sábado, 11 de setembro de 2021

Benedita Azevedo (Uma lição dolorosa)

Quatro meses após a morte do pai, o filho de Jussara já estava deitado quando um vizinho da sua idade tocou a campainha. A mãe atendeu. O rapaz contara que precisaria levar um recado urgente do pai a um bairro distante, para uma pessoa que ainda não tinha telefone. Ela olhou o relógio, era quase 23 horas, disse que o filho já estava dormindo, e mesmo que não estivesse não o deixaria sair com o carro, àquela hora, pois ainda não tinha carteira e era inexperiente ao volante. O rapaz insistiu. Ela ia dizer que não o acordaria, quando o filho apareceu à porta e disse:

- Deixa-me ir mãe, tomarei cuidado!

A mãe ficou sem força para dizer não e os dois saíram no carro que já estava na garagem. Ele tinha dezessete anos e a mãe ainda estava pagando a Brasília branca que tinha comprado em doze prestações.

Não demorou meia hora, o telefone tocou. Era Célia, amiga de Jussara, mãe da melhor amiga de sua filha Joseli. O coração da mãe de Rodrigo disparou. Alguma coisa tinha acontecido para a amiga ligar àquela hora. Numa fração de segundo mentalizou toda a situação.

- Jussara, eu estou ligando...

- Aconteceu alguma coisa com meu filho? - interrompeu ansiosa.

- Ele teve um problema com o carro, mas está tudo bem. Ele só está muito nervoso e preocupado contigo.

Jussara nem pensou no carro. Só queria saber como estava seu filho.

- Ele está ai, Célia?

- Está, mas está muito nervoso. Só repete que tu não querias deixá-lo vir e que ainda não terminaste de pagar o carro.

- Deixa-me falar com ele.

Ao pegar o telefone, a primeira coisa que falou foi que não tivera culpa. Que o farol alto de um ônibus fez que batesse com o carro no meio fio e capotasse.

- A senhora nem terminou de pagar o carro, mãe. A Senhora não queria que eu viesse. A senhora tinha razão. Eu não deveria ter saído com o carro à noite.

Estava muito nervoso. O coração acelerado de Jussara só pedia que fosse apanhar o filho e o acalmasse. Um rapaz tão equilibrado que nunca lhe dera preocupações, a não ser as normais de um jovem de dezessete anos. Mas como iria? Não tinha condução. Era nisso que dava. Tentara ajudar alguém a levar um recado urgente e agora estava de mãos atadas, sem poder socorrer o próprio filho. Teria de chamar um táxi, mas como? Nunca precisara fazer isso depois que mudara para aquele bairro. Nem se lembrou do disque – informação. Tentou acalmá-lo:

- Meu filho, não pensa no carro agora. Como está o teu amigo?

- Estão todos bem, só Ricardo machucou o braço.

- Ricardo? Tu não saíste daqui com Alan?

- Eu apanhei os outros na esquina. – contou chorando.

- Fica calmo que a gente resolve tudo. Agora eu quero que tu venhas para casa. Deixa-me falar com Célia.

Ela nem esperou que Jussara falasse, disse que o levaria para casa. Em meia hora o filho entrou e abraçou-se à mãe, pedindo desculpas e prometendo trabalhar para pagar o conserto do carro. Contou que estavam com ele quatro amigos, mas só o que estava no banco do carona machucara o braço no asfalto.

No outro dia Jussara foi até o local do acidente. O dono de um bar em frente confirmou a questão do ônibus. Contou que o carro capotou três vezes e caiu em um pequeno barranco. Que os presentes pensaram que tivessem morrido todos. Quando se aproximaram os rapazes começaram a sair um por um e foram aplaudidos quando o último saiu ileso. Ela foi ver o carro de roda para o ar. Caíra sobre um amontoado de ervas trepadeiras que lhe servira como amortecedor do baque.

A Brasília 76, comprada em 1978, ficou toda amassada, mas funcionando. O filho mesmo foi levar para a oficina, pois a mãe precisava trabalhar. Não poderia comprar outra. Ainda faltavam quatro prestações a pagar. Ficou no conserto mais de sessenta dias. O pior era seguir a sua jornada de trabalho, andando nos ônibus lotados. Foi um período muito difícil.

Passado o susto, como medida didática, a mãe reuniu os amigos em casa e conversou. Falou da insistência do colega para que ela acordasse o filho. Ela para prestar um favor, após as vinte e duas horas, deixara o filho dirigir seu carro, coisa que nunca fizera antes. Que a insistência de Alan dizendo que era um recado urgente do pai lhe fizera permitir que saísse. Portanto, seria justo que ajudassem no conserto do carro, que ainda estava pagando e estava praticamente irrecuperável. Não deveria ter cedido à pressão dele, mas já que tinha acontecido, agora tinha de ser encontrada uma saída para se resolver o problema. Falou que daria uns dias para eles falarem com os pais antes de ela mesma procurá-los.

Dois ou três dias depois, o pai de Ricardo, vizinho de Jussara procurou-a em casa e disse que iria colaborar com CR$ 2.000,00. Zeca, filho de uma prima distante de Rodrigo, se propôs a colaborar com CR$ 5.000,00. O pai de Alan, o que tocou a campainha e insistiu para que o levassem de carro se propôs a colaborar com CR$ 5.000,00. O outro não tinha condições de dar nada. O conserto seria CR$ 20.000,00(vinte mil cruzeiros).

Jussara pegou a parte de Zeca e deu ao lanterneiro para a compra de parte do material. Uns quinze dias depois o pai de Ricardo deu a parte dele que foi passado ao lanterneiro. O pai de Alan disse que mandaria no final daquele mês. Ele morava em Caxias e alugou uma casa para os filhos na capital, em frente à casa da mãe de Rodrigo.

Jussara aguardou até o carro ficar pronto. Era preciso pagar o restante do conserto. Como a família do Alan não se manifestara, ela foi conversar com o rapaz.

Eram vizinhos e muitas vezes se reuniram em programações em casa de uns e de outros. Ela atravessou a rua e tocou a campainha. Estranhou que não lhe convidassem para entrar. Alan não apareceu. O irmão caçula entrou e chamou a irmã. Jussara meio sem graça, falou que o conserto do carro ficara pronto e se poderia falar com Alan? Ela grosseiramente se manifestou:

- O que nós temos com isso? O carro é seu, então se vire. Eu não vou deixar meu pai mandar dinheiro nenhum.

- Mas foi para dar um recado dele que tirei meu filho da cama, quase meia noite para levar seu irmão. E ele insistiu muito para que eu o fizesse.

- Não me interessa seus argumentos. O assunto está encerrado. Por favor, não nos procure mais e nem incomode meu pai com seus problemas.

Jussara voltou para casa e contou ao filho. Ele disse que era para deixar isso pra lá, que iria trabalhar para ressarcir a mãe. No dia de apanhar o carro já consertado, Rodrigo disse que não iria. Só se a mãe fosse junta. Ela o atendeu, mas fez questão de que ele dirigisse até em casa.

Só muito mais tarde, Rodrigo já adulto, contou que ele e os amigos tinham combinado de pedir o carro para saírem. Que realmente havia o tal recado a ser dado, mas ele já sabia que o colega iria pedir e fingira estar dormindo.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Arquivo Spina 49: Ronnaldo de Andrade

 

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXX


SE ÀS VEZES...

MOTE:
Se às vezes, tenho vontade
de chorar... e tenho feito,
é porque minha saudade
não cabe mais no meu peito!
Aloísio Alves da Costa
Umari/CE, 1935 – 2010, Fortaleza/CE


GLOSA:
Se às vezes, tenho vontade
de vagar pela amplidão,
buscando a felicidade,
eu sinto forte emoção!

Tenho vontade, também,
de chorar... e tenho feito.
Calar-me – não vai ninguém,
pois estou no meu direito!

E se esta minha verdade
põe-se em ponto de explosão,
é porque minha saudade
nasce lá no coração!

Aperto, daqui e dali,
não dá mais, não tem mais jeito,
pois a dor que sinto aqui
não cabe mais no meu peito!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

EU... LABIRINTO...

MOTE:
Não posso culpar a vida
se meu sonho se perdeu...
Mas, como achar a saída,
se o labirinto sou eu?
Antônio Carlos Teixeira Pinto
Brasília/DF


GLOSA:
Não posso culpar a vida
por ser sozinha e tão triste,
o pranto da despedida
ficou em mim, e resiste!

Procuro ver na lembrança
se meu sonho se perdeu...
Perdi também a esperança
de encontrar o que era seu!

Minha alma, meio escondida,
carrega, então, sua cruz...
Mas, como achar a saída,
se está com medo da luz?

A mim só resta chorar,
pois o meu sonho morreu.
Como vou poder me achar,
se o labirinto sou eu?
= = = = = = = = = = =

SÓTÃO DE ESPERANÇAS

MOTE:
Ergui um altar de esperanças
pra fazer minha oração,
e, no sótão das lembranças,
eu rezei com devoção!
Delcy Canalles
Porto Alegre/RS


GLOSA:
Ergui um altar de esperanças,
coloquei nele, os meus sonhos,
que pareciam crianças
com seus rostinhos risonhos!

Eu me ajoelhei pra rezar,
pra fazer minha oração,
e, rezando, extravasar
as ânsias do coração!

Vaguei, em minhas andanças,
tentando, o amor, encontrar,
e, no sótão das lembranças,
ele estava a me esperar!

Foi um encontro bonito,
cheio de paz e emoção
e sufocando o meu grito,
eu rezei com devoção!
= = = = = = = = = = =

SEMEANDO AMOR

MOTE:
Quem com amor tudo faz,
plantando amor ao redor,
lança as sementes da paz
e faz o mundo... melhor!
João Freire Filho
Rio de Janeiro/RJ, 1941 – 2012


GLOSA:
Quem com amor tudo faz,

se torna feliz, contente,
é pois, o amor que desfaz
toda a tristeza da gente!

Devemos sempre seguir
plantando amor ao redor,
para aumentar o sorrir
e o pranto, deixar menor!

Quem age assim – perspicaz
colhe mais do que plantou,
lança as sementes da paz
que pelo mundo, espalhou!

Essa nova plantação
tornando o amor bem maior,
enche todos de emoção
e faz o mundo... melhor!
= = = = = = = = = = =

MINHA FORÇA

MOTE:
Na minha fragilidade
de mulher de alma guerreira
venço os males da maldade,
queira o destino... ou não queira.
Maria Nascimento S. Carvalho
Rio de Janeiro/RJ


GLOSA:
Na minha fragilidade
é que eu tenho a minha força,
pois possuo a agilidade
de uma bela e jovem corça!

A força que trago em mim,
de mulher de alma guerreira
me faz vencer, ver o fim,
e transpor qualquer barreira!

Eu ganho a felicidade
somente fazendo o bem,
venço os males da maldade,
e, então, sou feliz, também!

Essa minha força inata
me faz quase aventureira
e inteirinha me arrebata
queira o destino... ou não queira.

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Outubro de 2004.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 44) Desafios

ELISEU, UM RAPAZ metido a galanteador de mulheres, entra num barzinho de um bairro próximo onde mora, acompanhado de um amigo. O amigo, não outro, senão o Beto. Beto é mais comedido, ou seja, não é lá tão cara de pau, pelo contrário, medroso, não ultrapassa os limites da sua timidez. Ao se acomodarem, Beto enxerga uma moça linda, sentada numa mesa com mais duas companheiras. Resolve sacanear o amigo e, sem pensar nas consequências, solta o desafio:

— Eliseu, está vendo aquelas gatinhas ali? Pago duas caixas de cervejas se você for até  lá e jogar o seu charme para a mais elegante delas, a fofinha de blusa azul e sainha vermelha. Olha que gata. Meu Deus, se eu tivesse sorte!

Eliseu ao olhar para a jovem, e notando, de fato, a sua formosura, aceita a aposta.

— Beto, duas caixas de cervejas?

— Sim.

— Fechado. Veja, e aprenda.

Beto não perde a pose:

— Duvido que consiga...

— Prepare o bolso. Vai ser barbada.

Eliseu se levanta, caminha até a jovem, e começa a xavecar:

— Boa noite, senhorita. Como é seu nome?

A moça se vira para o desconhecido, devolve o boa noite e indaga:

— Não me lembro de você!

— Mas eu de você, pode ter certeza. Só não me recordo do seu nome. Nos esbarramos uma vez...

— OK. Safira. E o seu?

— Eliseu, às suas ordens. Eu sabia que estava diante de uma pedra preciosa. Encantado!

— Vamos direto ao ponto, Eliseu. Posso saber o que deseja?

Em resposta, o engraçadinho manda brasa:

— Tem feitiço teus olhos
São os mais belos do mundo
Olhos assim, não existem mais, mais... mais...

A beldade se espanta e, ao mesmo tempo, se sente lisonjeada.

Para não fazer papel de tonta e deseducada, na frente das amigas, se abre num sorriso e dá o troco à altura. Abre o gogó:

— Fujo, de mim
Procurando, esquecer
Que você existe...

Eliseu, bate palmas e segue, insistente:

— Receba as flores que lhe dou...

Safira, sem deixar de lado a manifestação de contentamento, emenda:

— Enfia na cesta do lixo, que ‘já murchou...’.

Todas, as demais se precipitam numa gargalhada estrondosa.

Eliseu, de novo sem perder a linha de pensamento:

— Negue,
O seu amor
E o seu carinho
Diga, que você já me esqueceu...

Safira, fazendo carinha de zanga, rebate:

— Saia do meu caminho
Eu prefiro andar sozinha
Deixa que eu decida a minha vida...

Sem pestanejar, Eliseu se aprofunda:

— Quero me casar contigo
Não me abandones tenha compaixão...

Safira, descobre um lado seu, que até então desconhecia e se espanta com a sua audácia. Recatada, não dava trela às pessoas que não faziam parte do seu mundinho de amigos mais íntimos. Todavia, percebe que as colegas estão gostando e se divertem, batendo palmas, seguidas de sonoros gritinhos vibrantes com o rumo da brincadeira. Resolve levar adiante a encenação, curiosa para ver como seria o desfecho. Manda vê, na réplica, sem pestanejar:

— Talvez um dia
Quem sabe,
Encontre a felicidade
Achando alguém pra valer,
Até morrer...

Numa antevisão dos futuros copos de bebidas que teria pela frente, e se sentindo o rei da cocada preta, Eliseu contra-ataca:

— Diga logo de uma vez
O que você quer de mim
Não me torture mais...

A esta altura, Safira foge à sua própria regra. Se levanta e encara Eliseu bem dentro dos olhos. E estrondeia, com a maviosidade do seu brado percuciente:

— Vá pro inferno, com seu amor
Só eu amei
Você não me amou...

Enquanto as amigas se rasgam e aplaudem, entusiasmadas, o gerente, sisudo e de pouca conversa, lá do caixa, assiste a tudo sem perder um detalhe. Achando se tratar de uma importunação, convoca os dois seguranças que prestam serviços à casa. Com eles, à tira colo, se achega rebolativo à beira das garotas. Desmunhecando, em excesso, expõe os fatos segundo a sua ótica:

— Amigo, boa noite. Rogo que saia do recinto ou serei obrigado a colocar o senhor e o seu amiguinho, ali atrás, para fora, de maneira não muito elegante. O prezado está aborrecendo, deveras, as nossas clientes. Olhe em redor. Os  frequentadores se mostram descontentes com a sua intromissão.

Eliseu, entretanto, entusiasmado, pior, abrasado pelo rumo que o evento provocara, não leva as palavras do gerente à sério. Dando uma de desentendido, cai na besteira de peitar o sujeito. Canta para ele, à imitação de Naiara Azevedo:

— Nãaaaao!
Não tente se explicar, não tem conversa
Pois tudo que disser, não me interessa
Você não presta... você não presta...
Vocêeeeee não presta!

O gerente, espumando de enfurecimento, sinaliza para a dupla de armários embutidos que, imediatamente entram em ação. Eliseu e Beto são, literalmente, atirados como dois sacos bêbados, no meio da avenida.

Fonte:
Texto enviado pelo autor, integrante de seu livro “Comédias da Vida na Privada”.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Adega de Versos 44: Orlando Brito



O FANTASMA

O armário, numa alcova, junto à cama,
é o último refúgio de um sabido,
quando, nos braços quentes de quem ama,
ouve, na escada, os passos do marido.

Não sou desses vilões que o povo chama
de “pé-de-pano” ou nome parecido.
Outro seria o fim do mesmo drama,
se eu fosse em tal colóquio surpreendido.

Eu sinto falta de ar, eu sofro de asma,
por isso, em vez de entrar no guarda-roupa,
pego o lençol, dou uma de fantasma,

e faço – ú ú – num passo de balé.
O marido, assustado, grita: – Opa!
recua, ganha a porta, e dá no pé!


Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 34, 35 e 36

O INTÉRPRETE


Certo homem chamado Loio era ouvido pelos amigos sobre questões que diziam respeito ao interesse comum, e emitia juízos acertados.

— O Loio é o nosso líder — diziam eles. — Cabeça fria está ali.

— E coração quente — rematavam outros. — Sabe o que se deve fazer e tem um sentimento muito forte de solidariedade.

O que tornava Loio querido e respeitado pela roda é que, no fundo, ele não fazia mais do que descobrir o que cada um desejava e não sabia dizer com clareza. Loio era intérprete.

Seu nome começou a ser apregoado fora do círculo de amigos como o de bom candidato para tudo: dirigente de empresa, senador, defensor público, presidente da Nuclebrás e até da República.

Sondado a respeito dessas possibilidades, Loio abanou a cabeça negativamente:

— Nada disso. Os amigos, eu entendo bem o que eles querem e traduzo. Mas é dificílimo entender aquilo com que vocês me acenam. E eu receio que, se chegasse a entender, sairia correndo o resto da minha vida para não me envolver nessas coisas. Com licença, estou ocupado. Até.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O LOCUTOR ESPORTIVO

O locutor esportivo mais festejado em 1929 foi Anselmo Fioravanti, que não entendia de futebol e por isso inventava.

Sua estreia ao microfone gerou uma tempestade de protestos. Os ouvintes exigiam sua dispensa, mas o diretor da estação considerou que muitos outros se pronunciaram encantados com Anselmo, classificado como humorista de primeira água. Foi mantido, e sua atuação despertou sempre o maior sucesso. Jogo narrado por ele era muito mais fascinante do que a verdadeira partida.

Anselmo creditava o gol ao time cujo arco fora vazado. Trocava os nomes dos jogadores, invertia posições e fazia com que o clube derrotado empatasse ou ganhasse, conforme a inspiração do momento. Na verdade, ele não mentia. Apenas, ignorava as regras mais comezinhas do esporte e contava o que lhe parecia estar certo.

Torcedores e agremiações o tinham em alta conta, porque ele mantinha aceso o interesse pelo futebol. Os vencedores de fato não se magoavam com a informação contrária, pois a vitória era inquestionável. E os derrotados consolavam-se com o triunfo imaginário que ele generosamente lhes concedia.

De tanto assistir a jogos, um dia ele narrou corretamente um lance. Houve pênalti e Anselmo anunciou pênalti. Foi a sua desgraça. Nunca mais ninguém lhe prestou ouvidos, e Anselmo terminou os dias como gari em Vila Isabel.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O PÃO DO DIABO

Espalhou-se no bairro a notícia de que Ludovico, ao partir o pão quando jantava, teria exclamado:

— Este é realmente o pão que o Diabo amassou.

O padeiro Romualdo sentiu-se ofendido em sua honra profissional e foi pedir satisfação. Ludovico não só confirmou o que dissera como aduziu:

— É também o Diabo que fabrica a sua farinha, Romualdo. Fique alerta e verá.

O padeiro não dormiu aquela noite. De madrugada, pé ante pé, entrou na padaria e surpreendeu um estranho ser que retirava os pães do forno, fazendo-os desaparecer e substituindo-os por outros que eram amassados na hora, feitos de uma farinha especial, com vago cheiro de enxofre.

Petrificado de espanto, Romualdo nada pôde fazer. Mesmo porque logo em seguida caiu duro no chão, onde foi encontrado ao amanhecer, e pouco a pouco recuperou a consciência.

Seu primeiro gesto foi pedir um pão e cheirá-lo. Cheirava natural, mas o padeiro não ousou prová-lo. Fechou o estabelecimento e sumiu no mundo.

Ludovico arrematou as instalações e passou a ser o padeiro do bairro, sem problemas.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Evely Libanori (Um bem-te-vi no meu caminho)

Como é diferente criar um bem-te-vi. Nada a ver com gatos, nada a ver. De dia ele fica solto no escritório, mas de noite tenho medo de ele se meter em enrascadas; esses fios do computador.

Então, eu ponho ele na gaiola. O Edson riu de mim porque eu pus uma fralda no fundo da gaiola onde ele dorme. "Mas Edson, caso ele sinta frio, pra se abrigar". Vou espiar devagarinho para ver se o Benjamin está dormindo e ele me olha direto nos olhos, se mostra todo ligado. Tem que estar tudo quietinho e escurinho para ele dormir. Um passarinho notívago, como a mãe.

A mãe: eu, no caso. Ou meia-mãe, junto com a passarinha mãe dele. Vou fazer um carinho nele, na cabeça, e ele abre o bico. Eu penso: "Se toca, ele é um pássaro, não é um gato".

Ele entrou no meu coração com esse biquinho aberto para mim. Como eu gosto desse passarinho! Foi assim que ele entrou na minha vida: ele tentou voar e não conseguiu, ainda não estava pronto. Tentou e não deu, ele caiu. Caiu numa calçada movimentada no centro da cidade. Se ficasse lá, ia morrer. Ele estava com medo, acuado, e então eu peguei, imobilizei as asas para que ele não se debatesse e não se machucasse. Conversei com ele e encostei o coração dele no meu, o meu coração junto com o coração de um bem-te-vi, tamanhinho de um coração de passarinho... O coração dele batia rápido, com medo, mas depois foi se acalmando, acalmando...

Ele confiou em mim. E não se decepciona alguém que confiou em nós. Fiquei o fim de semana cavoucando a terra para caçar minhocas, uma das iguarias do meu bichinho de penas. Isso de desencavar minhocas foi muito ruim, pedi perdão. Elas felizes dentro da terra e eu, lá, a invasora. Foi ruim, Mas, ou eu alimentava o bem-te-vi, ou ele morria.

Às tardes eu fico com ele no escritório e mostro para ele Strauss, Vivaldi, Mozart. Eu disse: "Olhe, a gente também manda bem, temos isso". Eu quis que ele tivesse boa impressão de nós, sabem? E, acreditem ou não, ele canta enquanto ouve as composições. Ele canta! Eu passo as tardes em casa ouvindo Strauss e o bem-te-vi que eu crio. É assim a minha vida. Sou filha querida de Deus. Hoje fizemos exercícios de voo no quarto, o Benjamin e eu. O quarto já está ficando espaço pequeno para ele, ele voa mais.

Ele mudou tanto em duas semanas, Como cresceu! Pelo que vejo, em no máximo, mais uma semana ele vai voar. E vai voar para longe de mim. Ele vai para a chácara da minha amiga onde tem uma revoada de bem-te-vis, não tem moleques com estilingues, não tem asfalto, nem carro. Nunca mais nos veremos, mas eu não vou ficar triste. Será que ele vai pensar em mim antes de ganhar o céu?

O bem-te-vi tomou forma em meus pensamentos, em minha vida, e nunca mais sairá de mim. Então, eu estou e sou junto com o passarinho que minhas mãos criaram. O coração que bateu junto com o meu coração vai ganhar o céu. Ele vai para o ar, nunca mais vamos nos ver.

Foi assim: ele estava caidinho na calçada, eu ia passando, ele me olhou. E aí, daqui a poucos dias ele vai ganhar o céu, e eu mais um amor eterno dentro de mim.

Fonte:
Evely Libanori. Nós, animais. SP/RJ: Livro Expressão, 2013.
Livro enviado pela autora.

Estante de Livros (Saint Exupéry, José de Alencar e C. S. Lewis)


Antoine de Saint Exupéry
O Pequeno Príncipe


O Pequeno Príncipe devolve a cada um o mistério da infância. De repente retornam os sonhos. Reaparece a lembrança de questionamentos, desvelam-se incoerências acomodadas, quase já imperceptíveis na pressa do dia-a-dia. Voltam ao coração escondidas recordações. O reencontro, o homem-menino. Pela mão do pequeno príncipe, recupera a meninice abrindo uma brecha no tempo, volta a sentir o perfume de uma estrela , a ouvir a voz de uma flor, a ver o brilho de uma fonte, escutar os guizos das folhas batidas pelo vento. Quebra-se por momentos a crosta que generaliza o outro em todos e torna as coisas comuns e iguais para se descobrir os carneiros dentro das caixas, os elefantes dentro das serpentes. Uma leitura inesquecível para todas as idades.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

José de Alencar
Cinco Minutos


Um rapaz perde seu ônibus por cinco minutos e, ao entrar no seguinte, senta-se casualmente ao lado de uma mulher cujo rosto está coberto por um véu. A moça permite que ele lhe segure as mãos e lhe beije o ombro. A fim de localizar sua amada misteriosa, o narrador vai descobrindo mais detalhes sobre sua musa e espanta-se com os recursos da moça para permanecer incógnita. Várias viagens são necessárias até que o mistério se resolva e o casal possa encontrar a felicidade.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

C. S. Lewis
O Grande Abismo


Em O grande abismo, C. S. Lewis vale-se mais uma vez de seu incomparável talento para fábulas e alegorias. Em sonho, o escritor-narrador pega um ônibus numa tarde chuvosa e dá início a uma viagem inacreditável, atravessando Céu e Inferno. No caminho, encontra-se com seres sobrenaturais, que fogem a tudo que ele já vira, e chega a conclusões significativas sobre as consequências inevitáveis do comportamento humano. É o ponto de partida para uma profunda reflexão sobre o bem e o mal. Se insistimos em conservar o Inferno (ou mesmo a Terra) não veremos o Céu; se quisermos o Céu, não guardaremos a menor, nem a mais familiar recordação do que seja o Inferno.

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Raul Pompéia (O Perfume dos bolos)

Já lá vão seis anos...

Eu via sempre, por volta das dez horas, passar-me pela porta a pequena Berta.

Era a filha mais nova do meu vizinho confeiteiro.

Que linda Berta! Chamavam-na, por graça, a menina azul. Dava razão a isso o saiote azul, que ela trajava sempre, e o corpete de cabeção, azul ainda como a saia, e os olhos cor de céu e os louros cabelos quase brancos, com brilhos metálicos anilados, e, ainda mais, a coloração fina que sombreava-lhe a alvura da face, reflexo não sei se do corpete azul, se do azul luminoso dos olhos.

Perfeitamente encantadora, a criança...

À pequenina da minha rua, um freguês do confeiteiro comia bolos ao almoço.

Berta os levava.

Eu gostava de vê-la passar, trazendo nas mãos, à altura dos ombros, uma pequena bandeja, coberta por um guardanapo alvíssimo. Mais lindos sete anos, nunca vi, nem mais perfumosos bolos.

A menina passava, caminhando rápido; altiva e tímida como uma antílope. Os cabelos cortados rente, deixavam-lhe descoberta a nuca, móvel e branca como um pescoço de cisne. Após ela, ia o apetitoso perfume da massa tostada dos bolos, quentes e fumegantes ainda.

Berta atirava-me um sorriso de malícia inocente e ficava logo muito séria, quase ameaçadora. Eu lançava-lhe punhados de violetas, só para vê-la pisar as flores com o seu adorável desdém...

De repente, Berta desapareceu. Perguntei por ela. Morrera.
............................................................

O freguês da esquina ainda come bolos, ao almoço, como há seis anos.

O meu vizinho confeiteiro ainda os fornece como outrora.

Apenas já não os leva a menina azul.

Há seis anos que os portadores variam.

Atualmente, quem passa com os bolos, é um garotinho maltrapilho, que anda de cabeça baixa, desconfiado, olhando de través, com uns modos de cãozinho escorraçado...

Para mim, entretanto, apesar dos meus olhos, é Berta ainda quem os leva.

Quando o garotinho passa é a menina azul que eu vejo.

Aquele perfume de massa tostada e quente desperta-me ao vivo o risonho quadro das boas manhãs doutro tempo.

Distingo o olhar e o sorriso de Berta, os seus movimentos tímidos e altivos de antílope; vejo-a ainda pisando com o seu adorável desdém as minhas pobres violetas...

O garotinho, com certeza não sabe porque sorrio-me para ele, quando ele passa.

Responde ao meu sorriso com uma careta amável, ingênua e idiota...

Um destes dias, pediu-me um vintém...

Apesar de tudo, para mim, a portadora dos bolos continua a ser Berta, a menina azul.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

Francisco Miguel de Moura (Chico Miguel) (Sonetos Escolhidos) 6


 A COISA BRABA

Quando acordo e me vejo pelo espelho
do meu quarto, a janela inda fechada,
nada do que já fui, nada do velho
me vem à frente. Onde perdi a estrada?

Sinto-me preso a um mundo que desaba,
sem graça, sem amor, sem segurança.
Não sei de onde é que vem a coisa braba,
se é por defeito meu, se é por vingança.

Tudo foge de mim. Onde está o homem?
O tórax sufocado pelo abdômen
e é tudo que me sobra do “eu” aflito.

Tento entender meus males, fecho o cenho,
mas não sei por que diabos me contenho,
sem forças de gritar... Retenho o grito.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

HISTÓRIA DE MENINO

Um menino inquieto, não arteiro,
de baladeira em punho, certo dia,
a mata mais distante percorria,
em silêncio, mas muito prazenteiro.

Não acertava nada, nenhum alvo,
atirava que atirava e sem valia.
Só uma vez um tiro é que foi salvo:
- Um passarinho verde estremecia...

Caiu debaixo da árvore que mirava.
O menino era eu... Quanta agonia!
Fui apanhar a ave que arquejava.

Por tudo, com seus olhos rasos d’água,
de joelhos no chão... Perdão pedia.
por causar ao inocente tanta mágoa!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

OITENTA E OITO
(18 de junho de 2021)

Ao completar os meus oitenta e oito
anos de vida, e vida bem vivida,
porque assim, Deus quis desde a partida
do útero de minha mãe. Não sou afoito,

pois do signo de Gêmeos. Era junho...
Mas segui meus caminhos mais estreitos
e desde então escrevo os meus defeitos,
os meus sonhos... Alguém é testemunho.

Assim, tracei na vida o que convinha,
em vencendo os espinhos, pela lida,
e aplainei os caminhos com amor.

E agora, bem valia uma caninha!
Mas não bebo, feliz, gozo a descida,
vendo o futuro, já sem grande dor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

RETRATO - 1

Olhos azuis do céu, olhar certeiro,
Lábios grossos, mais alto um maxilar,
Se a boca fecha um bico faz-se no ar,
Mas quando ri seu riso é feiticeiro.

Nariz perfeito, o corpo em linha reta,
Louro dolicocéfalo*, do bem,
Comum inteligência e pra ninguém
Busca ser chato, e tem a paz por meta.

Leve de corpo e alma, ai como voa!
Se alguém o fere, sofre mas perdoa,
Guarda as lições do bem e o mal deplora.

Mas não é nenhum santo e não se acalma,
Se alguém lhe nega a consciência e a alma,
Mais feio fica e explode sem demora.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

UMA SIMPLES ESTRELA

Minha estrela não rima com beleza,
pois não se vende ao tempo e a vaidade.
Ela se veste em raios, claridade
de cordas sãs da própria a natureza.

Minha estrela persegue o que é nascente,
sem glórias vãs, e sempre, e nunca pousa.
Viaja sem rugido e é nobre, e ousa
renovar-se em luz resplandecente.

Minha estrela é meu sol pela inocência
do menino que brinca em qualquer parte,
mas sabe dos perigos...  Continência

de quem nasceu com força onipresente,
qual uma fonte-luz que é tão presente
e em sendo prosa se transforma em arte.
==================================
*Dolicocéfalo = que ou o que apresenta o crânio alongado com diâmetro transversal menor do que o diâmetro anteroposterior (diz-se de crânio humano) [A dolicocefalia prevalece na Europa ocidental, nórdica e mediterrânea e também na África, Índia e Austrália].

Rubem Braga (Nazinha)

No meio da noite comum do jornal um colega de redação perguntou-me:

- Quinze anos - é menina ou senhorita?

Estava redigindo uma nota social e me propunha esse problema simples.

- Senhorita.

Ele ficou meio em dúvida e eu argumentei:

- Põe senhorita. Mocinha de quinze anos fica toda contente quando o jornal chama de senhorita...

Mas ele explicou:

- Essa, coitada, não vai ficar contente. É um falecimento...

E pôs “senhorita". E continuou a noite comum de jornal" Nem sei explicar por que pensei nisso no meu caminho de sempre, depois do trabalho, na rua vazia, de madrugada. Menina ou senhorita? Senti de repente uma pena gratuita daquela mocinha que morrera. Nem me dera ao trabalho de perguntar seu nome. Entretanto ali estava comovido... Oh!, todo Senhor, o Diabo carregue as meninas e senhoritas, e que elas morram aos quinze anos, se julgarem conveniente! Pensei vagamente assim, mas a lembrança daquele diálogo perdido na rotina do serviço de redação insistia em me comover. Senti simpatia pelo meu companheiro de trabalho por causa de sua expressão  

  - Essa, coitada...

  Bom sujeito, o Viana. E fiquei imaginando que no dia seguinte poderia ler no jornal o nome da mocinha e de seus pais. E que talvez um dia, por acaso, eu conhecesse esses pais. Ele seria um senhor de uns quarenta e cinco anos, moreno, bigodes mal cuidados, a cara magra, os cabelos grisalhos. Ela seria uma senhora de quarenta e um anos, ou talvez apenas trinta e oito anos, vagamente loura, os olhos parados, a cara triste, talvez um pouco gorda, de luto, muito religiosa, meio espírita depois da morte da filha. E então eu lhes contaria que me lembrava bem dessa morte, e contaria a conversa da redação - mentindo talvez um pouco, inventando uma conversa mais comovida, para ser delicado. E eles chamariam a outra irmã, uma garota de seis ou sete anos, os olhos claros, e lhe diriam que fosse lá dentro buscar os retratos de Iná poderia ser Iná, talvez com o apelido de Nazinha, o nome da filha morta. E viriam dois retratos um aos treze anos, na janela da casa, rindo; outro aos nove anos, com a irmãzinha ao colo, muito séria. E então a mãe diria que só tinham aqueles dois retratos - que pena! - e que gostava mais daquele dos nove anos

- Não é, Alfredo? Está mais com o jeitinho dela...

O Sr. Alfredo concordaria mudamente e eu me sentiria ali inútil , sem saber o que dizer, e iria embora. E talvez, depois que eu saísse, a mulher dissesse ao marido

- Parece ser boa pessoa...

E isso não teria importância nenhuma, nem me faria ficar melhor nem pior do que sou. E nada disso acontecerá. Mas pensei em tudo isso andando na rua deserta e subindo as escadas para o meu quarto. E hoje, depois de tantos dias, senti vontade de escrever isso, talvez na vaga esperança de que o Sr. Alfredo - esse homem qualquer que perdeu uma filha e que, não sei por que, eu penso que se chama Sr. Alfredo - leia o que estou escrevendo.
“Sr. Alfredo. O Sr. e sua senhora..."

Não, não vale a pena escrever aqui um bilhete ao Sr. Alfredo. Vai nau: ver que a mocinha era órfã de pai, e eu estarei tentando consolar um Sr. Alfredo que nem existe, nem com esse nome, nem com nenhum Mar outro. Vai ver que a mocinha era doente, talvez aleijada de nascença, e que sua morte foi, no dizer de sua própria mãe, “um descanso, coitada, para ela e para os outros". Oh, o Diabo carregue as meninas e senhoritas, e que elas morram, morram às dúzias, às grosas, aos milhões! Morram em todas as pálidas Nazinhas, morram, morram, morram, e não me amolem, pelo amor de Deus!

Nazinha... Por que inventei para a moça esse nome de Nazinha? Agora eu a via nitidamente e, não sei por que, a imagino uns vinte e três dias antes de morrer, magrinha, os olhos claros, os cabelos castanhos-claros, vestida de preto como se estivesse de luto antecipado por si mesma. Seus lábios são pálidos, e os dentes de cima um pouco salientes deixam a boca semi-aberta, e ela tem um ar tímido, dentro de seu vestido preto, com melas de seda preta, sapatos pretos, um ar tímido de quem estivesse pedindo uma esmola, a esmola de viver.

Nazinha... Reparo em seus sapatos pretos de salto alto (sapatos de moça, de senhorita, não de menina), e imagino que eles foram comprados pela mãe, que primeiro levou outro par que não servia porque estava apertando um pouco, e depois foi na loja trocar. E tudo isso me move, essa simples história dos sapatos de Nazinha, desses sapatos com que ela foi enterrada. Pobres sapatos, pobre Nazinha. Pensemos em outra coisa.

Fonte:
Rubem Braga. Crônicas Escolhidas. Publicada em 1942.

Concursos 2021 ATRN/UBT Natal e CTS/UBT Caicó (Divulgação dos resultados)

Dia: 09.09.2021 (quinta)

Horário: 19h00

Basta clicar no link abaixo:
https://meet.google.com/spq-axeu-sca

Ou abra o Meet e digite este código: spq-axeu-sca

Fontes:
Prof. Garcia
Imagem: Movidesk Blog

terça-feira, 7 de setembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 3

 


Aparecido Raimundo de Souza (Rapidinhas) 1


URUCUBACA


-Por não cumprir os prazos de lei, o advogado do réu, coitado, foi xingado da cabeça aos pés, na porta do fórum...

- Ué! Por quem?

- Pelos familiares do sujeito que estava em cana. Parece que o infeliz não conseguiu o alvará de soltura.

- Que coisa horrível! Mas diga lá: o pessoal xingava o doutor de quê?

- De “reulaxado”.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

PATÉTICO

- Diga água. Água...

-...

- Água, água... Á G U A...

-...

- Água, água, fale. ÁGUA. A DE AMORA, G, DE GUARANÁ, U DE UVA, A DE
ANTONIO. Fale, infeliz.

-...

- Vou repetir novamente. Á...

Entra a enfermeira com uma papeleta nas mãos e chama a atenção do médico recém formado, enquanto lhe exibe o prontuário do paciente:

- Não adianta doutor. Esse aí é surdo-mudo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

CENA URBANA III

- Achei gozado, outro dia, uma mãe querendo dar água pra filhinha!

- E o que havia de gozado nesse gesto tão lindo?

- A criança era pequena e o bebedouro maior que ela.

- E...?

- A idiota da mãe achou mais cômodo deitar o bebedouro até a boca da criança que suspendê-la, no colo, à altura da torneirinha.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. O vulto da sombra estranha. SP: Ed. Sucesso, 2009. E-book.

Estante de Livros (Arthur C. Clarke, Arthur Conan Doyle e Artur da Távola)


Arthur C. Clarke
Luz da Terra


As personagens de LUZ DA TERRA brotam do fantástico, ao mesmo tempo em que se mostram crivadas pela mesma sensibilidade que tem caracterizado os homens através dos séculos. Tudo isso vertido em uma linguagem rica em símbolos que carregam em si mesmos a medida substancial do comportamento do homem do futuro perante a vida, o qual já tem sob seu domínio o sistema solar. Neste livro, Arthur C. Clarke lança suas personagens em uma era, separada da nossa por dois séculos. Dominando o Sistema Solar, mundos hostis à sua constituição física, o homem ainda se vê preso ao seu próprio invólucro e vencido por ele. E é justamente esta ambivalência humana, paradoxal na sua constante reincidência, que serve de plataforma de onde se projetam ações e reações mescladas, conscientes ou inconscientemente, de medo, ansiedade, vigor e aniquilamento.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Arthur Conan Doyle
A Nuvem da Morte


Segundo livro do ciclo do professor Challenger, este romance se demonstra um verdadeiro precursor da mais pura ficção científica, com a aniquilação de qualquer forma de vida na terra após a passagem pelo éter de uma nuvem venenosa. O professor Challenger, o protagonista desta aventura, consegue sobreviver com mais alguns companheiros que conhecera durante uma viagem à América do Sul em busca do Mundo Perdido: depois de livrar-se engenhosamente dos efeitos venenosos da nuvem, explora uma Inglaterra deserta à cata de sobreviventes. Acabará encontrando algum?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Artur da Távola
A Mulher É Amar

Em plena maturidade e invejável juventude interior, o autor, de rara e conhecida sensibilidade, vem prestar seu tributo à mulher; rendendo homenagens ao amor, à doçura da vida e fazendo nossos corações baterem mais forte, acelerados... Talvez vocês ainda duvidem, mas certos poetas e escritores, como é o caso de Artur da Távola, costumam emprestar seu brilho às estrelas. São crônicas que falam sobre o lado sensual da mulher, o sombrio e o mágico, o sedutor e o intelectual, a mulher guerreira e moderna, temas que farão você levitar ao tomar contato com esta incrível aventura para o mais profundo e misterioso da alma feminina.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Versejando 74

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 31 –

Na minha cabeça correm rios de pensares. Surgem deltas. E os estuários. Sínteses de ideias, pensamentos, certezas, indagações, dúvidas, eternas reticências...

A sina e a sanha parecem vir de longe, lá das primeiras incursões no reino da palavra.

Esta senhora da comunicação ajudou e foi ajudada a instigar a curiosidade - rio que caminha e encaminha veredas de crescimento e sucesso.

A menos que se cultive o desvelo e o interesse nas diligências, não haverá evolução intelectual como, por consequência, também material. E se tudo começa no diletantismo, a busca constante fará do nosso cérebro uma verdadeira usina de ideias, de ideais, de idealismo.

Dizem que a curiosidade mata. Sempre vi que o interesse e a bisbilhotice são aquela grande vela que alumia, incendeia, produz calor e ascenção na vida.

Meu estoque de velas!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luiz Damo (As Faces da Trova) – 6 –

A dor que o teu peito invade
muitas vezes, tão voraz,
pode até ser de saudade,
ou só carência de paz.
= = = = = = = = = = =

A gota d'água preciosa
que da torneira extravasa,
pode tornar-se onerosa
ao faltar em nossa casa.
= = = = = = = = = = =

As águas brotam das fontes
seguem rumos diferentes,
sulcam novos horizontes
sem deixar de ser 'correntes'.
= = = = = = = = = = =

À vida, podes dizer:
que ao viver falta emoção.
Mas nada deves fazer
no furor da comoção.
= = = = = = = = = = =

Cenas de fraternidade
são de curta permanência,
porém as de atrocidade,
se repetem com frequência.
= = = = = = = = = = =

Com a proteção de Deus
que jamais nos deixa a sós,
busquemos juntar os 'eus'
pra fundi-los num só 'nós'.
= = = = = = = = = = =

Dentre as pedras do caminho
pode uma planta crescer,
se tratada com carinho
dá o fruto após florescer.
= = = = = = = = = = =

Diz o doente, sem dor,
vendo afastar-se o ataúde,
muito obrigado, 'doutor'!
Por devolver-me a saúde...
= = = = = = = = = = =

Dos caminhos percorridos
com afinco, pelos pais,
também podem ser seguidos
pelos filhos e alguém mais.
= = = = = = = = = = =

Esta vida é muito breve
para não ser respeitada,
destrui-la. quem se atreve,
não tem outra a ser trocada.
= = = = = = = = = = =

Faz frio e nos descampados,
surge à noite a alva geada,
são cristais esparramados,
pelas mãos da madrugada.
= = = = = = = = = = =

Imigrantes, fostes bravos,
audazes e sonhadores,
senhores e nunca escravos,
de ideais, desbravadores.
= = = = = = = = = = =

Não deixes que pelos dedos
deslize a felicidade.
Mas desvela seus segredos,
vive-a com profundidade...
= = = = = = = = = = =

Não tem presente melhor
que a mão firme de um amigo,
quando surge, ao derredor,
some a sombra do perigo.
= = = = = = = = = = =

Nas linhas da vida, leio,
essências tão sapienciais,
são lições, nas quais enleio,
meus passos existenciais.
= = = = = = = = = = =

Na vida, ninguém acabe,
refém de falsos projetos,
mas mostre a todos que sabe,
transformá-los em concretos.
= = = = = = = = = = =

Nos arbustos do presente
Inda a ave canta e se aninha,
busca um amanhã decente
no calor que ontem não tinha.
= = = = = = = = = = =

Nunca invejes quem trabalha
faze o mesmo, se puderes,
vencerás qualquer muralha
e obterás o que mais queres.
= = = = = = = = = = =

O pecador segue impune
se achando imune ao pecado,
julga errado e por ciúme
pune sem ser condenado.
= = = = = = = = = = =

O sino do campanário
quando toca nos ensina,
tal hino num relicário
ecoando a voz divina.
= = = = = = = = = = =

Para a queda em pleno ar
há um paraquedas normal,
pode na ausência levar,
a um acidente fatal.
= = = = = = = = = = =

Parcas nuvens, fim de tarde,
remanso crepuscular,
folhas secas, facho que arde,
sob o universo estelar.
= = = = = = = = = = =

Quando o pobre se lamenta
demonstra a sorte faltar
e a esperança que alimenta
é não mais se lamentar.
= = = = = = = = = = =

Se algo não lhe traz saudade
de um ontem pouco distante,
sem qualquer temeridade,
é porque não foi marcante.
= = = = = = = = = = =

Se a vida for pouco doce
e ás vezes, demais azeda,
mesmo que amarga não fosse
enfrente-a, vença e não ceda.
= = = = = = = = = = =

Se a tristeza, a paz estanca,
tendo o pranto como herança,
faz do sorriso a alavanca
e mude a dor em bonança.
= = = = = = = = = = =

Tão breve a vida transcorre
sob as leis da natureza,
dá o fruto à planta que morre
não sem tirar-lhe a beleza.
= = = = = = = = = = =

Triste, a dor n'alma se apruma
aniquila o pensamento.
se alegre, não resta alguma,
cicatriz do sofrimento.
= = = = = = = = = = =

Uma luz, meu ser invade
e ilumina os passos meus,
sua luminosidade
faz-me ver a mão de Deus.
= = = = = = = = = = =

Verte à velhice, a saudade,
das semeaduras de outrora,
são chuvas que à mocidade
regam as plantas do agora.

Fonte:
Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Santa Antônia de Maringá

Ganhei dois presentes ao mesmo tempo: um livro muito bonito – “Pétalas da vida”, e a alegria de ver que a autora é uma vizinha nossa muito querida – Dona Cida (Aparecida Capristo de Oliveira), professora aposentada, paulista de Tupã, residente em Maringá há 40 anos. São 427 páginas contendo crônicas, poemas e registros diversos à moda de diário. Gostei muito, especialmente dos vários textos em que Dona Cida fala de uma pessoa extremamente generosa e encantadora – Dona Antônia Lunardelli Ramalho.

Eu já havia até iniciado uma coleta de dados para escrever sobre Dona Antônia, mas agora ficou bem mais fácil. Basta transcrever alguns trechos do livro de Dona Cida e a crônica estará pronta. Aliás, nem será preciso entrar em detalhes, visto que Dona Antônia foi uma personagem superconhecida, vista e havida como uma santa mulher.

Santa sim. Santa Antônia de Maringá. Presente diariamente na Catedral como ministra da Eucaristia. Presente sobretudo no coração dos pobres que todas as noites recebiam o “sopão da Dona Antônia”, além de cobertores, medicamentos, carinho, muito carinho.

Para isso contava com uma equipe de colaboradores e doadores. Mas quando surgia uma dificuldade maior ela pedia ajuda a Santo Antônio, a quem docemente chamava de Toninho. “Dá um jeito aí, Toninho”. E a solução de pronto aparecia.

Dona Cida recorda seus momentos finais: “Despertamos entrando num pesadelo. Nossa querida Antônia estava doente. Hospital, tensões, choro, comoção na paróquia, comoção na arquidiocese, comoção entre os amigos e companheiros de trabalho, comoção geral.

“Teríamos que ser fortes. Sentimos que Deus a queria de volta. No dia 26 de outubro (2017) tivemos que dela nos despedir. Quanto amor distribuído. Era incansável. Não sabia dizer ‘não’. Deixou um legado de bons exemplos, palavras e dignidade. Seus amigos não a esquecerão. Vamos continuar o trabalho. Nós nos uniremos na batalha. Ela vive. Só voltou para o Pai. Deixou um rastro de santa”.

Todos sabemos que um processo de beatificação e canonização demanda longo tempo e complexa documentação. Porém Dona Antônia, bem antes de ser levada para a eterna graça, já se tornara santa no coração de quantos a conheceram. Santa Antônia de Maringá.

Dona Cida resume tudo num belo poema: “Compará-la a que santo? Ela imita todos, porque santa é. Alimentar famintos? Ela faz. Agasalhar no frio? Ela faz. Curar feridas? Ela faz. Rezar pelos doentes? Ela faz. Levar o Corpo de Deus aos acamados? Ela faz. Tirar o pão da própria mesa para servir um pedinte? Ela faz. Inclinar-se diante de injúrias? Ela faz. Perdoar ofensas? Ela faz. Derramar-se em sacrifícios? Ela faz. O que não faz? Faz tudo, porque santa é”.

Santa Antônia de Maringá. Continue aí de cima a ajudar os seus pobrinhos. E mande uma bênção para todos nós. Amamos demais a senhora.
=======================
(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 24-6-2021

Fonte:
Texto enviado pelo autor

domingo, 5 de setembro de 2021

Arquivo Spina 48: Zezé de Deus

 

Sammis Reachers (A Inimiga Pública)

Cristiano é a figura da serenidade. Ô cara tranquilo. Mas, claro, sem ser bobo.

Num belo dia de sol assanhado, conduzindo ônibus da linha 62 (Sta.  Bárbara x Charitas), veículo lotado, nosso pacato Cris para a viatura na altura do bairro Vila Ipiranga, para o embarque e    desembarque de passageiros. Isso antes de serem construídas a pista seletiva e as estações na Alameda São Boaventura.

Após observar que o último passageiro a embarcar já estava a bordo da nave, Cris apertou o botão que fechava a porta traseira e partiu com o veículo. Mas ao olhar novamente para o retrovisor da direita, percebeu um vulto pulando para dentro, no exato momento em que a porta se fechava. O cobrador imediatamente bateu a moeda na roleta, no código de "abrir a porta". O braço da pessoa ficara agarrado!

Se você é motorista, ou rodoviário de qualquer função, ou mesmo uma pessoa de bom senso, sabe que há um limite do campo de visão que o espelho retrovisor abarca. Assim, se uma pessoa está fora deste campo de visão, e ao ver a porta do ônibus aberta, corre em direção a mesma e pula sem maior aviso, é imensa a chance de acontecer de ela ser 'fechada' na porta. Essa é mesmo uma das maiores causas de acidente nos coletivos.

E foi exatamente isso que a passageira, uma mulher, fez. Por sorte, houve tempo de o ônibus parar e abrir a porta sem que a mulher se ferisse. Após entrar e passar na roleta,    a cidadã nada falou. Nem um pio.

Simplesmente tomou fôlego e foi esgueirando-se naquele ônibus cheio até chegar à parte da frente. Ao chegar próxima ao motorista, ah!, aí ela soltou o verbo.

– "Seu filho da $#%@, seu cor&%, seu %&@$#! Queria me matar seu desgraçado! Precisa aprender a trabalhar, seu @&#$@! - gritava a mulher, cansando os pulmões.

O problema é que a explosão de fúria da mulher parecia não ter fim. O tempo passava e ela, mesmo após o motorista ter-se desculpado e explicado do perigo do que ele fizera, e que ela sequer estava no ponto quando ele parara, continuava gritando, para desespero de Cristiano e dos passageiros, assustados e já irritados com aquele berreiro, que parecia fazer aumentar o calor daquele dia escaldante.

Cansado de ouvir, nosso Cristiano, sempre tranquilo, mas agora falando bem alto, no tom da senhora, fez uso da palavra:

– Senhora, estou trabalhando desde as oito da manhã, e o INIMIGO já enviou três pessoas, três pessoas para tirar a minha paz. Este veículo está lotado e eu preciso de atenção para conduzir essas vidas em segurança. A senhora é a quarta pessoa que o INIMIGO enviou?

Ao ouvirem tal coisa, alguns passageiros resolveram 'comprar o barulho' do sofrido Cristiano, Foi quando um deles começou a chamar:

– Inimiga! Inimiga! Cale a boca aí, sua capeta!

Diversos outros passageiros, fazendo coro, começaram a gritar, ritmadamente:

– Inimiga! Inimiga! Diaba! Inimiga!

A mulher, agora desnorteada, fechou a matraca e não sabia onde enfiar a cara. A única solução em que pensou foi descer do ônibus, no primeiro ponto que viu.

Enquanto descia, o coro dentro daquela viatura lotada continuava, numa mistura de raiva e gozação, parecendo uma torcida organizada:

– Vai embora, inimiga!

– Vai infernizar seu marido, megera!

– Vai a pé, diabo!

Pobre cidadã, sentiu na pele o que é ser uma inimiga pública…

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do 
dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Solange Colombara (Cristais Poéticos) 2

AMOR EM POESIA


Foi entorpecedor.
O ar encheu-se
De um encantamento
Como se uma fada,
Com sua varinha de condão,
Pincelasse doses de
Pequenas estrelas cadentes.

Poucos minutos apenas.
Minutos que se tornaram
Eternos,
Seu frescor inundou minh'alma,
Meu corpo; flutuei...
Passeei entre as nuvens,
Para novamente
Sentir aquele instante.
Nossas peles em êxtase.

Seu gosto
Ficou tatuado em mim.
Você, nós,
Champanhe
E meu batom carmim.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

DESAPEGO DA ALMA

Desfazendo vínculos existentes,
Vindos talvez de outras dimensões,
Finalmente livre dos grilhões
Presos à alma,
Grito com toda força
Que ainda há em meus pulmões.
Me ouço por todo o vale.
Permaneço inerte, totalmente só.
Após várias batalhas internas
Em busca da paz,
Me sinto aliviada,
Dona da minha voz.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

DOR

É apenas decepção...
Que o tempo se incumbirá de esquecer.
Deixando um pequeno vazio
Em meu coração.

É apenas tristeza...
Que o tempo carregará consigo.
E sempre haverá alguém oferecendo flores
Com leveza e delicadeza.

É apenas amar...
Levará tempo...
Mas ele saberá como essa chuva dissipar.
Restando somente um brilho a menos
Em meu olhar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

REFLEXÕES

Já passei por alguns invernos...
Alguns amenos
Outros nem tanto.
Os verões
Alegres e coloridos
Se fazem presentes ainda
E meu coração agradece diariamente
Poetizando todo esse encanto.
Os outonos...
Através de sua melancolia
Levam para longe
Um pouco do meu sofrer...
E meu coração agradece diariamente
Poetizando todo meu viver.
Ela chegou...
Como sempre
Preenchendo minhas lacunas
Com carinho e maestria.
Às vezes
Penso que sou
Primavera todos os dias.
E meu coração agradece.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

SEU SEMBLANTE

Sozinha
Sinto sua sensibilidade,
Sentimentos sofríveis,
Sensações...
Semblante sofrido,
Seu sorriso sossegado
Seduz, satisfaz,
Suavemente sutil, sagaz...
Sonho seus sonhos saciar.
Somos saudade
Somos serenidade
Somos sacanagem.
Sou seu sol
Sou sua.

Fonte:
Solange Colombara. Meus momentos de hiato. SP: Areia Dourada, 2019.
Livro enviado pela poetisa.

Contos e Lendas do Paraná - 4 (Campo Mourão: A lenda do profeta)


A história que vou lhes contar aconteceu há muito tempo atrás. Guarapuava ainda era um lugarejo, cercado por fazendas em toda a extensão geográfica que vai do rio Piquiri ao Ivaí e Corumbataí. Conta-se que por volta de 1850 o tráfico de escravos negros, embora proibido, era praticado vergonhosamente. Com a emancipação política do Paraná, em 1853, iniciou-se a marcha para o progresso do Estado. Entre os anos de 1856 a 1858, o todo dos índios Kaingang, no vale do Piquiri, foi cruelmente atacado e destruído. A partir dessa data, tropeiros paranaenses começaram as suas passagens pelos campos de Guarapuava e, bem mais tarde, pelo picadão que unia Guarapuava ao Mato Grosso do Sul, sendo Campo Mourão o local de repouso para os peões e as tropas.

Contam os moradores da região de Guarapuava, Pitanga e Campo Mourão, que naquela época prevalecia a lei do mais forte; havia muitas chacinas e emboscadas, pois a ganância era muito grande. Pela região sempre aparecia um senhor idoso, longas barbas brancas, sandálias de couro nos pés, um lenço na cabeça, roupas maltrapilhas, um autêntico andarilho. Homem de poucas palavras, porém de sábias ações, era apenas conhecido como João Maria de Agostinho, “o profeta”. Chamavam-no de São João Maria, o santo profeta que curava pestes, doenças e até domesticava animais ferozes e cobras venenosas.

O incrível é que ele sempre aparecia na hora e no lugar onde estavam precisando.

Nada se sabia dele. Só que realizava milagres. Dizem que passou por um olho d’água do Jordão, em Guarapuava, e que até hoje aquela água tem poder de cura para os que têm fé.

Todo mundo queria encontrar e falar com o tal profeta. A fonte virou um verdadeiro local de romeiros que ficavam de molho nas águas e no próprio barro e afirmavam que eram curados. Por onde o monge passava, falava de Jesus e plantava uma cruz. Ensinava sobre o amor, a fé e a caridade para com o próximo. Também ensinava a utilizar ervas caseiras e dizia que até a água pura curava, se a pessoa tivesse fé em Deus, não nele. Sempre ressaltava isso.

Também passou por Campo Mourão e dizem que aqui havia muitas cobras venenosas. Quando aparecia alguma cobra na propriedade era só pensar no profeta e ele aparecia. Ele ia até o local e conversava com a cobra, ordenando que ela e toda a sua prole sumissem dali. Em seguida a essa ordem, fazia uma oração e nunca mais aparecia cobras naquele local.

Em uma ocasião apareceu uma velha beata que começou a tirar vantagens em nome do profeta. Fazia bolinhas de barro e as vendia como pílulas milagrosas de São João Maria, dizendo que curavam todos os males. Era só engolir com um pouco de água e se livrar dos vermes, febres e outras doenças. Um dia, essa senhora adoeceu gravemente, porém nem médicos, nem as pílulas milagrosas conseguiam curá-la. No leito de morte, gritava:

– Perdoe-me profeta, a minha ganância foi maior que minha fé.

Ao anoitecer, ela faleceu. Dizem que o profeta passou a noite sentado num tosco banquinho, próximo à tarimba onde a morta era velada. Cabeça baixa, pernas cruzadas, sem pronunciar uma só palavra.

Quando o cortejo saiu para o sepultamento, ele gritou:

– O amor, a fé e a caridade não têm preço. Jesus Cristo foi exemplo disso. Deu sua vida por nós. Vão em paz. Quando precisarem, basta invocá-lo, que ele está sempre perto de vocês.

A partir daquele dia, nunca mais ninguém viu, ou ouviu falar sobre o profeta, que era sempre o mesmo, com as mesmas roupas e sandálias.

Fonte:
texto de Edina C. Simionato, in Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná.
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

Estante de Livros (Os Carrascos, de José Fausto Toloy)

José Fausto Toloy, médico e escritor. Possui obras publicadas como: "No Final do Arco-íris", editora Caravelas, 2a edição; "O Livro que Ninguém Lia", Amazon Digital 2015. Publicou artigos no Jornal Látrico, incluindo contos e poesias. 
 
Escreveu, produziu e atuou nas peças teatrais: "Zequinha, o Trombadinha" e "O Poeta e o Mundo das Drogas". Amante da Literatura desde muito jovem, possui um acervo de mais de 3 mil livros e incontáveis leituras ao longo da vida. Pactua admiração e amizade com grandes nomes das letras nacionais, como Loyola, Pellegrini, Lygia e Antônio Torres.

O romance “Os Carrascos”, retrata a realidade brasileira pelo viés da violência pela violência. Desta forma o juiz Pedrozo forma uma confraria de justiceiros da qual fazem parte o religioso, o militar, o político e um banqueiro; debalde tentativas onde o Estado de direito soçobra. De tempos em tempos decidem pelo destino tétrico de monstros genocidas: pelo quarto cavaleiro do apocalipse, o anjo da MORTE! Neste thriller de suspense por vezes o feitiço se volta contra o feiticeiro.

NOTA DO AUTOR

Na interessante aventura de viver, por vezes nos deparamos com o inusitado, o surpreendente, até o bizarro. Numa dessas circunstâncias, quando médico-residente em São Paulo no início dos anos de 1980, na lanchonete defronte ao hospital, deparo-me com um mendigo que pedia esmola, e que de algum    modo chamou-me a atenção. No diálogo, depois de comer o lanche esfomeado, em seguida contou-me como virara aquele "trapo humano": de professor de Português, Literatura e de Inglês, língua que falava fluentemente, bravateou uma estória, que me pareceu mais fantasiosa que real, de que fora tenente numa confraria de justiceiros, que nominava como Death Penalty International, radicalmente contra os direitos humanos. O relato e estórias deste livro, foram inspirados em parte nesta    conversa, cujo título    OS CARRASCOS, ele dizia como "The Hangmen". Desta forma, os personagens são todos ficcionais; inspirados nos fatos supracitados sem nenhum compromisso com a realidade, fruto apenas de recriações artísticas do autor e, ratifico, sem nenhuma relação com acontecimentos ou pessoas reais. Além do mais, radicalismos extremos e genocidas dessa natureza, não coadunam com o pensamento do autor.
José Fausto Toloy

Trecho do Livro (pags. 36, 37)

Nem quero pensar mais nessa maldita que me seduziu e me custou tantos dissabores. Como o mundo dá muitas voltas estava agora ele naquela de justiceiro, tentando limpar o mundo do "trash"- dos bandidos, como se isso fosse possível... lembrou-se não sei porquê do juiz Falcone, aquele da Itália que colocou os grandes e ricos mafiosos na cadeia, mas acabou assassinado barbaramente na explosão de um carro junto com a esposa. Como viver era perigoso, lembra-se também de Faulkner; "entre a dor e o nada, escolho a dor". Se Deus existe, mas, existiria mesmo? "Se não existe então tudo era permitido"do Dostoiévski... a vida não seria tão sórdida e absurda.., do absurdo deveria brotar a esperança? E todos aqueles big bosses? Eliminados pela organização, seria limpar mesmo o lixo. mas, outros seriam colocados no lugar e assim, numa corrente eterna imutável... o homem, o maior predata da Natureza, esse macaco que não deu certo, continuaria cometendo atrocidades, genocídio em nome do quê? Tendo como pano de fundo a religião, filosofias, ideologias?

Uma brisa fresca de fim de tarde entra pela janela do carro, já se afastando da megalópole, mais quinze minutos e chegaria ao destino: aquela reunião bimestral, em que decidiriam a sorte de mais um estorvo que deveria ser eliminado, apagado, sumariamente, extirpado do convívio social como um tumor maligno, Pensando bem, o Dr. Ifigênio não faria falta nenhuma, além do mais, era corno manso. Enfim, talvez o Maquiavel tinha razão e o fim pode justificar os meios.

O Livro está disponível à venda na Amazon.

Fonte:
J. Fausto Toloy. Os Carrascos. 2018.
Livro enviado pelo autor.