora, excelentíssimo! — bradou. Pois eu andei duzentas léguas sozinho com o dinheiro e preciso agora de guia para ir ali a dois passos... Mande por outro que eu estou cansado e lá não vou. A ordem do meu cabo era entregá-lo a vossa excelência pessoalmente. Já o fiz. Se acha que o meu serviço vale alguma coisa, mande dar a minha baixa. Tenho mulher e filhos. Não os vejo há mais de 14 meses e eles pensam que eu morri. São muito pobres. Preciso trabalhar um pouco para a família. Passe vossa excelência muito bem.

E saiu desabridamente, batendo com a porta, depois de haver atirado os cem contos para cima de uma mesa.

Fonte:
Poeteiro (revisão ortográfica Iba Mendes)

domingo, 29 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 148


Luciano Dídimo (Alma Gorda)

Luciano é de Fortaleza/CE
Fonte: Facebook da AVIPAF

Carlos Drummond de Andrade (Essência, Existência)


Assistindo a um desfile de escolas de samba, espetáculo maravilhoso de ritmo, som e colorido, X teve a sensação de dissolver-se na multidão, e por duas horas não existiu em si, mas no grupo. Guardava todas as percepções do indivíduo, e era como se esse indivíduo tivesse milhares de olhos, ouvidos, bocas. Seu próprio corpo se alastrara, pois, na impossibilidade de mover-se do ponto em que estava, sentia que suas pernas iam acabar a três quadras de distância, onde a rua aparecia livre.

Terminada a exibição, X verificou que lhe faltava a carteira, subtraída do bolso da calça por alguém que, menos comunicativo, resistira à absorção pela massa. Levara pouco dinheiro e, além de alguns papéis, apenas lamentou a perda de um retrato muito amado. Consolou-se pensando que essa lembrança seria restituída por não interessar a outrem.

No dia seguinte, o correio trouxe-lhe um cheque, e X foi ao banco descontá–lo. O empregado pediu-lhe, por obséquio, a carteira de identidade, e como ele não a tivesse, e ninguém ali o conhecesse para atestar que X era mesmo X, saiu sem receber o dinheiro.

Dirigiu-se a uma repartição pública, onde ia ter vista de um processo. E já estendia a mão para pegá-lo quando o funcionário, mantendo suspenso o maço de papéis, e delicadamente:

— Sua carteira, faz favor.

X explicou que estava sem carteira, furtada no meio do aperto etc. Mas não tinha importância: também era funcionário público, e o colega…

— Então me dê sua carteira funcional.

A funcional, com seu número de matrícula no Instituto das Sementes Oleaginosas, também fora batida, e X não podia consultar o dossiê sem comprovar sua condição de X.

Como todo pequeno-burguês neste momento difícil para a humanidade, X tem dupla ou tripla profissão, e deu um pulo ao sindicato de classe, à cata de um atestado de que era mesmo X, e não Y. Pediram-lhe, de entrada, que mostrasse a carteira sindical. Claro que a sindical sumira com as outras. Mas não se podia espiar no arquivo os dados transcritos no documento?

— Poder, pode, mas não há como a carteirinha mesmo. E o arquivo está sendo reorganizado. O senhor volte daqui a duas semanas, tá?

— Meu caro…

— Se o senhor não tem carteira, que hei de fazer? Como posso saber que o senhor é o senhor mesmo? Faça como eu: o papai aqui só toma banho com a carteira sindical amarrada à cintura, num impermeável.

X arrastou-se ainda ao Ministério do Trabalho, mas, como também houvesse ficado sem carteira profissional (não confundir com sindical), não podia provar que tinha carteira profissional, nem mesmo profissão, nem sequer que existia. Num esforço derradeiro, lembrou-se de que, como toda gente, era sócio da ABJ, e esta poderia salvá-lo, dando-lhe uma carteira nova de jornalista. Mas era preciso um retrato, sem o que a carteira não provava nada, e o fotógrafo da rua da Carioca, ao fim de uma longa escada comida pelo tempo, avisou:

— Distinto, procure daqui a três dias. Até lá, é bom não sair de casa…

Só então X compreendeu. Compreendeu que, desde a perda de suas carteiras, não existia mais. Um homem só existe pelos documentos de identidade. Seu retrato vale mais do que o corpo, um carimbo mais do que sua palavra, e um número mais do que tudo. Iluminava-se o velho problema filosófico da essência e da existência. Kierkegaard vislumbrara a solução, ao afirmar que existente é aquele que experimenta certa intensidade de sentimentos em contato com alguma coisa fora dele. Existente é aquilo que a coisa externa faz de nós, comunicando-nos seu sopro, e sem essa coisa não podemos sequer viver, pois nossos semelhantes não nos percebem em nós, mas em nossos símbolos civis. E o símbolo é a essência do ser.

Sem existir, X chegou ao largo da Carioca. Aí se viu no meio de uma briga, empurraram-no, maltrataram-no, e, como não tivesse documento algum, foi conduzido ao distrito e recolhido — por engano — ao xadrez. Lá dentro, um homem humilde fitou-o por muito tempo, hesitante, e afinal lhe tocou no ombro:

— O senhor se parece muito com um retrato que eu achei jogado na rua e guardei à toa. Quer ver?

Tirou do bolso sujo o velho retrato do pai de X, que ficara na carteira furtada. E X sentiu-se existir novamente, pois fora reconhecido, através das linhas do rosto, e sem o menor documento estampilhado.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

José Augusto de Castro e Costa (Poemas Avulsos)


ALMA ACREANA
Alma minha gentil que aqui ainda estás,
Contemplando, perplexa, a ora sadia ora insana
Vida de um reino em busca de paz,
És, sim, única e própria alma acreana!

A propriedade de tua formação
Objeto da paz emanada de guerra,
Nasceu da exata miscigenação
De almas patrícias que a esperança encerra.

És brasileira por opção
Para seres de fato alma acreana.
Caráter firme, orgulho e decisão
De bravos, de onde o amor à pátria emana

Distingue-se algo da alma sulista,
Mas tens muito da alma cearense, pernambucana...
Destaca-se, sim, a influência nortista,
Pois desta mistura de almas és tu – alma acreana.

FLORESTA

Floresta, és tu sublime inspiração
De Deus – esplendorosa criação!
Favoreces o equilíbrio das matas,
Assim como proteges as límpidas cascatas!

Floresta, é a sombria casa da flor esta.
Nas flores, nas folhas, nos caules, enfim em festa
És esperança real deste céu, deste rio-mar, desta terra...
Depósito energético que a natureza encerra!

A brisa que sopra na folhagem
Conta mil segredos para a flor...
A natureza a escutar esta homenagem
Diz serem tais, cantos de amor!

Tuas matas, a natureza sente,
Vibra, encanta e emana chama ardente
De belezas plásticas e eterno fulgor,
No triunfo imortal do soberano amor!

Bendito o verde que de ti fulgura
Ao banhar-te o sol – o real rei de luz pura...
Transportando raios coloridos em águas cristalinas
A esperá-los nos rios, igarapés, nas relvas das campinas!

Bendita sejas Floresta nossa de cada dia!
Que Deus te perpetue saudável!
Devolva-te todo o porte e magia...
Te recupere a selva que te foi extraída
E voltes tu a oxigenar nossa própria vida!

HORROR – GRANDE E MUDO
Rio Acre, interminável e fundo,
Entre barrancas de impotência e dor,
Em que mar remoto, profundo,
Estás tu a lançar tantas lágrimas de horror?

Aqui, ali, além, de dobra em dobra,
De curva em curva invades tua terra,
E tal qual uma imensa e assustadora cobra
Vais tragando a vida que a mata bonita encerra...

Da minha terra, toda a risonha história,
Alagaste-a... engoliste-a... São páginas lidas!
Mostras-me tu que o amor é crença ilusória,
E as almas são todas elas esquecidas?

Tuas margens, não as vejo mais. A linha
Das tuas barrancas, onde à tardinha
As garças e alguns de nós íamos cismar a esmo

Me desconcentra,  e ao ver esta água turva,
Descubro o Rio Acre em cada curva
E o destino colérico a bagunçar comigo mesmo!

RÉQUIEM MATERNO

Quando acordei para o mundo,
Vi um rosto alabastrino
A beijar-me, ainda no berço
Premeditando o destino.

Me afagou e me ensinou
A falar e dar meus passos.
Cheguei até ter ciúmes
Do calor dos seus abraços !

Passou a ser a Mãezinha
Razão da minha alegria,
Pois foi quem me amparou
Quando ninguém me queria !

Mas enfim foi embora
Essa minha estrela guia...
Fico rogando a Deus
Por essa outra Maria !

Ao mandar que me deixasse
Deus lhe disse, em tom profundo
Que iria pagar em dobro
O bem que ela fez ao mundo.

Vou chorar sempre sua falta
Mas fazendo os rogos meus,
Que maior felicidade
Tenha depois desse adeus.

Pode partir minha mãe,
Que não será esquecida,
Porque o tempo jamais apaga
O bem que se quer na vida.

Fontes:
Antonio Miranda
Felicidacre (Blog do Poeta)

Contos e Lendas do Mundo (China: O Palácio do Príncipe Dragão)

(antiga fábula chinesa)

Neste mundo sempre houve muita coisa bonita para se ver. Dentre elas, destacava-se a corrida de barcos-dragão que se realizava em Su-Chian, no quinto dia da quinta lua. Cada embarcação levava esculpido no lenho um dragão de escamas verdes e douradas; as balaustradas tinham enfeites de flores laqueadas e estandartes de seda bordados. Da popa saía uma espécie de trampolim de madeira, onde ia sentado um rapazote perito em acrobacias. Exibia-se em belos movimentos rítmicos, chegando, por vezes, a dobrar a tábua até fazê-la tocar a água, dando a impressão, a cada instante, de que ia mergulhar. Esses rapazes eram treinados desde crianças e alguns deles, por sua perícia, eram disputados a peso de ouro pelos diversos proprietários dos barcos-dragão.

Dentre os melhores, o mais hábil era, sem dúvida, A-Tuan, belíssimo rapagão órfão de pai.
Aconteceu que, durante uma daquelas festas, A-Tuan perdeu de fato o equilíbrio e foi cair no rio que o tragou, fechando sobre ele suas águas. Imediatamente, os nadadores mais destros mergulharam em sua busca. Mas, por mais fundo que mergulhassem, nem sequer o avistaram. Voltaram à tona resfolegantes e desiludidos: não fora possível salvá-lo.

Era preciso avisar a velha Chiang, mãe de A-Tuan, do ocorrido. Acabrunhados, os proprietários dos barcos-dragão foram em comitiva procurá–la. A pobre mulher chorou muito. Só o que trazia consolo ao seu coração aflito era a dor sincera que demonstravam todos e o pensamento de que seu filho fora amado por muitos.

A-Tuan, porém, não morrera: no instante em que cairá n’água (e não saberia explicar como lhe tivesse acontecido, perdera o equilíbrio, excelente acrobata que era) sentira-se agarrado por duas mãos que o puxavam para o fundo. A água se erguera ao redor dele, alta como uma muralha, e ele percebeu que podia respirar perfeitamente. Recobrando uma certa serenidade, A-Tuan pôde ver um castelo. No centro de um salão imenso, um homem com um elmo na cabeça estava sentado num trono.

— Este é o Príncipe Dragão, anunciou uma voz às costas de A-Tuan; ajoelhe-se diante dele.

O olhar do príncipe, pousado em A-Tuan, irradiava benevolência.

— Você é um rapaz de rara habilidade: pode entrar a fazer parte do grupo "Ramos de Salgueiro".

Foi tudo o que lhe disse. Depois, A-Tuan sentiu-se transportado por seu acompanhante invisível para longe do palácio, até um recinto cercado de amplos pavilhões. Ali chegados, seu acompanhante fê-lo subir à varanda do pavilhão leste, de onde saiu, toda sorridente, uma velha senhora.

— Esta é a Senhora Sie, disse a voz de sempre, e vai ser sua mestra.

A senhora sentou-se na varanda e chamou por alguém. A-Tuan viu aparecerem lá de dentro diversos rapazolas que não teriam mais de treze ou quatorze anos. Cumprimentaram A-Tuan e foram muito amáveis com ele.

— Agora vamos mostrar a A-Tuan a "dança do relâmpago" e a "dança do vento", disse a senhora Sie.

Logo se ouviu o rufar de tambores e o bimbalhar de pratos de cobre e a dança começou. Era algo indescritível, digna dos gênios. Quando se restabeleceu o silêncio, a senhora Sie chamou para perto de si A-Tuan, com a intenção de lhe ensinar os passos da dança. Ele, porém, não a deixou falar.

— Mande recomeçar a música e eu lhe darei uma amostra do que sei.

Assim que a primeira nota ecoou na esplanada, A-Tuan começou a dançar. Todos o fitavam atônitos, prendendo a respiração, e a velha senhora Sie explodiu em frenético bater de palmas.

— Magistral! exclamou, possuída de entusiasmo. A sua perícia iguala à de Flor de Verão!

Não sabendo quem era Flor de Verão, A-Tuan não estava em condições de apreciar plenamente o elogio. Compreendeu, porém, que a velha senhora lhe admirava a arte e deu-se por satisfeito.

No dia seguinte, o Príncipe Dragão recrutou, para serem examinados, os vários grupos de bailarinos, que foram reunidos ao pé de uma escadaria, num pátio muito grande. Os primeiros a serem examinados foram os duendes. Tinham rosto de menino e corpo de peixe; e dançavam batendo com força num prato de cobre, que produzia ruído de trovão. A cada bater de prato, pulavam tão alto que saíam da água e chegavam a tocar a abóbada celeste, de onde faziam cair um chuvisco de estrelas.

A seguir, foi a vez das "Passarinhas". Eram todas donzelas formosas e elegantes que dançavam acompanhando-se numa espécie de flauta. Pouco a pouco, ao redor delas, foi-se
aplacando o fragor das ondas, foram-se enregelando as águas até que tudo se transformou num mundo de cristal translúcido. Finda a dança as águas voltaram a mover-se com o ruído de sempre, enquanto as donzelas iam colocar-se eretas e imóveis ao pé da escadaria.

Veio depois o grupo das "Andorinhas", raparigas muito jovens, que dançavam agitando as mangas compridas de suas vestes. Na cabeça, traziam uma guirlanda de flores perfumadas. Vestiam uma roupagem azul e preta, de duas caudas, lembrando andorinhas. Uma, entre as demais, esvoaçava como se tivesse asas. De suas vestes desprendiam-se, ondulando ao vento e sobre as ondas, botões de flores multicores que, vagando daqui para acolá, acabaram por cobrir todo o pátio. Terminada a dança, foi-se juntar às companheiras ao pé da escada.

A-Tuan, que estava ali perto, tomou-se de encantos por ela. Quis saber quem era e os de seu grupo, admirando-se de que ainda não a conhecesse, exclamaram:

— Quem havia de ser senão Flor de Verão!

A-Tuan não teve tempo de retrucar, pois, nesse ínterim, o Príncipe Dragão chamara o grupo dos "Ramos de Salgueiro” e era chegada a sua vez de dançar.

A dança foi tão perfeitamente executada quanto as outras. O príncipe elogiou A-Tuan por sua diligência em aprender e por sua destreza em executar o que aprendera. Deu-lhe de presente uma faixa toda de escamas de ouro para prender o cabelo. Nela estava incrustada, bem no centro, uma esplêndida pérola que, à luz do luar, tinha o fulgor de uma estrela.

A-Tuan agradeceu o presente e apressou-se em juntar-se aos companheiros, junto à escadaria. Erguendo os olhos, viu posto nele o olhar meigo de Flor de Verão; mas, intimidado, não fez um gesto nem disse uma palavra.

A um sinal do Príncipe Dragão, todos os grupos puseram-se a desfilar em boa ordem, voltando, cada qual, ao seu próprio pavilhão. A-Tuan e Flor de Verão mal tiveram tempo de trocar um olhar de despedida e depois perderam-se de vista.

A-Tuan não esquecia a linda dançarina. De tanto pensar nela, de tanto sentir a sua falta, acabou adoecendo. Perdeu o apetite e o sono. Em vão a velha senhora Sie fazia-o beber poções milagrosas. A-Tuan estava cada dia mais magro e definhava. Os olhos encovados e tristes, perderam o brilho. Só a pérola que resplandecia em sua fronte lhe iluminava o semblante opaco.

Ninguém atinava com a causa do mal que o oprimia. A velha senhora afligia-se por estarem às vésperas de uma festa da mais alta importância em que todos os grupos iriam exibir-se.

— Está-se aproximando a festa do Príncipe dos Rios e A-Tuan continua dessa maneira. O que havemos de fazer com ele?

Nesse pé estavam as coisas, quando, certa noite, um rapaz pertencente ao grupo dos duendes foi visitar A-Tuan. Sentou-se na beira da cama e puseram-se os dois a conversar disto e daquilo.

— Será possível que ninguém descobre o motivo da tua doença? perguntou, a certa altura, o visitante, com um sorriso matreiro.

— Ninguém entende nada, respondeu A-Tuan, com um fio de voz.

— Flor de Verão não teria, por acaso, algo a ver com tudo isto?

— O que te faz pensar assim?

— O fato de Flor de Verão padecer do mesmo mal, retrucou o duende a rir. Quem me contou foi uma rapariga do grupo das andorinhas.

A essas palavras, A-Tuan ergueu-se na cama.

— Meu amigo, não haveria um jeito de eu me encontrar com Flor de Verão?

— Talvez haja.

— Ó, por favor, você que sabe tudo a meu respeito, diga-me o que devo fazer.

O duende fitou-o, pensativo; depois acrescentou:

— Não vai ser fácil: teremos de percorrer um longo caminho e, no fim, nem é certo que cheguemos a encontrá-la.

— Mas por que é que é tão difícil assim ver Flor de Verão? perguntou A-Tuan.

— O Príncipe Dragão a mantém sob estrita vigilância. Como viu, é uma dançarina incomparável e ele tem medo de perdê-la.

— E como havia de perdê-la?

— Alguém poderia raptá-la e levá-la de volta à terra. De fato, ela tem muitas saudades da terra, apesar de ser tão querida aqui.

— Pois eu sinto o mesmo e gostaria de poder dizer o que sinto à Flor de Verão.

A-Tuan insistiu tanto, rogou tanto que o duende, por fim, se rendeu. Decidiu-se a agir e perguntou logo:

— Pode andar?

— Com algum esforço, posso.

Auxiliado pelo rapazinho, A-Tuan saiu do quarto. Percorreram diversas galerias que pareciam entalhadas em cristal até chegarem a uma porta. O duende abriu-a e passaram os dois por ela. Depois de mil e uma viravoltas, encontraram outra porta, que o duende abriu, também. A-Tuan viu, com estupor, que se encontravam num bosque todo de árvores de magnólia, tão altas que era impossível ver até onde chegavam. As folhas eram grandes como esteiras e as flores eram como gigantescos chapéus de sol. As pétalas caídas jamais haviam sido removidas e formavam, no chão, uma camada fofa e macia, da espessura de dez colchões sobrepostos.

O duende mandou que A-Tuan se sentasse.

— Descanse enquanto espera, que eu já volto.

— A-Tuan obedeceu e ficou à espera. Estava ansioso, tinha a sensação de que o duende se demorava eternamente.

Entretanto, não eram decorridos mais que alguns instantes, quando, mudo de surpresa, viu, surgir, ali onde o duende desaparecera, uma donzela de rara beleza, que o fitava, sorrindo com timidez. Era Flor de Verão! Foi dos mais felizes o encontro dos dois: confiaram um ao outro toda a história de suas vidas. Flor de Verão contou que, certo dia, quando navegava pelo rio, na embarcação de seu pai, curvando-se sobre as águas frescas e cantando, sentira que a puxavam para o fundo. Fora coisa de segundos: logo após, estava na presença do Príncipe Dragão.

— Todo o mundo me trata muito bem; são todos bondosos comigo, disse ela a suspirar, mas eu tenho saudades de minha família e só penso em voltar para a terra.

— Eu também, disse A-Tuan com lágrimas nos olhos; eu também penso em minha mãe e na dor que há de ter sofrido por me crer morto. Mas não tenho esperança de fugir daqui.

— Nem eu tampouco, disse Flor de Verão chorosa. Muito menos agora, às vésperas de uma festa tão importante: redobraram a vigilância. Receio não poder mais vê-lo antes do dia das danças.

Com efeito, assim foi. Os ensaios mantinham atarefadíssimos todos os grupos de dançarinos. Na verdade, porém, desde o dia em que se haviam encontrado, tanto Flor de Verão como A-Tuan recobravam as forças. E puderam dançar de novo. Era preciso, porém, recuperar o tempo perdido e disso se encarregou a senhora Sie. Infatigável, fazia-os exercitarem-se dia e noite e os mantinha sob tão rigorosa vigilância que não lhes deixou um minuto sequer para novo encontro.

Chegou o dia da festa. Conduzidos pelo Príncipe Dragão, todos os grupos se encaminharam para a grande esplanada onde teriam lugar as danças em honra do Príncipe dos Rios, O espetáculo foi deslumbrante. O Príncipe dos Rios ficara impressionado com a prestigiosa habilidade de A-Tuan: porém, a graça indizível de Flor de Verão fora o que o subjugara.

Findas as festividades, os dois príncipes trocaram gentilezas e dádivas, Depois, todos voltaram a seus pavilhões. Todos, exceto Flor de Verão e mais outra bailarina do grupo das "Passarinhas", que foram destacadas para morar no palácio do Príncipe dos Rios, onde iriam ensinar dança às damas da corte.

Imensa foi a dor de A-Tuan. Suspirara tanto por aquele dia, na esperança de ter uns momentos de folga! Esteve a ponto de adoecer de novo. Fez de tudo para convencer a velha senhora Sie a mandá-lo também para o palácio do Príncipe dos Rios, mas ela sacudia a cabeça, sem nem ao menos uma resposta.

Passaram-se, assim, alguns meses. Certo dia, uma infausta notícia espalhou-se pelos pavilhões.

— Sabem da novidade? Flor de Verão subiu para o grande terraço do castelo do Príncipe dos Rios e se afogou!

A coisa parecia inacreditável. Como poderia alguém, vivendo no fundo do rio, afogar-se?

A-Tuan atormentava-se com a ideia do desaparecimento da moça.

— Estamos tão habituados a viver no fundo d’água que a água é o nosso elemento. No entanto, Flor de Verão subiu ao terraço superior do palácio e se afogou! Não posso acreditar!

— A verdade, repetiam-lhe os amigos, é que ninguém mais a viu.

A-Tuan, no auge do desespero, arrancou da cabeça a faixa de escamas de ouro e a fez em pedaços: foi buscar suas vestes mais ricas e as reduziu a frangalhos. Depois, para acalmar a dor de seu coração, quis voltar para o meio das flores de magnólia, onde ele e Flor de Verão se haviam encontrado.

Seguiu pelas galerias, atravessou a primeira porta, foi adiante, até encontrar a segunda. Abriu-a e ei-lo no bosque. Pareceu-lhe que seu coração parasse de bater, tão viva era a lembrança de seu primeiro e último encontro com Flor de Verão.

Depois de muito caminhar, de repente, se viu às fraldas de uma muralha altíssima, à qual estava apoiada uma escada que parecia não ter fim. A-Tuan comprovou, com estupor, que a muralha era formada pelas águas do rio, de tal maneira solidificada que jamais alguém poderia atravessá-la. Trepou rápido escada acima. Chegou a alcançar a altura das magnólias e foi subindo, subindo, até ultrapassá-las...

"Sabe-se lá onde vai ter esta escada!" dizia consigo. "Estou exausto, não aguento mais! Se esta subida não tem fim, vou rolar lá para baixo de cansaço."

Subitamente, a escada terminou. E, um pouco mais acima, terminava a muralha também. A-Tuan trepou alguns metros mais, até galgar o muro e, de lá, atirou-se do outro lado. Ao voltar a si da vertigem provocada pela queda, tentou nadar. Viu, com surpresa indizível, que o sol resplandecia sobre sua cabeça e que as águas do rio se estendiam em volta dele. Estava livre! Estava de novo na terra! Louco de alegria, deixou-se levar pela correnteza e, ora nadando, ora boiando, chegou à margem.

— Ei, você aí, gritou-lhe um pescador que lançava a sua rede; de onde vem?

— A minha jangada naufragou e não sei exatamente onde estou.

— De que aldeia és?

— De Su-Chian.

— Pode julgar-se um rapaz de sorte: não está longe. Só tem que chegar à curva do rio, que atravessa o vale.

A-Tuan agradeceu e- saiu correndo na direção indicada. Não tinha a mínima ideia do tempo que estivera ausente. Parecia-lhe que a estação do ano era a mesma de quando caíra no lago.

De repente, descortinou sua aldeia natal. Com passo mais compassado, refreando a emoção, chegou à casinhola onde nascera e se criara. Estava já quase a entrar, quando ouviu, lá de dentro, uma voz jubilosa que dizia:

— Senhora Chiang, seu filho está aqui!

A-Tuan estacou. Aquela voz, embora só uma vez a tivesse ouvido, ficara-lhe para sempre no coração. Não, não era possível que se enganasse!

De fato, lá estava, para recebê-lo à soleira da porta, junto a sua velha mãe, Flor de Verão, que lhe sorria com olhos brilhantes de alegria.

Contou-lhe que, lá no palácio do Príncipe dos Rios, sentia-se morrer de melancolia. Pensara, então, que, talvez, subindo ao telhado mais alto, pudesse avistar o pavilhão onde vivia A-Tuan e saudá-lo de longe. Às escondidas, fora ao terraço, mas, ao espichar o pescoço para enxergar mais longe, perdera o equilíbrio e caíra. Mas, tal como acontecera com A-Tuan, a queda, em lugar de arrastá-la para o fundo, fizera-a boiar nas águas do rio. Fora recolhida por uma jangada que passava e, tendo sabido que sua família perecera num naufrágio, dera o nome da mãe de A-Tuan, para cuja casa a haviam acompanhado.

A velha senhora Chiang chorara de comoção, ao saber que o filho vivia. Depois, derramara novas lágrimas ao pensar que jamais o tornaria a ver. Flor de Verão, porém, tinha muita esperança. E os fatos vieram-lhe dar razão.

Casaram-se em meio à alegria geral. Dançaram para o encantamento de todos os presentes que se desfizeram em elogios.

Só o Príncipe Dragão, tendo perdido seus melhores dançarinos, por muito tempo viveu acabrunhado e inconsolável.

sábado, 28 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 147


Luiz Poeta (Canção de Ninar Estátuas)


Ao se virar, o sangue correu-lhe gélido e impetuoso pelos capilares. Sentiu, estarrecido, o olhar da estátua abismando-se no fundo de suas nebulosas e trêmulas retinas. Conteve o temor inicial e pouco a pouco foi retomando o fôlego. Cerrou e baixou a vista instintivamente, mas levantou-a de maneira tímida e naturalmente cautelosa, tentando resistir àquela metafísica provocação óptica tão... absurdamente humana.

Então, aconteceu a metamorfose... os olhos de bronze foram mudando gradativamente de cor. A princípio eram marrons, depois vermelhos, turquesa, violeta... azuis... expressiva e profundamente azuis... Ele fitava-os boquiaberto. O coração batia-lhe descompassado. O conflito intensificou-se: o corpo da estátua adquiriu movimentos. Suas mãos apoiadas num cajado mexiam-se suavemente. O tórax inflou na primeira respirada e os lábios simularam um tênue sorriso.

Boquiaberto, o transeunte deixou-se cair pesadamente no banco da praça. E a móvel escultura encaminhou-se para ele - o metal das roupas esvoaçando-se no vento, os cabelos de estanho caindo-lhe sobre os olhos... azulíssimos.

O homem afunilou-se no próprio estupor.

A estátua bem próxima - para sua conclusão de autoconsciência esquizofrênica, indagou solenemente:

- Como vai, companheiro?

Ele não ousou responder. Vítreas pelo terror, suas trôpegas pupilas pousaram abruptamente naquela imagem metálica que se movimentava e completava sua fala:

- Há algum tempo eu o tenho observado. Sei de todos os seus movimentos. Cataloguei-os todos no meu arquivo de silenciosas reflexões sobre a vida humana - no meu ângulo de visão, é claro. Colocaram-me neste pedestal olhando eternamente o jardim, privando-me do contato ocular com o portão principal que dá para esta praça. E exatamente por vê-lo sentar-se neste banco à minha frente todos os dias, vê-lo colher flores ou mexer com as cutias… ou ainda arremessar pedrinhas ou grãos de cereais nas águas do lago, bulindo com os peixes, é que eu conheço cada atitude sua, cada movimento ínfimo que seja; até essa sua mania de coçar os cotovelos. Eles são diários, sabia? ... há algum tempo, inclusive, senti que estava ficando estrábico, porque quando o senhor se afastava para o lado oposto à minha visão, o interesse em acompanhá-lo era tanto, que meus olhos quase viravam para a direita ou para a esquerda, onde quer que passasse ou estivesse. Há algumas pessoas que vêm para este lado do parque, mas poucas têm a sua sensibilidade. A maioria delas passa indiferente aos aspectos bucólicos deste jardim. Ficam aqui alguns instantes olhando para o relógio ou consultando o celular, depois retiram-se absurdas e inexpressivas como vieram. Por isso é que eu saí da minha inércia para conversar com você - permita-me, com todo respeito, chamá-lo assim. O que acha disto? Se o incomodo, desculpe-me o atrevimento - eu me estatualizo ou me estatifico (não sei que neologismo usar)... senão... conversaremos.

O homem continuava perplexo, enlevado. Não conseguia compreender aquilo. A estátua, apesar dos olhos fundos e azuis, tinha o corpo todo de bronze, embora se movimentasse e falasse surpreendentemente. Os cabelos finíssimos como capilares metálicos, caía-lhe sobre a testa brilhante sob os raros raios de sol que atravessavam a frondosidade das árvores.

A insistência o convenceu.

- ...mas... como?

- Como... - a estátua intrigava-o mais ainda, parecendo provocá-lo.

- Como você consegue falar?

- Ora como... tenho boca, língua, aparelho fonador e respiração, só isso.

- Mas...você é uma estátua!

- E daí ? Nunca ouviu uma estátua falar?

- Mas é claro que não... é antifísico, fictício, louco, sei lá...

- Como louco? Você não está me vendo, ouvindo, falando comigo?

- É evidente que estou.

- Então? Por que louco ?

- Ora, porque isto é irreal, é fantástico, extrafísico, sei lá!

- Eu não acho tão extraordinário assim. Sou uma estátua, e o que isto tem de tão inusitado? Privar-me-ão do direito de ser entendido só porque não tenho massa celular, encefálica, neuronial?

- Não é bem assim... afinal, de onde veio você?

- Vim da fundição, naturalmente. Fizeram-me de bronze, ferro, estanho. Quiseram-me com esta cara, este busto, estas roupas espalhafatosas, até atemporais. Quando fui feito, meu jeito já era anti-época. Este vestuário já não condizia com a realidade deste século.

- Pela inscrição no seu pedestal, parece que você foi um... poeta!

- Não sei, não me consultaram.

- Como? Você não sabe quem foi?

- Não. Não sei.

- Mas isto é ridículo: transformar o minério bruto em quem se queira,

- É, se assim não fosse, eu não seria nada.

- Mas as pessoas o conhecem como poeta...

- Como estátua.

- E a sua inscrição no pedestal?

- Ninguém a lê. Não se importam nem com letreiros luminosos, quanto mais com uma tola inscrição. Esse povo parece que nunca teve uma história.

- Não é possível., mas você há de ter sido alguém.

- Meu espírito sim.

- Quê? Não vai me dizer que você é um espírito?!

- Não, eu apenas tenho alma. Respiro, inspiro, aspiro... você não está vendo? Além do mais, só creio no que toco, nunca no que vejo.

- Ah... espera aí... ou eu pirei ou estou vendo você. Posso tocar sua mão?

- Claro. É honroso cumprimentá-lo,

- Engraçado, sua mão é de bronze entretanto parece humana... como é que isto pode acontecer?

- Agora você me pegou.

- Sabe dona... estátua... você representa o passado, você é um milagre que contraria a ciência e a metafísica ao mesmo tempo... não me lembro de nenhum livro mítico, científico ou bíblico que fale de um fato estranho como o seu... posso até ter lido algo a respeito, mas estou vendo e tocando você! Você tem corpo, movimento e uma inscrição que diz que você foi um poeta que, aliás, só falta declamar!

- Evidentemente que sou o que minha forma representa. Minha imagem é tão filosófica como sua concepção de si mesma...

- Filosófica coisa nenhuma! Eu estava passando como sempre faço: observando os pássaros, mexendo com as cutias, colhendo flores para enfeitar minha sala...

– Assobiando...

- Assobiando?

- É, cavalheiro... assobiando, Ou você não sabe que assobia enquanto anda?

- Eu assobio?

- Assobia sim senhor. Um assobio até meio chatinho, monocórdico... porque é sempre a mesma melodia.

- Melodia? Mas...de que música ?

- Ora, sei lá... uma estátua velha fincada no meio de uma praça não tem tempo de sair andando por aí para pesquisar acordes de uma música repetitiva como a sua.

- Ah, já sei, é uma música de ninar.

- Parece mesmo. E por que você a assobia sempre?

- Bem, na verdade eu nem sabia que a assobiava todos os dias, mas acho que é uma maneira de lembrar minha avó.

- Ela cantava essa música pra você dormir?

- Todas as noites.

- E onde foi isso? Quando?

- Bem, já faz uns oitenta anos. Eu era bem pequeno ainda. Lembro que minha avó ia comigo à praça... comprava-me algodão-doce, pipoca e amendoim torradinho e sentava-se sempre em um banco de concreto como este aqui, em frente a uma estátua… ué?!… mas a estátua era você! a praça… a praça era esta! … meu Deus… o que está acontecendo comigo?

– Estranho, muito estranho… embora esteja há bastante tempo nesta praça, não me lembro de você com sua avó…

– Mas claro, como ia de lembrar? Eu era um menino.

– É, isto não me havia passado pela cabeça. Mas… sua avó… como era ela?

– Bonita. Muito bonita. Os homens a cortejavam, faziam reverências com acenos de cartolas… lembro-me de um que sentou-se junto conosco exatamente neste banco, falou coisas de estátuas que eu não compreendia bem, enquanto eu me deitava no colo de minha avó e acabava adormecendo sob as notas musicais da canção de ninar. Uma tarde, entretanto, quando despertei, minha avó estava recostada com a cabeça tombada, os olhos abertos extremamente azuis fitando eternamente o céu… o moço que falava sobre estátuas tinha sumido… deixou-me só com ela, com a vovó…

A estátua olhava-o afetuosa e profundissimamente humana e seus olhos eram dois abismos azulíssimos  dentro daquela face metálica, e ele sentiu-se envolver por uma calma tão grande, tão abstramente absurda e boa como a canção de ninar de sua avó…

Tropeçando na sonolência dos fonemas, balbuciou que as estátuas não falam nem têm olhos azuis… nem tampouco se movem… enquanto uma lânguida nuvem descia sobre seus oitenta e cinco anos… o azul dos olhos da estátua transformaram-se gradativamente num abismo celestial e seu espírito bom resvalou suavemente, doce como uma pétala branca que se solta impelida pelo delicado peso de uma minúscula e gelada gota de orvalho… e ele voou, elevando-se serenamente no vento manso daquela tarde,

Na manhã seguinte, num alegre burburinho de pardais e pombos na praça, um menininho gritou alegre e curioso:

– Vovó… aquela estátua se mexeu! Eu vi, vovó! Eu vi ela se mexer! Vem ver, vovó!

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

Maurício Norberto Friedrich (Trovas Avulsas)


1
A vida, às vezes, malvada,
traiçoeira, inconsequente;
nos tira a pessoa amada
e não tem pena da gente.
2
Almejem sempre a vitória,
em todos empreendimentos,
que ficarão na memória,
pelos seus merecimentos.
3
Amar-te, pra mim, foi vício,
doença que não tem cura;
e este foi grande suplício
que me levou à loucura.
4
Amor é doce tormento!
Amor é vício sem cura!
É o amor um linimento
entre a razão e a loucura!
5
Ao Novo Tempo a vitória,
neste concurso de paz:
pois, já bem merece a glória
quem pela trova assim faz.
6
Ao ter fé em Nosso Senhor,
levo a vida em linha reta,
pois, com fé, esperança e amor,
minha vida se completa.
7
Ao ver a Lua Bailando,
com tanto brilho e esplendor,
eu já me ponho rezando:
- Obrigado, meu Senhor!
8
Aposentou-se o freguês…
e a pobre esposa reclama
que, banho, é só um por mês,
mas, sem tirar o pijama!
9
As marcas que a tua ausência,
deixou em meu coração,
são as marcas da pungência
da nossa separação.
10
As trovas de um trovador
são belas, ricas em rimas
pois são feitas com amor,
verdadeiras obras primas!
11
Bailando sempre a procura
do néctar de belas flores,
o beija-flor, com ternura
não se importa com as cores.
12
Beber da fonte hipocrátlca
para o médico é um dever,
é a fórmula democrática
da medicina exercer!
13
Casamento - ação esperta!
Isto já está definido,
onde uma parte está certa
e a outra é sempre o marido!
14
Com grande amor e trabalho,
carinho e dedicação,
do meu amor eu me valho,
pra fisgar teu coração!
15
Combater, do fumo o vício
para o médico é um mister:
exaltar seu malefício
como a ética requer!
16
Combater com veemência
o triste vício do fumo,
sem dó e sem clemência,
pra saúde andar no rumo!
17
Compondo versos eu sonho,
que trovador, inda, serei
e, nos versos, que componho
no teu nome já pensei!
18
Contigo sinto que a vida
tem sentido e fulgor,
pois teus carinhos, querida,
dão esteio ao meu amor!
19
Cuida, ao contar um segredo,
em quem tu vais confiar:
é a liberdade, bem cedo,
que, ao certo, vais entregar...
20
Da singeleza nos vem
mensagem de amor e de paz;
é a mensagem de Belém
que um anjo de Deus nos traz!
21
Dando fim às duras penas,
nossa princesa c'oa mão,
com dois artigos, apenas,
aboliu a escravidão...
22
Daquele beijo roubado,
em pausa de tua festa,
sinto o gosto adocicado,
o bom sabor que me resta.
23
Desta vida, na escalada,
cada degrau tem a altura,
muito bem delimitada
no tamanho da cultura.
24
Descrente, sou eu, de tudo...
muito mais sou de sereia
mas, é no verão, contudo,
que vejo tanta na areia!
25
Distante de ti, amor,
noites insones, eu passo
fazendo a Deus um clamor:
pra ver-te, um dia, em meu braço!
26
Do amor, divino expressar,
a encantadora seresta
faz da janela um altar,
de apaixonados, em festa.
27
É indizível a tristeza,
dum sabiá na gaiola;
cabisbaixo e sem beleza
nem à amada, cantarola!
28
É Natal! Que cante o sino
para ao mundo anunciar
a vinda do Deus Menino
que hoje veio nos salvar!
29
É nobre de coração,
o médico pediatra:
dá amor, carinho e afeição,
à toda criança que trata!
30
Já no ocaso desta vida,
com tanta conta a ajustar,
peço a Deus, seja abatida
a despesa... por te amar!
31
Lembranças da mocidade
são um espelho em que a gente
só vê, com tanta saudade,
o passado... no presente!
32
Lembro de ti, com saudade,
nos tempos que longe vão;
tu eras felicidade,
dentro do meu coração!
33
Lindos traços, no teu rosto,
que harmonizam a beleza,
me fazem exclamar com gosto:
-Tu és, sim, minha princesa!
34
Pobre é a nação sem cultura,
sem heróis e sem memória,
cujo povo não procura
resgatar a sua história!
35
Poesia, versos de amor
nascidos no coração;
versos em que o rimador
exprime a sua paixão.
36
Poeta! Sou trovador!
Que todos possam saber:
faço trovas por amor,
faço trovas por prazer.
37
São Francisco, nas veredas,
feito um pobre vagabundo,
despido de suas sedas,
encheu, de amor, este mundo!
38
Saudade é uma dor silente
que nos ataca e vem mansinha;
entra no coração da gente,
toma posse e ali se aninha!
39
Saudade, saudade e meia,
é o que sinto de você;
meu coração serpenteia,
- só você é que não vê!
40
Saudade! Triste amargor!
Dolorosa e tão pungente,
a nos causar tanta dor;
só a entende quem a sente!

Fonte:
Luiz Hélio Friedrich. Maurício Norberto Friedrich. Família Friedrich em Trovas. Curitiba/PR: Centro de Letras do Paraná, 2018.