sábado, 9 de novembro de 2019

A. A. de Assis (Poemas Diversos) 1


ABDITUM

Vontade
de dormir
mas não sonhar... dormir apenas...

Vontade
de encostar a vida
num abandono macio
esquecido de que existe um mundo inteiro
em torno de minha presença...

Vontade
de sair de mim
deixando meu eu
habitado de nada...

Vontade
de penetrar
num sono leve... longo e leve...
distante da própria respiração...

Vontade
de esquecer que existo
e de que existe um mundo inteiro
em torno de minha presença...

CHUVA

O céu está chorando
distante da cidade
envolta na tristeza
do pálido véu de lágrimas
da chuva que se derrama.

Escorrega na vidraça
uma lembrança
que me perturba.

Umedece-se na chuva
uma saudade
que me confunde.

Meus olhos estão chorando
distantes da lembrança
que escorrega na vidraça
do pálido véu de lágrimas
da saudade umedecida.

ICARAÍ

Barquinho de vela
desliza gostoso
na crista das ondas
pintando de branco
um ponto distante
no verde oceano.

Poeta
na praia
contempla
o poema
que boia
tranquilo
ao sopro
da brisa
fresquinha
do mar.

Barquinho flutua
brincando nas ondas
alguém dentro dele
sorrindo, cantando
fugindo, sonhando
singrando... singrando...

LENDA

Na praça adormecida
o chafariz namora a madrugada.

Menino aparece
quem sabe de onde
com seu violino
cantando e tocando
e bailando e sorrindo.

Um corpo de mulher
misteriosamente
substancia-se no chafariz.

E salta das águas
e cai de joelhos
e grita e lamenta
e chora em delírio
de mágoa e de dor.

Menino calmamente
emudece o violino
aproxima-se do vulto
toma-lhe o rosto nas mãos
trocam olhos, trocam beijos...

E partem os dois bailando...
Ele tocando, ela cantando...

Enquanto na praça adormecida
O chafariz namora a madrugada...

MENINA

Um dia menina linda
no meu quarto apareceu.

Menina sorriu contente
alegrando o mundo meu.

Menina de lábios quentes
minha boca apeteceu.

Beijando menina linda
louco amor em mim nasceu.

Menina foi logo embora
não sei onde se escondeu.

Menina deixou saudade
que até hoje não morreu.

MISSA

Sinos sacros bendenlengam no ar.
- Gutinho, levanta!
- Já vou, mamãe… aahhh!...
- Depressa, menino, está na hora da missa.
Sinos resmungam de novo no ar.
Último sinal
A cidade atende;
vai à Igreja
rezar.
Maria Amélia
e Dona Morgada
enchem de Agnus Dei
o Templo de Sigmaringa,
Padre Augusto gesticula no altar:
- Dominus Vobiscum!
Vozes de coroinhas:
- Et cum spiritu tuum!
Eucaristia!
Silêncio! Silêncio!
Corações em fila
à espera de Deus-Hóstia.
A música de Dona Morgada.
A voz de Maria Amélia,
O latim de Padre Augusto.
- Ave Maria, Gratia Plena...
- Amém!

RONDA

Dorme a cidade,
tranquila e silente.

Na esquina deserta
um poste
confidente mudo do guarda da noite
fura o nevoeiro.

Apitos
curtos e longos
apitos soturnos
misteriosos
furam o silêncio
levando recados
de paz ou de alerta.

Dorme a cidade
tranquila e silente.

Sucedem-se apitos
da ronda noturna.

ÚNICA

Flores de vária espécie
cresceram no meu jardim.
Em algumas amei a forma
em outras o colorido
em muitas bebi o néctar
e no perfume de todas
me embriaguei.

Mas um dia
entre as flores do meu jardim
cresceu uma flor tão linda
e pura
e de perfume tão singular
que todas as outras murcharam
morreram
caíram
desmanchando-se ao toque do tempo.

Apenas aquela flor
permanece em meu jardim:
nas suas pétalas
habita o meu destino.

Fonte:
A. A. de Assis. Robson (Robson 60 anos 1959 – 2019). 2. ed. Maringá/PR: A.R. Publisher, 2019.
Livro entregue pelo autor no lançamento da edição do livro, em 8 de novembro de 2019, na FLIM (Festa Literária Internacional de Maringá)

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