domingo, 3 de novembro de 2019

Malba Tahan (Parábola das Mães Felizes)



(De um poema árabe do século XII)

Jovem mãe ia, enfim, iniciar a grande jornada pela estrada incerta da vida. E perguntou, muito tímida, ao Anjo Bom do Destino:

- É longo o caminho a percorrer, Senhor? Serei feliz com meus filhos que tanto amo e estremeço?

Paciente e benévolo e com voz cheia de meiguice, respondeu-lhe o Anjo Bom do Destino:

- O caminho, que se abre diante de ti, é longo muito longo, semeado de angústias, recortado de dores e atapetado de fadigas. Antes de alcançares a curva extrema, virá a impiedosa velhice ao teu encontro. Ainda assim, asseguro-te que os teus derradeiros passos serão mais cheios de alegria e ternura do que os primeiros.

E a jovem mãe partiu. Sentia-se extremamente ditosa em companhia de seus filhinhos. 

- O caminho, que se abre diante de ti. é longo, muito longo, semeado de angústias, recortado de dores e atapetado de fadigas.
    
A existência lhe decorria sob o véu de um delicioso encantamento. Brincava com os pequeninos; colhia para eles, unicamente para eles, as mais lindas flores que adornavam os caminhos do mundo. E o sol brilhava, inundando a terra com a bênção de suas torrentes de luz.

E o dia se escoava tão sereno, que a jovem mãe murmurou, fitando, enternecida, o céu azul:

- Nada haverá, Senhor, de mais belo! Jamais serei, na companhia de meus filhos, mais feliz do que o sou agora!

A noite veio, porém, alongando sobre a terra o seu manto pesado e sombrio. Nuvens disformes amontoaram-se no firmamento; desabou o temporal. O vento norte uivava como um chacal faminto correndo tonto pelos areais sem fim. Os pequeninos, tolhidos de frio, trêmulos de medo, soluçavam. A jovem mãe destemida aconchegou-os a si, agasalhando-os sob sua túnica; e as crianças, bem abrigadas e protegidas, murmuraram docemente, docemente murmuraram:

- Ó mãezinha querida! O medo já não se abriga em nossos corações! A teu lado, mãezinha adorada, nenhum mal nos alcançará!

E a jovem mãe exclamou num ímpeto de alegria:

- Isto para mim, ó Deus! É mais belo e grandioso do que a jornada pelo caminho tranquilo, sob o esplendor do dia! Sinto-me, realmente, feliz! Mais feliz do que ontem! Contra a tormenta protegi meus filhos e lancei, para sempre, em seus corações, a semente do destemor, da confiança e da coragem!

Passou a noite. Louvado seja Deus! A noite passou. Raiou, esplêndida e balsâmica, a alvorada. A estrada, naquele terceiro dia, se estendia, ladeirenta, pelo dorso de uma montanha alcantilada e perigosa. Era forçoso subir. Subir muito. Os pequeninos sentiam-se fatigados. A jovem mãe, quase desfalecida de sede e de cansaço. 

Fazendo, porém, das fibras coração, mostrava-se animada, e, sem cessar, dizia aos filhos:

- Vamos! Para cima! Breve chegaremos ao alto! Vamos! Subamos sempre! Subamos!

E essas palavras multiplicavam energias que o esforço constante e excessivo queria aniquilar. E as crianças iam subindo, subindo... Chegaram, finalmente, ao cimo da montanha. A jovem mãe os enlaçou, então, em seus braços carinhosos. E eles lhe disseram:

- Ó mãezinha querida, sem ti não teríamos conseguido vencer estas escarpas, contornar estes abismos e levar a bom termo esta jornada. Sem o teu auxílio incomparável  sucumbiríamos em meio da escalada. Sabemos, agora, como superar os grandes obstáculos da sorte!

E a delicada mãe, ao repousar naquele dia, semimorta, exclamou arrebatada:

- Ó Deus, clemente e justo! O dia de hoje foi para mim melhor ainda do que o de ontem! Sinto-me mais feliz! Mais feliz do que nunca! Ensinei meus filhos a enfrentar bravamente os revezes e as tristezas da vida!

No quarto dia, estranhas nuvens cor-de-chumbo cruzaram o céu. Um rugido surdo, que parecia partir das profundezas ignoradas da terra, enchia o ar soturnamente. De súbito, a imensa montanha tremeu; rochas descomunais desprenderam-se e rolaram com estrondo para os abismos apavorantes.

Era o cataclismo que começava. Tão altas e densas erguiam-se as colunas de pó, que chegavam a cobrir a face do sol. E as trevas da noite desceram sobre a terra em pleno dia. A morte, com suas garras de fogo, rondava por toda a parte. Nem tenda havia nem caverna ou abrigo, onde um ser humano pudesse ter segura a curta vida. 

As crianças, presas de cruciante pavor, choravam. E a jovem mãe, serena e forte, lhes dizia:

- Em Deus confiai, meus filhos! Olhai para cima! Deus não nos abandonará!

E os pequenos confiaram em Deus. E Deus os livrou da fúria infrene. Ao findar aquele dia a mãe exclamou, em Êxtase, erguendo humilde para os céus os seus olhos cheios de gratidão:

- Este foi o dia melhor da minha vida. Senhor! Ensinei a meus filhos a crer em Vós, a confiar em Vós, só em Vós, ó Deus misericordioso!

Amontoaram-se os dias: sucederam-se os meses; os anos passaram. E a mãe, toda entregue à felicidade e ao bem-estar dos filhos, não sentiu o rolar intérmino do tempo. Os seus formosos cabelos fizeram-se brancos como a neve; o brilho desapareceu-lhe dos olhos; a face tracejou-se-lhe de rugas. Era, enfim, a velhice. Mas, que encanto para sua vida de mãe! Os filhos crescidos, fortes, cheios de alegria, pareciam redobrar neles a boa seiva que dela partira. Ela, a mãe feliz, curvada ao peso da vida, já mal podia caminhar. Os filhos, porém, ali estavam, a seu lado, para servi-la, honrá-la e obedecer-lhe!

O mais velho dizia-lhe, carinhoso e com desbordante afeto:

- Mãezinha! Quero hoje carregar-te em meus braços! Estás tão fraca e cansada!

Protestava o mais moço com entusiasmo:

- Que egoísmo é esse, meu caro! Hoje é meu dia. Eu, sim, é que irei carregar a mãezinha querida!

E a mãe feliz sorria a um, abraçava a outro; beijava a ambos.

Que bons e dedicados lhe eram os filhos. Sim, para o coração materno, fizera pausa o tempo. Eles eram ainda os seus filhinhos, os filhinhos ternos, estremecidos... E ela sentia-se tão feliz, tão feliz, que não achava palavras com que agradecer a Deus!

Um dia, afinal, a mãe ditosa reuniu os filhos e disse-lhe, num fiozinho de voz:

- A minha tarefa está finda, meus filhos. Vou deixar-vos. Irei para longe, para muito longe daqui ...

O mais velho acudiu logo, carinhoso:

- Pois iremos contigo, mãezinha! Ninguém nos poderá separar de ti!

Ela não sustentou as lágrimas e deixando-as deslizar, insistiu com meiguice:

- Não, queridos. Desta vez terei de ir só. Sozinha partirei.

E eles, afeitos à obediência, mais uma vez obedeceram. E a boa velhinha partiu. Foi indo, vagarosamente, toda encurvada, trêmula...

Diante dela, no extremo do caminho, abriram-se dois largos portões que refulgiam cheios de luz. Entrou. Uma voz, que mais parecia um cântico de glória, lhe dizia com infinita mansuetude:

- Vinde a mim, ó mãe feliz! Vinde a mim!

Os filhos, que a vigiavam de longe, viram-na de repente desaparecer:

- Ela partiu para sempre! Não a veremos nunca mais! Nunca mais! - exclamaram emocionados. - Mas a santa lembrança dessa mãe querida viverá para sempre em nossos corações! Eduquemos nossos filhos como ela nos educou: na bondade, na obediência, no amor...

E no silêncio da tarde que caía, lentamente, ouvia-se o sussurro de um chorar longínquo. Calaram-se todos.

Que seria? 

Era o filho mais moço. O rosto entre as mãos, inconsolável, soluçava de joelhos, à margem da vida, com a dor da saudade a negrejar-lhe o coração:

- Minha Mãe! Minha Mãe querida!...

Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.

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