sábado, 13 de fevereiro de 2021

Arthur de Azevedo (Um Don Juan de Província)


Quando fui pela primeira vez àquela patriarcal cidade de província, o Linhares, que eu chamava primo, por ser filho da primeira mulher de meu pai, não quis que eu ficasse no hotel, e levou-me para sua casa, onde havia um quarto de hóspedes.

Durante os dias que ali me demorei fui carinhosamente tratado, e ainda hoje sou reconhecido aos favores do primo Linhares e de sua família, senhora e cinco senhoritas casadeiras.

Eu não fazia outra coisa todos os dias senão passear pela cidade, e à tarde, depois de jantar, o primo Linhares mandava colocar sete cadeiras no passeio, à porta da rua, e ele, a senhora, as senhoritas e eu sentavam-nos ao ar livre, e conversávamos até ao escurecer. Era muito divertido.

Numa das tardes em que estávamos assim, perambulando sobre os mais variados assuntos, surgiu de uma esquina, a cem passos do lugar em que nos achávamos, o vulto esguio de um rapaz moreno, de grandes bigodes, envolto numa capa espanhola e com a cabeça coberta por um grande chapéu desabado.

O primo Linhares, mal que o viu, ergueu-se e disse imperiosamente às senhoritas:

- Meninas, vão para dentro: vem ali o Flávio Antunes!...

As cinco senhoritas levantaram-se e desapareceram, correndo no interior da casa.

E o primo Linhares explicou-me:

- Aquele Flávio Antunes é um patife, um sedutor de senhoras casadas, um Don Juan!... Não consinto que as pequenas olhem para ele!... Não há nesta cidade sujeito mais desmoralizado! Nenhum pai de família honrado o recebe em casa!

E como o tal Flávio Antunes se aproximasse:

- Olhe para aquele tolo! Veja! - o tipo completo do conquistador!...

E o transeunte, que era, efetivamente, um rapagão, passou fazendo ao primo Linhares um cumprimento, que não foi correspondido.
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Um ano depois, o primo veio ao Rio de Janeiro. Fui recebê-lo na estação da Estrada de Ferro, e tratei logo de perguntar pela família.

- Estão todos bons. A minha pequena mais velha foi pedida à semana passada.

- Por quem?

- Por um excelente rapaz - o Flávio Antunes.

- Perdão... mas o Flávio Antunes não era...

- Era sim! mas que quer você? Com aquela coisa de mandar as meninas para dentro todas as vezes que ele passava lá por casa, fiz-lhe um extraordinário reclame! Todas elas gostavam dele, e ele gostou da mais velha!

- Ora! Hão de ser muito felizes.

- Sim, mesmo porque, melhor informado, me convenci de que a má reputação do pobre rapaz era unicamente devida àquela capa espanhola e aquele chapéu desabado!

- Deveras?

- Eram mais as nozes que as vozes, e se algumas falcatruas fez ele, coitado, foi em consequência do reclame que lhe fazíamos, eu e outros pais de família.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Possíveis. Publicado em 1889.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 9


tanta maravilha
maravilharia durar
aqui neste lugar
onde nada dura
onde nada para
para ser ventura
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não fosse isso e era menos
não fosse tanto e era quase
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apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme
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que tudo passe

passe a noite
passe a peste
passe o verão
passe o inverno
passe a guerra
e passe a paz

passe o que nasce
passe o que nem
passe o que faz
passe o que faz-se

que tudo passe
e passe muito bem
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via sem saída
via bem

via aqui
via além
não via o trem

via sem saída
via tudo
não via a vida

via tudo que havia
não via a vida
a vida havia
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eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito

eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões

em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois
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a noite
me pinga uma estrela no olho
e passa
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cansei da frase polida
por anjos da cara pálida
palmeiras batendo palmas
ao passarem paradas
agora eu quero a pedrada
chuva de pedras palavras
distribuindo pauladas
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já fui coisa
escrita na lousa
hoje sem musa
apenas meu nome
escrito na blusa
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o mestre gira o globo
balança a cabeça e diz
o mundo é isso e assim
livros alunos aparelhos
somem pelas janelas
nuvem de pó de giz

Fonte:
Paulo Leminski. Distraídos venceremos. Publicado em 1987.

Ivan Lessa (A casa)


Quando você me diz “lá em casa” eu vejo um bicho feito de ângulos, retas e paralelas, um animal composto de planos e perspectivas, feito bicho fotografado. Vejo uma porção de coisas, só depois vejo gente, quase como se fosse em detalhe. A casa fez o homem, depois descansou e recebeu gente para viver.

Ninguém sabe nada de casa. Assunto é quem nela mora. Mas as casas ‒ as casas são. Não só a decoração, o estilo e a disposição. Algo além, que não foi planejado mas começou a aparecer, desde os primeiros tijolos. A casa sente-se aos poucos, seus sinais de vida. Sua respiração é noturna e descompassada: tem algo de pássaro lidando com ninho. A casa ‒ principalmente à noite quando a gente dorme.

De noite, você range e a casa tem medo. De noite, certos ratos que você não conhece se nutrem. De noite, pessoas parecidas com você passam de um canto para outro e não são notadas. De noite, o estranho no sótão (mesmo que seja apartamento há esse estranho no sótão) sai para brincar. Anões percorrem as estantes, um azulejo muda de lugar, mas se recompõe. Todas essas coisas lógicas e esperadas da casa a sós. A casa se mal assombra, nós apenas nos assombramos. Há uma porta que não empena depois das 23h. Um alçapão que você não conhecia engole bloco de cimento. O mecanismo funciona perfeito. O curto-circuito é você: deitado. Casa não deita: levanta.

Mas ficou sem dormir no escuro: descobrirá como é circunstancial o dono da casa. A casa é história, nós somos cidadãos. Uma casa é um mecanismo que desandou e, de todos os seus ritmos, só oferece a você aquele que você precisa. Mas os outros, estão lá: fique acordado e veja. Nada é estranho. Estranho é você que não sabe parar, a casa é uma perfeição de paradas e freios. Pare, olhe e more.

Quando você dorme, a casa faz. Quando você sai, a casa fica. Na realidade vocês não se conhecem. São uma acomodação interesseira. Se você conseguir ‒ leva tempo ‒ vê-la acordada, vai ser duro para você. Vai querer nunca mais dormir e essa, não há dúvida, é a pior das mortes.

Fonte:
Diário Carioca. RJ. 7 dez 1965.

1° Concurso de Poesias Livres da ARLACS (Prazo: 28 de fevereiro)


1°- DEFINIÇÃO E OBJETIVOS

O Concurso consiste na valorização da arte poética. ARLACS é a sigla de Academia da Responsabilidade Literária, Artística, Cultural e Social, que é o braço sociocultural da Academia Internacional da União Cultural.

2° - NATUREZA DOS TRABALHOS

Pode-se participar com UMA poesia, máximo 20 versos (contando espaços entre estrofes).

Todos os trabalhos devem ser de autoria própria, escritos em língua portuguesa, inéditos (sem publicações seja por meio escrito, via internet ou outros).

3° - TEMA

O tema será LIVRE, sendo que os critérios analisados serão:
a) normas da língua portuguesa,
b) Criatividade,
c) originalidade,
d) estética e
e) exploração de recursos linguísticos.

4° - FORMA DE ENVIO e PRAZO

Os textos deverão ser enviados para o e-mail: 
 
auniaocultural@gmail.com,

no corpo do e-mail, sem arquivos anexos devendo constar, abaixo do poema, obrigatoriamente:
Nome,
endereço completo,
whatsApp,
e-mail e
autorização para divulgação em quaisquer meios, e
âmbito no qual concorre.


Prazo: Os trabalhos serão recebidos até o dia

28 de fevereiro de 2021, às 23h59 (horário de Brasília/Brasil).

5° - PÚBLICO-ALVO

Podem participar do concurso todos os poetas, maiores de idade, pertencentes ou NÃO a ARLACS ou a Academia Internacional da União Cultural.

6° - PREMIAÇÃO

A premiação constará de certificados, enviados de forma virtual, outorgados a critério da Comissão Julgadora, e poderão ou não ser concedidas menções honrosas e/ou especiais.

7° - DISPOSIÇÕES FINAIS

Casos omissos serão resolvidos pelas Comissões, sendo que, de antemão, fica resolvido que:

- as decisões das Comissões Organizadora e Julgadora terão caráter permanente, sendo soberanas e incorrigíveis;

- a partir do momento da inscrição, o autor autoriza a publicação de seus textos em eventuais livretos ou blogs, ou sites, ou facebook, ou outros redes sociais e meios de divulgação, ou por meio impresso, bem como a veiculação em vídeos e áudios;

- para informações adicionais ou para dirimir eventuais dúvidas, envie e-mail para:
auniaocultural@gmail.com ou

whatsApp (12) 97412-5806.


Taubaté-SP/Brasil. 7/fevereiro/2021
ARLACS - Academia da Responsabilidade Literária. Artística, Cultural e Social/ Academia Internacional da União Cultural


Fonte:
Therezinha D. Brisolla

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Varal de Trovas 479

 


Contos e Lendas do Mundo (O Erro do Burro)


Nas rodas sertanejas, antigamente se contava certa história de bichos, que ainda hoje não é esquecida. Vez por outra algum velho está a relembrá-la com todo os rique-fifes. História simples, sem maiores artifícios, não escondendo, entretanto, o fator moral como razão de ser da passagem pitoresca ocorrida entre animais que falavam, discutiam e agiam de conformidade com os seus interesses.

O fato é que o burro se encontrava muito de seu, pastando nos campos, comendo panasco verde – e a sua atitude pacata até despertava inveja dos próprios homens. Aquilo sim é que era felicidade sem perturbações incômodas. Se chegava a hora de trabalhar, o burro trabalhava no duro, sem pedir misericórdia, sustentando o peso do serviço de carregamento e, ainda pior do que isso, sob o chicote dos moleques condutores ou boiadeiros malvados. Também do boleeiro, pois puxava o cabriolé do senhor e, diziam, fazia-o com uma competência ajudada pela carícia e pela ternura de servir. embora o sangue mau do condutor.

Realmente, o burro era detentor de bondade extraordinária: não fazia nada de cara fechada, era sempre alegre que costumava enfrentar o serviço. Pois, em compensação, os instantes de folga eram compridos por demais, às vezes duravam dias e semanas. Comia o panasco e bebia no tanque de pedra. Andava gordo, sereno e venturoso. De que se queixar? A vida lhe sorria. Não era assaltado por nenhuma aspiração que não fosse sossego e paz, tranquilidade e bonança, trabalho e repouso, boa mesa e sono solto. A liberdade era tudo. Ela rodava-lhe em torno. Os homens falavam em democracia. Democracia deveria ser mais ou menos aquilo: liberdade e abastança, barriga cheia e despreocupação pelo que venha a suceder.

Mas, de repente, quando se achava pensando nessas coisas amáveis, surge pela frente a raposa (a comadre raposa é sempre a mesma figura, no litoral, na mata e no sertão: age astuciosamente e, de ordinário, com requintes de perversidade criminosa) que, desde muito, espiava aquela beleza de existência retirada, sem imprevisto, sem qualquer sinal a mais ou a menos, sem a nota de altos e baixos. Que coisa? Aquilo precisava de sangue novo. Estava reclamando mais movimento, mais ação e, portanto, mais intimidade com a vida. Pois esta andava monótona para os espíritos inquietos e inteligentes, requerendo novidade e que, neste sentido, se fizesse o maior esforço de criação.

Pensou indagando de si mesmo:

- Perto daqui não existe chiqueiro de galinhas?

Então a raposa dispôs-se à luta, procurando o burro, com ele mantendo longa conversação, fazendo-lhe sentir a necessidade de entrar por outros caminhos menos insípidos.

– Olhe, eu conheço a onça pintada que vive na Furna da Alegria. É um prazer visitá-la. Tem vivido muito e passado pelo que o diabo jamais imaginou. Nos meus momentos de angustia é para lá que rumo os meus passos.

– Mas eu não sofro nada, disse o burro. Tenho saúde perfeita. E não me queixo de coisa alguma.

– Isso não significa nenhuma novidade. Também quando me sinto feliz vou bater à porta da amiga. Ouço-lhe a voz carinhosa dos conselhos. Fico ainda mais alegre e cheia de felicidade. A tristeza vai-se embora.

Perversa, a raposa não desanimava na cantada, tudo fazendo para demover o burro do lugar onde se encontrava, pois não tinha ofício nem obrigação, se saía era sempre a passeio e, à noite, os galinheiros estavam à disposição de suas garras. Vagabunda, faladeira, mexeriqueira. Gostava e alimentava a perversidade como estigma da espécie a que pertencia.

Enquanto falava naquele tom, no íntimo bem sabia que a onça pintada era velha e encarquilhada, má, vivendo faminta e assaltando os bichos que tinham o topete de andar por perto de sua morada.

– Vou fazer essa visita que me pede.

E, decidido, largou-se o burro para o lugar em que vivia a onça tão boa, como afirmava a raposa, pacífica e generosa. Chegou às imediações da Furna da Alegria. Viu a bicha cheia de pintas pretas, saindo com um ar de mansidão, se arrastando, com os olhos fuzilando e, dando salto ágil, procurou atingir o limite onde estava o burro. Este desconfiou da parada. E pernas para que te quero, danou no mundo, a galope, regressando num fôlego aos pastos de sua deliciosa mansão. Não sairia mais dali. E comentando com os botões:

- A onça queria me botar no papo. Faminta como quê. Essa cachorra da raposa que me apareça para eu lhe dar o troco merecido.

Os dias correram. Certa vez chega inesperadamente a comadre com toda delicadeza e a pedir desculpa. Aquilo fora um horror. Como obter o perdão de seu amigo? Não tinha direito a isso. Era uma pobre miserável, merecia a morte e, assim, lamentou-se até conseguir manifestações de ternura do burro. Animou-se a maliciosa hipócrita dizendo:

- A onça, eu sabia, estava doente há várias semanas e foi exatamente na ocasião em que você apareceu que ela, zangada e faminta, não o conhecendo, atirou-se com a violência que costuma empregar contra suas presas.

Adiantou cautelosa:

- Porém eu já fiz as necessárias recomendações e ela, agora ciente, pede-lhe mil desculpas, contrariada que está e, sendo possível, espera-o quando você quiser ou achar conveniente.

– Bem, neste caso irei mais tarde.

E, de fato, renovou a dose, isto é, seguiu o caminho já de seu conhecimento. Foi e não voltou. A onça banqueteou-se a semana inteira com mesa opípara. Fazia muito tempo até que não saboreava carne tão gostosa. Carne macia e cheia de vitaminas.

A raposa alcançou o que escondia. Os pastos precisavam ficar abandonados para o senhor da casa-grande, sem querer perdê-los (outro animal para soltar não possuía nas redondezas; o gado andava no cercado; apenas o burro estava privando de uma consideração excepcional; era privilégio forçado) e, ante a evidência, abrisse o chiqueiro e deixasse as frangas e capões invadi-lo para o mais gordo aproveitamento. E ainda teria dito consigo mesmo, apreciando os fatos em que fora figura principal:

- Vá ser burro assim no inferno, na casa do diabo que o carregue.

Fonte:
Ademar Vidal. Lendas e superstições: contos populares brasileiros. RJ: O Cruzeiro, 1950.

Mario Quintana em Prosa e Verso – 14 –


XIII

 
Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela, amarelada...
Como o único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! Desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!
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XIV

Gadêa... Pelichek... Sebastião...
Lobo Alvim... Ah, meus velhos camaradas!
Aonde foram vocês? Onde é que estão
Aquelas nossas ideais noitadas?

Fiquei sozinho... Mas não creio, não,
Estejam nossas almas separadas!
Às vezes sinto aqui, nestas calçadas,
O passo amigo de vocês... E então

Não me constranjo de sentir-me alegre,
De amar a vida assim, por mais que ela nos minta...
E no meu romantismo vagabundo

Eu sei que nestes céus de Porto Alegre
é para nós que inda S. Pedro pinta
Os mais belos crepúsculos do Mundo!…
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XV

Sobre a coberta o lívido marfim
Dos meus dedos compridos, amarelos...
Fora, um realejo toca para mim
Valsas antigas, velhos ritornelos.

E esquecido que vou morrer enfim,
Eu me distraio a construir castelos...
Tão altos sempre... cada vez mais belos!...
Nem D. Quixote teve morte assim...

Mas que ouço? Quem será que está chorando?
Se soubesseis o quanto isto me enfada!
E eu fico a olhar o céu pela janela...

Minh'alma louca há de sair cantando
Naquela nuvem que lá está parada
E mais parece um lindo barco a vela!...
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XVI
Para Reynaldo Moura

Que bom ficar assim, horas inteiras,
Fumando... e olhando as lentas espirais...
Enquanto, fora, cantam os beirais
A baladilha ingênua das goteiras.

E vai a névoa, a bruxa silenciosa,
Transformando a cidade, mais e mais,
Nessa Londres longínqua, misteriosa
Das poéticas novelas policiais...

Que bom, depois, sair por essas ruas,
Onde os lampiões, com sua luz febrenta,
São sóis enfermos a fingir de luas...

Sair assim (tudo esquecer talvez!)
E ir andando, pela névoa lenta,
Com a displicência de um fantasma inglês...
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XVII

Quando eu morrer e no frescor de lua
Da casa nova me quedar a sós,
Deixai-me em paz na minha quieta rua...
Nada mais quero com nenhum de vós!

Quero é ficar com alguns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão...
Que lindo a eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da expressão!...

Eu levarei comigo as madrugadas,
Pôr de sóis, algum luar, asas em bando,
Mais o rir das primeiras namoradas...

E um dia a morte há de fitar com espanto
Os fios de vida que eu urdi, cantando,
Na orla negra do seu negro manto...

Fonte:
Mário Quintana. A Rua dos Cataventos. Publicado em 1940.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 11: Irrefutável


PRISCILA CHEGA PARA O PAI e, na sua inocência dos dez  anos, manda a pergunta sem  pensar duas vezes no que poderá acontecer logo em seguida:

— Pai, paizinho... Posso lhe perguntar uma coisa?

— Claro, minha filha.

— O senhor me ama?

— Muito, Priscila.

— Me ama como ama a mamãe?

— Amo as duas da mesma maneira, ou melhor, amo de maneiras e formas iguais. Só que, embora sendo amores iguais, são amores com maneiras e sentidos diferentes.

— Como é lá isto, pai, se o senhor acabou de dizer que embora sendo amores iguais, têm sentidos diferentes?

— Vou tentar explicar de maneira bem simples. O meu amor por você Priscila, é um amor de pai para filha. É aquele amor fantástico, puro, sem manchas, que está guardadinho num cantinho oculto, escondidinho bem aqui dentro do meu peito. Que aflora no sopro do menor movimento que eu faça quando lhe beijo e lhe abraço. Já o que sinto por sua mãe não se descreve... É verossímil.

— É o que, pai? Não entendi...

— Verossímil é aquele amor que parece verdadeiro e, na verdade é.

— O senhor tem certeza disto, pai? É de fato verdadeiro ou não?

— Claro que é, filha. O amor que sinto por sua mãe é como o amor que você nutre por esta sua bonequinha Barbie. Você a ama incondicionalmente, ou seja, não fica sem ela. Onde você vai, a leva com você, como se fizesse parte do seu corpo. Tenho certeza que se você a perder, morreria  de tédio e de solidão. Diga sinceramente para seu pai: você ficaria sem a sua  bonequinha?

— Não, pai.

— Pois então, minha filha. Eu não ficaria sem o amor da sua mãe. Ela é essencial. É dela... Ou melhor, é dela que sai a minha felicidade e que me mantém vivo e respirando. Em outras palavras, é do coração dela que brota todo o amor incondicional que preenche a minha vida. Sem a sua mãe, seu papito não seria ninguém...

— O senhor sabe por que o pai da Débora foi embora?

— Ele foi embora? Desconhecia este fato... Acaso você sabe o motivo, minha princesa?

— Paizinho, o senhor sabe tanto quanto eu que ele foi embora...  

— Eu sei? De onde você tirou esta ideia maluca?

— Não é maluca, pai. O senhor sabe que ele foi embora e também sabe o motivo. A Debora me falou que foi por sua causa. Ela me segredou que toda noite, antes de ‘vim embora pra casa’, o senhor passa na lanchonete da mãe dela e bebe uma cerveja. Depois vocês vão lá para os fundos e trocam afagos, e se beijam...

O pai da garota quase teve um piripaque:

— Mentira, minha filha. Sua amiguinha Débora é uma grande mentirosa. E uma tremenda fofoqueira. Não dê ouvidos ao que ela lhe conta. Se esta desgraça de conversa fiada chega aos ouvidos da sua mãe... Jesus, Maria, José... Pelo amor de Deus, filha, esquece este assunto...

— Não tem como, pai. Assiste a estes vídeos que a Débora acabou de me mandar pelo meu whatsapp.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Prêmio Jabuti (Livros Premiados) – 2 –


Errata: Falha técnica. Na postagem anterior o livro “Galo, galo, não me calo” a autora é Sílvia Orthof. Cláudio Martins, como havia colocado é o ilustrador que ganhou o Prêmio Jabuti neste livro.

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Marina Colasanti
Antes de virar gigante e outras histórias


Mestra do ritmo e das palavras, Marina Colasanti transita por diferentes gêneros literários. Nesta coletânea, seu rico universo aparece em poesias, crônicas e contos. Narrativas emocionantes, animais protagonistas, memórias e situações insólitas levam o leitor a ter outras visões do mundo
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Ricardo Azevedo
Fragosas brenhas do mataréu


No século XVI, em Portugal, um garoto de 15 anos é condenado a trabalhar na frota portuguesa e embarcar para o novo mundo. A viagem acaba em naufrágio e, quando consegue pisar em terra firme, o menino sobrevive meses solitário, até encontrar um povoado. Entre paixões, perigos e descobertas, há o confronto das verdades estabelecidas e o desassossego de uma vida cheia de indagações
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Mário Teixeira
A linha negra


Em 1865, o brasileiro Casimiro é mandado para lutar na Guerra do Paraguai. O jovem vive terríveis experiências de combate e, nas noites de lua cheia, enfrenta um descontrole que deixa cicatrizes em seu corpo. Como se tudo isso não bastasse, ele se apaixona pela bela Francisca, a favorita do ditador paraguaio. Porém, o rapaz não fica muito tempo junto de sua amada, pois é enviado a uma perigosa trincheira: a linha negra. É então que sua jornada fica mais perigosa e imprevisível.

Em 2015, o livro Linha negra ganhou o prêmio Jabuti na categoria juvenil e o prêmio Glória Pondé de Literatura Juvenil, da Biblioteca Nacional.
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Gilles Eduar
Alfabeto de histórias


Para cada letra do alfabeto, Gilles Eduar criou uma história engraçada e cheia de brincadeiras. Os textos curtos trazem o máximo de palavras com a letra em questão, sempre mostrando bichos em situaçõesfora do comum. Além disso, o autor propõe atividades para o leitor interagir com o livro e relacionar texto e imagem.
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Mariana de Mello e Souza
África e Brasil africano


Este livro traz um consistente panorama da formação do continente e das sociedades africanas, o comércio de escravos para a América e a integração de seus descendentes à nossa sociedade, até a contemporaneidade. A obra apresenta ainda rica iconografia.
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Marcelo Xavier
Festas: o Folclore do Mestre André


Agora também com CD de áudio, o livro aborda as origens e características das festas populares brasileiras; os vários tipos de festas populares; as influências e adaptações que as festas receberam ao longo dos anos; as crenças, a fé e a alegria que movem essas festas; o folclore brasileiro: origens, manifestações, influências no nosso cotidiano etc.; modelagem e escultura; criação e construção de cenários.
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Raquel Coelho
O Teatro


Num texto fluente, gostoso, criando um clima de proximidade e cumplicidade com o leitor, Raquel Coelho desfila importantes informações sobre o teatro, fundamentadas com cuidado e seriedade, mostrando cenários, personagens, objetos, fatos relativos a essa manifestação artística. Seu texto, acompanha do de belíssimas ilustrações, também de sua autoria, feitas de retalhos, pequenos objetos, bonecos e sucata, leva o leitor, seja ele criança ou adulto, a percorrer os caminhos do teatro, saboreando cada página com prazer. Um livro que fala de arte feito com arte.
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Sílvia Orthof
A vaca Mimosa e a mosca Zenilda


Mimosa é tão linda que Zenilda decide ficar por perto para ver se fica bonita também. Mas a mosca incomoda demais! Zune na orelha e deixa Mimosa vesga ao parar bem no meio do nariz dela!
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Marcelo Xavier
Asa de Papel


Personagens e objetos de cena, moldados em massa plástica, montados em pequenos cenários e fotografados, mostram uma sucessão de quadros bem-humorados, líricos, intrigantes, surrealistas neste que é um dos livros mais premiados de Marcelo Xavier. O tempo todo a personagem, sempre a mesma em situações variadas, está lendo um livro que, na verdade, é a grande personagem, a asa de papel que nos transporta, sempre apresentado como fonte de prazer, de alegria, de informação, de sabedoria, como companhia, como refúgio. O texto curto, exato, poético, sem narrar propriamente uma história, conduz o leitor em um passeio cada vez mais repleto de expectativa, para um final inesperado
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Moacyr Scliar
Ciumento de carteirinha


Capitu traiu ou não? Numa disputa entre dois colégios, estudantes devem debater a questão e encenar o julgamento da personagem de Dom Casmurro.

Fonte:
Ebook da Equipe Coletivo Leitor.
https://www.coletivoleitor.com.br

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Rachel de Queiroz (O Vendedor de Ovos)


O DELEGADO — ... Bem, mas o senhor há de confessar que isso não é coisa que se faça a homem...

O PRESO — E agora pergunto eu ao senhor: e aquilo é homem? Será que pega em enxada, veste roupa de couro, monta a cavalo? Vai ver, nunca soube tirar o leite de uma vaca, nunca soube o que é limpar uma carreira de mato. Agora, viver desinquietando as famílias, comprando ilusão pras mulheres toda vez que vai na cidade — isso ele sabe. É trazer vidro de extrato, corte de estampado, lata de pó, até rede de fábrica! E ele não é nem galego, pra se fazer de mascate...

DELEGADO — Mas o homem não é negociante de ovos? Compra os ovos e paga com mercadoria.

PRESO — Ora, ovos, seu Delegado! Sei que os ovos estão muito caros — mas, do jeito que ele conta, nunca vi galinha nenhuma produzir assim. Lá em casa tem onze galinhas, mas botar o que as mulheres dizem, só cada uma botando três ovos por dia. E nenhuma choca nem levanta a postura. Faz meses que eu não vejo um ovo frito ou uma mal assada de toucinho no meu prato. Tudo é pro seu Anjinho! Até o nome dele, seu Delegado. Não quer se chamar nem José, nem Chico, nem Manuel, como qualquer homem... Como é o nome de Vossa Senhoria?

DELEGADO — Clodomir.

PRESO — Bem... Não é nome de santo que eu conheça... mas pelo jeito se vê que é nome de homem. Agora aquilo — diz que se batizou Ângelo, mas se as moças gostam de chamar de Anjinho, que é que se vai fazer? E fosse só o nome. Mas a vida dele é só, quer de baixo, quer de cima, pelos trens, comprando ovo aqui, vendendo ovo na cidade. Agora deu pra andar com um rádio, um radinho pequenininho, uma porqueira, canta fino como um danado, mas as mulheres acham a coisa mais linda. Chega pelas casas nas horas em que tudo que é homem saiu pro trabalho e já de longe o mulherio escuta o rádio estralando e botando a boca no mundo. No meu tempo, aquelas cantigas de beijo, com licença da palavra, só se cantava era em pensão de zona — mas agora o rádio ensina em qualquer casa de família... A gente, homens, conhece que seu Anjinho passou por ali porque, ao chegar em casa, só o que encontra é mulher andando pra dentro e pra fora e se esgoelando em samba carioca. E a meninada miúda pelos terreiros chutando pedra e gritando “Gol! Gol de Amarildo!”, porque naquele rádio ele também bota futebol. Aliás, esse negócio de mulher é tão medonho por rádio que uma moça nossa conhecida, que veio do Rio de Janeiro passar uns tempos com a mãe, trouxe um consigo e, até quando andava pelas casas, de visita, pagava um moleque pra ir na frente, carregando a caixotinha do rádio, cantando como um desesperado...

... Sim, seu Delegado, não estou fugindo do assunto, falar em rádio é o mesmo que estar falando no seu Anjinho. O senhor acha que ele está muito maltratado? Bem, também nunca foi bonito, um pouco mais amassado aqui ou ali, não faz alteração... A graça dele era aquele dente de ouro, mas isso ninguém arrancou. Pode ter amolengado um pouco, mas está lá, o beiço inchado é que não deixa ver direito. O cabelo? Ora, cabelo cresce. Diz que cabelo raspado, quando cresce, vem até mais cacheado...

... Seu Delegado, o senhor sabe qual era a outra mercadoria dele? Livreto de modinha! Achava pouco o rádio, ainda trazia o livreto pra ensinar as cantigas. Era botar o rádio tocando e as meninas em redor, de livreto aberto, acompanhando as letras. Deus que me perdoe, parecia até moça de coro aprendendo bendito! E pensar que mandei ensinar minhas filhas a ler pra semelhante resultado!

DELEGADO — E como é que você explica o braço quebrado?

PRESO — Quebrado? Aquilo é muito é dengoso! Seu Delegado, ninguém quebrou braço nenhum, não. Pode ter desmentido a junta, foi o mais que aconteceu: desmentiu. Ora, quebrar! Isso é parte daquele mimoso! Ninguém é perverso pra andar quebrando osso alheio. Sim, agora quebrar — quebrou foi a cesta dos ovos...

DELEGADO — Sessenta ovos.

PRESO — Está vendo o que eu disse? Sessenta ovos! O senhor já pensou que arraso nas capoeiras! Ora veja! Sessenta ovos! De onde terá saído?

DELEGADO — E, fora os ovos, ele ainda pede indenização pelas fazendas extraviadas.

PRESO — Extraviadas? Aqueles panos que ele carregava num saco? Seu doutor Clodomir, ninguém ficou com fazenda dele, não! Ora, pra que a gente queria as chitas dele? O que os meninos fizeram foi arrumar uma saia nele... com os panos mais floridos... Vossa senhoria me desculpe, mas todo mundo achava graça, e agora só de me lembrar ainda me dá vontade de rir... Os meninos tocando sanfona e obrigando o seu Anjinho a dançar, arrastando a saia... Era ver uma cigana. Ele diz que era à força — mas o diabo é tão sem sentimento na cara que assim mesmo requebrava…

Fonte:
Rachel de Queiroz. A casa do Morro Branco. Publicado em 1999.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 5 –

A ave presa, quando voa
de volta ao seu velho ninho...
Canta feliz e perdoa,
por ser poeta e passarinho!
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Ao palhaço velho e manco
no picadeiro é preciso,
disfarçar um riso franco,
por trás de um triste sorriso!
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Aos pés, da Virgem Maria,
enquanto a cega rezava...
Rezava, e nem percebia
que a Virgem também chorava!
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Canarinho, nossos cantos
têm semelhanças demais...
Fazes preces de teus prantos
e eu, orações dos meus ais!
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Como modelar meu sonho
que fala de amor e paz,
se bem cedinho, é risonho
e, ao por do sol, se desfaz?...
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Das juras que nós fizemos
o que resta se resume,
em falsas juras sem remos,
nos mares do teu ciúme!
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De joelhos, mantendo a calma,
sinto na velha abadia
que, o sino também tem alma,
quando bate ao fim do dia!
= = = = = = = = = = =
Deus põe o ventre do amor,
até na planta que gera.
Por isso, a roseira em flor,
eclode na primavera!
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Do fogo antigo apagado
na silhueta de um fogão,
quantas cinzas do passado
sobre as cinzas do meu chão!
= = = = = = = = = = =
Não reclames do teu pranto
nem de alguma hipocrisia,
que há uma gota, em cada canto,
na aridez de cada dia!
= = = = = = = = = = =
Não sei por que me receias,
se estou com outras mulheres;
se a mim, dizes que me odeias
e aos outros, que tu me queres!
= = = = = = = = = = =
No silêncio, em que medito,
nas horas de solidão,
penso na luz do infinito
e esqueço a luz da razão!
= = = = = = = = = = =
O melhor conselho, filho,
busca na voz do mais velho,
que tem sempre o intenso brilho
da luz do santo evangelho!
= = = = = = = = = = =
Ó, velho mar, tu traduzes,
de qualquer ponto ao teu cais...
A dor de incontáveis cruzes,
nos disfarces de teus ais!
= = = = = = = = = = =
Para o teu sonho indiscreto
e, o meu sonho, inconsequente,
peço ao Sublime Arquiteto
que inverta os sonhos da gente!
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Passa a procissão na rua.
No meio da multidão...
A solidão continua,
sendo a mesma solidão!...
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Por mais pedinte que seja,
e insista com tanto ardor;
mesmo assim, não se apedreja
quem mendiga o pão do amor!
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Quando a noite, de surpresa,
apaga a luz do luar;
a luz da paz fica acesa
nas luzes do teu olhar!
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Quanto mais ando sozinho,
mais em ti, penso e medito;
como quem traça um caminho
no caminho do infinito!
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Quem contempla o mar, nem sabe
que, essa voz que não se cansa;
pede aos céus, que não se acabe
a voz de nossa esperança!
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Quem espalha flor a esmo,
sem fazer mal a ninguém,
deixa das mãos de si mesmo,
perfume nas mãos de alguém!
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Se o velho mar, não declina,
reclama da vida dura.
É sempre a mesma rotina,
dentro da mesma clausura!
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Sou ave presa e canora,
que embarga a voz na garganta,
fingindo a paz quando chora
chorando a dor quando canta!
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Toda tarde escuto vozes,
depois que, o sol diz adeus!...
Já são das dores atrozes
do outono dos dias meus!
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Velha beata, de joelhos,
em silêncio e, à meia luz,
decifra santos conselhos
que há no silêncio da cruz!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Rubem Braga (Valente menina)


Debruçado cá em cima, no 13.° andar, fiquei olhando a porta do edifício à espera de que surgisse o seu vulto lá embaixo.

Eu a levara até o elevador, ao mesmo tempo aflito para que ela partisse e triste com a sua partida. Nossa conversa fora amarga. Quando lhe abri a porta do elevador esbocei um gesto de carinho na despedida, mas, como eu previra, ela resistiu. Pela abertura da porta vi sua cabeça de perfil, séria, descer, sumir.

Agora sentia necessidade de vê-la sair do edifício, mas o elevador deve ter parado no caminho, porque demorou um pouco a surgir seu vulto rápido. Desceu a escada fez uma pequena volta para evitar uma poça de água, caminhou até a esquina, atravessou a rua. Vi-a ainda um instante andando pela calçada da transversal, diante do café; e desapareceu, sem olhar para trás.

“Valente menina!” — foi o que murmurei ao acaso lembrando um verso antigo de Vinicius de Moraes; e no mesmo instante me lembrei também de uma frase ocasional de Pablo Neruda, num domingo em que fui visitá-lo em sua casa de Isla Negra, no Chile. “Que valientes son las chilenas!” dissera ele, apontando uma mulher de maiô que entrava no mar ali em frente, na manhã nublada; e explicara que estivera andando pela praia e apenas molhara os pés na espuma: a água estava gelada, de cortar.

“Valente menina!” Lá embaixo, na rua, era tocante seu pequeno vulto, reduzido pela projeção vertical. Iria com os olhos úmidos ou sentiria apenas a alma vazia? “Valente menina!” Como a chilena que enfrentava o mar, em Isla Negra, ela também enfrentava sua solidão. E eu ficava com a minha, parado, burro, triste, vendo-a partir por minha culpa.

Deitei-me na rede, sentindo dor de cabeça e um certo desgosto por mim mesmo. Eu poderia ser pai dessa moça — e me pergunto o que sentiria, como pai, se soubesse de uma aventura sua, como essa, com um homem de minha idade. Tolice! Os pais nunca sabem nada, e quando sabem não compreendem; estão perto e longe demais para entender. Ele, esse pai de quem ela falava tanto, não acreditaria se a visse entrar pela primeira vez em minha casa, como entrou, com sua bolsa a tiracolo, o passo leve e o riso nervoso. “Como você pensava que eu fosse?” Lembro-me de que fiquei olhando, meio divertido, meio assustado, aquela mocetona loura e ágil que só falava me olhando nos olhos, e me fez as confissões mais íntimas e graves entremeadas de mentiras pueris — sempre me olhando nos olhos. Disse-me que a metade das coisas que me contara pelo telefone era pura invenção — e logo inventou outras. Senti que suas mentiras eram um jeito enviesado que ela tinha de se contar, um meio de dar um pouco de lógica às suas verdades confusas.

A ternura e o tremor de seu duro corpo juvenil, seu riso, a insolência alegre com que invadiu minha casa e minha vida, e suas previsíveis crises de pranto — tudo me perturbou um pouco, mas reagi. Terei sido grosseiro ou mesquinho, terei deixado sua pequena alma trêmula mais pobre e mais só?

Faço-me estas perguntas, e ao mesmo tempo me sinto ridículo em fazê-las. Essa moça tem a vida pela frente, e um dia se lembrará de nossa história como de uma anedota engraçada de sua própria vida, e talvez a conte a outro homem olhando-o nos olhos, passando a mão pelos seus cabelos, às vezes rindo — e talvez ele suspeite de que seja tudo mentira.

Fonte:
Rubem Braga. in Conto Brasileiro.

Prêmio Jabuti (O que é e Livros Premiados) - 1 -


O Prêmio Jabuti foi criado em 1958 pelos dirigentes da Câmara Brasileira do Livro (CBL), interessados em premiar aqueles do ramo literário que mais se destacassem em cada ano. A primeira edição aconteceu em 1959, onde o escritor Jorge Amado recebeu o prêmio maior na categoria romance com “Gabriela, cravo e canela” e a Editora Saraiva foi premiada Editora do Ano.

As categorias e prêmios foram alteradas ao longo dos anos. Em 2018, foi completamente repaginado buscando aproximar mais o leitor dos editores e autores. Uma grande novidade foi o lançamento da categoria Formação de Novos Leitores que visa reconhecer iniciativas de estímulo à leitura.

Em 2020 aconteceu a 62ª edição do Prêmio Jabuti.

E porque um Jabuti?

Como foi que um animal tão simples ganhou a simpatia dos dirigentes da premiação? O jabuti é um animal facilmente encontrado em diversas regiões brasileiras. No período de criação do prêmio, o ambiente literário era marcado pelo modernismo, com suas inspirações nacionalistas e a ideia de valorização da cultura popular, das raízes indígenas e da cultura africana.

O caminho do jabuti do mato para a premiação se inicia em Reinações de Narizinho, livro infantil do escritor Monteiro Lobato. Na obra, o jabuti é um dos personagens. Ele é lento, mas obstinado! A partir daí tudo é história e esse simpático animal foi eleito o símbolo da premiação.

OBRAS PREMIADAS DAS EDITORAS DO COLETIVO LEITOR

O Coletivo Leitor busca promover o incentivo à leitura e a troca de
conhecimentos sobre literatura, ensino literário e tudo que relacione o mundo dos livros ao universo da educação. Em seu acervo, reúne obras de seis grandes selos editoriais: Ática, Scipione, Saraiva, Atual, Formato e Caramelo.
 
Somando as publicações de todos esses temos mais de 1.600 obras
em nosso catálogo! Dentre elas, estão livros de autores nacionais e
estrangeiros, traduções e muitos deles foram indicados e venceram
premiações importantes do mundo literário.
 
Neste material, separamos algumas obras ganhadoras do Prêmio
Jabuti, uma das mais importantes premiações do nosso país. Você
poderá conferir quais livros ganharam o prêmio.

Livros Destacados

Raul Pompéia
O Ateneu


Sérgio está prestes a enfrentar a educação repressora do famoso internato Ateneu. Lá, ele terá de lidar com a brutalidade dos colegas e do diretor, superando a falta da família e o recém-abandonado universo infantil. As marcas desse mundo constritor permanecerão nas lembranças do adulto, que escreve melancolicamente suas memórias. Nessa narrativa a um só tempo doce e amarga, Raul Pompéia traça um retrato impressionista do processo de formação da individualidade flagrado em seus momentos mais decisivos.
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Ana Maria Machado
Histórias Meio ao Contrário


Nesta narrativa ao contrário, o príncipe e a princesa não se contentam em ser felizes para sempre – porque é assim que começa a história deles. Eles decidem fazer sua própria trajetória, numa trama cheia de surpresas.
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Jane Tutikian
A cor do azul


Obra vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Juvenil (1984). O livro narra a turbulenta passagem da infância à puberdade. As dúvidas, as paixões, os sonhos, os medos e as descobertas da narradora-personagem são um convite para vermos o mundo com novos olhos. Uma obra de rara sensibilidade.
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Giselda Laporta, Ganymedes José
Awankana, o segredo da múmia Inca


Em 1994, quatro pessoas são encontradas mortas no Museu de Arqueologia Latino-Americano, ao lado de uma múmia inca. No chão, uma faca cerimonial de ouro, com a figura de um deus alado incaico. Tão logo tomam conhecimento dessa notícia, Sach’a e o professor Ortegas partem de Cuzco para São Paulo. Havia chegado a hora de encontrar o elo perdido, de tentar desfazer um mistério de quinhentos anos.
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José Paulo Paes
Poemas para brincar


Um clássico da poesia infantil brasileira em que José Paulo Paes propõe a seus leitores brincar com a língua portuguesa. Os poemas apresentam jogos de palavras e até um abecedário com significados inusitados, que diverte, instiga a criatividade das crianças e ainda faz pensar.
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Claudio Martins
Galo, galo,
não me calo


História do galo da menina Fanci, moradora de uma rua de Copacabana, numa casa pequena com quintal, no meio da cidade do Rio de Janeiro. Prosa poética que narra o conflito entre o galo, que todas as manhãs canta para saudar o Sol, e os moradores da vizinhança, que vivem nos altos edifícios próximos à casa de Fanci e que tentam calar o galo a todo custo. Uma história ecológica que mostra a cidade grande com seus carros, buzinas, fumaça, prédios, lixo expulsando a natureza para longe de si.
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Lourenço Casarré
Nadando contra a morte


Vinda do interior para trabalhar como doméstica com uma família de classe média, Maria do Amparo, 14 anos, é estuprada pelo patrão e engravida. A menina consegue esconder da patroa a gravidez, mas não a criança. E recebe um ultimato: que se livre dela. Desesperada, depois de andar a esmo pelas ruas, Maria do Amparo se atira no rio com a filhinha. A história de Maria do Amparo e seu salvamento por dois esportistas (um nadador e um remador) é narrada por meio de depoimentos da menina, do nadador, do remador, do capitão do Corpo de Bombeiros, que tira todos do rio, e de outras personagens que presenciaram o fato. Numa agilidade de reportagem, a história tem a dose exata de emoção. Adaptado para o cinema no longa “Amparo”, dirigido por Ricardo Pinto e Silva.
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Ana Maria Machado
Fiz voar o meu chapéu


Prosa poética deliciosa, com rima e ritmo bem marcados. Um chapéu que voa, voa… e vai passando por riachos, coronéis, senhoras, caciques, marinheiros, botes e cachoeiras até virar ninho de passarinho (com varanda e tudo!). O texto é constituído por dísticos cheios de musicalidade. O ponto de vista é de uma criança que traduz com humor, sonoridade e simplicidade as brincadeiras do seu cotidiano: no caso, fazer voar o seu chapéu.
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Raquel Coelho
A arte da animação


Como pessoas curiosas inventaram estranhas engenhocas com luzes e desenhos para dar vida à animação e, com isso, criaram efeitos mirabolantes para a época, século XIX. Além da origem da animação, o leitor poderá saber sobre a evolução dessa arte até os dias de hoje, quando o computador virou um instrumento de apoio para o animador. O texto fala também das várias técnicas usadas, dá exemplos de filmes que utilizaram a animação como recurso de enriquecimento gráfico. As ilustrações, feitas de pequenos objetos, sucata, retalhos, vão envolver ainda mais o leitor nesse texto gostoso e curioso sobre a arte da animação.
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Ricardo Azevedo
Contos de enganar a morte

“Sair desta para uma melhor” não parece ser exatamente o desejo de Zé Malandro, do médico, do ferreiro e de um jovem viajante. O que eles querem mesmo é gozar a vida, e acham que é possível dar um jeitinho de tapear dona Morte. Mas acontece que com Ela não tem conversa mole que resolva. Quando chega a hora, não adianta bater o pé. É o que aprendem os personagens dessas prazerosas narrativas populares recolhidas e recontadas por Ricardo Azevedo neste livro. O médico, por exemplo, faz a Morte prometer que somente seria levado assim que terminasse de rezar o Pai-Nosso. Quando ele anuncia que demorará anos para recitar o final da prece, ela vai embora contrariada. O ferreiro manda sua esposa dizer que ele não está em casa toda vez que a danada bate à sua porta. O jovem viajante abriga-se em uma terra onde a vida é eterna. E Zé Malandro, muito espertamente, encontra mais de uma maneira de enganar sua algoz.
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Luiz Vilela
Sofia e outros contos

Seis contos sobre simplicidade: a Sofia dos tomates, um regalo de Natal, um passado, um monstro, uma lagartixa e… amanhã eu volto. Divertidas, comoventes, engraçadas, líricas ou trágicas, algumas das melhores histórias de um dos mais notáveis contistas brasileiros estão reunidas nesta obra, que foi 3º lugar no Prêmio Jabuti 2010, na categoria Juvenil.
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Continua… mais livros premiados.

Fonte:
Ebook da Equipe Coletivo Leitor.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Varal de Trovas 478

 


Fernando Sabino (Fantasmas de Minas)


Assim que ele soube que eu e ela pretendíamos passar o carnaval em Ouro Preto e não conseguíamos hotel, amavelmente ofereceu-nos sua casa. É uma linda casa, informou com ar matreiro.

Tão matreiro que dava até para desconfiar. Mas eu já ouvira falar na casa, do tempo em que Marchette morava lá e passava o dia pintando seus belos quadros de fundo verde-escuro. O próprio Scliar retratou recentemente, numa sucessão múltipla de lindos quadros, 180 graus da paisagem de Ouro Preto vista da janela da casa. E eu sabia que Vinícius, entre outros, costumava passar longas temporadas hospedado lá. Uma casa de artistas, portanto. Não havia por quê desconfiar.

E lá fomos nós, serpenteando pelas longas estradas de Minas. Passamos Juiz de Fora, Barbacena, Santos Dumont — quando dei por mim Belo Horizonte já estava pintando e nada de Ouro Preto. Paramos num posto de gasolina.

— Pode nos informar se já passamos a estrada de Ouro Preto?

O mineiro coçou a cabeça, cauteloso:

— É conforme, moço: de que lado ocês tão vindo?


Minha primeira desconfiança surgiu diante do portão: enorme, enferrujado como o de um cemitério do interior, fechado a cadeado com duas correntes, sinistro dentro da noite que baixara. E atrás dele não havia casa alguma.

— Pula o muro — sugeriu um menino, morador nas vizinhanças. — É assim que o caseiro faz.

O muro de pedra era realmente baixo e fácil de ser pulado. Então para que o portão? — me perguntei, depois de seguir a recomendação do menino.

Não tive tempo de me perguntar mais nada: de súbito me vi despingolando pirambeira abaixo, tropeçando no calçamento de pedras irregulares, mergulhando na escuridão como nas profundas dos infernos. Consegui afinal frear o corpo diante de uma pontezinha de madeira envolta em sombras — e divisei a casa, do outro lado, encravada no meio da encosta, portas e janelas fechadas. Tudo às escuras, sem o menor sinal de vida. O caseiro, onde estaria o caseiro? Pelo sim pelo não, resolvi voltar e voltar correndo, escarpa acima, antes que as sombras me engolissem. Cheguei ao portão botando o coração pela boca, entrei no carro:

— Não tem ninguém lá — informei, quando recuperei a fala.

O mesmo menino nos ensinou onde morava o caseiro — e em pouco a mulher do caseiro vinha abrir a casa para que nos instalássemos. Pairava nos quartos fechados um ar de cinco meses atrás. Preferimos os de cima, instintivamente recusando a sugestão da caseira, segundo a qual Vinícius costumava ficar nos de baixo: o acesso a eles se fazia por uma escada apertada e lúgubre como as que levam às masmorras de um castelo.

— Não deixem de trancar bem as portas — recomendou a mulher. E nos entregou à nossa própria sorte.

Nessa primeira noite atribuí o sussurro de vozes no porão ao vento que soprava lá fora; o ruído de portas que se abriam e se fechavam a estalos de madeira velha; os passos no corredor aos excessos de minha mórbida imaginação. Não disse palavra sobre o assunto — mesmo porque não teria voz para tanto. Preferi fingir que dormia, e a manhã veio me encontrar insone, mas lépido e fagueiro como um ressuscitado: a luz do dia reintegrava a casa em seu contexto, harmoniosamente recomposta na paisagem de Ouro Preto, como me haviam antecipado: realmente uma bela casa antiga.

Talvez um pouco mais antiga do que eu desejaria.

Mas o que não é antigo na antiga Vila Rica? O Pouso de Chico Rei, por exemplo, onde fomos recebidos de maneira fidalga com um excelente almoço, é um modelo de bom gosto em matéria de antiguidade. Lá encontramos toda uma equipe de cinema, empenhada na filmagem daquela história de Drummond sobre a moça que recolhe uma flor num sepulcro e à noite recebe telefonemas sepulcrais.

Por causa do carnaval, os guardas impedem a passagem dos carros nas ruas do centro, o jeito é mesmo ir a pé. E tome ladeira. Há quem sugira que a melhor maneira de subir é de costas, para se ter a ilusão de estar descendo. E o carnaval comendo solto na cidade, com bumbos e zabumbas tocando zé-pereira noite adentro. Só que isso não tem nada a ver com Ouro Preto.

Então nos recolhemos à nossa tebaida. Transpomos o pesado portão de ferro e vamos escorregando ladeira abaixo, tropeçando na escuridão. A ponte de madeira, pude verificar durante o dia, se lança sobre uma grota abismal onde reside há milênios um dragão de sete cabeças. Agora à noite ele só espera que cruzemos a ponte para reduzirnos a cinzas com um jato de fogo saído de uma das suas sete bocarras.

Mal ousamos iniciar a travessia, percebo que a janela do andar inferior — o tal quarto do Vinícius — está acesa.

— Hoje vai ter festa no porão — adverti.

Entramos pela cozinha e trancamos a porta, como se nada estivesse acontecendo. Mas quem é que era homem de ir lá embaixo apagar a luz que nem eu nem ela havíamos acendido? Tendo verificado que as portas e janelas cá em cima estavam devidamente fechadas, resolvi ignorar o que se passava lá embaixo.

Quando já me recolhia ao quarto, eis que de súbito é posta à prova a minha natureza de homem:

— Será que você pode me trazer um copo d'água? — pediu ela.

Como negar água aos que têm sede? Revesti-me de bravura e fui à cozinha buscar o copo d'água.

Somente quando vinha voltando é que as janelas e portas da sala me chamaram a atenção. Estavam abertas.

— Não é por nada não, mas as portas e janelas da sala estão escancaradas.

Ela pensou que eu estivesse brincando — tive de levá-la até a sala  para que acreditasse.

— Foi você mesmo.

— Eu? Não brinco com essas coisas.

Ela se voltou com olhos enormes:

— Que tal se a gente fosse embora daqui?

Nunca uma sugestão judiciosa como essa foi tão prontamente aceita.


Em Tiradentes o fantasma do Padre Toledo passeia pelo imenso casarão onde ele morou, hoje transformado em museu. Não se vê viva alma pelas ruas: a cidade muito quieta sob o sol, caiada de branco como um sepulcro, tudo parado nas ruas mortas.

Resolvemos seguir viagem, e sem olhar para trás, para não nos transformarmos em estátuas de pedra-sabão.

Em Congonhas o que há é a igreja sob a guarda de seus doze Profetas. Doze fantasmas? Em voo lento, um urubu risca o azul do céu. Tudo quieto aqui embaixo, parado, em suspenso. Até aqui não chega a confusão do mundo. Saímos do mundo. O tempo parou. Projetados contra o céu, eles são, como afirmou o poeta, “magníficos, terríveis, graves e ternos” “nesta reunião fantástica, batida pelos ares de Minas”.

E em Belo Horizonte o fantasma sou eu próprio. Procuro nestas ruas mal assombradas a cidade invisível onde vivi até a juventude. Ao dobrar uma esquina, esbarro com o fantasma de um jovem de 20 anos.

Ao regressar ao Rio, sentimos que alguma coisa nos acompanha: alguma coisa feita de ar e imaginação, que não é propriamente um fantasma, mas o espírito de Minas a impregnar-nos de passado e de eternidade. E aceleramos alegremente em direção ao futuro.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Baú de Trovas XXVIII


Invejando a liberdade
que, de fato, tu possuis,
meu destino é ser escravo
desses teus olhos azuis!
APARÍCÍO    FERNANDES
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Para dizer a verdade,
tudo o que sou vem de ti:
— Toda esta felicidade
começou quando te vi.
ALMIR SOARES
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Esses teus olhos tristonhos,
tristonhos e cismadores,
enchem minha alma de sonhos
e o coração de temores...
IRINEU GUIMARÃES
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Haverá maior encanto,
neste mundo já sem brilho,
do que ouvir o terno canto
da mãe que embala seu filho?
MARIA STELLA DE ALMEIDA MOURA
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Mais bebo, mais me angustio,
tamanha é a dor que me invade.
— Sou planta de beira-rio,
numa enchente de saudade.
PAULO EMÍLIO PINTO
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A vida avança e recua,
quanto destino imprevisto!
Ontem, dizias: "Sou tua!".
Hoje, nem sabes que existo…
R. ESTRÊLA
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Que importa a fatalidade
que te deixou sem carinho?
Enquanto existir saudade,
ninguém viverá sozinho!
RAUL SERRANO
= = = = = = = = = = =
Meus poemas vão girando
em torno de um mal infindo:
— eu, a fazê-los chorando;
— tu, a rasgá-los sorrindo...
RENATO BASTOS VIEIRA
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Saudade — planger de sino
em tarde calma, dolente:
prelúdios de violino
ferindo o peito da gente!...
RENATO DE LACERDA
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Por nosso amor me intimido,
e vivo a te intimidar.
— Tu sofres porque eu duvido,
e eu sofro por duvidar...
RICARDINA YONE
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Quando tive a tua carta
tão leve, na minha mão,
percebi quanto pesavas
dentro do meu coração.
ROBERTO LOPES
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Não há criança vadia...
E as que esmolam a teus pés
são anjos que Deus envia
para saber quem tu és.
ROBERTO MEDEIROS
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O que tem acontecido
desde o dia em que te vi:
– Vencendo, fiquei vencido;
ganhando, tudo perdi!
RODRIGO JÚNIOR
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Não me chames de senhor,
que não sou tão velho assim.
Ao teu lado, meu amor,
não sou senhor nem de mim. ..
RODRIGUES CRÊSPO
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Neste amor aberto em palmas,
espero encontrar, depois,
um céu para duas almas
e um sonho para nós dois.
R. PETIT
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Não me importa o teu destino,
se tens ou não tens razão.
— Farei qualquer desatino,
levado por tua mão!
SEBASTIÃO PAIVA
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Ninguém traduz os segredos
que um beijo pode conter...
Antes morrer-se de um beijo,
do que sem beijos viver!
SEGUNDO WANDERLEY
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Eu quis que o meu coração
só pertencesse a você,
mas ele tem ambição...
gosta de todas que vê!
SERAFIM SOFIA
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Beijo mais puro e mais lindo
ninguém decerto conhece
que o de duas mãos se unindo
na comunhão de uma prece.
SÉRGIO FONSECA
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Tu, ó Maria da Glória,
que tanta graça irradias,
mais que Maria da Glória,
és a glória das Marias!
SOARES DA CUNHA
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As tuas mãos pequeninas,
se as estendes com fervor,
são duas asas divinas
voando em busca de amor.
SOLIMAR DE OLIVEIRA
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Por muito amar pago o preço
de tanto e tanto sofrer,
mas ao fitar-te me esqueço
de que te devo esquecer.
TEIXEIRA LEITE
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No tédio de minha vida.
de emoções vazia e nua,
só me torna comovida
a esperança de ser tua!...
VERA MILWARD DE CARVALHO
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Que nos importa a distância
que meu desvelo te furta?
Quando o amor possui constância,
toda distância é bem curta!
VICENTE CAPUANO
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Mal sabes tu, que desprezas
os olhos com que te sigo,
que meus olhares são rezas
ditas baixinho, comigo...
VICENTE DE CARVALHO

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Moacyr Scliar (Parada obrigatória)


"1.000 Lugares para Conhecer Antes de Morrer", best-seller mundial da americana Patricia Schulz lançado no Brasil pela Sextante, traz cerca de 20 paradas obrigatórias no país.
Mônica Bergamo, 23 de abril de 2006


Tão logo ele tomou conhecimento dos mil lugares imperdíveis no mundo, decidiu: seria o primeiro brasileiro a conhecê-los todos. Homem muito rico, recursos para isso não lhe faltariam. Pretendia, inclusive, realizar este périplo em tempo recorde, em primeiro lugar para dar à façanha ainda maior destaque e depois porque, pela idade, já não podia fazer planos a longo prazo.

Assim, tudo o que faria era entrar nos lugares mencionados na obra, tirar uma foto e seguir adiante. Consultou um amigo, dono de uma grande agência de turismo. Sim, era possível fazer aquilo em um ano, desde que ele alugasse um jatinho particular. O que sem demora foi feito, e assim ele partiu, disposto a visitar pelo menos três lugares por dia. Era difícil, mas ele o conseguiu e assim pouco a pouco foi riscando os lugares de sua lista.

Deixou o Brasil para o fim. Em nosso país eram cerca de 20 lugares, a maioria deles em São Paulo, cidade onde nascera e onde morava. Os amigos esperavam que ali se encerrasse a gloriosa trajetória, mas seus planos eram diferentes. Queria terminar com o Copacabana Palace, no Rio.

Havia uma razão para isso, uma razão muito especial. Anos antes ele se apaixonara por uma mulher, uma jovem e linda carioca. Paixão tão fulminante, tão avassaladora, que ele decidira largar tudo, esposa, filhos, empresas e viver com a moça no Rio. Para tanto, haviam marcado um encontro no Copacabana Palace.

Encontro ao qual ele não compareceu. Chegou a viajar para o Rio e, no aeroporto, tomou um táxi para ir ao famoso hotel, mas no meio do caminho desistiu: não, não abandonaria tudo que havia conquistado por causa de uma aventura amorosa. Voltou a São Paulo sem ir ao Copacabana Palace -no qual, aliás, nunca entrara.

Agora, finalmente, adentraria o hotel. Não mais para uma aventura, mas para gozar seus 15 minutos de fama. Seus assessores haviam avisado a imprensa, que lá estaria para registrar o clímax da aventura, a chegada ao último dos mil lugares.

Já era noite quando o jatinho pousou no aeroporto. Ele tomou um táxi. Nervoso: já estava atrasado. E, para cúmulo do azar, havia um congestionamento em Copacabana. Decidiu completar o trajeto a pé, apesar das advertências do motorista.

Já estava a uns 200 metros do famoso prédio da avenida Atlântica, quando o assaltante lhe apontou o revólver. Ele fez um gesto - um gesto que queria dizer leve tudo, mas não me retenha, tenho um encontro com o Destino - mas foi mal interpretado: o homem achou que ele tentava reagir e disparou.

Caído no chão, agonizante, tinha apenas uma mágoa: havia um lugar, um único entre mil outros lugares, que ele não veria antes de morrer. O problema, concluiu antes de expirar, é que a gente não pode ter tudo o que se quer na Vida.

Fonte:
Folha de São Paulo. Caderno Cotidiano. SP: 01 de maio de 2006.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Varal de Trovas 477


 

Carlos Drummond de Andrade (Ciao)


Há 64 anos, um adolescente fascinado por papel impresso notou que, no andar térreo do prédio onde morava, um placar exibia a cada manhã a primeira página de um jornal modestíssimo, porém jornal. Não teve dúvida. Entrou e ofereceu os seus serviços ao diretor, que era, sozinho, todo o pessoal da redação. O homem olhou-o, cético, e perguntou:

- Sobre o que pretende escrever?

- Sobre tudo. Cinema, literatura, vida urbana, moral, coisas deste mundo e de qualquer outro possível.

O diretor, ao perceber que alguém, mesmo inepto, se dispunha a fazer o jornal para ele, praticamente de graça, topou. Nasceu aí, na velha Belo Horizonte dos anos 20, um cronista que ainda hoje, com a graça de Deus e com ou sem assunto, comete as suas croniquices.

Comete é tempo errado de verbo. Melhor dizer: cometia. Pois chegou o momento deste contumaz rabiscador de letras pendurar as chuteiras (que na prática jamais calçou) e dizer aos leitores um ciao-adeus sem melancolia, mas oportuno.

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Creio que ele pode gabar-se de possuir um título não disputado por ninguém: o de mais velho cronista brasileiro. Assistiu, sentado e escrevendo, ao desfile de 11 presidentes da República, mais ou menos eleitos (sendo um bisado), sem contar as altas patentes militares que se atribuíram esse título. Viu de longe, mas de coração arfante, a Segunda Guerra Mundial, acompanhou a industrialização do Brasil, os movimentos populares frustrados mas renascidos, os ismos de vanguarda que ambicionavam reformular para sempre o conceito universal de poesia; anotou as catástrofes, a Lua visitada, as mulheres lutando a braço para serem entendidas pelos homens; as pequenas alegrias do cotidiano, abertas a qualquer um, que são certamente as melhores.

Viu tudo isso, ora sorrindo ora zangado, pois a zanga tem seu lugar mesmo nos temperamentos mais aguados. Procurou extrair de cada coisa não uma lição, mas um traço que comovesse ou distraísse o leitor, fazendo-o sorrir, se não do acontecimento, pelo menos do próprio cronista, que às vezes se torna cronista do seu umbigo, ironizando-se a si mesmo antes que outros o façam.

Crônica tem essa vantagem: não obriga ao paletó-e-gravata do editorialista, forçado a definir uma posição correta diante dos grandes problemas; não exige de quem a faz o nervosismo saltitante do repórter, responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece; dispensa a especialização suada em economia, finanças, política nacional e internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem que existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico etc., mas a crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao falar de tudo. Não se exige do cronista geral a informação ou comentários precisos que cobramos dos outros. O que lhe pedimos é uma espécie de loucura mansa, que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não trivial e desperte em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a vadiação de espírito. Claro que ele deve ser um cara confiável, ainda na divagação. Não se compreende, ou não compreendo, cronista faccioso, que sirva a interesse pessoal ou de grupo, porque a crônica é território livre da imaginação, empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem procurar influir neles. Fazer mais do que isso seria pretensão descabida de sua parte. Ele sabe que seu prazo de atuação é limitado: minutos no café da manhã ou à espera do coletivo.

Com esse espírito, a tarefa do croniqueiro estreado no tempo de Epitácio Pessoa (algum de vocês já teria nascido nos anos a.C. de 1920? duvido) não foi penosa e valeu-lhe algumas doçuras. Uma delas ter aliviado a amargura de mãe que perdera a filha jovem. Em compensação alguns anônimos e inominados o desancaram, como a lhe dizerem: “É para você não ficar metido a besta, julgando que seus comentários passarão à História”. Ele sabe que não passarão. E daí? Melhor aceitar as louvações e esquecer as descalçadeiras.

Foi o que esse outrora-rapaz fez ou tentou fazer em mais de seis décadas. Em certo período, consagrou mais tempo a tarefas burocráticas do que ao jornalismo, porém jamais deixou de ser homem de jornal, leitor implacável de jornais, interessado em seguir não apenas o desdobrar das notícias como as diferentes maneiras de apresentá-las ao público. Uma página bem diagramada causava-lhe prazer estético; a charge, a foto, a reportagem, a legenda bem feitas, o estilo particular de cada diário ou revista eram para ele (e são) motivos de alegria profissional. A duas grandes casas do jornalismo brasileiro ele se orgulha de ter pertencido ― o extinto Correio da Manhã, de valente memória, e o Jornal do Brasil, por seu conceito humanístico da função da Imprensa no mundo. Quinze anos de atividade no primeiro e mais 15, atuais, no segundo, alimentarão as melhores lembranças do velho jornalista.

E é por admitir esta noção de velho, consciente e alegremente, que ele hoje se despede da crônica, sem se despedir do gosto de manejar a palavra escrita, sob outras modalidades, pois escrever é sua doença vital, já agora sem periodicidade e com suave preguiça. Ceda espaço aos mais novos e vá cultivar o seu jardim, pelo menos imaginário.

Aos leitores, gratidão, essa palavra-tudo.
Carlos Drummond de Andrade

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Ciao foi publicada no dia 29 de setembro de 1984, no Caderno B do Jornal do Brasil. Era a despedida de Drummond do gênero crônica.

De 1969 até 1984, Carlos Drummond de Andrade escreveu três vezes por semana para o Caderno B, suplemento cultural do Jornal do Brasil. Foram publicadas, aproximadamente, 2.300 crônicas, com temas sempre relacionados com a vida cotidiana, como o futebol, a música, a memória individual e a memória coletiva. Nos textos é possível identificar elementos comuns à poesia, o lirismo que o poeta sempre dava a esse gênero que caminha entre o jornalismo e literatura.


Fonte:
– Luana Castro. Ciao: a última crônica de Carlos Drummond de Andrade. Disponível em Brasil Escola.

Álvares de Azevedo (Poemas Escolhidos) – 3 –

VI


Brandas ribeiras, quanto estou contente
De ver nos outra vez, se isto é verdade!
Quanto me alegra ouvir a suavidade,
Com que Fílis entoa a voz cadente!

Os rebanhos, o gado, o campo, a gente,
Tudo me está causando novidade:
Oh como é certo, que a cruel saudade
Faz tudo, do que foi, mui diferente!

Recebei (eu vos peço) um desgraçado,
Que andou té agora por incerto giro
Correndo sempre atrás do seu cuidado:

Este pranto, estes ais, com que respiro,
Podendo comover o vosso agrado,
Façam digno de vós o meu suspiro.
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VII

Onde estou? Este sítio desconheço:
Quem fez tão diferente aquele prado?
Tudo outra natureza tem tomado;
E em contemplá-lo tímido esmoreço.

Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço
De estar a ela um dia reclinado:
Ali em vale um monte está mudado:
Quanto pode dos anos o progresso!

Árvores aqui vi tão florescentes,
Que faziam perpétua a primavera:
Nem troncos vejo agora decadentes.

Eu me engano: a região esta não era:
Mas que venho a estranhar, se estão presentes
Meus males, com que tudo degenera!
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VIII

Este é o rio, a montanha é esta,
Estes os troncos, estes os rochedos;
São estes inda os mesmos arvoredos;
Esta é a mesma rústica floresta.

Tudo cheio de horror se manifesta,
Rio, montanha, troncos, e penedos;
Que de amor nos suavíssimos enredos
Foi cena alegre, e urna é já funesta.

Oh quão lembrado estou de haver subido
Aquele monte, e as vezes, que baixando
Deixei do pranto o vale umedecido!

Tudo me está a memória retratando;
Que da mesma saudade o infame ruído
Vem as mortas espécies despertando.
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IX

Pouco importa, formosa Daliana,
Que fugindo de ouvir me, o fuso tomes;
Se quanto mais me afliges, e consomes,
Tanto te adoro mais, bela serrana.

Ou já fujas do abrigo da cabana,
Ou sobre os altos montes mais te assomes,
Faremos imortais os nossos nomes,
Eu por ser firme, tu por ser tirana.

Um obséquio, que foi de amor rendido,  
Bem pode ser, pastora, desprezado;
Mas nunca se verá desvanecido:

Sim, que para lisonja do cuidado,
Testemunhas serão de meu gemido
Este monte, este vale, aquele prado.
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X

Eu ponho esta sanfona, tu, Palemo,
Porás a ovelha branca, e o cajado;
E ambos ao som da flauta magoado
Podemos competir de extremo a extremo.

Principia, pastor; que eu te não temo;
Inda que sejas tão avantajado
No cântico amebeu*: para louvado
Escolhamos embora o velho Alcemo.

Que esperas? Toma a flauta, principia;
Eu quero acompanhar te; os horizontes
Já se enchem de prazer, e de alegria:

Parece, que estes prados, e estas fontes
Já sabem, que é o assunto da porfia
Nise, a melhor pastora destes montes.
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Nota:
* Amebeu
– designativo de um verso latino com duas sílabas longas seguidas de duas breves e uma longa.


Fonte:
Álvares de Azevedo. Poesias. Livro publicado em 1853.