segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Rachel de Queiróz (O Rei)


A velha Marica Lopes, moradora na fazenda de minha avó, entrava pela casa dos noventa: tinha sido rendeira célebre, mas já então os olhos gastos não lhe permitiam mais do que fazer filé de almofada, para ser tecido depois em labirinto e crivo. Um dia cheguei lá e dei com ela no terreiro, numa roda de moleques, aprendendo a jogar bola de palha, que é uma espécie de peteca feita com palha de milho. Me vendo, sentou-se no batente na porta, gorda e bufando. E como eu estranhasse aquele esporte violento na sua idade, ela me disse que “o velho paga o menino”, e então me contou a história do rei.

Era uma vez um rei que começou a reinar com três anos de idade; aos quatro anos já andava com a coroa de ouro na cabeça, governando; com doze já tinha rainha ao lado; aos vinte a barba lhe batia na cintura.

Mas no dia do vigésimo nono aniversário do rei, que todos já consideravam um velho à espera dos netos, o povo que veio tocar alvorada na porta dele, segundo o costume, viu sua majestade aparecer à janela ainda de camisola, fazer uma careta para os súditos e sair pulando amarelinha nos ladrilhos da sala, Depois deu para saltar feito macaco dos caibros para os armadores, dos armadores para as ripas, em tempo de atirar o telhado no chão. O povo abriu a boca num bué, certo de que o rei tinha ficado doido. Chamaram o bispo, padrinho dele, que nem teve tempo de botar a mitra, e veio assustado, com uma caldeirinha de água benta, exorcizar o rei; mas no que abria a boca para dizer “T’esconjuro, abrenúncio!” o rei deu uma risada, sentou-se na rede, balançou-se um pouco e explicou ao bispo:

— Não se assuste, meu padrinho, eu não estou doido. Mas hoje é dia dos meus anos e de madrugada acordei e me deu um baque no coração: quase desde a hora em que nasci me puseram neste cativeiro de reinado, e eu nunca pude ser criança nem menino. E então fiz uma jura de hoje mesmo tirar o desconto e me gozar de tudo que por culpa dos outros perdi!

Aí pediu licença e bateu palmas e quando o moleque apareceu o rei mandou buscar uma rapadura no paiol; em vez de tomar café de leite com bolo, ia tomar um chibé de rapadura. Riu-se de novo meio encabulado e explicou:

— Faz vinte e cinco anos que eu sonho e sinto esse desejo.

Depois, para não perder tempo, desarmou a rede, desatou a corda, e pôs-se a pular corda enquanto a rapadura não chegava.

O bispo chegou na janela e explicou o caso que havia. O povo até chorava, de pena do rei. E então retiraram-se todos com a banda de música, deixando o pobrezinho vadiar em paz.

Isso não é um apólogo nem nada, Foi só saudade da Marica Lopes, minha mestra no trocado de bilros e que entendia de repressões infantis sem ter nunca ouvido falar em Freud. Ontem todo o mundo estava discutindo Freud numa casa onde andei e só diziam bobagem; e aí eu me lembrei de Marica Lopes.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

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