terça-feira, 12 de novembro de 2019

Luiz Poeta (Bença, Pai)


Sabe, pai... quando fui visitá-lo lá no pé da serra do Pico da Pedra Branca, naquele sítio onde você morava e me presenteou com aquela caneta prateada, e as lágrimas rolaram no seu rosto moreno, sinceramente, não reparei muito na caneta, pois meu maior presente mesmo foi a sua sensibilidade...

Esforcei-me muito para não chorar também, quando recebi o seu abraço, guardado há tanto tempo no seu misterioso silêncio.

Hoje, lembro-me de muitas coisas interessantes: recordo-me, por exemplo, do dia em que uma cobra coral atravessou a nossa sala quando almoçávamos naquela casa de três cômodos (sala, quarta e cozinha) no Morro do Retiro, cm Bangu, onde morávamos, e você apenas disse: - Deixe que ela vai embora.

E ela foi, pai... era linda como a vida e venenosa como o mundo, mas não picou ninguém, apenas sumiu na porta da cozinha, levando com ela um pedaço feliz da nossa história suburbana.

Quando você e minha mãe se separaram, foi uma festa: eu e meu irmão ajudamos a carregar alguns móveis e roupas para a casa da minha avó pensando que estávamos pregando uma peça no senhor. Nem sentimos a separação. Se fossemos mais socializados e morássemos num condomínio, certamente alguém sugeriria que algum psicólogo nos orientasse para que suportássemos o afastamento familiar, mas como éramos crianças habitantes de um morro repleto de pessoas pobres e felizes, nem nos preocupamos, porque tudo era muito natural, inclusive o banheiro coletivo que fazíamos fila para usar e o tanque cujas águas eram recolhidas lá embaixo e levadas morro acima para que todas as lavadeiras, inclusive minha mãe realizassem seu ofício: lavar, passar e costurar para as grã-finas.

Sabe, pai... às vezes, por mais que alguns filósofos e intelectualóides tentem provar o contrário, a ignorância ajuda-nos a sobreviver. Não saber o que se passa à nossa volta - queiramos ou não - é uma ingênua e feliz forma de sobrevivência. Então, cada um foi pro seu lado. Você arranjou logo uma outra mulher e mais dois irmãos para nós. Minha mãe foi morar com um viúvo que tinha seis filhos. Passamos a ser oito dividindo ruidosamente as fatias de uma fritada... e viva a abençoada ignorância!

E a vida veio e foi pegando a gente de jeito: o mundo, repleto de convites... o tempo instigando nossa mocidade... a sua vida naquele quase eterno indo e vindo da Fábrica Bangu. Até que fui visitá-lo, pai, e conheci seu sitiozinho, suas galinhas, seu pomar... tudo muito simplesinho... como nossa vida sempre foi naquele morro. Amei ouvir os mesmos passarinhos: tizius, coleiras, biquinhos, sanhaços... e o bem-te-vi celebrando o nosso melhor encontro. Falei que estava estudando e que seria professor de literatura ou jornalista... disse inclusive que tocava violão e você me falou da sua flauta de bambu e dos seus poemas... que orgulho, pai, saber que herdei de você o dom da música e da poesia.

Um dia, pai... quando trabalhava no Hospital Sousa Aguiar, tive que socorrer um paciente especial. Uma kombi subiu a calçada e atropelou um ciclista que ia para a fábrica de tecidos. Infelizmente, era você, pai.

Corri, entretanto não cheguei a tempo; enviaram-no para o Instituto Médico Legal sem identificação e eu tive que ir lá para reconhecê-lo e não foi difícil: havia um ferimento muito pequenino na sua testa e você estava bem, pai: o mesmo rosto tranquilo querendo mostrar aquele riso tão serenamente misterioso...

Foi a minha segunda visita, pai. Acho que demorei muito, porém o seu sorriso nunca me abandona. Ele chega como um som de flauta de bambu ou uma inspiração para uma poesia.

Hoje, recebo sua visita, pai... e aproveito a oportunidade para dizer-lhe que ainda tenho aquela caneta prateada – sem tinta - porém aquelas suas lágrimas inundam meus olhos e trazem você com seu sorriso parecidissimo com o meu... quando quero chorar.

Pobre não diz que ama. Pobre ama com gestos. Por isso, pai, no seu dia, prefiro chorar meu melhor sorriso no dia da celebração da sua vida na minha vida.

Como se dizia lá no morro: - Bença, pai.

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
Livro enviado pelo autor.

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