sábado, 23 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 123


Malba Tahan (A Lenda Singular do Vaso Torto)


Era assim. Louvado seja Allah!

Era assim que Amid, o velho oleiro de Samarcanda, fazia todos os dias.

Terminada a tarefa, ao cair da tarde, examinava atentamente um por um, os vasos que o jovem Namedin, seu discípulo dileto, havia modelado. Orgulhava-se com o progresso daquele adolescente na difícil e delicada arte da cerâmica. Revelava o principiante, na execução das obras mais finas e delicadas, invulgar talento.

Havia, entretanto, uma particularidade que fazia negrejar a dúvida no espírito do mestre. Todos os dias, entre os vasos impecáveis, esguios e bem torneados, repontava, fabricada pelas mãos ágeis do artífice, uma peça (e uma só!) lamentavelmente mal feita, torta e deformada. Como explicar a presença daquele aleijão único no meio de tantas perfeições e belezas? Decorreria a multidão de uma falha insanável ou não passaria tudo de um simples capricho do aprendiz?

Amid, intrigado com o caso, resolveu desvendar o mistério. Como apurar a verdadeira origem daquele desacerto, daquela anomalia? Vou observar o trabalho (pensou o oleiro) a fim de precisar o momento em que Namedin claudica e erra. E assim fez. Um dia, da manhã até a quarta prece, o mestre acompanhou atento a faina do jovem. Era preciso descobrir a razão de ser do vaso torto...

Afinal, o velho oleiro, sempre vigilante, viu satisfeita a sua curiosidade.
    
Quando o vulto sedutor da namorada surgia, o aprendiz desorientava-se; suas mãos tremiam...
   
Todos os dias, a uma certa hora, graciosa menina que residia para além da mesquita de Chan-Sindah, cruzava vagarosamente a rua. Namedin apaixonara-se por ela; e, por isso, ao vê-la passar sentia-se confuso, perturbado.

Ali estava, afinal, a explicação do mistério. Quando o vulto sedutor da namorada surgia, o aprendiz desorientava-se; suas mãos tremiam e o vaso que se achava, naquele momento, na roda girante, sob os cuidados de seus dedos ágeis, sofria as consequências daquela desatenção.

Como poderia o enfeitiçado oleiro, naquele instante de comoção, guiar com segurança os seus dedos, dominar os voos de seu pensamento e aquietar os anseios de seu coração?

Rejubilou-se o mestre de Samarcanda com a descoberta, e, a partir daquele dia, com mais carinho e interesse dedicou-se à nobre tarefa de orientar o discípulo querido. Ao amor, sim, e não à imperícia do artista deveria ele incriminar o aparecimento do vaso defeituoso. E que importava, afinal, a mutilação de uma peça no meio das outras? A mulher amada, com a sua presença perturbadora, fazia surgir uma obra defeituosa; mas com sua ausência, entretanto, inspirava dezenas de perfeições.

E, ao ter notícia do caso, um poeta árabe, servo de Allah, escreveu três ou quatro poemas admiráveis que foram gravados em ouro e bronze no deslumbrante palácio de Tamerlão. O terceiro poema - lembro-me até hoje, muito bem! - começava exatamente assim:
   
    Ao ver aquele vaso torto
    Entre outros de forma esguia,
    Penso no destino, absorto:
    - A mão do oleiro tremia!...
   
    Louvado seja Allah que criou a Poesia, a Beleza e o Amor!
   
Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.

J. G. de Araújo Jorge (Prelúdios)


Prelúdio N°. 1
(Paradoxos)


Perdoa, meu amor...
- na alegria imprevista do reencontro
a nos perturbar ,-
este véu de tristeza, vaga nuvem
em meu olhar...

(O amor é mesmo assim, de paradoxo e extremos...)
Perdoa, meu amor,
só agora que te encontro é que me ponho a pensar
no tempo que perdemos...

Prelúdio N°. 2
(embriaguez)


Ah! encher minhas mãos com os teus cabelos louros
assim... nervoso como me vês...
E tomar tua cabeça, e beber, lentamente,
teus beijos, enternecidamente,
até a embriaguez...

Prelúdio N°. 3
(razão da noite)

Enchi minhas mãos de sol, com os teus cabelos
e eles escorreram como luz entre os meus dedos...

Agora que tenho as mãos vazias,
compreendo a razão desta noite
em meus dias...

Prelúdio N°. 4
(Tua boca)


Na tua boca entreaberta, úmida, viva
colhi o último suspiro do anjo
que expirava em teus olhos...

Prelúdio N°. 5
(Desejo)


Ao toque de tuas mãos, esse desejo que arde
em minha fronte, com a ardência de um sol de verão
serena
oh! minha amada,
( e é doce e misteriosa essa estranha emoção),
como o instante de sombra fresca e amena
quando uma nuvem cobre o sol, e sopra
na folhagem ressecada
a viração…

Prelúdio N°. 6
(Lembrança)

Ficou tua lembrança...

A lembrança de teus olhos vidrados
semicerrados,
de tua cabeça num gesto de criança
recostada em meu peito,
de teu cabelo desfeito...
(de teus cabelos em ondas de ouro
em teus ombros...)

Ficou tua lembrança
como uma flor azul de pólen de ouro,
a romper imprevistamente, de um modo que ruiu
em escombros…

Prelúdio N°. 7
(Traição)


Foi traição do destino bipartir nossos rumos
como um caminho frente a uma montanha,
para fazê-los de novo se encontrarem
muito tempo depois...

Para quê? Se cada um de nós podia ser um
isoladamente,
- se tínhamos que ser dois...

Dois, assim
como as margens de um mesmo caminho
que seguem, lado a lado, paralelamente,
até o fim...

Prelúdio N°. 8
(Era uma vez...)

O último anjo entremostrou-se nos restos
de tua timidez...

E eu te contava uma história:
Era uma vez…

Prelúdio N°. 9
(A eleita)

Que importa, se não és ?

Foste e serás a eleita,
a lembrança que foi, e há de ser onde eu for...
Que haja pois, se preciso, a renúncia perfeita
se não pode afinal ser perfeito esse amor...

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 3. SP: Ed. Theor, 1965.

Contos e Lendas do Mundo (África: Os Filhos das Cabaças)


Bem no alto da montanha morava um espírito poderoso que velava pelo dia a dia do povo Chaga, que vivia no vale que se estendia em baixo. Uma das pessoas de quem gostava especialmente era da Viúva Velha, que vivia sozinha.

Na aldeia, o som que predominava era o do riso das crianças; no entanto, na casa da Viúva Velha, que não tinha filhos nem netos, reinava um silêncio triste.

Quando era preciso ir buscar alguma coisa, ela tinha de ir buscá-la. Quando era preciso carregar, ela tinha de carregar. Quer se tratasse de água, alimentos ou outra coisa qualquer, ela mesma precisava de fazer tudo. Para dizer a verdade, a Viúva Velha só se tinha a si própria como companhia, levando a sua vida por diante o melhor que podia.

Nos seus tempos de jovem, aquela que era agora a Viúva Velha, casara com um bom homem e os dois tinham sido muito felizes juntos. Mas, como acontecia com muitos homens bons, também o seu morrera, ainda por cima antes de terem filhos, e ela jurara nunca mais voltar a casar.

Havia muito pouca mobília na sua casa minúscula. Poucos eram os seus pertences, e tudo o que se encontrava dentro da habitação andava empoeirado e muito descuidado. O mesmo já não se podia dizer em relação à pequena machamba (horta) onde cultivava frutos e legumes. Adorava aquele cantinho e não se passava um dia sem que, protegida pela sombra das bananeiras do vizinho, não cuidasse das suas plantas. Arrancava as ervas daninhas, regava, tirava as pedrinhas e espantava os animais nocivos. Mas as suas plantas preferidas eram as cabaças.

Os aldeões troçavam dela por causa desse gosto. Costumavam dizer que ela amava aquelas cabaças como se fossem seus filhos.

O espírito da montanha não perdia pitada do que diziam. Olhava para a Viúva Velha, como sempre fizera no decorrer da vida desta. Vira-a envelhecer, mas lembrava-se da jovem linda que ela fora no dia do seu casamento, com as costas direitas e os olhos brilhantes. Agora via-a encurvada pelos anos, com os olhos enevoados e os dedos encarquilhados.

A Viúva Velha cultivava as suas cabaças para fazer delas vasos. Deixava-as secar até a casca endurecer, depois transformava-as em vasos de cabaça que vendia no mercado local, arranjando assim o pouco dinheiro de que dispunha.

O espírito que vivia na montanha, ao refletir sobre as piadas dos outros aldeões acerca da Viúva Velha que tratava das cabaças como se fossem seus filhos, resolveu ajudá-la. Dar-lhe-ia filhos a sério - filhos mágicos - que lhe trariam felicidade.

No dia seguinte, estava a Viúva Velha na machamba, a cuidar, como de costume, dos seus frutos e legumes, quando um mensageiro do espírito lhe apareceu por trás. Voltou-se para olhar para ele, mas como o sol lhe dava nas costas, não conseguiu distinguir-lhe o rosto. A sua cabeça desenhava-se como uma silhueta negra contra um sol ofuscante.

- Que deseja? - perguntou-lhe.

- Cuida das próximas quatro cabaças que apanhares com um cuidado especial - disse o mensageiro -, pois elas serão como quatro filhos para ti.

- Que quer dizer? - perguntou a velha. - Como poderei cantar uma canção de ninar a uma cabaça ou dar-lhe amor? Como será ela capaz de me ajudar nas minhas tarefas diárias?

- Confia em mim - disse o mensageiro -, pois fui enviado pelo espírito da montanha.

A Viúva Velha pestanejou e o mensageiro desapareceu. Ela acreditava piamente no espírito e todos os dias lhe rezava... mas o que queria o mensageiro dizer?

Foi então colher as suas quatro cabaças seguintes. Uma delas era a maior e mais gorda que já lhe aparecera em muitos anos.

A Viúva Velha recordou as palavras do mensageiro, no entanto elas continuavam a fazer pouco sentido para si. As cabaças eram de origem vegetal... como poderia ela cultivar vegetais como se fossem seus filhos? Começou a desconfiar que, se calhar, não passava tudo de mais uma das brincadeiras maldosas de algum aldeão.

O melhor lugar para secar as suas cabaças recém colhidas era nas vigas que tinha na sua casa minúscula. Pendurar as quatro cabaças mais pequenas nas vigas não custou muito, mas quando chegou a vez da quarta - a que era enorme, bem cheia - o caso mudou de figura, pois o seu tamanho e peso não permitiram que levasse o mesmo caminho. Ficou, portanto, ao pé do canto onde acendia a lareira.

No dia seguinte, estava a Viúva Velha no mercado, o mensageiro misterioso entrou-lhe em casa e tocou nas três cabaças que estavam nas vigas, depois de o ter feito à que ficara ao pé do lume. Mal isso aconteceu, elas transformaram-se em crianças. A seguir, o mensageiro retirou-se.

As três crianças que se encontravam no cimo das vigas, olharam para baixo e acharam que era demasiado alto para saltarem.

- Ajuda-nos a descer, irmão mais velho - pediram à criança maior, a que saíra da cabaça que ficara junto da lareira. Chamaram-lhe «mais velho» porque sabiam que o mensageiro tocara nele em primeiro lugar.

O irmão mais velho ajudou os outros três a descer e não tardou que se pusessem todos a correr pela casinha da Viúva Velha, rindo e gritando de tanta alegria e brincadeira.

A certa altura, resolveram que era tempo de tratar um pouco da casa. Foram buscar coisas, carregaram-nas, arrumaram e limparam. O irmão mais velho ficou sentado a observá-los, sorridente. Era diferente dos outros. Faltava-lhe esperteza, mas tinha um papel importante a desempenhar: depois do trabalho feito, levantou-os de novo até os instalar nas suas vigas e a seguir foi para o mesmo sítio, junto da lareira.

Quando a Viúva Velha chegou do mercado, encontrou a casa limpa e arrumada como já não acontecia há muitos anos e uma carrada de lenha à porta. Não conseguiu compreender o que se passava. Olhou de relance para as quatro cabaças, mas não lhe passou pela cabeça outra ideia além dos esplêndidos vasos que dariam.

No dia seguinte, encontrava-se a Viúva Velha na sua pequena machamba quando uma das aldeãs mais amigáveis foi ter com ela.

- Quem eram aquelas crianças que ontem andavam a rir, correr, trabalhar e brincar pela tua casa? - perguntou-lhe.

- Crianças? - admirou-se a Viúva Velha. - Não sei de que crianças falas. Quantas eram?

- Que eu visse, umas três - replicou a aldeã -, mas mexiam-se a tal velocidade que pareciam uma vintena delas.

A Viúva Velha começou a dar voltas à cabeça, interrogando-se se recebera, de facto, a visita de um mensageiro do espírito da montanha... Afinal de contas, ela rezava-lhe todos os dias... De modo que resolveu voltar sorrateiramente a casa, a fim de investigar. Ali chegada, deparou, realmente, com três crianças a limpar e a arrumar, perante o olhar do irmão mais velho.

Ao entrar em casa, o irmão mais velho agarrou rapidamente nos mais novos e pendurou-os nas vigas, antes de, também ele, se transformar de novo numa cabaça.

- Não, esperem! - exclamou ela. - São meus filhos, não meus servos. Quero ajudar-vos, mas também desejo amar e cuidar de vocês. Não voltem a transformar-se em cabaças. Deixem-me alimentar-vos e vestir-vos em troca da vossa ajuda.

Então, as cabaças que estavam nas vigas voltaram à sua forma de criança, assim como o irmão mais velho, que depois os colocou novamente no chão da cabana.

Dali em diante nunca mais deixou de se ouvir o som alegre de risos a sair da casa da Viúva Velha e da machamba de frutos e legumes onde as crianças trabalhavam. Eram tão esforçadas e dedicadas que conseguiram cultivar mais frutos, legumes e cabaças do que a Viúva Velha poderia algum dia conseguir sozinha. Não tardou que ela dispusesse de dinheiro para comprar mais terras, chegando mesmo a ficar com as bananeiras do vizinho. A seguir, poupou o suficiente para arranjar algumas cabras... Depois, o bastante para um rebanho inteiro!

Depressa se tornou uma fazendeira rica e não precisou mais de trabalhar nos dias da sua vida.

Nunca mais voltou à velha machamba, mas continuou a cozinhar para ela própria e para os filhos... até que, um dia, tropeçou no rapaz mais velho que, sentado no sítio do costume, junto da lareira, sorria beatificamente.

A Viúva Velha trazia uma panela de guisado nas mãos, guisado esse que se espalhou por tudo quanto era sítio, o que a deixou furiosa.

- Quantas vezes te disse já para não ficares aí sentado que nem um... que nem um... que nem o vegetal inútil que és! - gritou. - Não sei porque hei de dar-me ao trabalho de cozinhar para ti e para os outros três. Afinal de contas, vocês não passam de... de uns vegetais!

Mal acabou de proferir a última palavra, o irmão mais velho transformou-se de novo numa cabaça e as risadas alegres deixaram de se ouvir. A Viúva Velha correu até fora de casa e onde, momentos antes, tinham estado crianças felizes, viam-se agora três cabaças pequenas.

Percebendo o erro que cometera, a Viúva Velha voltou para dentro de casa encharcada em lágrimas.

Viveu ainda durante muitos anos, sentindo-se ainda mais solitária do que antes, pois ter tido filhos e depois perdê-los era bem pior do que nunca os ter tido. Morreu pobre, infeliz... e sozinha.

Fonte:
Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 122


André Kondo (O Castelo)


Em tempestade, milhares de guerreiros trovejaram contra o grandioso castelo de Himeji*. Os olhos dos samurais, incendiados pelo brilho de suas espadas, relampejavam na escuridão da guerra. Os senhores feudais lançaram-se todos contra o universal domínio do xogum*. Cada qual pleiteava para si uma parcela do poder, desejando, no íntimo, não uma parte, mas a soberania total. Este era um tolo plano de guerra: primeiro destruir o xogum; depois, destruir-se uns aos outros. Quem sobrevivesse seria o governante de uma nação em ruínas,

Não seria uma guerra rápida. Tomar o castelo de assalto era uma tarefa quase impossível. Primeiro, os invasores deveriam ultrapassar o profundo fosso e a colossal muralha que cercavam todo o complexo fortificado. Em seguida, deveriam vencer um confuso labirinto de passagens. Surgiria outra muralha interna... E mais outra. Enquanto isso, lançada das torres, uma chuva de flechas, pedras e óleo fervente cairia sobre suas cabeças. Se chegassem ao coração da fortaleza, a torre principal de cinco andares, os violadores estancariam diante de uma base de impenetráveis rochas.

Portanto, tomar o castelo não era apenas uma questão de força. Era principalmente uma questão de paciência. Se não podiam invadir o castelo, deveriam esperar que o oponente saísse. Sitiar a fortaleza. Com essa conclusão, os inimigos se prepararam para um longo cerco. Os conselheiros procuraram o xogum, que caminhava tranquilamente pelo jardim. Apresentaram uma lista de provisões e cálculos, demonstrando que poderiam resistir por meses dentro das muralhas. Porém, em um cenário como aquele, a vitória seria quase impossível. A verdade era que a situação estava perdida. Mesmo assim, o xogum parecia mais interessado nas pacíficas flores de seu jardim do que na guerra.

— A florada das cerejeiras deste ano me parece a mais bela de todas... Nunca haverá outra mais bela do que esta.

Conselheiros, guerreiros e cortesãos demonstraram grande inquietação ante o aparente descaso do xogum.

— Perdoe-me, senhor. Mas como pode pensar em flores quando as nossas vidas correm perigo?

Uma brisa soprou, arrancando uma solitária pétala. Com um movimento preciso, o xogum a apanhou no ar, envolvendo-a com a mão.

— Posso impedir que esta pétala caia agora... Entretanto, não posso evitar a sua queda para sempre. Lamento que as suas vidas estejam em minhas mãos, pois não serei capaz de mantê-las eternamente.

Dizendo isso, o xogum desabrochou os dedos, permitindo que a pétala fosse carregada pela brisa que começava a se intensificar em vento.

Houve grande comoção, pois parecia que o xogum já havia desistido de lutar, abraçando a derrota. Acompanhado por todos os guerreiros, um dos generais insistiu em trazer a mente do líder à situação de guerra. Abrindo uma planta do castelo, exibiu o seu plano de defesa. Após ouvir as preocupações do general e de todos os conselheiros, o xogum ergueu o mapa, dizendo:

— Penso que todos acreditam que esta planta é uma representação do castelo. Para mim, nada mais vejo do que a imagem de um homem... Observem o fosso que ele rasga para se separar de tudo aquilo que julga ser "invasor", isto é, diferente de suas convicções. Vejam as muralhas que ele edifica, mascarando as suas fraquezas para enganar os seus medos. Observem o confuso labirinto de aparências que ele traça para enganar outras pessoas, para confundir todos os que querem chegar à torre principal: o seu coração...

Todos ouviam o xogum com grande emoção. Sentiam que faziam parte das pedras de seu castelo. E o xogum continuou:

— Todos os homens são castelos de si mesmos. Mas o que temos de diferente de todos os outros? O que o nosso castelo de Himeji em cada um de nós tem de especial? Quando todos observam de fora a nossa torre principal, o coração de nossa fortaleza, eles só enxergam cinco andares. Mas nós sabemos que existe um sexto pavimento, oculto, na câmara superior. Esse andar, que os estranhos desconhecem e de que até nós nos esquecemos de sua existência, não tem nome. A partir dele, temos a visão geral dos quatro cantos do castelo, temos a consciência de tudo o que nos cerca. Este andar oculto, da consciência em nosso coração, é o mistério da vida. E por ser inominável, invisível e inexplicável... faz do nosso coração um mistério capaz de alcançar o impossível!

Todos os guerreiros no interior do castelo sentiram o coração bater mais forte. O vento soprava. Os olhares, antes receosos, decidiram-se de súbito, Os olhos do xogum se iluminaram:

— Agora, observem a verdadeira força que este castelo possui — dizendo isso, o xogum percorria com o dedo o traçado da fortaleza. — As muralhas, que parecem arraigadas à terra, tomam a forma de um pássaro prestes a alcançar os céus!

Talvez seja por isso que, a partir daquele dia, o castelo de Himeji passou a ser conhecido como Shirasagi-jo, o castelo da garça branca, pois, de fato, o traçado de suas muralhas retrata um pássaro se preparando para alçar voo.

Dizendo isso, o xogum bradou, suas palavras sobrepondo-se aos rumores do vento:

— Não podemos nos tornar prisioneiros de nosso próprio castelo. Somos homens livres! Não devemos deixar que o medo nos aprisione. Não podemos nos permitir sobreviver se o preço do resgate é deixar de viver, pois uma vida aprisionada é um suicídio sem morte! Lutemos para conquistar as nossas asas!

De um só golpe, o vento rugiu ainda mais forte, ultrapassando as muralhas do castelo, fazendo com que as pétalas das flores de cerejeira rodopiassem em fúria, abraçando o xogum e seus guerreiros, que bradavam a uma só voz. Suas espadas voaram contra os inimigos, que foram totalmente surpreendidos por aquele ataque. Os papéis haviam se invertido. Aturdidos e preparando-se para uma situação de sítio e não de combate imediato, pereceram diante da maior arma da vitória: o valor secreto que se revela inesperadamente no coração de um homem livre,

E aquela batalha memorável nunca mais seria esquecida, porque mostrou a todos que um homem não merece o poder apenas por ser forte como um castelo, mas também por ter a coragem de abandonar a segurança de seu ninho, erguendo as suas asas em audaciosos voos.

Após a grande vitória, caminhando ao lado do xogum entre as exauridas cerejeiras do jardim, um dos conselheiros afirmou:

— De fato, meu senhor, nunca houve e nem haverá uma florada mais bela do que a deste ano.

E o xogum respondeu:

— Imagino, agora, que a do ano que vem será ainda mais bela...
_____________________
Notas:
 Castelo de Himeji (em japonês: Himeji-jo), também conhecido como Hakurojō ou Shirasagijō devido ao seu brilhante exterior branco, é um complexo palaciano com 82 edifícios de madeira, localizado na cidade de Himeji, Província de Hyogo, no Japão.
Uma das mais antigas estruturas ainda existentes do Período Sengoku, é considerado como um Tesouro Nacional do Japão, tendo sido classificado como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO, em Dezembro de 1993. Juntamente com o Matsumoto-jo e com o Kumamoto-jo, é um dos "Três Famosos Castelos" do Japão e o mais visitado do país. (wikipedia)

Xogum (literalmente "comandante do exército", em português), é a abreviação do termo japonês Seii Taixogum (literalmente "Grande General Apaziguador dos Bárbaros"), foi um título militar, usado no período do Japão feudal, concedido diretamente pelo Imperador ao general que comandava o exército (enviado a combater os emishi, habitantes do norte do país). Até 1192, este título possuia nomeação temporária.
Desde o século XII até 1868 o xogum constituiu-se como o governante de facto de todo o país, embora teoricamente o Imperador fosse o legítimo governante e depositasse a autoridade no xogum para governar em seu nome. (wikipedia)


Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 5 - Criança


Cada vez que nasce uma criança há uma possibilidade de adiamento. Cada criança é um novo ser, um profeta em potencial, um novo príncipe espiritual, uma nova centelha de luz que se precipita na escuridão (Ronald Laíng).

O tema criança é abordado aqui porque ela representa a esperança de vermos um mundo melhor, um mundo onde a ambição, a desigualdade e a miséria sejam abolidas das nossas vidas. Mas também porque a criança, assim como a mulher, até o século XIX não era vista como um cidadão, não era levada em conta nas decisões estatais e civis, E é pela boa formação da criança que deve começar o exercício da cidadania.


Quando nasce uma criança,
brota no mundo uma flor...
Flor de uma nova esperança,
nova esperança de amor!
Prof. Garcia - RN
 

Como se fosse riqueza,
inda guardo essa lembrança:
- Um dia eu vi a pureza
nos olhos de uma criança.
Ivaniso Galhardo - RN
 

Em meus sonhos de criança
desejei pescar a lua
e pus anzóis de esperança
nas poças d'água da rua.
Delcy Canalles - RS
 

Um sorriso de criança
mostra um momento profundo,
onde vigora a esperança
de ressurgir novo mundo!
Taciana Canales da Trindade - RS

Infelizmente milhões de crianças vivem abandonadas, sem esperança. É triste vermos todos os dias o que fazemos com as nossas crianças, Elas são as vítimas mais frágeis do nosso desespero e da nossa violência. Sem rumos, perdidos num mundo de violência, não sabemos o que fazer para livrar as nossas crianças do horror e do abandono.

Num mundo sem esperança,
perdido na violência,
como acolher a criança,
tão frágil em sua inocência?
Gonzaga da Silva - RN

Chego a perder a esperança,
vendo ao relento, a dormir,
uma sofrida criança
sem lar, sem paz, sem porvir!
José Valdez de Castro Moura - SP

Vi o pranto derramado
na face de uma criança.
O mundo desnaturado
lhe roubava uma esperança.
Maria Silva Carriço - RN

Passam sempre em meu portão,
trazendo um fardo de dor,
crianças que não têm pão,
pedindo "um pão por favor"!...
Ademar Macedo - RN

Bem caprichosa é a sorte
da infância desprotegida
que vive à espera da morte,
por nada esperar da vida.
Almerinda Fernandes Líporage – RJ

Triste é ver uma criança
no abandono, sem um lar,
pois, sendo a própria esperança
não tem muito o que esperar!
Arlindo Tadeu Hagen - MG

Quanta miséria contida
no olhar tímido e tristonho
de uma criança perdida
entre farrapos de sonho...
Elen de Novais Félix - RJ

Anoitece… aumenta o frio...
E para os guris sem nome,
surge um novo desafio:
dormirão ao lado da fome!
Elen de Novais Félix - RJ

Algumas dessas crianças abandonadas vivem um pouco mais confortáveis quando recolhidas a instituições, uma solução provisória. A adoção poderia ser uma solução mais adequada. Muitos casais anseiam por um filho e gastam enormes somas de dinheiro em clínicas de fertilização. Por que não adotar uma dessas crianças?
 
Por que crianças com frio
não tem o sol de um abraço,
se em tanto braço vazio
há desperdício de espaço?
Almerinda Fernandes Liporage - RJ
 

Quem adota uma criança,
e, além do amor, dá guarida,
abre a porta da esperança
como pai que gera a vida.
Hélio Pedro Souza - RN


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo autor.

Chico Anysio (Mudança)


Era em São Paulo, mais precisamente na Rua Traipu. Fechavam-se as portas da mansão, cerrando-se, à mesma hora, alguns anos de mistério e melindrosas estórias.

O último objeto a ser colocado no caminhão-ônibus da transportadora foi um vaso chinês.

— Cuidado. É relíquia — disse ao mulato que levava a peça no ombro.

O mulato, carioca como companhia de transportes, sorriu-lhe.

— Tô sabendo. Tá comigo, tá com Deus.

Chamava-se Gualberto, mas preferia que o chamassem de Guga, diminutivo que o agradava, e que supunha estar de acordo com a sua personalidade. Estava. Sempre cuidadoso, tratando de suas coisas com exagerado esmero, limpando e polindo o que os empregados já tinham polido e limpado.

— Olhe o pó que está no aparador!

Talvez fosse melhor se, em lugar de empregados, preferisse as empregadas. Mas não se dava a esta preferência.

— Mulher só serve para desarrumar — justificava com uma voz grave e viscosa.

Obeso, branco, quase láteo, tinha mãos gordas e dedos absurdamente curtos. Os óculos, aros de tartaruga, insistiam em descer à ponta do nariz, sem que ele se preocupasse em recolocá-los no lugar devido, o que mais o enfeava.

Tomava sol todas as manhãs, inclusive as de frio intenso. Sem nenhuma vergonha, estendia uma vistosa toalha vermelha no jardim e ali se deitava, facilmente visto por quem passasse na rua.

Poderia enganar a idade, coisa que, aliás, fazia. Dizia ter 45 anos, mas já dobrara os 50 há alguns meses. Agradava-lhe sentir-se mais jovem.

— Adivinha minha idade — pedia demais.

— 42 — iludiam.

— E cinco, nenén. E cinco! — repetia, vibrando.

E sungava as calças com os cotovelos, rindo sem entreabrir os lábios. Puxava a barriga e inflava o tórax, na inútil tentativa de transformar em músculos a gordura quase seio. Apesar disso, pisava leve, invulgarmente suave. Poder-se-ia dizer que deslizava.

— O carro está pronto, Doutor.

Era o chofer, que era louro.

— Já vou, Tommy — falava ao motorista.

E Tomaz ia esperá-lo no carro, nada gostando daquele modo agringalhado como o patrão o chamava.

— Rua Augusta, Tommy.

Vestia-se no Minelli, sempre exorbitando na juvenilidade das roupas. O alfaiate, de início, tentara vesti-lo à maneira dos cinquentões. Desistiu quando percebeu que Gualberto preferia que soubessem que era Guga. A camisa não variava de cor. Invariavelmente preta.

— Negro emagrece — explicava, com mingau na voz. Sempre dizia "negro". Dia algum chamou de "preto" a cor por que optava.

— Preto é pobre — definia, dando nojo à palavra. Tratava os rapazes na segunda pessoa. As moças, chamava de você.

— Oi, Margot, você está bem? E tu, Waldir?

Mudava o tom pra ele, sentindo e exibindo que o "tu" era mais íntimo. Apreciava a felicidade de poder ser íntimo de um pequeno time de jovens. Os jovens a quem — não se cansava de falar — adorava.

— Odeio gente usada.

Era dado a formar frases que imaginava viessem a ficar na história. E foi dos primeiros a usar bolsa.

— Homem tem que usar bolsa. As calças, hoje, não têm lugar pra gente guardar nossas coisinhas.

Suas "coisinhas" eram o cartão do CBC e um pente. Fazia uso dos dois com frequência. As contas pagava ele. E era um bom pagador. De gordas gorjetas. A propina, não a deixava no pires; entregava-a, mão-com-mão, ao garçom, que, via de regra, encabulava-se pelo discreto apertar que sentia.

Ele se ria do acanhamento do moço. Não sabia rir. Precisava, após a risada, enxugar-se. Como não usasse lenço, secava o canto da boca com a manga da camisa. Sem pejo da atitude contrastante com sua educação.

— Aceita um licorzinho?

Era o primeiro oferecimento aos moços que traziam as compras que fizera de tarde. Muitas, desnecessárias. Havia os que aceitavam. Guga, menos só, ficava mais alegre.

Lia Fernando Pessoa para os rapazes que lhe levavam os embrulhos. Entontecia-se discretamente com o lança-perfume que misturava à colônia forte em que embebia o lenço. Usava lenço em casa apenas. E unicamente enquanto lia Fernando Pessoa.

— "Eu, que tenho sentido o piscar dos olhos dos moços de fretes, / eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, / eu, que quando a hora do soco surgiu me tenho agachado. / Para fora da possibilidade do soco".

Banhado pela luz vermelha do abajur que Guga escolhera acender, sem entender coisa alguma, o moço de fretes escutava. Sem entender, mas tudo percebendo. Muitos percebiam, nos dois sentidos.

E agora se ia de mudança. O caminhão da Fink já dobrava na Avenida São João, enfrentando o tráfego difícil do meio-dia. Ele, como um cão que zela pelo dono, seguia atrás, na vigia dos seus pertences.

Cortaria a Via Dutra atrás do caminhão. Sempre temeroso de que a porta se abrisse e por ela caíssem suas relíquias, seus quadros, sua cama, suas coisinhas.

O chofer do seu carro não era mais Tommy. Era um rapaz do Rio. Guga, como sempre, não viajava atrás, mas na boleia. No colo, o livro de Fernando Pessoa.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 121


Rachel de Queiroz (Os Temas Eternos)

    

Recebo uma carta onde o correspondente reclama porque nós, jornalistas, sempre fugimos dos temas eternos. Porque só nos comprazemos com o efêmero — a carestia da vida, as dificuldades da existência urbana, as deficiências dos serviços públicos, os dramas do cotidiano e outras infelicidades transitórias.

A primeira resposta que ocorre é que a gente se ocupa do efêmero porque não tem grandeza suficiente para tratar do eterno. Mas depois dessa reação de humildade, vem a pergunta: na realidade que é que pode ser chamado, em termos humanos, de efêmero e de eterno? Parece que o que se considera eterno ou “temas eternos” são: a Arte, a Beleza, a Ciência, a Religião, o Amor e a Morte. Pelo amor e morte, vá, que são mesmo eternos. Mas os outros conceitos — de beleza, religião, etc., serão eles menos transitórios que as outras preocupações humanas?

Conceito de beleza, por exemplo: nada mais variável. E não só o da beleza feminina que nos primeiros lustros do século rondava pelos setenta quilos de peso e hoje (hélas!*) não pode passar um grama além dos cinquenta. Quem duvidar procure descobrir uma mulher que tenha exatamente as medidas do padrão universal da beleza que é a Vênus de Milo; vistam-na numa roupa de hoje em dia e será um escândalo!

A Vênus terá que ir para a dieta, perder pelo menos uma arroba das suas divinas enxúndias (*). E teremos então uma lição prática de como variam os critérios de beleza,

Ciência. O que para nós é ciência admirável, daqui a cem anos talvez não passe de meras e tateantes primícias. As maravilhas que se inventam hoje, daqui a uns tempos — curtos — hão de ser encaradas com condescendência e ternura, assim como a gente encara a desesperada procura dos alquimistas pela pedra filosofal.

A Arte. Esta, sabemos bem que não é eterna. Ou, mesmo eterna, a sua eternidade depende das modas, pois periodicamente se alteram os motivos da nossa veneração artística pelo passado. O padrão pode estar no Egito e pode estar na Grécia ou na África Negra — e assim exibiremos como modelo de arte eterna uma deusa helênica, um ídolo totem, um gato faraônico. Essas e outras manifestações de arte que consideramos imortais — como os poemas eternos — na verdade quem os leu senão os contemporâneos da obra, quem os lê hoje senão pacientes eruditos?

Eternidade, eternidade, só mesmo para o efêmero que o signatário da carta desdenha. A fome, que se traduz nos problemas de abastecimento e carestia. O Abrigo, que se revela na crise habitacional. E as leis que eternamente regem os homens são: lei do Movimento, que cuida dos transportes, isto é, trens, ônibus, aviões, carros, filas de embarque. E do preço da gasolina. A Lei do Menor Esforço, que nos leva a lutar pela maior comodidade doméstica e funcional — e aí vêm os telefones, a eletricidade, a falta de água, as relações domésticas. A Lei da Procura do Divertimento e do Lazer — e faz com que discutamos cinema, TV, teatro, férias, praias, esportes. Ainda há o Amor e especialmente a Morte, que o correspondente reivindica e ninguém lhe nega — eternos sim mas com a sua venerável, eternidade cabendo quase toda nas notas de polícia.

Não são pois os jornalistas que abandonam os temas eternos. Mais os abandonam os outros que se encerram na metafísica e no hermetismo literário — esses que o vulgo põe tão acima dos simples gazeteiros. Ou, se os não abandonam propriamente tratam esses mesmos temas por outros ângulos que não os nossos: por outro ângulo, sim, mas os temas são os mesmos. Quer se estude o amor fatal num ensaio filosófico quer se conte o caso da moça de programa que tocou fogo na roupa para se vingar do namorado, o tema é o mesmo — o amor, o eterno amor, que governa os deuses e os homens, os filósofos e as mulheres da vida.

Tema eterno é isso.

_____________________________________________
Glossário
Enxúndia – a adiposidade no ser humano; gordura, banha.
Hélas – interjeição que exprime dor, queixa, arrependimento; ai de mim, pobre de mim.
 
Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) V


ELOGIO AO AMOR

Neste caminho eu sigo contemplando
a Natureza exuberante e bela,
passarinhos nos ramos saltitando
entoando canções em aquarela.

Aonde quer que eu vá, eu vou cantando
a pureza do amor, pintado em teia,
que Deus o produziu, por certo amando,
para mostrar ao mundo, em passarela...

O amor? Triste de quem não tem amor,
nem sentiu nesta vida alguma dor,
nem teve uma saudade a recordar?

Pois o amor é um sublime sentimento
que ferve, vibra e invade o pensamento,
e nos leva ao delírio para amar!

ESPERANÇA DE AMOR

Trago no coração um sonho imenso
que o tempo foi jogando para trás,
cada dia que eu vivo, me convenço:
eu nada sou sem teu amor audaz.

A vida sem amor é um contrassenso,
quem vive sem amor nunca tem paz.
Sou mais feliz se tenho, sinto e penso
no milagre que o teu amor me traz.

Depois do vendaval, vem a bonança,
a vida sempre traz uma esperança
que se renova bela como a flor...

E pelo mundo, então, prossigo amando,
e as esperanças vão nascendo em bando
cantando à vida uma canção de amor!

EXPLICAÇÕES

Nunca mais eu te vi na minha rua,
— quantas noites fiquei à tua espera?
As vezes conversava com a lua
e tu chegavas como a primavera.

Partiste. A dor no peito se acentua,
esquecer-te, talvez, ai quem me dera!
Que a minha vida triste continua,
e sem amor, a mágoa é que prospera.

Meu coração, no entanto, tão teimoso
insiste em te buscar, sempre ditoso,
sabendo que jamais hás de voltar.

Ao ver morrer meu sonho, morro junto,
mas antes de morrer em vão pergunto:
— que explicações o amor tem para dar?

FESTA DE NATAL

Neste Natal sublime de esperança,
não desejo vaidade nem riqueza.
Não quero desamor, desconfiança,
quero apenas Amor na minha mesa.

Quero o Perdão sobrando na balança,
quero o sorriso simples da Beleza,
quero a vida singela da Criança
contrastando o Poder e a Realeza.

Não quero ver o mundo na pobreza,
não quero ver a terra na aspereza,
prefiro ver o Amor reinando além.

Desejo ver meu coração ornado
pela graça do Amor, afortunado,
pela grandeza de espalhar o Bem.

GARIMPANDO A FELICIDADE

Vou garimpando pela vida afora
a lição da Humildade que conforta
e traz ao coração a Luz da aurora,
mesmo que a crença já pareça morta.

De solo em solo, busco sem demora
o cascalho do amor que aduba a horta.
Busco a pedra da Fé, que revigora
e prepara o caminho abrindo a porta.

Não quero, meu amigo, andar a esmo,
minha sorte depende de mim mesmo,
que a vida pode ser melhor assim.

E se meus passos forem tão errantes,
buscando joias, pedras, diamantes,
- não haverá felicidade em mim!

IMAGINAÇÃO

Caminho pelas nuvens. É verdade.
Gosto de voar com o pensamento;
com ele volto à minha mocidade
e corro pela praia como o vento.

Da terra eu me transporto com vontade,
visito estrelas pelo firmamento
e escrevo versos simples, sem vaidade,
vestidos de paixão e sentimento,

Os poetas têm sonhos e segredos
que, como as ondas, se quebram nos rochedos,
mas sempre voltam para a beira-mar.

Não há fronteiras para os sonhadores
que pelo mundo vão plantando flores
nos corações que vivem para amar.

INTENSO AMOR

Eu nada vou dizer, quando voltares,
quero apenas rever esse teu rosto.
Tu foste a inspiração nos meus cantares
permeados de amor e de bom gosto.

Por isso quero andar por onde andares,
que o medo de sofrer me faz disposto.
A ausência de teus traços singulares
sofrimento maior me tem imposto.

Não quero me perder neste caminho,
antes, quero sorver o teu carinho,
esse néctar que o teu amor me traz.

Com meus cabelos brancos de saudade,
quero te amar com toda a intensidade
como te amei nos tempos de rapaz!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.
Livro enviado pelo autor.

Arthur de Azevedo (História de um Dominó)


Perdoem-me os leitores se eu, de ordinário alegre, venho contar-lhes uma história triste, num dia em que todos estão predispostos ao riso; mas. . . que querem? Tenho uma natureza especial: o carnaval entristece-me, e o “Abre alas, que quero passar” soa aos meus ouvidos como um canto de agonia e de morte.
* * *

Dado esse pequeno cavaco, saibam os leitores que conheço um homem, o Abreu, que é o mais triste dos homens: só se compraz na solidão e no silêncio, não tem amigos, vive só, e nunca ninguém o viu rir, nem mesmo sorrir.

Entretanto, esse casmurro, em chegando o carnaval, veste um dominó e sai à rua mascarado. Isto são favas contadas todos os anos.

O ano passado um vizinho teve a curiosidade e a pachorra de mascarar-se também para acompanhá-lo a certa distância, e observar o que ele fazia.

Era domingo gordo; toda a população estava na rua. O Abreu apeou-se do bonde, o mesmo bonde em que vinha o curioso que o acompanhava, um bonde do Catumbi, o bairro onde moravam ambos, e desceu com muita dificuldade a Rua do Ouvidor. Chegando em frente à casa de um alfaiate, em cuja porta estavam sentadas algumas donas e donzelas à espera das sociedades, parou, encostando-se na parede da casa fronteira, e ali se deixou ficar, pegando no grupo das senhoras os olhos, que faiscavam através dos dois buracos da máscara de seda.

O Abreu demorou-se ali seguramente meia hora, e o vizinho, farto de esperar, resolveu abandoná-lo, dizendo consigo: – Ora! é um esquisito!… Deixemo-lo!…

Deixou-o efetivamente, mas uma hora depois voltou, e ainda lá encontrou o Abreu no mesmo ponto e na mesma posição em que o havia deixado. Examinou então com mais cuidado o grupo das senhoras, e reconheceu, surpreso, que uma delas era a mulher do Abreu.
* * *

Sim, que o Abreu tinha sido casado com uma bonita mulher que um dia o abandonou para amancebar-se com um sujeito que ele supunha seu amigo, e ao qual abrira confiadamente as portas de sua casa. O amante lá estava por trás do grupo também à espera das sociedades. Toda a gente os supõe casados.

Desde que lhe sucedeu essa desgraça, o Abreu tornou-se triste, e sua tristeza durou e dura ainda, porque ele amava profundamente aquela ingrata. Amava-a tanto, que neste mundo só uma coisa lhe proporcionava um simulacro de prazer: vê-la de perto.

Entretanto os leitores compreendem que o Abreu não poderia procurar a miúdo tão singular espécie de consolação, e nos raros encontros fortuitos que tinha com ela, não a encarava de modo a satisfazer aquele apetite mórbido.

Mas uma vez, há cinco anos, disseram-lhe que sua mulher tinha assistido ao carnaval sentada à porta do alfaiate e, no ano seguinte, o Abreu, metido num dominó alugado, foi verificar se ela escolhera o mesmo ponto. Encontrou-a, e durante muitas horas conseguiu vê-la de perto e à vontade.

Daí por diante o infeliz marido não perdeu um carnaval, e é muito provável que amanhã lá esteja a postos em frente à casa do alfaiate. Os leitores, com alguma pachorra, poderão certificar-se de que este conto não é inventado.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 120


Nilto Maciel (O Castigo de Deus)


Olhei para o chão. Uma sombra deslizava, corria. Respirei e senti cheiro de coisa queimada. Mormaço insuportável. Olhei para o céu, na esperança de ver alguma nuvem de chuva. O sol, pardacento, quase me cegou. Levei as mãos à testa e corri para junto de mamãe, que lavava roupa junto ao tanque cheio de água. Ela nem deu resposta à minha inquietação. Antes, quis saber a causa de tanta tropelia. Fosse brincar na sala e não lhe desse mais sustos. Terminava me batendo.

Assustado, corri, atravessei o corredor e alcancei a porta da rua. Às janelas, mulheres estiravam os olhos para as bandas do céu. E mexericavam medos antigos de fogos vindos do alto para castigar os pecadores. Nas calçadas, esquecidas pelos meninos, castanhas de caju se assavam. Pés descalços não suportavam a quentura do chão. Evolava-se dele uma fumaça espessa.

– Incêndio, minha gente, incêndio!

O homenzinho parecia aflito, suava muito e fedia à cachaça. Talvez fugisse para a serra. O jumento, no entanto, mostrava-se manso, sem a mínima vontade de andar. Com certeza, se sentia cansado de carregar carga tão pesada de bugigangas nos caçuás. Nem olhava para trás nem para o alto.

– Incêndio, meu povo, incêndio!

À falta de ouvintes para sua notícia, o homem vibrava o chicote no ar, como para alertar o animal. O fogo devorava a fábrica do Seu Cordeiro. E ninguém ia apagar as chamas? O jumentinho dava um passo, catava capim, resfolegava. Aproximava-se deles outro curioso, olhos fitos na fumaça cinzenta que passeava sobre todas as coisas. Ninguém ia apagar o fogo?

Medo redobrado, voltei ao quintal e acocorei-me ao pé das bananeiras, onde sempre fazia frio. A terra úmida molhava meus pés e me confortava. No alto, porém, a fumaça corria e, de vez em quando, fazia sombra. Parecia até nuvem de chuva. O homem e seu jumento talvez já tivessem ido embora. Fui até junto ao muro. Não fossem os cacos de vidro, eu poderia ver as ruas, a fábrica do Seu Cordeiro, o incêndio. Línguas vermelhas a lamber o céu azul. E as casas, toda a cidade. Sim, o fogo devoraria tudo, coisas e pessoas. A menos que fôssemos todos para o meio da rua, as praças. Ou para a igreja matriz. Lá o fogo não entraria. Na casa de Deus a salvação. Quando o mar invadisse a terra, no dilúvio do fim do mundo, quem quisesse se salvar, buscasse abrigo no interior da igreja. As águas não passariam dos degraus do patamar, enquanto o mundo estaria alagado.

– O mundo vai se acabar.

E, se não fosse pela água, seria pelo fogo. Por que então não corríamos todos para a matriz?

– Vamos, mãe.

Fazer o quê na igreja àquela hora do dia? Deixasse de besteiras, fosse brincar.

Obediente, atravessei de novo a casa, aos pulos. Da janela avistei o jumentinho, a comer o capim da rua, conformado com sua carga, manso como antes. O homem, suado, no entanto, falava mais alto e gesticulava muito, cercado de curiosos. No céu, a fumaça negra fazia sombras enormes no chão.

Aflito, busquei refúgio no quarto de dormir e me ajoelhei diante do santuário. Deus nos protegeria. Olhei para o teto: a telha de vidro servia de claraboia. No entanto, a luz do sol quase não penetrava no quarto. E papai, onde estaria? Corri mais uma vez para perto de mamãe. Ela saberia me dizer. Nem tive tempo de abrir a boca. Fosse logo tomar banho.

– Seu pai está para chegar.

Precisava ter certeza daquilo e, numa carreira medonha, atravessei a cozinha, a sala de janta, o corredor, e cheguei à sala.

– O que é isso, meu filho?

Ele tirou o chapéu e se dirigiu aos fundos da casa. Estava salvo.

Mais longe, o jumento não parava de comer capim. Onde andaria o homenzinho suado? Estiquei o pescoço – o desgraçado apareceu à porta da bodega de Seu Quincas e cuspiu.

– Venha tomar banho logo, menino mal-ouvido.

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.
Livro enviado pelo autor.

Nilsa Alves de Melo (Trovas Temáticas)


ESPERANÇA

A esperança é flor que medra,
poderosa, em almas fortes,
amolece a dura pedra
e sutura fundos cortes.
* * *
A esperança é doce fonte
de resiliência e paz,
que te faz erguer a fronte,
sem temor e sempre audaz.
* * *
 A esperança traz a sorte,
sorte de afastar o horror,
o horror, seja até o da morte,
da morte, seja qual for.
* * *
A ave busca a segurança
no seu ninho aconchegante;
o homem busca na esperança,
coragem. E segue avante.

ESTAÇÃO

Vê que a estação primavera
tem por precursor o inverno.
portanto, este dito impera:
- Tudo passa, nada é eterno.
* * *
Meu ditoso trem da vida:
- Quero chegar à estação
cujo nome é "Fim da lida",
mas não tenho pressa, não.
* * *
Estação dos meus desejos,
estou atento, no trem:
não quero perder ensejos
de encontrar quem quero bem.
* * *
Na vida há muita estação
de parada obrigatória;
se não prestar atenção,
perde o trem da sua história.
* * *
Partiste levando parte
do meu triste coração.
A outra, eu também quis dar-te,
mas deixaste na estação.

FAMÍLIA

Família, núcleo sagrado,
terno lar, escola e templo,
nos transmite alto legado
através do ensino e exemplo.
* * *
Família, tão firme abrigo
que dos seus jamais esquece!
- Por tal dom a Deus bendigo
e O agradeço em minha prece.
* * *
Por belas vias e atalhos,
das origens não deslizes;
da árvore, sempre os galhos
são nutridos por raízes!

FANTASIA

Vem amanhã, realidade,
já chegou a fantasia,
trazendo a felicidade,
beleza, riso e utopia.
* * *
Peço que o Deus de bondade
não me tire a fantasia,
pois viver só realidade
é sofrer em demasia.
* * *
A fantasia que tece
é linda, mas não oculta
a dor que você padece
e o caos que dela resulta!



Grandes dons, benditas graças,
em benfazeja união
conserva e jamais desfaças
estes elos: – fé e razão.
* * *
Em momentos tortuosos,
angustiantes, até,
seremos mais corajosos,
buscando o apoio da fé.
* * *
Guarde sua fé, ciente
de que ela é seu norte e guia,
com firmeza o leva em frente,
a lutar com galhardia.

FOGUEIRA
Colocar mão na fogueira,
favorecendo um qualquer,
é uma bem grande bobeira,
para um homem ou mulher.
* * *
Na fogueira andou sozinho,
zombavam da sua fé,
até que viram, lisinho,
o solado do seu pé!
* * *
A fofoca é uma fogueira
que tão má, impiedosa avança,
deixando na sua esteira,
o mal e a desconfiança.
* * *
A fogueira da fofoca
queima a mais fiel verdade;
faz de um palácio, maloca,
faz do bem, uma maldade!
* * *
Na fogueira se queimavam
só os livros, nos inícios;
depois, nela torturavam
até mesmo seus patrícios.

FRASE
- Que sempre encontre anjos bons.
Foi a frase que guardei,
repetida em doces tons
pela mãe que tanto amei.
* * *
Disseste a frase tão doce,
comovendo o coração,
Meu desejo é que ela fosse
transformada em oração.
* * *
Basta somente uma frase
dita com amor, emoção,
pra a gente sentir-se quase
rei maior que Salomão.
* * *
Pouca gente sabe o quanto
uma frase tem poder.
Pode até estancar um pranto,
e pode fazer sofrer.
* * *
Letras, palavras, frase,
só frases de bem-querer;
quando as faço, sinto quase
um terno mago a escrever.

Fonte:
Nilsa Alves de Melo. Temas, versos e trovas. Maringá/PR: Massoni, 2018.
Livro entregue pela trovadora.

Vinicius de Moraes (Ser moderno)


Saía o Sol sobre a Terra quando Lot entrou em Zoar. Então fez o Senhor chover enxofre e fogo sobre Sodoma e Gomorra. E subverteu aquelas cidades e toda a campina, e todos os moradores das cidades, e o que nascia da terra. E a mulher de Lot olhou para trás e converteu-se numa estátua de sal.

O grifo é meu e o texto está no Gênese, o primeiro livro de Moisés. O episódio bíblico constitui também, provavelmente, o primeiro caso psiquiátrico de neurose do passado. A mulher de Lot fora instruída a não olhar para trás, a andar a monte com seu marido e suas duas filhas, para não perecer no castigo imposto pelo Senhor à cidade de Sodoma.

- Quem mandou se meter a fogueteira? - diria um psiquiatra moderno da escola kleiniana. Não há que olhar para o passado. O passado é a neurose. O futuro é que conta.

- Então - perguntaria eu, bronqueado - por que é que você está usando uma expressão tão fora de época como "se meter a fogueteira"?

Aí o psiquiatra me explicaria que se tratava de uma expressão usada por sua avozinha, a única pessoa que conseguiu, com muito amor e paciência, corrigi-lo do hábito de fazer pipi na cama até os dez anos; mas que as pessoas projetadas para o futuro é que são isentas de neuroses.

- Feito os cosmonautas? - indagaria eu, meio preocupado com a lavagem cerebral indispensável ao equilíbrio neuropsíquico dos invasores do Cosmos.

- É, mas ou menos... - responderia o nosso amigo, com ar de quem não quer levar a discussão adiante.

Aí... - aí, pombas, cada um iria para a casa de sua mãe, mesmo porque a conversa já estava ficando com um certo ar de crônica de Art Buchwald, como está tão em moda.

É, velhinho... Que fazer? Dar uma de moderno, sair por aí, de calça vermelha ou azul-turquesa, camisa de florzinha e corrente com medalhão ao pescoço, puxando um fumo (1) honesto, e depois ir esticar com uma percanta (2) no Varanda, pra biritar (3) umas e outras? Ou assumir a vida, a experiência, o passado?

- Escuta, bicho, você tá por fora... Falar umas e outras já saiu do ar. Não vá me dizer isso no Veloso... A turma te dá uma buzinada. O último cara que falou assim foi o Chico Buarque, morou?

- Que é que tem o Chico? Eu acho o Chico, um sujeito por dentro, um compositor todo bom, cheio de sentimento...

- Sentimentos? Mas que é isso, bicho? Que coisa mais antiga... Quem tem sentimento é guia de cego. O negócio é entrar na onda (4). Você está em outra (5). Leia Marcuse e Norman Mailer e atualize seu repertório (6). Deixe o espírito vagar. Tem que ter plá (7).

Tem que ter plá, ouviram bem? Ser moderno é achar que a história começa com os Beatles e termina com os hippies. Depois disso, não há mais nada a fazer. É ir levando, entrar em órbita (8), canear (9) por aí com umas grinfas (10) bem xués (11), que é pra não dar dor de cabeça. É o sideral (12). O negócio é muita bolinha (13), muita tia-branca (14), muito LSD ou qualquer outro psicotrópico que dê um barato (15) firme. É de lei!

Realmente, a que se pode aspirar, depois de atingir a categoria hippy? O hippy é, no fundo, tão velho e sem perspectiva quanto um embaixador que caiu na compulsória. É um jovem que pediu aposentadoria da vida, motivado, é claro, pelos mais nobres sentimentos. Tudo, menos o trabalho burguês. Amor, não a guerra. Sexo livre, ambidestro e descompromissado. Desligamento total dos laços tradicionais de família. "Familles, je vous hais; foyers clos, portes renfermées, possessions jalouses du bonheur!" (16) - como já disse André Gide, esse Marcuse avant la lettre, esse velho hippy formalista, que viu Verlaine bêbado na rua sendo apupado e maltratado por um bando de colegiais, e optou por não socorrê-lo para não intervir no curso do seu destino.

E há - importantíssimo! - o problema "acústico".

- Que é que você achou da mulher americana, Miltinho?

- Humm... Não tem som (17).

Tem que ter som, ouviram, ó mulhas? (18). Não basta ser dondoca bonérrima, ter curso de psicologia na PUC, ser aprendiz de guerrilheira ou dona de boutique, assistente social ou bandida (19), grã-fina ou grã-grossa. O negócio é o seguinte: tem que ter som. Perguntem aos músicos mais pra frente (e perdoem se esta expressão tiver sido excomungada ontem no novo Zepelim).

- O Sérgio Mendes? Ih, bicho... já deu o que tinha dar. O som já não é mais aquele, morou? Muito comercial, muito pra gringo. Não dá mais pé. Agora: você já ouviu uns garotos que estão com um conjunto de cavaquinhos e gaitas eletrônicas? Velhinho, aquilo é que é som.

Resultado: andam os músicos a experimentar, dia e noite com seus conjuntos, à cata de um som: um como aquele que conduziu Sérgio Mendes ao auge do faturamento.

- Não, ô cara, a poesia não deixa de ter sua importância na canção, se o infeliz não me vier de amor - saudade - tristeza - coração - luar. Agora: importante mesmo é o som. A letra tem que interpretar o momento presente, aproveitar das novas estruturas, das novas formas, dos novos materiais, da nova linguagem publicitária de nossa sociedade de consumo. Tem que passar sinteco no samba.

- Mas... e o Tom?

- Bem... o Tom é grande, mas já está ultrapassado. Deu uma de coroa (20). Poxa, gravar com o Sina (21), um velhunco, um tremendo matusa (22). Não, bicho, eu estou em outra...

De maneira, arcaico leitor, que o seguinte é o que se segue; e o que se segue é a realidade; e a realidade é um fato; e fato é o que eu vou lhe provar agora: para ser moderno, você tem que estar na deles. Estando com eles, está com Deus. Você tem que usar calças Lee, de preferência desbotadas e puídas nos joelhos (camisas Lacoste é pra granfunço); tem que estar por dentro de blá(23) de malandro e gíria de barbudo de Ipanema; tem que fazer a ponte Zepelim-Varanda, e de vez em quando dar uma de Degrau; tem que discutir cinema novo, e sobretudo Gláuber; tem que saber queimar-o-pé (24) e entrar no embalo-7 (25) com birita de pobre: uísque é pros Onassis da vida; ou estar a balão (26) sempre que puder, puxando seu charo (27) em companhia de uma grinfete (28) super, levando o seu (29) com aquela disponibilidade; mas também sabendo quebrar um pau (30) quando o negócio estiver mais pra fezes (com perdão do eufemismo) que pra mousse de chocolate; tem que gostar de Gal Costa (sem que isso tenha nada a ver com o fato de ela ser uma excelente cantora) e Caetano Veloso (idem para o grande compositor), e tem que achar o Chico um ótimo letrista mas um músico meio devagar; tem que considerar o Chacrinha um gênio, inteiramente dentro do contexto, que é cafono por natureza: (Isso é que é tropicalismo, morou, ô infeliz?); tem que encarar de ver em quando umas patuleiras do asfalto (31), e se mandar pra Barra no carango (32), a mil; tem que, pelo menos uma vez por ano, fundir a cuca (33) e ir misturar as estações (34) numa clínica de repouso, e fazer uma sonda (35) seguida de uma psicoterapia de apoio - dá um pé bárbaro!

É isso que você tem que fazer, execrável leitor, se quiser ser moderno. Pergunte a esse grande ator Hugo Carvana, que me forneceu muitos dos elementos que estão aqui. O resto é papo furado. Se você não estiver nessa nunca vai ser um praça-boa, uma pedra-90 (36). Senão, bicho, quando você for buscar o milho, eles já fizeram a pipoca. Em rio que tem piranha, mosquito não dá rasante. Quem se mete a avestruz tem que aguentar o ovo. Ou como diz o fotógrafo filósofo e gentleman tijuco-ipanemense Paulinho Garcez: "Ajoelhou, tem que rezar!"

* P.S. Para os que estão mais por fora que marido enganado, fiz um pequeno glossário. Se quaisquer outras dúvidas ocorrerem, consultem o jovem super ao seu lado.

E por falar nisso: pode haver nada mais velho do que o novo?

Glossário
1 - Puxando um fumo: fumando maconha;
2 - Percanta: mulher, garota que se namora;
3 - Biritar: tomar bebida alcoólica;
4 - Entrar na onda: assumir o moderno, com tudo o que ele implica;
5 - Estar em outra: ser antigo, ou quadrado;
6 - Repertório: a súmula do linguajar moderno;
7 - Plá: substrato, bossa, espírito;
8 – Entrar em órbita: embriagar-se com drogas;
9 - Canear: beber;
10 - Grinfas: mulheres, garotas do mesmo naipe;
11 - Xués: malucas;
12 - Sideral: embriaguez específica por drogas ou psicotrópicos;
13 - Bolinha: excitantes medicamentosos em pílulas;
14 - Tia-Branca: cocaína;
15 - Barato: corruptela de baratino: o mesmo que o item 12;
16 -"Familles, je vous hais; foyers clos, portes renfermées, possessions jalouses du bonheur!": "Famílias, eu vos odeio; lares fechados, portas trancadas, possessões ciumentas da felicidade";
17 - Som: musicalmente, o correspondente a plá, qualidade sonora, bossa, inventiva, expressão;
18 - Mulhas: corruptela de mulher em gíria;
19 - Bandida: mulher ou garota de vida fácil, sem chegar a ser uma prostituta: diz-se também vadia;
20 - Coroa: quarentão;
21 - Sina: Frank Sinatra;
22 – Matusa: corruptela de Matusalém; velhíssimo, ancião;
23 - Blá: papo, conversa;
24 – Queimar o pé: embriagar-se;
25 - Entrar no embalo-7: embriagar-se muito; também se diz encher a cara;
26 - Estar a balão: inebriar-se com drogas ou psicotrópicos; estar suspenso no ar;
27 - Charo: corruptela de charuto; cigarro mais grosso de maconha;
28 - Grinfete: diminutivo de grinfa (ver no 10), broto, lolita;
29 - Levando o seu: contando suas histórias, levando o seu papo;
30 - Quebrar um pau: brigar fisicamente;
31 - Patuleiras do asfalto: prostitutas perambulantes, como se vê ao longo das praias;
32 - Carango: automóvel de preferência velho;
33 - Fundir a cuca: ficar neurótico, ou muito perturbado mentalmente;
34 - Misturar as estações: idem, como se tratasse de um rádio;
35 - Fazer uma sonda: sonoterapia;
36 – Praça-boa, pedra-90: pessoa de qualidade; o mesmo que bacana.


Fonte:
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro/RJ: 31/12/1969

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 119


Francisco José Pessoa (Serra Enigmática)


Vens perfurando a terra desde o nadir, para respirar o ar puro de Guaramiranga?

Com que autoridade desalinhas o horizonte com as tuas corcovas indecisas, ora descendo humilhando-te, ora subindo orgulhando-te?

Mas, com teu orgulho ou com tua humildade, em reverência ao teu criador, propicia-me um visual místico, solar dos deuses de antão.

Minha linda e apaixonante cordilheira, onde o sol respeitosamente mergulha nas tuas misteriosas costas para dizer adeus ao dia e dar vida às estrelas, faz-te minha musa pois, enamorando-te, sinto o vento açoitar-te levando com ele meu beijo.

Estás mais cinza. Não sei no momento precisar tua cor mas, para que te dar cores, se és um caleidoscópio que muda com os passos do astro-rei, que te aquece num vespertino abraço conjugal?

Serra do hoje, do ontem, do amanhã, testemunha de gerações que outrora achavam-te incólume no buscar dos seus sustentos. Hoje, olho-te, admiro-te, e conversas comigo num diálogo mudo, quando os olhos são as letras e os sentimentos sílabas, que descrevem o que de mais belo existe em ti.

Encobre-te com um manto de névoas, na tentativa de esconder-te de mim, mas, espero pacientemente que o véu se espraie, quando poderei admirar-te, levantando o véu que te faz misteriosa.

Quantos caminhos de rios te nutrem o útero, fazendo-te mais rica e mais saudável para nós teus devastadores. São 17h30. 0 sol encabulado se esconde, rendendo-te homenagem, ó pedaço de terra abençoada.

Que da outra vez aqui vier, estejas disposta a ouvir os meus clamores, acordes maviosos capazes de fazer inveja aos mais virtuosos compositores de ópera.

Decifro-te, minha cordilheira enigmática. És a sombra do sol que se põe e o brilho das estrelas que nascem. E mais um dia se fez!

Fonte:
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Livro enviado pelo autor.

Glycínia de França Borges (Jardim de Trovas)


Agora tenho na mente,
muita coisa a realizar:
Ver a família contente
com o natal a chegar.

Amei, fui correspondida,
por muitos e muitos anos...
Que linda história de vida,
de prazer... Sem desenganos!

A vida com esperança,
mais a primavera em flor,
dão prazer, perseverança,
no todo, com muito amor!

Com os fogos e fogueiras,
festejamos São João...
São fórmulas costumeiras
de esquentar o coração!

Depois que bebe, ele corre,
a velocidade o anima...
Só vai acordar do porre
lá no "céu" ou na oficina!

Explode no firmamento
um sol de raro esplendor,
espargindo pelo vento,
eflúvios de eterno amor!

Ipês rebrilham como ouro
em Curitiba, é verdade.
Flores no chão qual tesouro
são tapetes da cidade!

Muito triste, inestimável,
foi perder o meu marido,
realmente, lamentável,
o fato de ter partido.

Nesta sugestiva data,
nosso desejo sensato:
um porvir de magnata,
ordem, progresso, de fato!

O firmamento, figuras
muito estranhas, a valer...
Parecem nas nuvens claras,
carneirinhos a correr!

Palavras, consolação,
pra saudade, não existe!
Mais que uma simples paixão,
só ao milagre resiste.

Político mafioso,
em nossa concepção
quando apático e ocioso,
é um desastre pra nação!

Saudade aquele quesito,
que nos punge, que devora...
É aquele amor infinito,
que sem piedade apavora...!

Sempre alerta no volante,
no meu trajeto diário,
com cautela, a todo instante,
vou viver… um centenário!

Fonte:
Vânia Ennes. Elo de gerações. Curitiba: InVerso, 2018
Livro enviado pela autora.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 118


Contos e Lendas do Mundo (Carajás: Um Mundo de Céus Infinitos)


Segundo a maioria dos mitos sul-americanos, os primeiros humanos eram imortais. Podiam viver para sempre. No entanto, este mito carajá conta a história de maneira diferente.

Há muito, muito tempo, os humanos não viviam à superfície da Terra, mas sim no seu interior. Quando a noite caía no lado de fora, no interior reinava o dia, e a explicação era simples: quando o Sol baixava e deixava de se ver no final de cada dia, desaparecia dentro da Terra e iluminava o seu reino subterrâneo. Depois, quando a manhã chegava, o Sol erguia-se no horizonte, saindo de dentro da Terra, e voltava para o céu.

Entre as pessoas que viviam neste mundo subterrâneo - e é preciso não esquecer que, no princípio, era aí que todas elas moravam - havia um homem chamado Kaboi, dotado de grande sabedoria.

Às vezes, quando Kaboi se deitava no seu leito à noite - no interior da Terra era noite, enquanto à superfície era dia -, ficava a escutar um canto estranho que lhe chegava de cima.

Embora os dois mundos estivessem divididos por uma espessa camada rochosa, aquele canto chegava-lhe com muita nitidez, deixando-o curioso quanto à sua origem. Nunca pensou que se tratava do canto de uma seriema, ave que vivia nas vastas planícies verdejantes da savana.

Não tinha possibilidade de saber que as próprias ervas cantavam quando o vento passava por entre elas. Verdade seja dita, ele também nada sabia acerca de ventos, pois, no interior da Terra, o ar estava parado e nunca nenhum humano vira o mundo que ficava por cima.

Certa noite, Kaboi não conseguiu aguentar mais. Resolveu seguir o som e tentar descobrir de onde vinha. Várias pessoas concordaram em acompanhá-lo; porém, os seus nomes já foram, há muito, esquecidos.

Kaboi e os seus companheiros subiram pelas paredes rochosas do mundo subterrâneo, até chegar ao lugar onde o som se ouvia com mais força.

Kaboi sentiu no rosto uma brisa suave, ele que nunca antes experimentara tal sensação. E pelas narinas entrou-lhe um odor estranho... o odor da erva da savana. Kaboi olhou para cima e avistou, mesmo por cima da sua cabeça, um buraco aberto na rocha. Deitava para um longo túnel que, por sua vez, ia dar à superfície.

Nesse preciso momento, a seriema cantou de novo e as pessoas que rodeavam Kaboi soltaram exclamações de entusiasmo.

- Tinhas razão - observou uma delas.

- Encontraste um caminho que vai dar a outro sítio! - exclamou outra.

Foi um momento de grande entusiasmo para Kaboi. Se, de fato, havia um mundo novo no lado de fora, ele ficaria para sempre conhecido como aquele que descobrira o caminho para lá chegar.

Kaboi achou que devia dizer algumas palavras para marcar aquele momento importante; porém, estava de tal maneira entusiasmado que se içou para a entrada do túnel. O pior é que não conseguiu passar, pois a abertura era demasiado pequena para a sua enorme barriga.

- Temos de abrir um túnel mais largo! - declarou alguém.

- Não vale a pena - respondeu Kaboi. - O que interessa, acima de tudo, é descobrir o que está no outro lado - salientou. - Só vos resta subir pelo túnel e partir à aventura.

Os companheiros de Kaboi percebiam bem do grande desgosto que este experimentava por não poder visitar a superfície; no entanto, achavam que as suas palavras faziam sentido e estavam todos ansiosos por partir à descoberta do que havia no exterior.

Antes de o último homem desaparecer pelo túnel acima, Kaboi pousou-lhe a mão no ombro.

– Não te esqueças de ver de onde vem o canto que costumo ouvir à noite – recomendou.

- Prometo não me esquecer - retorquiu o homem.

Os primeiros seres humanos a visitar a superfície da Terra, a que agora chamamos nossa, mal podiam crer no que os seus olhos viam. O céu azul que se estendia, a perder de vista, por cima das suas cabeças, era algo que jamais tinham imaginado. As árvores, as plantas, as aves... Tudo era novo e espantoso para eles.

- O Kaboi descobriu-nos um paraíso! - rejubilou-se um deles.

- Todos irão querer viver aqui - disse outro.

- Estou ansioso por lhe contar - acrescentou um outro.

Houve mais alguém que desejou falar; porém, a sua voz foi abafada pelo canto da seriema.

- Ah! Ah! - exclamou essa pessoa em tom triunfante, depois de a ave se afastar. - Ali está a criatura cujo canto fez com que chegássemos a este lugar maravilhoso. Temos de voltar para junto do Kaboi e contar-lhe o que vimos.

- Acho que também devemos levar conosco coisas para lhe mostrar – sugeriu o primeiro.

Todos concordaram com a ideia.

Colheram fruta, juntaram abelhas, mel e bocados de madeira seca que tiraram de uma árvore morta, subindo, em seguida, até ao lugar onde ficava o túnel que os conduziria de novo ao mundo subterrâneo.

- Kaboi, encontramos um lugar maravilhoso! - exclamou um deles.

- O teto do mundo lá de cima não é feito de pedra como o nosso, mas sim de ar azul que se estende a perder de vista - disse outro.

Não podia utilizar a palavra «céu», porque ela não existia. Nunca nenhum humano o vira, melhor dizendo, até então.

Todos desataram a falar ao mesmo tempo, ansiosos por transmitir as maravilhas com que tinham deparado.

- Calem-se - pediu Kaboi. - Temos tempo para falar de tudo isso.

- Olha o que trouxemos - disse um dos membros do grupo que partira em investigação, enquanto pousavam os frutos, abelhas, mel e madeira seca em frente do sábio Kaboi.

Kaboi pegou numa peça de fruta, cheirou-lhe a pele e deu-lhe uma dentada na polpa. O suco escorreu-lhe pelo queixo.

- Que delícia! - elogiou. - O mundo que gera delícias como esta deve ser maravilhoso.

A seguir, examinou as abelhas e o mel.

- Os insetos do mundo exterior são trabalhadores esforçados continuou, metendo depois um bocado de favos de mel na boca. - E não há dúvida de que o que produzem é doce. Não restam dúvidas de que este mundo novo é fantástico, é um mundo de abundância.

Por fim, pegou no bocado de madeira seca, que virou e revirou várias vezes entre as mãos.

- Onde é que acharam isto? - quis saber.

Um dos elementos do grupo abriu caminho até à frente.

- Encontrei isso numa árvore - explicou.

- Todas as árvores do mundo exterior são feitas de madeira como esta?

- Não - respondeu o homem. - As outras árvores estão de pé e direitas, cheias de folhagem verdejante. Essa estava deitada por terra e não tinha quaisquer folhas. Foi por isso que te trouxe um bocado da sua madeira.

Kaboi ficou com uma expressão solene.

- Não há dúvida de que o mundo lá de cima é muito belo e produz em abundância. Mas também é um mundo onde, a seu tempo, tudo morre.

Via-se, pela cara das pessoas, que estas não tinham percebido bem o significado das palavras do sábio Kaboi.

- No mundo lá de cima, tudo o que tem vida acabará por definhar e morrer - explicou ele.

- Mas aqui em baixo também morremos - contrapôs o homem que trouxera os bocados de madeira seca.

- É um tipo de morte completamente diferente - disse Kaboi. - Aqui, nós não mirramos e secamos como este bocado de madeira. Aqui, nós nascemos e vivemos durante centenas de anos, até deixarmos de existir retorquiu Kaboi. - Lá em cima as coisas nascem, vivem e vão ficando cada vez mais velhas e gastas, até morrerem. Se algum de vocês optar por viver no mundo exterior, também morrerá muito antes daqueles que, entre nós, forem suficientemente ponderados para ficar.

Gerou-se um silêncio de estupefação.

Como os nossos antepassados viviam no mundo subterrâneo não sabiam o que era a decadência, tinham muita dificuldade em compreender as palavras do sábio Kaboi. Mesmo aqueles que tinham uma vaga noção do que ele queria dizer, acharam que o preço a pagar era demasiado pequeno comparado com a possibilidade de viver naquele mundo novo tão belo.

Foi assim que muitas pessoas subiram pelo túnel e passaram a viver na superfície da Terra, onde hoje nos encontramos todos, tendo o céu límpido por cima das nossas cabeças e o chão firme debaixo dos nossos pés.

Descendemos todos desse primeiro povo que optou por essa vida nova à superfície onde, mais cedo ou mais tarde, a morte acaba por nos apanhar a todos.

Quanto a Kaboi, este continuou no subsolo, satisfeito por saber que viveria mais tempo do que os que estavam na superfície poderiam alguma vez imaginar.

Kaboi continuou a poder escutar o canto da seriema e a imaginar o aspecto que a ave teria, agora que lha tinham descrito. Mas também ouviu outros sons: o das pessoas a rir, chorar e morrer.

Fonte:
Mitos e Lendas Sul Americanas.

Cruz e Sousa (Poemas Humorísticos e Irônicos) IV


DILEMA
Ao cons. Luís Alvares dos Santos

Vai-se acentuando,
Senhores da justiça — heróis da humanidade,
O verbo tricolor da confraternidade...
E quando, em breve, quando

Raiar o grande dia
Dos largos arrebóis — batendo o preconceito...
O dia da razão, da luz e do direito
— Solene trilogia —

Quando a escravatura
Surgir da negra treva — em ondas singulares
De luz serena e pura;

Quando um poder novo
Nas almas derramar os místicos luares,
Então seremos povo!

À REVOLTA
A Cassiano César

O século é de revolta — do alto transformismo,
De Darwin, de Littré, de Spencer, de Laffite —
Quem fala, quem dá leis é o rubro niilismo
Que traz como divisa a bala-dinamite!...

Se é força, se é preciso erguer-se um evangelho,
Mais reto, que instrua — estético — mais novo
Esmaguem-se do trono os dogmas de um Velho
E lance-se outro sangue aos músculos do povo!...

O vício azinhavrado e os cérebros raquíticos,
É pô-los ao olhar dos sérios analíticos,
Na ampla, social e esplêndida vitrine!...

À frente!... — Trabalhar à luz da ideia nova!...
— Pois bem! Seja a ideia, quem lance o vício à cova,
— Pois bem! — Seja a ideia, quem gere e quem fulmine!...

ESCÁRNIO PERFUMADO

Quando no enleio
De receber umas notícias tuas,
Vou-me ao correio,
Que é lá no fim da mais cruel das ruas,

Vendo tão fartas,
D'uma fartura que ninguém colige,
As mãos dos outros, de jornais e cartas
E as minhas, nuas — isso dói, me aflige...

E em tom de mofa,
Julgo que tudo me escarnece, apoda,
Ri, me apostrofa,

Pois fico só e cabisbaixo, inerme,
A noite andar-me na cabeça, em roda,
Mais humilhado que um mendigo, um verme...

DECADENTES

Richepin, Rollinat! gritos sangrentos
Da carne alvoroçada de desejos,
Mosto de risos, lágrimas e beijos,
Estertores de abutres famulentos.

Desesperado frêmito dos ventos,
De harpas, sutis, fantásticos arpejos,
Clarins de guerra, e cânticos e adejos
De aves — todos os vivos elementos.

Tudo flameja e nas estrofes canta,
Estruge, zune, em borbotões levanta
Noites, luares, fulgurantes dias.

Mas nessa ideal temperatura forte
Tudo isso é triste como a flor da morte
Que brota dentro das caveiras frias...

DOENTE

As unhas perigosas da bronquite
Nas tuas carnes sensuais e moles
Não deixarão que o teu amor palpite
Nem que os olhares pelos astros roles.

É fatal a moléstia. Só permite
Que te acabes por fim e que te estioles,
Sem que em teu peito o coração se agite,
Sem que te animes, sem que te consoles.

Vai se extinguindo a polpa dessas faces...
Mas se ainda hoje em mim acreditasses,
Como no tempo virginal de outrora,

Tu curar-te-ias com pequeno esforço
Das serranias através do dorso,
Pela saúde dos vergéis afora.

Fonte:
Cruz e Souza. Poemas Humorísticos e Irônicos. MEC, Fundação Biblioteca Nacional.