sábado, 5 de fevereiro de 2022

Adega de Versos 69: Álvaro Posselt

 

A. A. de Assis (“Amnestia”)

Vou falar de novo do professor Polyclínio. Ele era desses de não dizer as coisas sem minuciosa explicação. Cada palavra no seu devido lugar e com o significado exato. Um vizinho dele chegou meio avexado, falando dos entreveros que mantinha com a mulher: “Ela é dura na queda, seu professor. Tá certo que fiz minhas travessuras na vida, mas isso foi já faz muito tempo. Volta e meia ela me pega no pé e sai com os desaforos. Tem hora que chega a me dar gana de desmaridar. Só à custa de muita reza vale-me o santo de me reassossegar”.

O bom mestre pediu-lhe que mandasse Dona Zina falar com ele. Daria uns conselhos de velho experimentado, habituado a lidar com as mais complicadas filosofias, psicologias, etceterologias. Ela decerto haveria de acabar com aquelas rabugências.

A mulher foi, sentou-se, aceitou um chazinho. Provocada pelo paternal Polyclínio, narrou as artes do marido, reconhecendo, entretanto, que “o safado nos últimos tempos andava mais caseiro e quieto”.

– Pois olhe, querida vizinha e amiga, eu lhe garanto que o Lico se emendou de vez e de verdade. Então acho que está na hora de dar um fim nessas brigas tolas. Proponho que a senhora, generosa como é, além de perdoá-lo, lhe ofereça uma anistia.

– Merecer ele não merece, mas já perdoei sim senhor.

– Perdão é pouco. Tem que ser anistia mesmo. Perdão é coisa que muita gente diz que dá, mas não dá. Fica com a mágoa encalhada no coração. Basta um mínimo furrubundum pra vir tudo de novo à goela.

– Se explique mais melhor, faz favor.

– Explico sim. “Anistia”, no grego, é “amnestia” (de “mnes”, que significa “memória”). Juntando o prefixo “a”, que indica “negação”, temos “a-mnestia”, isto é, algo não lembrado, varrido da memória. Anistia é o mesmo que esquecimento total.

Dona Zina ficou mais perdida do que antes. Vá lá saber que trem era esse que o velho sábio estava tentando lhe enfiar no ouvido...

– Deixemos pra lá os gregos, disse ele. Quero só que a senhora esqueça todas as descabeçadas que o seu marido andou aprontando no bem antes do hoje. Quem sabe a senhora, mesmo sendo uma abençoada pessoa, também tenha alguma parte na culpa. Mas agora que os dois estão mais maduros tratem de apagar as más lembranças e comecem de novo a vida.

– O senhor professor acha que dá?

– Acho sim. “Amnestia”... anistia... esquecimento completo... Perdão é uma palavra bonita, mas anistia tem bem mais força: enxota da memória as causas da mágoa. Se alguém fez algo errado, esqueça de vez. E bola pra frente, cabeça erguida, coração limpinho. Entende?

– Entender não entendo muito não, mas entendo sim.

– Vá em paz. E dê um abração no meu amigo Lico.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 20-1-2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Nadir D’Onofrio (Poemas Escolhidos) IV

BRUMAS E VARAS DE PESCA

 
Coberto por brumas
Corre o rio caudaloso
Águas, outrora serenas
Hoje, se mostram agitadas
 
Passam por corredeiras
Descem em cachoeiras
Cumpriram enfim o destino
Ao desaguar no oceano
 
Que acolherá em seu seio
Abarcando o estuário como
A mãe, aconchega o rebento
Assim, serão unos!
 
Duas varas de pesca
Arrastadas da margem...
Seguem junto, boiando
Frutos do esquecimento!
 
De um pescador desatento...
Objeto de esporte, a água levou
Só o samburá ficou...
Assim, navega o presente!
 
Levado pelo filho pródigo... rio
Que a casa dos pais retornará... o mar...
Qual  o destino das varinhas?
Isso... Netuno... decidirá...
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É PRIMAVERA
 
Cai a chuva indolente
entristecendo o dia
Que deveria estar radiante
até há pouco o sol ardia...
 
Mas as nuvens choram
lágrimas em pranto sentido
Pelo rosto de um deus destilam
o olhar da mulher, o deixa aturdido
 
Ante aflitiva confidência
e o coração da musa destroçado
Seus sonhos de amor esfacelaram...
 
Desapareceu seu homem amado!
apagou-se qual estrela cadente
Hoje as cores do arco íris desbotaram...
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FLORES

Sopra uma brisa refrescante na ilha
Farfalhado as folhas dos coqueirais
Causando inveja às açucenas
Que ladeiam o cais...
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RENDEIRA


Dedos ágeis da rendeira
Tecem a renda de bilro
Cruzam linhas e cores
Nos alfinetes o destino...
Dedos calejados
Labuta cansativa
Deixa vagar pensamentos
Mocidade e seus momentos
À sombra da choupana

Tem o mar como cenário!

Olhar triste e perdido
Desesperança surgindo...
Onde estará seu amor?
O Raimundo pescador
Exímio jangadeiro
A noite passou
O dia clareou
A tarde findou
E ele não regressou…
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ROMANTISMO     
 
Trago no peito a dor insuportável
lancinante, sufocante da doença
Instalada e classificada de incurável
o romantismo, arraigado, é esperança...
 
Do encontro almejado e, sempre adiável
diante dos obstáculos surge mudança
Resta-me exercitar a persistência, inabalável
atributo que extermina a desesperança
 
Finda e reinicia os anos, em longa espera
A visualizar ao longe teu semblante
Quem sabe são, lembranças de outra era!
 
Assim, nesta febre delirante
de uma paixão, não, efêmera
Percebas meu amor, abrasante!
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(SÓ) ENTRE O BREU
 
Que os ais dos meus anseios
Misturem-se, ao vento a bramir
Dissipem meus devaneios
E a angustia, que tento oprimir
 
Sem perspectivas e galanteios
A dor da saudade vou suprimir
Apago assim, os candeeiros
Imaginando poder dormir...
 
(Só), entre o breu, trovoadas
Vejo o raio partindo um galho
No rosto, lágrimas desvairadas
 
Diante do portentoso carvalho
A chuva a cair como chibatadas
E um tapete de folhas, sobre o cascalho…

Aparecido Raimundo de Souza (Aos milagres de certas graças)

AS DUAS AMIGAS, Cimara e Cineide, caminham sem pressa alguma para o ponto de ônibus. São quase onze horas. O sol está escaldante. Apesar disso, as beldades proseiam e riem animadamente, enquanto cruzam as ruas na tentativa de galgarem o ponto da condução, na praça da igreja matriz, aquela hora, apinhada de gente.

Cimara: — Mudando de pau pra cavaco, acho que não te falei. A minha mãe perdeu o celular e não sabe onde. Na volta, você me ajuda a procurar?

Cineide: — Fácil, amiga. Nem precisa se dar ao luxo. Ligue para ele...

Cimara: — Você acredita que não sei o número da minha velha?

Cineide: — Que número que você não sabe?

Cimara: — Do celular da minha mãe, ora bolas. De quem mais? Acorda, colega...

Cineide: — Eu que não sou nada da sua mãe tenho o número dela. Deixa ver aqui na agenda do meu aparelho...

Cimara: — Achou?

Cineide: — Anota ai no seu: nove, nove, nove, cinco, oito zero, zero, dois patinhos na lagoa, bolinha ó. Gravou?

Cimara: — Sim, amiga: nove, nove, nove, cinco, nove... oito zero, dois patinhos na lagoa, bolinha ó. Confere?

Cineide: — Liga logo e deixa de onda...

Cimara: — Estou fazendo isso, amiga. Droga! Ninguém atende. A bateria deve ter descarregado...

Cineide: — Vamos fazer o seguinte, Cimara?

Cimara: — Diga, amiga...

Cineide: — Que tal deixarmos os nossos salões de beleza para amanhã? Hoje, segunda-feira, deve estar assim de gente. Olhe como andam os ônibus. Aproveitando que dona Glória sai cedo para o trabalho, sugiro voltarmos agora à casa dela, já que é perto da sua e da minha e revirarmos tudo de pernas para o ar. Assim que toparmos com ele, se estiver por lá, logicamente, botamos para carregar e aí a gente liga em seguida dos nossos aparelhos até descobrirmos, de uma vez por todas, onde ele se encontra...

Cimara: — Bem pensado, Cineide. Por que não atinei com isso antes?

Cineide: — Por que você não é ninguém se eu não estiver por perto para lembrar certas coisinhas simples. Resumindo, Cimara: eu sou o pensamento vivo que aflora e você a cabeça objetiva que coloca o que mentalizo em movimento.

Cimara: — Você tem toda razão, minha linda. Sem você eu não seria nada.

Cineide: — E eu sem você me pilho como um zero à esquerda, apesar de estarmos ambas com quase trinta anos nas costas. Na volta da sua mãe, passamos em minha casa e almoçamos. Gostou da ideia?

Chegam no quintal de dona Glória. Um outro problema surge em obstáculo: Cimara não vislumbra como ganhar o interior da enorme moradia. Lembra, entrementes, que a sua genitora deixa as chaves dependuradas num local apropriado onde, aliás, repousam todas as demais pecinhas pertencentes aos outros cômodos. Sua mãe carrega, na bolsa, somente a tetra de três voltas de acesso à sala.

Cimara: — Reze, Cineide, para que a mãe não tenha feito como eu faço no meu quadrado. Por medo encadeio, com escoras, todas as janelas. A da despensa ela sempre deixa encostada...

Volteiam em torno da construção. De posse de um cabo de vassoura forçam o tal envidraçado do depósito. Realmente, não havia sido imobilizado.

Cineide: — É meio alto. Consegue subir e pular?

Cimara: — Com a sua ajuda... me disponho a qualquer travessura. Como estou de vestido, e não temos suporte de apoio. Por favor, quando me segurar, não espie a minha calcinha...

Vai daqui, tenta dali, agarra acolá, a jovem alcança seu intento. Sem mais delongas, passa a mão nas chaves da cozinha e, de reforço, a que descamba na varanda. Engrena as veredas de regresso.

Uma trabalheira danada para “despular” de onde começou a aventura. Colocar a brecha invadida na posição normal e abandonar o conforto do peitoril de mármore no qual se agarrara, atrelada ao afoito acelerado da descida. Ao se soltar, um movimento abrupto faz com que ambas se desequilibrem e beijem o chão rolando cada uma para um canto. Rostos sujos de terra, mãos e roupas igualmente emporcalhadas, Cimara exibe num sorriso contagioso o resultado edificante do que se propusera em sua missão:

— Pronto, amiga. Agora podemos escolher. Você prefere vir comigo pelo conforto da sala ou começamos a escalada usando os descaminhos tortuosos dos fundos?

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 29: Rodolpho Abbud

 

Nilto Maciel (Menino Insone)

Vontade de falar com a mãe: não conseguia dormir. As sombras das redes nas paredes, nas portas, no guarda-roupa, no chão escondiam almas. A luz da lamparina bruxuleava. Súbito uma novidade: o irmão menor bota as pernas fora da rede, senta-se, levanta-se e caminha em direção a uma das portas.

Para onde irá?

Abre a porta e some no corredor.

O menino quer falar com a mãe. Ela dorme e poderá se assustar. Melhor ir atrás do outro.

E se ele também estiver dormindo?

Muitas vezes lhe disseram: não se deve acordar quem anda durante o sono. Pode morrer. O menino permanece de olhos bem abertos, atento à luz da lamparina, às sombras, aos pequenos ruídos.

Por onde andará o irmão? Terá ido ao banheiro?

Possivelmente não, pois não abriu a porta para o quintal.

Um ratinho corre pelo canto da parede. O pai ronca no quarto ao lado. Um cachorro late longe. Outros dão resposta.

Será nos quintais ou no meio das ruas? O dia está para chegar ou falta muito tempo para clarear? Nenhum galo cantou ainda.

E o irmão? Estará dormindo no chão do corredor, da cozinha, junto às baratas?

O menino fecha os olhos. O rato deve ter sumido num buraco. Será profundo, raso, estreito, largo? Outros ratos habitarão aquele mundo de trevas. Lá não deve haver lamparinas. Quem as acenderia? Quem compraria querosene? E o perigo de incêndio! Não, não há perigo. Tudo é calmo, tudo é calmaria. Bichinhos são lindos. Coelhos correm pelo chão gramado da praça. Todos muito brancos, olhinhos arregalados, focinhos trêmulos. Queremos comer cenoura, seu menino. Onde vou arranjar cenouras, meus amigos? Então vamos brincar de correr.

Não havia mais ninguém na praça, um ventinho soprava as folhas das árvores, os cabelos do menino. Chovia fininho. Um arco-íris enorme cobria a praça, a cidade, a serra, o mundo. Tudo colorido. O sol se escondia atrás de um monte alto. Passarinhos voavam e piavam no céu. Outros meninos corriam e brincavam na praça. O menino abriu os olhos. A luz da lamparina parecia se apagar. Silêncio absoluto no quarto. O pai não roncava mais. Na rede ao lado o outro menino dormia. Pareceu-lhe ouvir um galo cantar.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

José Lucas de Barros (Caderno Poético) IX, motes e glosas


Não tenho merecimento
Pra morrer como Jesus.


O divino Nazareno,
Por falsas acusações,
Morreu entre dois ladrões,
Mas altaneiro e sereno;
Eu, que sou fraco e pequeno,
Diante da grande luz,
Só devo morrer na cruz
Do espinhaço de um jumento...
Não tenho merecimento
Pra morrer como Jesus.

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"Nosso velho burocrata
Diz não ter substituto."


O livro cheira a barata..
O balcão suja os clientes;
Cochila detrás das lentes
Nosso velho burocrata.
Falta o termo, esquece a data,
Mastiga mais um minuto...
Pra recolher o tributo,
O freguês fica maluco,
Mas, mesmo assim, o caduco
Diz não ter substituto.
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Quando eu morrer, vão dizer
Que fui poeta e mais nada.


Não tive roupas modernas;
A vida não me deu prêmios,
Porque fui um dos boêmios
Da perdição das tavernas;
Inda tenho boas pernas
Para os sopapos da estrada,
Mas, logo ao fim da jornada,
O mundo vai me esquecer...
Quando eu morrer, vão dizer
Que fui poeta e mais nada.


Não vivo só de cantar
O que a poesia me aponta,
Trabalho para dar conta
Dos encargos de meu lar;
não vivo em mesa de bar,
bebo na minha morada,
mas, os de língua malvada,
contestando meu viver,
quando eu morrer, vão dizer
que fui poeta e mais nada!

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Só tenho felicidade
Quando faço alguém feliz.


Eu não sei comer sozinho
O pão que a vida me dá;
Quero que um pedaço vá
Para a mesa do vizinho;
Quando à margem do caminho
Encontro uma flor de lis,
Faço como sempre fiz:
Dou a alguém por amizade...
Só tenho felicidade
Quando faço alguém feliz.


Minha alegria se some
E minha alma cambaleia,
Se estou de barriga cheia,
Vendo crianças com fome;
Peço até que Deus me tome
Aquilo que eu sempre quis,
Se eu me mostrar na matriz
esquecendo a caridade...
Só tenho felicidade
Quando faço alguém feliz.

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Vindo ao mundo, peguei o trem da vida,
Mas não sei o tamanho da viagem.


– Neste mundo, ninguém tem a medida
Do caminho do berço para a morte,
E eu, que tinha de achar algum transporte,
Vindo ao mundo, peguei o trem da vida;
Anotei o momento da partida
E enfrentei a jornada com coragem;
Deus me deu o bilhete da passagem
E mandou-me seguir estrada afora,
Inda estou caminhando até agora,
Mas não sei o tamanho da viagem.

Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. Natal/RN: CJA Ed., 2014
Livro enviado por Rosileide Barros.

Lucy Hay (Dicas de Escrita) Como escrever o esboço de um Enredo = Parte 2

USANDO O MÉTODO DO FLOCO DE NEVE

1. Resuma o enredo em uma frase.

O método do floco de neve é muito comum na estruturação de romances, mas também serve para contos e outros textos curtos. Nele, você vai poder explorar o enredo em incrementos e estruturar as cenas em uma planilha. Para começar, resuma toda a história em uma frase que a explique bem.

Escreva um resumo breve e direto, sem incluir descrições específicas demais ou mesmo nomes próprios.

Não passe de 15 palavras e concentre-se no grande tema do enredo.

Por exemplo: o livro Garota Exemplar, da norte-americana Gillian Flynn, poderia ser resumido como "Um casamento aparentemente perfeito é arruinado quando a esposa desaparece".

2. Resuma o enredo em um parágrafo.

Depois de resumir a história em uma frase, é hora de você expandir o conceito a um parágrafo inteiro que descreva a ambientação, os principais eventos, o clímax e o final. Você pode usar a estrutura de "três desastres e um final", na qual três coisas ruins acontecem na história antes de ela chegar ao clímax. O objetivo é pensar em eventos cada vez piores, mas que sejam resolvidos pelo protagonista no fim das contas.

Escreva um parágrafo com cinco frases. Uma delas deve descrever a ambientação; depois, uma deve falar de cada evento desastroso (com um total de três); em seguida, a última frase deve descrever o final.

Veja um exemplo de parágrafo:

"Para todo mundo que vê de longe, Nick e Amy parecem ter um casamento perfeito. No entanto, Amy desaparece sob circunstâncias misteriosas em uma noite e surge a hipótese de que havia uma trama secreta contra ela. Nick é acusado por assassinar a esposa e se vê obrigado a se defender perante um júri. Depois, ele descobre que a esposa fraudou a própria morte e está viva, mas determinada a colocá-lo atrás das grades. Nick a confronta e eles discutem, mas no fim das contas Amy o convence a continuar casado com ela com uma ameaça".

3. Crie sinopses para os personagens.

Depois de escrever o resumo, é hora de se dedicar aos personagens. Crie uma história para cada um e inclua características importantes, como nome, motivação, objetivos, conflitos e epifanias. Dedique um parágrafo a cada um desses elementos.

As sinopses dos personagens não precisam ser perfeitas. Você provavelmente vai fazer algumas alterações quando começar a escrever cenas do romance final. No entanto, elas dão uma boa ideia de quem esses personagens são e de que papel eles exercem no enredo.

Veja um exemplo de sinopse de personagem:

"Nick tem 35 anos e trabalha como repórter, mas é demitido após dez anos de empresa. Ele está casado com Amy há também dez anos e a vê como 'menina de ouro', a esposa e a parceira ideal. No entanto, o desemprego começa a afetar a sua autoconfiança, principalmente quando se lembra de que Amy vem de uma família rica e herdou uma fortuna há pouco tempo. Ele acha que tem que ser o provedor do casamento e se sente ameaçado pela independência financeira e pelo sucesso profissional da esposa. Quando Amy desaparece, ele vive um conflito entre tentar encontrá-la e retomar sua infelicidade conjugal. Com o tempo, Nick acaba percebendo que a sua esposa tramou para acusá-lo do desaparecimento dela".

4. Crie uma planilha com cenas.

Depois de escrever o resumo em um parágrafo e as sinopses de cada personagem principal, é hora de você juntar os dois e transformar esses resumos em cenas. Essa lista dá uma noção melhor do enredo da história como um todo.

Use um programa de planilha, como o Excel, para organizar as cenas na ordem em que elas aparecem. Você pode ter algo entre 50 e 100 cenas, dependendo do tamanho da história. Faça duas colunas, uma para os personagens cujos pontos de vista o leitor acompanha e outra para explicar brevemente o que acontece. Em seguida, comece a listar também os eventos um a um usando o resumo como guia.

Por exemplo:

"Nick descobre que Amy desapareceu. Personagem central: Nick. O que acontece: Nick chega em casa depois de passar a noite trabalhando como bartender e nota que a porta de entrada foi arrombada. Ele também encontra uma poça de sangue no corredor e sinais de combate físico na sala, com poltronas reviradas e marcas de unhas nas paredes. Nick procura na casa inteira, mas não encontra Amy".


Continue fazendo isso com cada cena que está naquele resumo de um parágrafo. Quando terminar, você vai ter a estrutura geral do enredo e a lista de cenas que o integram, o que facilita bastante a sua vida na hora de montar o texto final.

Fonte:
Traduzido de https://www.wikihow.com/Write-an-Outline-for-a-Story

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 20

 

Franz Kafka (O Novo Advogado)

Temos um novo advogado, o dr. Bucéfalo. Há muito pouco em seu aspecto que nos lembre ter sido ele certa vez o cavalo de batalha de Alexandre da Macedônia.

Claro, se você conhece sua história, você é pessoa bem informada. No entanto, mesmo um simples meirinho, a quem eu vi outro dia nas escadas de entrada do Palácio da Justiça, um homem com a consideração profissional de um pequeno apostador das corridas, lançava seus olhos estupefatos para o advogado na medida em que ele subia os degraus de mármore levantando bem as pernas e fazendo ressoar suas pisadas.

De um modo geral, a Ordem dos Advogados aprovou a admissão de Bucéfalo. Com admirável compreensão, diziam que, sendo a moderna sociedade o que é, Bucéfalo está em situação difícil, e portanto, considerando também sua importância na história do mundo, ele merecia, pelo menos, uma recepção amistosa. Atualmente - não se pode negar - não existe mais Alexandre o Grande. Há um grande número de homens que sabe matar pessoas; a destreza de atingir com a lança um amigo do outro lado da mesa de um banquete é coisa que não falta; e para muitos a Macedônia é demasiadamente estreita, tanto que estas pessoas amaldiçoam Felipe, o pai - mas ninguém, ninguém de fato conhece o caminho para as Índias. Mesmo na época de Alexandre as portas da Índia estavam fora de alcance, embora a espada do Rei apontasse o caminho para eles.

Hoje as portas foram removidas para bem mais longe e para bem mais alto; ninguém mostra o caminho; muita gente usa espadas mas apenas para brandi-las, e o olhar que tenta segui-los se confunde.

Assim, talvez seja melhor fazer o que Bucéfalo fez e mergulhar nos livros de direito. À luz suave do candeeiro, com os flancos livres do incômodo das esporas de qualquer cavaleiro, liberto e longe do clamor das batalhas, lê e vira as páginas dos nossos alfarrábios.

Fonte:
Franz Kafka. Um médico rural. Publicado em 1919.

Odenir Follador (Crestomatia Trovadoresca)

A foto ou fotografia
revela muita emoção,
deixa a marca desse dia
 impressa no coração!

A imagem que eu possuía
e guardei com tanto amor...
A sua fotografia,
aos poucos, ficou sem cor!

A mulher é como a flor,
necessita de carinho...
E é somente com amor,
que ganhamos um beijinho!

Arte é a demonstração
de criar o mundo em verso;
é para o escritor a visão
subjetiva do universo!

A trova é fácil, quer ver?
Quatro versos bem rimados,
sete sílabas conter,
com assuntos bem formados!

Chora junto àquela fonte
a bela moça donzela...
Raios de sol do horizonte
brilham nas lágrimas dela.
5. Lugar – I Concurso de Trovas “Singrando Horizontes”, Estadual (PR), 2019.

Deus criou o Paraíso,
o Céu e todo o Universo...
Mas, o homem perdeu o juízo
ao criar um mundo inverso!

É comum em residência
ter a proteção de um cão;
por vezes sem assistência,
de teto e alimentação!
5. Lugar – I Concurso de Trovas "Memorial Luiz Otávio" da Delegacia de Arapongas/PR, Estadual (PR), 2016.

Eu já não sei o que faço
nas linhas do meu caderno,
cada palavra que traço
lembra nosso amor eterno.

Feliz dias dos avós!
E de Sant’Ana também!
Que derrame sobre vós
graças e saúde... Amém!

Lua é a inspiração
aos casais enamorados;
neste clima de emoção
aos beijos, apaixonados...

Mãe... Oh! Palavra sublime
por três letras é formada;
e tão grande amor se exprime
nesta palavra encantada!

Nas festas juninas têm:
pipoca, doce e quentão;
dança caipira e também:
fogos, fogueira e pinhão.

Nas horas que não consigo
e não sei mais o que faço;
vem resolver um amigo
com a força de um abraço!

Neste incrível universo    
do mundo da poesia;
sendo aprendiz, tento imerso
nos meus versos, noite e dia!

Neste mágico momento
que desce a temperatura;
em flocos e muito lento
a neve queda, alva e pura!

Netos! Um encantamento...
Alegria que traduz
recordações  no momento,
de uma paz e muita luz!

Nosso Santo protetor...
Salve São Francisco... Amém!
Patrono do trovador,
proteja a fauna também!

O dia do trovador
é pra sempre ser lembrado;
pois a trova tem valor
de brilhante lapidado!

Onde reside a humildade,
sempre ajudo, mas confesso:
não quero ter a verdade,
muito menos o sucesso.

Plantando haverá colheita,
nos diz um velho ditado;
só não colhe quem rejeita,
um solo bem preparado.

Quem encontrar um amigo
trate com muito cuidado;
preserve sempre consigo
esse tesouro encontrado.

Quisera ninguém mais visse!
Nem ódio, guerra ou maldade,
e todo mundo se unisse:
Em raça, cor e amizade.

Saudemos a primavera,
estação linda das flores;
oh! Se eu pudesse... Quem dera!
Cantar-te em versos e cores.

Ter pureza natural
é ser correto, é atitude!
Ser verdadeiro, real,
é legítima virtude!

Toda ação final se alcança
com a equipe em união;
onde existe liderança,
há também satisfação!
7. Lugar – II Concurso de Trovas "Memorial Luiz Otávio", da UBT Delegacia de Arapongas/PR – Estadual (PR), 2018.

Todo álcool é semente
do usuário de bebida;
tornando-o dependente,
com risco da própria vida.

Todo professor ensina
com muita dedicação...
Escreve, fala, examina,
e o aluno aprende a lição!

Todo texto literário
lapidado pelo autor,
tem como destinatário
os olhos do seu leitor.

Uma linda foto antiga    
traz boas recordações,
saudades que nos instiga
a reviver emoções!

Um momento singular
de alegria e de emoção...
É para sempre guardar
no fundo do coração!
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Odenir Follador, nasceu em 31 de maio de 1948, em Taquaruçu, Distrito de Palmeira-PR, faleceu em Ponta Grossa/PR, onde se radicou, em 23 de novembro de 2021.

Formado como Técnico de Contabilidade em 1975, Licenciado em Ciências em 1979, pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e Licenciado em Letras – Português/Inglês em 2017, pela UniCesumar de Maringá-PR. Pós-graduação “Lato Sensu” em Neuroaprendizagem, pela UniCesumar em 2019.

Atuou como Militar no 13º Batalhão de Infantaria Blindado de 1967 a 1977, e como Economiário na Caixa Econômica Federal, em Castro e Ponta Grossa, nas funções de Escriturário, Caixa Executivo, Gerente de Núcleo e Supervisor, até sua aposentadoria.

Atuou por algum tempo como professor de Matemática, e como professor de Ciências. Teve experiência por algum tempo com professor de música.

Acadêmico de diversas academias, como ACLAB – Academia de Ciências Letras e Artes Belforroxense, Rio de Janeiro-RJ (correspondente); Academia de Letras Brasil/Suíça (correspondente); Academia de Letras dos Campos Gerais, Ponta Grossa-PR (efetivo); Academia de Letras de Teófilo Otoni – MG (correspondente); Academia Ponta-grossense de Letras e Artes, Ponta Grossa-PR (efetivo); Academia de Artes de Cabo Frio -RJ; Conselho Internacional dos Acadêmicos de Ciências, Letras e Artes, Rio de Janeiro –RJ (correspondente); Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes, Niterói-RJ (correspondente); Movimento Nacional Elos Literários, Salvador – BA (efetivo); Ordem dos Benfeitores Culturais da Humanidade, Rio de Janeiro-RJ (correspondente); Organização Mundial dos Defensores dos Direitos Humanos (efetivo).

Figurante do filme Cafundó em Ponta Grossa em 1999, lançado no Brasil em de 2005.

Premiado em concursos de trovas, poesias e contos no Brasil e exterior.

Em 2015, a Câmara Municipal de Ponta Grossa lhe conferiu o Título de Cidadão Honorário de Ponta Grossa, pelos relevantes serviços prestados á Comunidade e ao Município.

Em 2016, O Conselho Internacional dos Acadêmicos de Ciências, Letras e Artes do Rio de Janeiro, lhe confere a Medalha no Grau Oficial “Ordem do Mérito Conìnter Artes”.

Em 2016, o Conselho Internacional dos Acadêmicos de Ciências, Letras e Artes & o Instituto Comnène Palaiologos de Educação e Cultura, lhe concede a Medalha e outorga a Comenda da Paz Nelson Mandela, com direito ao uso do Título Honorífico de Comendador, em reconhecimento de Suas contribuições de destaque nas diversas áreas de trabalho, bem como os Seus Atos que contribuíram através de Serviços Prestados à Humanidade, através da Influência Intelectual, Científica e Artística.

Livros publicados:
Memórias de infância e outros relatos (Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2012) e Associação dos Militares da Reserva–ASMIRE (Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2015).


Fonte:
Trovas enviadas pelo trovador.

Isaac Asimov (Versos na luz)

A última pessoa deste mundo que alguém julgaria um criminoso era a sra. Avis Lardner. Viúva do grande mártir da Astronáutica, era filantropa, colecionadora de arte, uma extraordinária anfitriã e, todos concordavam, um gênio artístico. Acima de tudo, era o mais gentil e bondoso ser humano que se podia imaginar.

O marido, William J. Lardner, morreu, como todos sabemos, devido aos efeitos da radiação da luz solar, após ter deliberadamente permanecido no espaço, a fim de que uma espaçonave de passageiros pudesse levar seu veículo espacial em segurança à Estação Espacial n°5.

Por isso a sra. Lardner havia recebido uma generosa pensão, a qual investira bem e com muita sabedoria. Ao fim da meia-idade, estava rica.

Sua casa era uma espécie de exposição permanente, um verdadeiro museu, contendo uma coleção de lindas joias, pequena, porém de extremo bom gosto. De uma dúzia de diferentes culturas havia conseguido relíquias de quase toda peça de artesanato concebível que pudessem ser engastadas de joias para servir à aristocracia daquela mesma cultura. Possuía um dos primeiros relógios de pulso, adornado de pedras preciosas, fabricado na América, uma adaga incrustada de pedras preciosas, procedente do Camboja, um par de óculos, decorado com joias, vindo da Itália, e assim por diante, interminavelmente.

Tudo estava aberto ao público. As peças de artesanato não estavam no seguro, e não havia nenhuma providência comum no sentido de garanti-las. Não havia a necessidade de nada convencional, porquanto a sra. Lardner mantinha um corpo de auxiliares, constituído de robôs-servos, a cada um dos quais podia se confiar a guarda de cada um dos objetos, tendo eles imperturbável concentração, irrepreensível honestidade e irrevogável eficiência.

Todos sabiam da existência dos robôs e não há registro de ter algum dia ocorrido alguma tentativa de furto.

E havia também, é claro, sua escultura-luz.

Como a sra. Lardner descobriu seu próprio gênio para a arte, nenhum convidado de suas pródigas reuniões conseguia adivinhar. Contudo, em cada ocasião, quando a sra. Lardner abria a casa para os convidados, uma nova sinfonia de luz percorria os aposentos de um lado ao outro; curvas e sólidos tridimensionais, numa mescla de cores, algumas puras, outras difusas, em surpreendentes efeitos cristalinos que mergulhavam no assombro cada convidado, e que se ajustavam por si mesmos, de forma a embelezar os cabelos macios e azulados e o rosto de contornos pouco definidos da sra. Lardner.

Era por causa da escultura-luz, mais do que por qualquer outra coisa, que os convidados apareciam. Nunca era a mesma duas vezes, e nunca deixava de explorar novos enfoques da arte.

Muitas pessoas que podiam comprar consolo-luz preparavam esculturas-luz por diversão, mas ninguém chegava nem de longe a igualar a perícia da sra. Lardner. Nem mesmo aqueles que se consideravam artistas profissionais.

Ela mesma era encantadoramente modesta a respeito disso – Não, não – dizia ela, quando alguém destilava lirismo. – Eu não a denominaria “poesia na luz”. Isto é ser bondosa demais. No máximo, eu diria que se trata de meros “versos na luz” – e todos sorriam da sutil tirada de espírito.

Embora fosse solicitada frequentemente a fazê-lo, jamais criava “escultura-luz” em outras ocasiões, salvo em suas próprias festas.

– Seria comercialização. – costumava dizer.

Contudo, não objetava à preparação de elaborados hologramas de suas esculturas, de forma que se tornassem permanentes e fossem reproduzidos em todos os museus do mundo. Tampouco nunca cobrou nada pelo uso que pudesse ser feito de suas “esculturas-luz”.

– Eu não teria coragem de cobrar um centavo. – dizia ela, abrindo bem os braços. – É de graça para todos. Afinal de contas, eu mesma a uso durante pouco tempo.

Era verdade, ela nunca utilizava duas vezes a mesma “escultura-luz”.

Ela própria cooperava quando eram feitos os hologramas. Observando benignamente cada etapa, estava sempre pronta a mandar que os robôs ajudassem.

– Por favor, Courtney, quer ter a bondade de ajustar a escadinha?

Era o seu estilo. Sempre se dirigia aos robôs com a mais formal das cortesias.

Certa ocasião, há muitos anos, quase fora repreendida por um funcionário federal do “Bureau of Robots and Mechanical Men”:

– Não pode fazer isto. – disse ele severamente. – Interfere na eficiência deles. São construídos para cumprir ordens e quanto mais claramente lhes der ordens, mais eficientes as cumprirão. Quando pede com elaborada polidez, compreendem com dificuldade que está sendo dada uma ordem. Reagem mais lentamente.

A sra. Lardner ergueu a aristocrática cabeça:

– Não exijo rapidez e eficiência. – disse ela. – Peço boa vontade. Meus robôs me amam.

O funcionário poderia ter explicado que robôs não podem amar, mas murchou sob o olhar ofendido, ainda que meigo, dela.

Era fato conhecido de todos que a sra. Lardner jamais remeteu um robô à fábrica para ajustamentos. Seus cérebros positrônicos eram de enorme complexidade, e quando saem da fábrica, um em dez não está perfeitamente regulado. Às vezes o desajuste não se revela durante um período de tempo, mas sempre que um engano se manifesta, a “U. S. Robots and Mechanical Men Corporation” efetua a correção gratuitamente.

A sra. Lardner sacudiu a cabeça:

– A partir do momento em que o robô está em minha casa, – disse – e cumpre com seus deveres, as excentricidades secundárias devem ser toleradas. Não permitirei que seja maltratado.

Era a pior coisa possível tentar explicar que um robô era apenas uma máquina. Ela dizia inflexivamente:

– Nada que seja tão inteligente como um robô pode ser apenas uma máquina. Trato-os como gente.

E pronto!

Ela conservava até mesmo Max, embora fosse quase inútil. Mal se podia compreender o que se esperava dele. Contudo, a sra. Lardner insistia:

– Absolutamente, – dizia firmemente – ele é capaz de pegar e guardar chapéus e casacos perfeitamente. Segura objetos para mim. Sabe fazer muitas coisas.

– Mas por que não manda regulá-lo? – perguntou um amigo, certa ocasião.

– Oh, eu não teria coragem. Ele é ele mesmo. É muito amável, sabe? Afinal de contas, um cérebro positrônico é tão complexo que ninguém consegue saber onde está enguiçado. Se fosse ajustado para a perfeita normalidade, não haveria meios de recuperá-lo para a amabilidade que possui agora. E eu não quero desfazer-me dele.

– Mas, se ele está mal regulado, – disse o amigo, olhando nervosamente para a sra. Lardner – não poderá ser perigoso?

– Nunca! – a sra. Lardner deu uma risada. – Tenho-o há anos. É completamente inofensivo e é um amor.

Na verdade, ele tinha a mesma aparência de todos os outros robôs: liso, metálico, vagamente humano, mas inexpressivo.

Contudo, para a bondosa sra. Lardner, todos eram gente, pessoas, todos meigos, todos adoráveis. Ela era assim.

Como poderia cometer um crime?

A última pessoa que alguém esperaria que fosse assassinado seria John Semper Travis. Introvertido e de modos suaves, estava no mundo, mas não pertencia a ele. Possuía aquele peculiar talento para a Matemática que lhe tornava possível resolver mentalmente o complexo entrelaçamento de uma miríade de circuitos positrônicos cerebrais da mente de um robô.

Era o engenheiro chefe da “U. S. Robots and Mechanical Men Corporation”.

Mas era também um entusiasmado amador em “escultura-luz”. Havia escrito um livro sobre a matéria, no qual tentava mostrar que o tipo de Matemática que utilizava para resolver problemas de circuitos de cérebros positrônicos poderia ser modificado para servir de guia na produção da estética da “escultura-luz”.

No entanto, sua tentativa de colocar a teoria em prática foi um fracasso desanimador. As esculturas que produziu, segundo seus princípios matemáticos, eram pesadas, mecânicas e sem interesse.

Era a única razão de infelicidade em sua vida tranquila, introvertida e segura, no entanto era razão suficiente para sentir-se profundamente infeliz. Ele sabia que suas teorias eram corretas, se bem que não conseguisse pô-las em ação. Se não conseguisse produzir uma boa peça de “escultura-luz”…

Naturalmente, estava a par da “escultura-luz” da sra. Lardner. Ela era universalmente aplaudida como um gênio, muito embora Travis soubesse que era incapaz de compreender mesmo o mais simples aspecto da matemática dos robôs. Havia trocado correspondência com ela, mas ela recusava-se obstinadamente a explicar seus métodos, levando-o a perguntar-se se ela possuía mesmo algum. Não seria mera intuição? – mas mesmo a intuição pode ser reduzida à matemática. Finalmente, ele conseguiu receber um convite para uma das festas. Precisava avistar-se com ela a todo custo.

O sr. Travis chegou bem tarde. Havia feito uma última tentativa com uma peça de “escultura-luz”, que resultara num fracasso desalentador.

Cumprimentou a sra. Lardner com uma espécie de enigmático respeito e disse:

– Estranho aquele robô que pegou meu chapéu e casaco.

– Aquele é Max. – disse a sra. Lardner.

– Está muito desregulado e é um modelo bem antigo. Por que razão não o manda para a fábrica?

– Oh, não! – disse a sra. Lardner. – Seria demasiado trabalho.

– De modo nenhum, sra. Lardner. – disse Travis. – A sra. ficaria surpresa com a simplicidade do trabalho. De vez que sou da U.S. Robots, tomei a liberdade de ajustá-lo pessoalmente. Não levou tempo e a sra. verá que ele está agora em perfeitas condições de funcionamento.

Uma estranha mudança ocorreu no rosto da sra. Lardner. A fúria estampou-se nele pela primeira vez em sua existência sossegada. Era como se os traços fisionômicos não soubessem qual posição tomar.

– Ajustou-o? – perguntou com voz aguda. – Mas foi ele que criou as minhas “esculturas-luz”. Foi o ajustamento defeituoso, o desajuste, que você jamais conseguirá restaurar… aquele…

Foi uma grande desgraça que ela estivesse mostrando sua coleção naquele momento e que a adaga com cabo cravejado com pedras preciosas, procedente do Camboja, estivesse sobre o tampo de mármore na mesa em frente dela.

A fisionomia de Travis também se distorceu:

– A sra. quer dizer que, se eu tivesse estudado o estranho cérebro positrônico dele, eu poderia ter aprendido…

Ela avançou com a arma com demasiada rapidez para alguém detê-la. Ele não tentou se esquivar ao golpe. Há quem diga que foi ao encontro dele – como se quisesse morrer.

Fonte:
Isaac Asimov. Nós, Robôs. Publicado em 1982.

Minha Estante de Livros (Solo de Clarineta, de Érico Veríssimo)


Solo de clarineta é uma obra múltipla: reflexões de um escritor sobre sua ficção e a arte literária, testemunho de um período da história brasileira e mundial, e retrato de uma família que parece tirado de um romance.

O leitor mergulha no caldo da matéria-prima de onde brotou a obra do autor de O tempo e o vento nos dois volumes que revelam a trajetória da família Verissimo, desde Érico garoto, passando pela decadência econômica da família, pela luta da mãe para manter os filhos com o trabalho de modista, pelas leituras de um menino à sombra de uma ameixeira-do-japão, até a consagração de Érico Verissimo como um dos escritores mais importantes da literatura brasileira.

Solo de Clarineta é dividida em dois volumes:

O primeiro volume de Solo de clarineta (1973) Veríssimo conta a sua infância e adolescência até a idade adulta quando abandona o cargo na UPA e sua filha Clarissa casa-se com o físico americano David Jaffe. No segundo, após relatar o nascimento de seus três netos e o denominar de O Arquipélago , relatando também o primeiro dos ataques cardíacos, Érico começa a contar sua viagens. A primeira é a viagem à Grécia. Depois conta sobre O Senhor Embaixador e então… Portugal! Veríssimo era apaixonado pelo país e conta de seu tour pelo país em 1959 junto com a esposa Mafalda, seu editor e seu filho Luís Fernando. Infelizmente, Érico morreu antes de concluir este volume, essa segunda parte foi organizada postumamente por Flávio Loureiro Chaves e publicada em 1976, segunda parte deste segundo volume, contando sobre a Holanda, a Espanha e um colóquio entre ele e o homem no espelho através do qual ele analisa a si mesmo, sua obra, suas opiniões e sua autobiografia: o que ele nos deu foi "não um concerto de jazz ou uma grande peça sinfônica, mas um solo de clarineta.”

Nessa edição, os volumes apresentam prefácio e apresentação inéditos, uma cronologia que cruza dados biográficos da família Verissimo com a vida dos personagens das obras mais famosas de Érico, e um caderno com fotos, manuscritos e desenhos.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Varal de Trovas n. 546

 

Leandro Bertoldo Silva e Valéria Gurgel (Qual o mundo que você quer?)

 (Texto inicial de Leandro Bertoldo Silva, o “Quixote das Gerais”)

Há um tempo escrevi uma reflexão sobre a pandemia e fiquei a pensar como ele, o tempo, muda de perspectiva. O passado já não existe e o futuro ainda virá e, assim, além de acarretar uma sobrecarga no presente, faz muitas coisas se perderem, inclusive nossas responsabilidades com nós mesmos.  

Para quem escreve, excetuando os clássicos, que só são clássicos por nunca serem esquecidos, pode ser meio frustrante se sentir desatualizado ou, no mínimo, ver se tornar desimportante algo tão sério e talvez diminuído na fala dos que ainda virão. Já pensou ouvir daqui a alguns anos algo do tipo: “Ah, não liga não! Esse negócio de pandemia que o vovô fala é láááá do ‘tempo do onça’ (assim como essa expressão). Hoje não tem importância nenhuma, é só uma ‘gripezinha’”. Tomara mesmo ser uma gripezinha com o avanço da ciência… No entanto, na iminência de deixar vivo o alcance de nossos atos, devo acrescentar apenas uma pergunta ao final do escrito. Foi assim…

Que momento vivemos! É engraçado — sim, há “graça” em tudo isso — pensar na única certeza existente: as incertezas.

Sou do tipo de pessoa a acreditar naquele ditado: “se a vida te deu um limão, faça uma limonada”. Pois é, a vida não nos deu um limão, mas uma plantação inteira.

Estou a falar dessa medonha pandemia que em momento algum da humanidade a história registrou algo tão surpreendente. Mas não quero dizer aqui mais do que os jornais, os especialistas e as autoridades já noticiaram; quero ir além do medo, se é possível, e pensar nisso tudo como um grande presente, uma grande oportunidade de uma mudança absurdamente necessária em nossas vidas, pelo menos na minha.

Há tempos vivenciava uma angústia por não conseguir expressar meu sentimento ao olhar para as coisas do mundo, de como as pessoas, e até mesmo eu, iam dispondo suas vaidades, suas “certezas” e opiniões em um mundo tão superficial. De repente a felicidade passou a ser medida pela nossa popularidade, pela quantidade de “amigos” e seguidores e, depois, nem isso – bastam as curtidas, o resto não interessa.

Em um mundo onde tudo virou marketing – e da pior espécie – ao ponto de nos vermos invadidos por uma onda de propagandas de produtos e serviços os quais sequer necessitamos ou temos interesse, em um mundo onde até os sorrisos são vendidos por uma camuflada onda de “gatilhos mentais” para capturar nossa atenção e vender felicidade de forma fácil, para não dizer mágica, a custo da inocência do desejo, vem a vida e nos obriga a parar com tudo isso e a pensar unicamente em sobreviver.

Mas sobreviver para quê?

Para voltar ao que era antes? Voltar ao trabalho da mesma maneira como se nada tivesse acontecido ou simplesmente termos tirado umas férias inesperadas? Voltar às enxurradas de postagens marqueteiras e à vida superficial das redes sociais? Voltar a tratar o outro como inimigo porque pensa diferente, embora também não sejamos obrigados a ser cordiais com quem nos faz mal e termos o direito de nos afastar? E por que não fazemos? Porque temos medo de sermos sinceros com nós mesmos e, por isso, suportamos o insuportável? Sabe aquele pensamento: “eu te respeito, mas isso não significa que eu preciso ser seu amigo?” Sabe aquele trabalho que você realiza porque é obrigado a ganhar dinheiro, pois se não fosse isso você não o faria? Sabe tantas outras coisas ditas e acreditadas pela verdade dos outros?

Pois é… Para esse mundo eu não quero mais voltar.

Quero o mundo onde eu continue a escrever, porque escrever é a minha sobrevivência, mas sem me ver preso nas correntes ocultas a me forçar a divulgar para todo mundo. Deixa-me falar uma coisa: estou a compreender que o que fazemos não é para todo mundo… Este blog não é para todo mundo, os meus livros não são para todo mundo, nem mesmo este texto é para todo mundo, mas para quem, por alguma razão, se alinha com o meu estado de espírito e com a minha forma de pensar. Pode não ser, e certamente não é, melhor e nem pior do que a de ninguém; é simplesmente minha e nossa para quem nos irmanamos. E isso basta.

Quero o mundo onde a obrigação de trabalhar não destrua o prazer que o trabalho me traz e nem mesmo faça parte da minha vida; onde as pessoas entendam o meu jeito de fazer as coisas. Pode até não ser o delas, e está tudo bem.

Quero o mundo onde eu tenha menos amigos virtuais e mais amigos reais. O mundo onde a tecnologia seja usada a meu favor e não o contrário. O mundo o qual não seja preciso me afastar das pessoas para dizer o quanto gosto delas e futuramente eu me arrepender de não tê-lo feito. Quero um mundo tão diferente…

Sabe o que mais penso de tudo isso?

Para esse mundo poder existir eu precisarei ressignificar dentro dele quem eu sou ou quem eu fui. Não é ele a mudar, mas eu na minha ignorância de me fechar em meus medos por achar não dar conta dos desafios que é não pertencer a lugares, relacionamentos, formas de trabalho há muito perdidas por não mais acreditar dessa ou daquela maneira.

E aqui está a “graça”, não hilária, mas da permissão de sermos autênticos e fazermos diferente, pois, embora a palavra mudança traga calafrios gigantescos em nossos corações, nos colocamos nessa situação de ter nela a única forma de salvar a nós mesmos e os outros, nos olhando de verdade e transformando as incertezas em possibilidades.

E VOCÊ, QUAL O MUNDO QUE VOCÊ QUER?

E aqui acrescento a pergunta a tornar essa reflexão universal e duradoura, a considerar a vitória da ciência. Passado tudo isso e a olhar para você, mas olhar bem, em qualquer tempo e em qualquer lugar, responda: é esse o mundo que você quis?
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QUAL O MUNDO QUE VOCÊ QUER?

por Valéria Gurgel


Eu dei a minha resposta! Uma carta desabafo que gostaria muito que também fosse lida por Miguel de Cervantes! Claro, se ele hoje pudesse ter acesso às nossas atuais realidades, mas, que para dizer a verdade, vejo que o mundo e a humanidade não caminha! Até hoje mal rasteja por aí! E percebo que dentro de cada um de nós habita um Dom Quixote e um Sancho Pança!!! Vamos à resposta.
__________

Querido amigo “Quixote das Gerais”, Don Leandro Bertoldo! Essa é a minha humilde carta, que eu, Valéria Gurgel, gostaria ter enviado para Miguel de Cervantes!

Se eu pudesse analisar o mundo em que vivemos, baseado no contraste entre o Cavalheiro Sonhador que nos inspira a agir e o de seu Fiel Escudeiro realista e sua revigorante humanidade, eu diria que seguimos oscilando o pêndulo da razão e da emoção.

Essa busca constante pelo equilíbrio tão almejado que poderia dar fim ao egoísmo, chaga sangrenta essa, que só atrasa o processo evolutivo da humanidade, não cessa. Somos bombardeados a cada século, a cada ano, meses, dias, horas por inúmeros e constantes desafios. Doenças, conflitos familiares, conflitos internos, externos, desigualdades, insanidades inumanas e limitações financeiras, físicas, psíquicas, que resultam em letargiar nossas ações, reações e decisões no cotidiano da vida. E tudo isso vem recheando os nossos mais lindos sonhos deixando-os com um leve sabor amargo de decepção.

Sabemos que viver é uma dádiva, um verdadeiro presente que nos foi concedido pelo criador. Por isso, e por um sentimento que nos invade às vezes, a vida nos instiga a aventurar-se a…

Aí mora o precioso quixotismo imbatível, romântico e sonhador que não nos deixa esmorecer e amarelar o verde de nossas esperanças. Que faz despertar o brilho nos olhos e aquele desejo de fazer acontecer, ainda que quantas vezes, nem sabemos como ou por onde seguir.

Diante a essa competição desenfreada, cruel, onde os verdadeiros valores, vem sendo substituídos por prazeres vãos. Vitórias que jamais conhecerão derrotas, competidores que não enxergam o seu adversário com o mesmo valor e respeito, atropelamentos sucessivos acontecem nessa desenfreada corrida que pisa em cima do outro para se elevar, sucessos que jamais entenderam o que é trabalho. A Selva de pedras devoradora das oportunidades e do papel de destaque.

Ou podemos optar por estagnarmos as ideias, os projetos, os desejos, os sentimentos, por excesso de realismo deprimente, que também não nos conduz a nenhum porto seguro. E morremos frustrados, decepcionados, quantas inúmeras vezes em uma única vida, sem sequer descobrirmos: aonde habita o nosso verdadeiro propósito por trás de tudo isso!?

Lamentavelmente ainda nos perdemos entre o passado e o futuro, entre o medo e a coragem, entre o sonho e a realidade, deixando escapar de nossas mãos esse autoconhecimento de entender, afinal, o que viemos fazer aqui. E nessas angústias existenciais, vamos perdendo o nosso precioso tempo, presente, que é a única coisa real na qual ainda temos um certo controle substancial.

As nossas inquietações pançônicas urgem e nos tornamos leões com garras abertas prontos para atacar, quando o assunto é família, sobrevivência, e defender o nosso condado familiar repleto de carências existenciais e limitantes crenças, medos, bloqueios mentais nos quais somos submetidos de geração a geração, até mesmo sem entender o porquê de tudo isso.

Então, afinal, quem somos nós? Cavalheiros Errantes ou Fiéis Escudeiros, meros acompanhantes? Somos os seguidores da tropa, da grande massa de pés no chão, ou o fidalgo com a cabeça nas estrelas, que mira um oásis no horizonte, ainda que caminhando sobre as areias escaldantes do deserto? Somos simplesmente humanos, ou, desejamos ser?

Como defensores de nossas subjetividades temos o direito de sermos, de querermos, porém, o ciclo vicioso, do “te ver e não te querer, é improvável, é impossível” como diz a letra da música de Francisco Eduardo Amaral e Samuel Rosa de Alvarenga, é um labirinto cruel, sem fim, que às vezes, não nos leva a lugar nenhum. Entender e valorizar o Ser, sem o Ter, é um processo longo e diário.

Portanto, vale a pena gargalharmos por nossas supostas infelicidades ou fracassos assim entendidos por nós e se formos motivos de chacotas por almejarmos algo maior que nós mesmos, que saibamos seguir adiante, com a certeza de que ainda que pareça distante essa conquista, toda longa caminhada sempre começa com o primeiro passo. Às vezes, esse primeiro passo possa representar muita atitude.

Rotulados de covardes sempre seremos, pela sociedade Quixotesca, porque os Sanchos se recusam a entrar em combates fadados ao fracasso. Rotulados de loucos sempre seremos, pela sociedade Panciana, dos Sanchos que não acreditam que a vida é aquele cenário paradisíaco, palpável, de justiça e ao alcance de todos e de nossos olhos ilusórios de cristal. A trajetória vai sendo escrita e precisa ser lida, relida, pontuada e corrigida diversas vezes. É um verdadeiro percurso sinuoso, que não se conclui em decisões retilíneas. Onde tanto o Cavalheiro como o Escudeiro, precisam interagir-se num bom diálogo interno, pautado com vírgulas do bom senso, exclamações de encantamentos, interrogações, na hora do medo, aspas, para enfatizar cenários específicos, parênteses para repensar situações para, no final da história, fecharmos a última página sem nenhumas reticências, e sim um certeiro ponto final.

Nossas querências jamais serão capazes de responder afinal qual o mundo queremos viver. O mundo de Quixote, ou o mundo de Sancho Pança? Sabemos que muitos são os que nem sequer vivem, apenas sobrevivem!

Mas, diante tudo isso, amigo Don, em pleno século XXI e um mundo tão caótico e repleto de incertezas, de uma coisa eu tenho a certeza, que a verdadeira realidade das escolhas individualistas, não são nem uma coisa nem outra. E como já dizia Martin Luther King “O que mais me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”!

Fonte:
Texto enviado por Leandro Bertoldo, administrador do blog Árvore das Letras

Jaqueline Machado (O coração delator)

Até que ponto nossa lucidez mental pode, de fato, ser considerada lúcida e nossa insensatez uma coisa verdadeiramente insana e irracional? A que tipo de tormentos somos diariamente acometidos pelas adversidades psicológicas da vida?

O personagem do conto O CORAÇÃO DELATOR, escrito por Edgar Alan Poe, convive com tormentos terrivelmente abstratos. E frequentemente ouve coisas que os outros não ouvem.

Por essa razão, ele é tido por muitos como alguém que sofre de doenças mentais. A pessoa em questão, jura apenas sofrer de ansiedade e de uma certa sensibilidade auditiva aguda. De loucura, não. Jamais! Dentre seus tormentos, o principal concentra–se no olhar do Amo com quem vive.

Segundo a sua “visão”, os olhos do velho lhe pareciam aterrorizantes, saltados, embranquecidos, medonhos. Ao seu ver, eram olhos de abutre que lembravam a morte. Aquele olhar lhe incomodava, lhe causava impulsos nervosos, tirava–lhe o sossego e precisava ser eliminado.

Afinal, olhos assim devem ser expurgados do mundo para que os cidadãos permaneçam em paz. Com sagacidade e sentimento de justiça, planejou a morte do homem que nunca lhe fizera mal. Numa certa noite escolhida, o homicídio se fez inevitável. A fim de livrar-se dos sinais do crime, esquartejou e enterrou a vítima embaixo do assoalho da casa.

Os vizinhos, depois de ouvirem barulhos estranhos, acionam a polícia. O crime seria pleno ou quase perfeito não fossem as batidas do coração do ser imolado que parecia martelar a cabeça do assassino. Na verdade, esses sons eram a sua consciência denunciando a culpa de sua alma doente.

Bem sabemos que dessa metáfora podemos extrair muitas verdades...

Exemplo: a sociedade segue adoecida, e o branco que fica aflito com a presença do negro, o rico que menospreza o pobre e o moralista que desvia o olhar da prostituta, discretamente, comete o mesmo crime. Resta-nos saber quando suas consciências os deletarão.

Quem tem ouvidos para ouvir ouça ...E indague-se: Até que ponto nossa lucidez mental pode, de fato, ser considerada lúcida e a nossa insensatez uma coisa verdadeiramente insana e irracional? A que tipo de tormentos somos diariamente acometidos pelas adversidades psicológicas da vida?

Fonte:
Texto enviado pela autora

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 14

 

Aluísio de Azevedo (Último lance)


Dez luíses!

Era tudo que lhe restava!... Eram as últimas moedas da larga e velha herança que até a ele chegara, escorrendo sonoramente, de degrau em degrau, por uma nobre escadaria de avós. Dez luíses!...

E D. Filipe, depois de agitar na mão fidalga, as derradeiras moedas de ouro, encaminhou-se lentamente para o lugar que meia hora antes havia abandonado à banca da roleta.

De pé, apoiado ao espaldar da sua cadeira ainda vazia, deixou cair sobre o tabuleiro verde o seu frio olhar indiferente e altivo. Os números desapareciam afogados no ouro e na prata dos outros jogadores.

Permaneceu imóvel por longo tempo, sem ver o que olhava. Seus sentidos estavam de todo ocupados pelo pensamento que lhe trabalhava aflito dentro do cérebro: - Era preciso refazer a fortuna esbanjada, ou parte dela... Mas com cem mil francos, apenas cem mil! Poderia salvar-se, sem cair no ridículo aos olhos do meio em que se arruinara... Com cem mil francos correria, sem perda de tempo a Paris, solveria as dívidas que ali deixara garantidas sob palavra, e logo em seguida, a pretexto de qualquer exigência da saúde, simularia uma viagem à Suíça e partiria para a América, com o que lhe restasse em dinheiro. Na América engendravam-se rápidas riquezas; descobriam-se dotes fabulosos! Se fosse preciso trabalhar - trabalharia!

Não sabia em que, e como, iria trabalhar, mas a miragem do novo mundo surgia-lhe à imaginação num sonho de ouro; numa apoteose de milagres de reabilitação, em que a sua incompetência para qualquer trabalho produtivo encontraria lugar entre os vencedores. Nenhum programa, nenhuma ideia acompanhava aquela esperança; confiava na América como confiara nas cartas e na roleta. Era ainda uma esperança de jogador. Era a cega confiança no acaso!

Não seria a América também um tabuleiro verde, banhado pelo ouro da Califórnia?... Ele era a moeda jogada num último lance pelo desespero!

Iria!

E, depois?... Como seria belo volver à Europa, muitas vezes milionário, com um resto de mocidade, para continuar a gozar os vícios interrompidos?...

E, enquanto castelavam seus doidos pensamentos, sucediam-se os golpes da roleta, e o ouro e a prata dos jogadores perpassavam em rio por defronte dos seus olhos distraídos.

- Mas, e se eu perder?... interrogou ele à própria consciência.

E o fidalgo não teve ânimo de entestar com a solução que esta pergunta exigia, como se temesse abrir de pronto, ali mesmo, um duro e violento compromisso com a sua honra.

Todavia, se perdesse aquele miserável punhado de moedas, que lhe restava além do... suicídio?... Que lhe restava no mundo, que não fosse ridículo e humilhante?...

E viu-se sem vintém, esgueirando-se como uma sombra pelas ruas escuras, com as mãos escondidas nas algibeiras do sobretudo, fugindo de todos, desconfiado de que a sua irremediável miséria fosse de longe pressentida como uma moléstia infecciosa. Teve um calafrio de terror.

As falazes hipóteses de salvação, que covardemente se lhe apresentavam ao espírito, lembrando amigos ricos e recursos inconfessáveis, eram amargamente repelidas pelo seu orgulho, ainda não vencido.

- Façam suas apostas, senhores! exclamou o banqueiro.

E D. Filipe sorriu resignado e triste, como respondendo afirmativamente para dentro de si mesmo à voz que apelava para seus brios, e, depois de sacudir ainda uma vez as dez moedas, espalmou a sua linda mão inútil e, com um ar mais do que nunca indiferente e sobranceiro, despejou-as na seção do vermelho que à mesa lhe ficava em frente.

- Rien ne va plus!

Uma vertigem toldou-lhe a fingida calma.

A pequena esfera de marfim girava já no quadrante da roleta. Fez-se em toda a sala um silêncio que doía de frio.

Se naquele golpe, em vez de um número vermelho, viesse um número preto, pensou o desgraçado, qualquer mendigo das ruas seria mais rico do que ele!...

E a bola girava já com menos força, prestes a tombar no número vencedor.

O fidalgo deixou-se cair assentado na cadeira, fincando os cotovelos na mesa e escondendo o rosto nas suas duas mãos abertas.

A bola tombou no número. Vermelho!

Os dez luíses de D. Filipe transformaram-se em vinte. E o fidalgo não teve um gesto; esperou novo golpe, aparentemente imperturbável.

O tabuleiro esvaziou-se e de novo se encheu de reluzentes paradas. O banqueiro fechou o jogo; a bola girou, caiu.

Veio outra vez vermelho.

D. Filipe continuou imóvel, sem tirar as mãos do rosto. Sobre os seus vinte luíses derramaram-se outros vinte.

E o jogo continuou, silenciosamente.

E, no meio do surdo ansiar dos que jogavam, um terceiro número vermelho dobrou a parada de D. Filipe, que conservava a sua imobilidade de pedra.

Tão forte, porém, era o arfar do seu peito, que todo o corpo lhe acompanhava as pulsações do coração.

Vermelho!

E oitenta luíses despejaram-se sobre os oitenta luíses do jogador imóvel.

Vermelho!

E o ouro começou a avultar defronte dele.

Vermelho ainda!

E as moedas iam formando já um cômoro de ouro defronte daquela figura estática, da qual só se viam distintamente as duas mãos, muito brancas, ligeiramente veiadas de azul puro.

Ainda vermelho!

E a figura imperturbável parecia agora de todo petrificada. E as duas mãos brancas pareciam fitar escarninhamente os outros jogadores, rindo por entre os dedos fixos.

A imobilidade e a fortuna do singular parceiro começavam a impressionar a todos.

Vermelho!

E já os olhares dos homens e das mulheres não se podiam despregar daquele misterioso companheiro de vício, cuja fisionomia nenhum deles conhecia ainda, absorvido como até então estivera cada qual no próprio jogo.

Vermelho! Vermelho!

E o monte de ouro ia crescendo, crescendo, defronte daquelas duas mãos que pareciam cada vez mais brancas, mais escarninhas, e mais ferradas ao rosto do jogador imóvel.

Vermelho! Vermelho! Vermelho!

E as moedas alargavam a zona inteira, escorrendo por entre os cotovelos do jogador de pedra, e caiam-lhe pelas pernas inalteráveis, e rolavam tinindo pelo chão.

Vermelho! E os jogadores esqueciam-se do próprio jogo para só atentar no jogo do singular conviva; à espera todos que aquelas duas mãos de mármore se afastassem; que aquela escarninha máscara caísse, revelando alguém.

E a cada golpe uma nova riqueza vinha dobrar a riqueza acumulada defronte do sinistro mascarado de mármore. Em vão, ao lado dele, uma formosa criatura, com ares de rainha e olhos de criada, aquecia-lhe havia meia hora a perna esquerda com a sua perna direita; em vão, por detrás da sua cadeira, formara-se um palpitante grupo de mulheres, que riam forte e lhe discutiam a fortuna, apostando, a cada novo golpe da sorte, se o original jogador sustentaria ou não o lance por inteiro.

E já quando o vermelho era ainda uma vez anunciado pelo trêmulo banqueiro, partia de toda a sala uma explosiva exclamação de pasmo.

Era preciso tocar a cada instante o tímpano, pedindo atenção e silêncio.

Mas os comentários reproduziam-se, fervendo em torno da estátua feliz. Uns protestavam contra a loucura daquela pertinácia, pedindo para seu castigo um número negro; outros se entusiasmavam com ela e soltavam bravos de aplauso; outros ainda calculavam o ouro acumulado, somando os lances.

E o banqueiro, cada vez mais pálido, tomava com a mão trêmula a bola fatídica, e, a tremer, fazia-a girar na gamela dos números, e, a tremer, anunciava ofegante o número vencedor que era sempre vermelho.

Cada número vinha acompanhado de um coro de pragas e gargalhadas.

Até que, num desalento do capitão vencido, o banqueiro, dando ainda o último vermelho, anunciou com uma voz de náufrago sem esperanças:

- Banca... à glória!

Mas, nem assim, o imperturbável jogador misterioso fizera o menor gesto; ao passo que em redor dele se acotovelavam os viciosos de ambos os sexos e de todas as nações, formando uma rumorosa e irrequieta muralha, ansiosa de curiosidade.

Chamaram-no de todos os lados, em todas as línguas e em todos os tons.

Ele se não moveu.

Tocaram-lhe no ombro; tocaram-lhe na cabeça.

Nada!

Sacudiram-lhe o corpo.

A estátua continuou imóvel.

Então, dois homens, tomando cada um uma das mãos do fidalgo, arrancaram-lhas do rosto, enquanto um terceiro lhe levantava a cabeça.

E um só grito de horror partiu dentre toda aquela gente.

Quem à glória levara a banca e ali estava imóvel a jogar com eles durante a noite, provocado pelas mulheres e invejado pelos homens, era um cadáver frio, de olhos escancarados a boca semi-aberta, e com duas lágrimas compridas escorrendo pela algidez das faces contraídas.

Largaram-no espavoridos; e o morto tombou com a cabeça sobre a mesa, colando o rosto e as mãos de mármore sobre o seu ouro, como se o quisesse defender da cobiça dos outros jogadores sobreviventes, que já discutiam aos gritos a legitimidade daquela posse.

Fonte:
Aluísio de Azevedo. Demônios. 1895.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXIV

À luz de fortes abraços
o amor possa começar,
sempre que cruzar os braços
seja só para abraçar.
= = = = = = = = = = = = =

Ao chegarmos neste mundo
começamos um passeio,
por vezes longo e fecundo,
noutras, partido no meio.
= = = = = = = = = = = = =

Aos homens faltam alento,
ó Deus nunca os deixeis sós!
Sede Vós o seu sustento
sendo eles a vossa voz.
= = = = = = = = = = = = =

Dizem que ninguém aguenta
uma dança de salão,
quando alguém joga pimenta
espalhada pelo chão.
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Entre a tentação do 'ter'
e o poder de dominar
está a sede do 'poder'
levando o homem a sonhar.
= = = = = = = = = = = = =

Faça sempre por dever,
não por mera obrigação,
mais do que só por fazer
pode ter vida em ação...
= = = = = = = = = = = = =

Fulge forte o sol no além,
mas a vida brilha mais,
outra luz maior não tem
nem há de morrer jamais.
= = = = = = = = = = = = =

Gotas de chuva carregam
novas forças para o chão,
lentamente os pingos regam
sobre a terra a plantação.
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Inseridos num contexto
de lutas buscando a paz,
muitos usam de pretexto
guerras que a vida desfaz.
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Licitude e temperança,
virtudes que poucos têm,
confundem com liderança
que à penumbra se sustém.
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Milhares de confidências
fazemos todos os dias,
muitas de benevolências
outras de meras fobias.
= = = = = = = = = = = = =

Mundo novo está surgindo
debaixo do nosso olhar,
muitas mãos vão construindo
caminhos pra palmilhar.
= = = = = = = = = = = = =

Nas densas noites, errantes,
tememos a escuridão,
nem as estrelas brilhantes
um consolo elas nos dão.
= = = = = = = = = = = = =

Nem todo e qualquer lugar
temos um livro pra ler,
na biblioteca do lar
há muito para aprender.
= = = = = = = = = = = = =

No mundo das fantasias
vigora a contradição,
a estrela brilha de dia
e à noite o sol faz clarão.
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No reduto dos anseios
emergem nobres projetos,
desenleiam nos passeios
novos caminhos concretos.
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Nunca devemos fazer
algo que não seja honesto,
pra não termos que colher
um fruto amargo e funesto.
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Nunca siga inoperante
pelas estradas da vida,
mas com a fé dum migrante,
rumo à 'terra prometida'.
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O homem peca, não por ser,
tão mau num certo momento,
mas também por não saber,
empregar o seu talento.
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O homem tem seu momentinho
que se torna um Valentão,
teme os dentes do ratinho
mas não teme os do leão.
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Quem projeta se protege
e ao buscar a proteção
toda a tática que elege
lhe assegura a projeção.
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Se a dor devagar nos mata
num gesto cruel e atroz,
está no efeito "cascata"
o inimigo mais feroz.
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"Tá nervoso"? Então nos deixe!
Vá pescar com seu cinismo...
O que tem a ver o peixe
com o tal do nervosismo?
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Tantas lágrimas rolaram
sobre o rosto já cansado,
face as dores que sobraram
dos espinhos do passado.
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Tardes quentes, borbulhantes,
manhãs tépidas, serenas,
quase em tudo semelhantes
às noites calmas e amenas.
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Ter riquezas não condiz
em sentir felicidade,
tem pobre muito feliz
por conter a dignidade.
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Todo retorno presume
uma suposta partida,
sem ele à dor se resume
se quem parte for a vida.
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Tudo tem em seu contorno
algo esquecido jamais,
nada maior que o retorno
do filho à casa dos pais.
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Vivo palácio de cores
nos canteiros do jardim,
rosa, rainha das flores,
rei do perfume, o jasmim.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Raul Pompéia (As Festas de Reis de minha Prima)

Conheci muito o dr. Sinfrônio. Nunca lhe achei cara de poeta... Pois ele o fora!

Uma única vez na vida, às escondidas, como se tivesse vergonha... Mas fora... Vim a sabê-lo, alguns anos depois da sua morte.

Não quero dizer que este póstumo achado lhe valha a glória. Poeta, é modo de escrever. São umas linhas execráveis, sem metrificação nem graça, em que bela rima à toa com janela ou com singela, como no "Era no outono..." de B.Pato...

São versos de paixão, espécie de carta de namoro a linhas curtas, começadas em letra maiúscula.

Mostrou-me o filho, um velho amigo de colégio que me ficou da infância; mostrou-me, fazendo considerações a propósito de certas ingenuidades que todos têm e certas fraquezas em que todos caem. Aquele homem prático, prosaico, impregnado de negócios do foro e alguma política rasteira, empírica de mais, sem horizontes largos, aquele burguês redondo tivera um dia de pieguice aguda na sua vida! Lá estava o corpo de delito, descoberto em meio dum aluvião de rascunhos de correspondências, contas, recibos, papelada forense, traças e poeira.

Era uma página da mocidade incontestavelmente.

O papel estava cor-de-palha e a letra extinta. Mas sentia-se ainda, naquele fragmento de papel, a frescura juvenil de uma alma ardente, embora um tanto avessa à música das liras.

Nada me entristece mais do que um verso apaixonado, e errado! Parece-me a pomba do sentimento, rolando no chão de asas e pés quebrados... Pés quebrados!

Ora, imaginem que pena: - Cupido cambaleante e trôpego!

Quando um homem furta-se aos afazeres positivos da vida e arroja-se ao cometimento de uma estrofe, certo de que não tem veia, nem teve apurada educação literária, contando apenas com um raio celestial de inspiração, guiando-se apenas pela bamba norma fundamental da letra grande, por princípio, linha curta, por base e rima alternada, por fim; quando um mortal faz isto, é que tem todas as vísceras escalavradas de paixão! O amor roeu-lhe já o coração fibra a fibra e começa a morder-lhe as células do cérebro. É um heroísmo que se enternece.

Respeito estas desventuras literárias, quando as descubro, principalmente percebendo que elas queriam ficar sempre escondidas na obscuridade tímida das fraquezas humanas.

No momento em que o meu velho amigo mostrou-me o pecado literário do pai, não foi preciso esforço, para eu conservar-me sério.

"Quando te vejo, ó gentil imagem...

Começava assim a poesia e prolongava-se pelo papel abaixo, exaltando os dotes da minha prima Isaura.

Isaura contava nesse tempo quatorze ou quinze anos e não era absolutamente feia, conquanto já tivesse, no meio da cara o mesmo pedaço de nariz que hoje distingue a maturidade dos seus trinta e oito. Menos crescido, talvez.

A prima Isaura sempre foi namoradeira e nunca achou casamento. Não sei se os namorados espantavam os casamentos, ou se a falta de casamento excitava os namoros. Nunca achou casamento, eis o fato. O único marido que lhe andou ao alcance da mão foi o dr. Sinfrônio.

Sinfrônio teve a fantasia de se apaixonar pela Isaura. Esta, porém, que estreava nos esplendores da puberdade, entendeu que toda a vida os Sinfrônios haviam de ameigar para ela a pupila e desprezou o primeiro à espera de outro mais bonito, senão menos esbodegado.

Sinfrônio era feio e pobre. Acabava de formar-se em direito e queria fazer família, para entrar regularmente na vida prática. Abstraindo-se-lhe o nariz, a Isaura não era detestável. Sinfrônio deitou namoro. De repente, com grande surpresa sua, reconheceu que estava caído perdidamente pela menina... Sempre nariz à parte, suponho.

Neste período, cometeu, fora de si, algumas poesias (entre outras a que eu vira) que, durante as reuniões da família da minha prima, cuja casa ele frequentava, conseguia fazer chegar-lhe às mãos. Isaura deu corda, a princípio. Pouco depois abandonou o pobre Sinfrônio por um pilantra que fingia fazer caso dela.

A ingratidão da menina exasperou o dr. Sinfrônio, que, a modo de desfeita à gentil imagem dos seus malogrados arroubos poéticos, tratou de casar-se logo com outra; e o fez sem dificuldade.

Muito arrependeu-se Isaura, tempos depois, do desdém com que tratara o dr. Sinfrônio. Os Sinfrônios não se repetiram...

E, por maior desdita, foi o nariz avultando com a idade e descrevendo uma órbita insensível em direção ao queixo, que saiu-lhe amavelmente ao encontro...

Ainda hoje cresce o nariz; cresce, e Isaura não desanima. A esperança foi sempre a sua força.

Lá vai uma história que prova evidentemente que a prima Isaura não desanima.

A nossa família retine-se toda para os dias de Natal, Ano Bom e Reis.

Há sempre uma festa em nossa casa, por ocasião dos três grandes dias. Uma festa que dura semanas...

A prima Isaura não falta nunca; vem com a mãe, os cunhados, a melhor gente deste mundo, folgazãos, despretensiosos e amigos de agradar a todos.

No dia de Reis do ano passado, a prima obsequiou-me com um trabalho da sua agulha, uma coisinha chique.

Já não me lembro bem o que era... Desde essa época, observo que não sou indiferente à minha estimável Isaura. Não havia, entretanto, documentos comprobatórios, salvo uns olhares que notei, sorrisos que apanhei no ar, atenções que me cativavam - pura cortesia, em última análise, temperada naturalmente por um afeto vulgar entre primos...

Mas, como qualquer afeto, por mais vulgar que seja, toma caráter grave, quando se trata da prima Isaura, eu esperava tudo...

Dois dias antes do seis de janeiro deste ano, a minha amável Isaura, enfeitada com os pés-de-galinha dos seus trinta e oito e um ligeiro sorriso enrugado nos lábios, acercou-se de mim, meio acanhada...

Tomou-me entre os dedos os berloques do relógio, com uma graça infantil e meiga...

- “Temos coisa”, pensei.

- Edmundo - disse ela - quando me dá as festas... deste ano?...

- E você? prima... – perguntei igualmente.

É o que ela queria.

- Depois de amanhã bem cedo, você há de achá-las... no seu quarto... há de gostar, afianço... E não seja ingrato!

Dado o recado, Isaura deixou os berloques e afastou-se, confusa como uma noiva, levando diante de si, como um belo fruto maduro e longo, o magnífico nariz, ruborizado de velhos pudores virginais.

Álea Jacta!

No dia de Reis, ao levantar-se, de manhã, observei, através da meia treva do quarto fechado, que, sobre a minha mesa, havia alguma coisa.

Eram flores elegantemente apertadas em buquê e uma carta, um pequeno envelope fechado.

Flores! Carta! Bravíssimo, senhora minha prima!

- Ah, meus pressentimentos negros! – suspirei.

E suspirando abri a janela. A luz alegre da manhã caiu sobre as flores, palpitantes de frescura, rociadas de brilhantes gotas d'água. Que esplêndida coroa de cravos rubros e que formosa camélia branca ao centro!

Admirei de uma só vez as flores e o bom gosto da minha Isaura. Que mimo!

E a carta!... E o envelope! Uma joia de papelaria! Pombos em cromo, entretecidos com malmequeres e rosas...

Tive pena de rasgar aquilo.

Uma letra bonita desenhava em sobrescrito - Primo Edmundo.

Eram as festas efetivamente da Isaura; quase posso dizê-lo já - da minha namorada Isaura!

Quando abri o envelope, foi como se quebrasse um frasco de perfume... A carta era uma poesia!

Com certeza a intensa nuvem de aromas que me povoava o quarto vinha das flores daquelas estrofes!

Versos de amor! Santo Deus! Acordo em dia de Reis, entre os braços parnasianos de Safo!

De repente, estremeci... Era possível?!... Mas eu conhecia aqueles versos!...

Li-os outra vez:

"Quando te vejo, ó gentil imagem

Ora, ora! Eram os versos, os cambaios versos do dr. Sinfrônio, impingidos em segunda edição, e assinados sobre aquele delicioso papel de cetim pelo doce nome de Isaura!...

Tu, só tu, puro amor!...

Uma vez, um pobre apaixonado armara umas palavras desconcertadas, parecendo, de longe, versos... Vinte e tantos anos mais tarde, uma apaixonada, amorosa até o crime, plagia ousadamente a coisa e a impinge como sua, masculinizando-lhe devidamente o sentido!...

Mistos de ousadia e fraqueza que amor prepara.

Notável coincidência fora aquela de ter visitado, dias antes, o filho do falecido Sinfrônio!... que eu tanto conhecera, sem nunca descobrir-lhe vestígios do fogo sagrado que um dia lhe acendera no cérebro a paixão violenta e que o levara a urdir trabalhosamente a epopeia dos encantos de Isaura, para muitos anos depois, esta respeitável senhora, mutatis mutandis, converter em mavioso hino de amor (por este seu criado!) e festas de Reis, acompanhando o hino de uma coroa de cravos rubros com uma camélia branca ao centro!...

Triste destino dos poetas!

Malvadas tentações de Cupido!

Incansável Isaura!

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. UFSC. Conto publicado em 1884.