quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

José Feldman (Saudade)

Foto por José Feldman

Olivaldo Júnior (Trovas para 30 de janeiro: Dia da Saudade)


Da saudade que me deste,
fiz meus pontos cardeais,
mas do Leste fiz Nordeste
e do Norte um Sul a mais...

Meu retrato da saudade
tem seu rosto em luz banhado
me falando sem vaidade
que inda sou seu bem-amado.

- A saudade até parece
um canteiro triste, torto,
cujas flores viram prece
por um jardineiro morto...

Ao matar tanta saudade,
não fui preso, nem a júri,
esperando que a verdade
da distância inda me cure...

A saudade que me impõe
faz de mim um resistente:
um chorão que sobrepõe
os chorinhos ao presente.

Fonte: O Autor

Olivaldo Júnior (Cartinha ligeira endereçada à Saudade)



Querida Saudade

            Sei que anda sem tempo para este poeta, este ser que lhe escreve meio às pressas, na hora do almoço, entre uma e outra garfada de arroz com feijão, marmita preparada pela mãe, que tanto amo, tanto a marmita quanto a mãe, é claro! Mas, se tiver um tempinho para mim, por favor, me deixe cumprimentá-la em seu dia. Sim, hoje é o Dia da Saudade! Sabia disso, menina? Inventaram um dia para você, só para lembrar que você existe e faz parte da vida.

            Já me nomearam de poeta do adeus há um tempo. Não acho que o seja, mas nomenclaturas e alcunhas são algo que não se escolhe. Assim, ao lado de Vinicius, de Cecília, de Bandeira, de Drummond, de Quintana e de tantos poetas cânones da Poesia dita Brasileira, saúdo você, Saudade, com as letras que aprendi na Escola! Saudade da primeira professora, Dona Zizinha, com quem a aprendi a ler e a escrever. Nem mesmo eu sabia que era poeta.

            Poeta, aliás, de forma geral, Saudade amiga, é amigo de você, que tanto ajuda a gente a ter assunto, afinal, como dizia Cecília, a Meireles, ”De que são feitos os dias? / - De pequenos desejos / vagarosas saudades, / silenciosas lembranças.”. Ê, Cecília, sempre certeira! É isso mesmo. Nossos dias são feitos de reminiscências, retalhos de vida que alinhavamos um no outro, para, ao fim da existência, na “noite da vida”, termos “coberta”.

            Sinto, amiga Saudade, muita saudade do que não fui, não consegui ser. E, além disso, da minha avó materna, dos meus avôs, da minha infância, quando eu não sabia nada de nada, e a vida era um acordar e ir para a escola, voltando para casa recolhendo flores de buganvília, a famosa primavera, só para ofertá-las a minha mãe ao chegar em casa. Saudade... Soluço abafado, lágrima exposta e logo enxuta, mas nunca estanque. Saudade, a grande saudade!

            Meu irmão pequeno, minha vida em cores, meu amigo que não chegou (meu burrinho azul, já que eu sou o menino azul, hehe), noites em que vi uma estrela cadente descendo à Terra, saudade, oh, Saudade, dos sonhos mais puros que não deram em nada! Sopro de ausência sobre todo o presente, você, Saudade, soluça comigo quando os olhos marejam e me perco em mim mesmo, no mar absoluto em que navego e, saudoso, transponho o meu mar.

Com saudade,

de algum lugar do passado,

Olivaldo

Fonte: O autor

Lairton Trovão de Andrade (Panaceia de Trovas) 1



A joana do joão-de-barro
sofreu crime passional;
teve um fim muito bizarro,
por causa do pica-pau.

Aquele gato é baiano,
assim nos diz o Lalau;
ouça o miado do bichano:
"Me-au, me-au, me-au, meau!"

Brada o gaúcho pampeiro:
- "Nos pampas, tchê, só tem macho!...
E o que tem Minas, mineiro?"
- "Uai!... tem macho e fêmea, diacho!"

Depois de muito ovo pôr,
a angola* aguça a matraca
e, festejando com suor,
canta: "tô fraca, tô fraca!"  

Diz a crença popular:
Não há coisa que enlouqueça
mais que a boca a relinchar
de uma mula-sem-cabeça!

É, na internet o namoro
paixão que "dá choque"... e muito:
A cada abraço - um suadouro...
e ao beijar - curto-circuito!

Era boa caipirinha
de esquentar qualquer "moringa"**.
- O que de bom é que tinha?
- "Açúcar, limão e pinga".

Foi assim que aconteceu
entre o meu tio e o Mansur:
- Você, meu filho, é ateu?!
- Não, senhor, eu sou Artur!

Há coisa que não te explico
na desditosa paixão:
Com quem me quer, eu não fico,
com quem quero me diz "não".

- Masculino ou feminino?
Perguntou o frei José;
- "Marculino ou Felisbino
não, não! É Zé que o pai qué"!

Nas matas de Pirapora,
já reinou o curupira;
o curupira é o caipora
do rude interior caipira.

Nos horários de verão,
os galos em trapalhada,
sem saber que horas são,
cantam sempre em hora errada.

No velório do riquinho,
há, no íntimo, festança:
"Choro sim, por meu padrinho
(mas que venha logo a herança)".

Ninguém é tão educado
como o fino do Joaquim;
nas lojas, mesmo calado,
saúda até manequim.

O plagiário é caricato
que no mundo se repete;
é escritor co'a mão do gato
e pintor que pinta o sete.

O pobre incauto eleitor
ficou feliz na procura;
diz que o voto é do doutor
que lhe deu uma dentadura.

O símio, bem natural,
exclama ao réptil, de pé:
"Oh, que boquinha sensual
tem o amigo jacaré!"

Quanta gente cuja obra
é cheia de desatino!
- Tem no cérebro de sobra,
o que é próprio do intestino.

Quem fala de mim é mico.
Minha vida é transparência.
Nasci pobre, fiquei rico...
- Milagre da "Presidência" ...

Só de ver a sucuri,
adoentou-se a saracura;
com licor de licuri***
nada sara, nada cura.
______________
Notas:
* angola: galinha d' Angola
** moringa: orelha, ouvido (expressão regional)
*** licuri: coquinho

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Perene alvorecer. 2016.
livro gentilmente enviado pelo autor.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Marina Colasanti (No Dorso da Funda Duna)


O sol atravessava lentamente o céu. E abaixo dele, bem abaixo, um emir com sua caravana atravessava o deserto. A claridade era envolvente como um sono. Mas de repente, pelas frestas dos olhos apertados, o emir viu a figura escura de um homem recortar-se no dorso de uma duna. De um homem e de uma cabra. 

Que parasse a caravana, ordenou o emir. Um homem sozinho no deserto é um homem morto.

- Mas não estou sozinho, nobre senhor - respondeu o homem levado à presença do emir.

E este, tendo logo pensado que uma cabra não é companhia suficiente em meio às areias, penitenciou-se no segredo da sua mente. Certamente aquele era um homem santo que vagava em penitência, e tinha a companhia da sua fé.

Assim mesmo, convidou-o a seguir viagem com eles. E, diante da recusa, ordenou que se lhe dessem alguns pães e um odre de água. Em breve, a caravana partia.

O homem apertou as espirais do turbante, puxou uma ponta do pano sobre a boca e, acompanhado pela cabra, recomeçou a andar.

O sol tinha refeito seu percurso muitas vezes e estava do outro lado da terra, quando um tropel de cavaleiros quase pisoteou o homem que dormia com a cabeça encostada na barriga da cabra. O primeiro cavaleiro puxou as rédeas, saltou na areia. O homem acordou num susto. O tropel parou.

- Um homem sozinho entre as dunas é um homem inútil - disse o cavaleiro, que chefiava aqueles piratas do deserto. E o convidou para que se juntasse ao bando. Mas, quando o homem recusou a oferta, acrescentando que certamente era um inútil embora não estivesse sozinho, o chefe dos piratas achou que debochava dele, e mandou que o surrassem. Sem demora e sem ruído, pois cascos não ecoam na areia, o tropel partiu.

Os ferimentos da surra há muito haviam cicatrizado, no dia em que uma caravana de peregrinos passou no seu caminho. E, assim como ele a viu chegar com prazer, também os peregrinos consideraram a presença daquele homem e daquela cabra como um sinal propício, e decidiram acampar ao seu lado no dorso da duna.

Armadas as tendas, acesos os fogos, o chefe da caravana convidou o homem a comer. Os peregrinos sentaram-se ao redor, a comida passou de mão em mão. Só quando ela acabou, o velho perguntou ao homem o que estava fazendo no deserto.E o sol ainda não havia se posto, e a lua ainda não havia surgido, quando o homem começou a contar.

Havia sido um homem próspero de uma próspera cidade, uma cidade que com seus minaretes e muros surgia em meio ao deserto. Marido de uma boa esposa, justo pai dos seus filhos, tinha sempre grãos na despensa, e a figueira junto à porta da sua casa a cada ano dava frutos. Um dia, chamado pelos negócios, havia partido em longa viagem. E, ao regressar, não mais havia encontrado sua cidade. Só depois de muito indagar entendera que o deserto, soprado pelo vento, havia passado por cima dos muros, engolindo os minaretes, as casas e a figueira. Toda a sua vida estava debaixo da areia. Mas onde, na areia? E havia começado a procurar.

- É por isso que até hoje anda no deserto? - perguntou o velho chefe da caravana.

Os dentes do homem brilharam à luz da lua que já se havia levantado.

- Ando porque ainda sou morador da minha cidade - respondeu. Inclinou-se, encostou o ouvido na areia, quedou-se atento por alguns minutos. - Há muito os encontrei - disse, erguendo-se.

Sorriu novamente. No ventre daquela duna, debaixo da caravana acampada, estavam os minaretes, as casas, a figueira. Estavam seus filhos e sua mulher. E ele podia ouvi-los a distância. Através da areia que os separava, podia ouvir os gritos dos pregões, as preces dos muezins, o riso da mulher e das crianças que certamente agora haviam crescido.

- Caminho para isso. Para estar sempre acima deles. Para escutar sua vida. - As dunas - acrescentou - vagueiam pelo deserto. E eu vou, acompanhando a minha.

Pouco faltava para a manhã. Ao alvorecer, os peregrinos partiram. Mas o vento tinha ouvido o relato do homem. E a próxima caravana que por ali passou já não o encontrou. A duna soprada grão a grão havia eriçado sua crista, cobrindo o homem e sua cabra como antes cobrira muros e minaretes. E abrindo caminho para eles, lentamente, até seu ventre.

Fonte:
Marina Colasanti. Um espinho de marfim e outras histórias. 
L&PM Pocket, 1999.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Nilto Maciel (Jingle Bells)



Doca engoliu a cachaça, sem uma careta sequer, repôs o copo sobre o balcão e afastou-se, a cambalear.

– Morre, desgraçado – brincou Hélvio.

Os fregueses riram e se puseram a tagarelar. Aquilo só podia ser doença.

– Doença que nada. Isso é vício mesmo.

– Ou então vontade de morrer.

O bêbado falava só, do lado de fora do boteco.

– Quantas ele tomou?

Enquanto trocava o disco da vitrola, Hélvio prognosticou:

– Se durar mais um mês, dura muito.

E pôs-se a falar de sua experiência como dono de bar. Conhecia o grau do vício de cada cachaceiro. Sabia quanto podiam durar.

– Vocês se lembram do Tiquinho?

Na vitrola, Nelson Gonçalves enchia a rua com o nome de Carlos Gardel.

– Pois bem, eu disse que aquele não passava do carnaval. Passou?

O assunto prometia render uns bons minutos. Relembrar os mortos, os antigos frequentadores do bar, os maiores consumidores de cachaça do bairro, era outra das especialidades de Hélvio.

– Essa turma pensa que cachaça é água.

Entretidos, ninguém se lembrava mais de Doca, que já ia longe, aos trambecões. Feiúra ambulante. Trapos, só trapos. Piolhento, sujo, banguela.

Relembrado numa pausa da fala de Hélvio, falaram de suas rugas precoces, de sua família, de seu passado.

Na outra esquina, tropicou e caiu. Tentou levantar-se, pôs-se de quatro, tombou para um lado, virou-se e ficou a olhar para cima. Bolinhas e fiapos brancos corriam pelo azul do céu.

Um cachorro passou desconfiado a pouca distância, enorme no seu meio metro.

– Olha onde ele foi cair, pessoal!

Hélvio só se moveu para ir virar o disco. Os fregueses, porém, correram até a porta.

Doca fechou os olhos, resmungou, remexeu-se. Não dava para se levantar. O jeito era dormir. Não deu nem pra cochilar – abriu os olhos e só viu pernas, muito longas; depois braços, pendurados, feito cachos de banana; e queixos, buracos de venta, muitos olhos.

– Morre, filho de uma égua.

– Aguenta, filho da mãe.

Tentaram erguê-lo pelos sovacos. Puseram-no sentado. E depois de pé.

– Vai embora.

Cambaleou, rodopiou como um pião, equilibrou-se na parede, sorriu, agradeceu. E seguiu, tropegamente.

Os bons amigos riam, olhos dançarinos grudados no balé do bêbado.

– Agora ele vai.

E voltaram ao bar, a convite de Nelson: Faça como eu, acostume-se à derrota...

– Não adianta, amanhã ele volta, enche a cara de novo – concluiu Hélvio.

Mais longe do bar, Doca continuava seu caminho, arrastado pelo declive da rua, amparado pela parede das casas.

Nos dias seguintes, Hélvio não deixou de falar de sua experiência como dono de bar, enquanto Nelson Gonçalves enchia a rua com o nome de Carlos Gardel.

Numa noite em que na vitrola só rodava Jingle Bells, anunciaram a nova:

– Eu não disse que Doca não passava do Natal?!

Fonte:
Nilto Maciel. Babel. 
Brasília/DF: Editora Códice, 1997.

domingo, 27 de janeiro de 2019

Ricardo Miró (Poemas Recolhidos)


AMOR

Uma vaga inquietude; um misterioso
temor; como um feliz pressentimento;
um íntimo e reservado tormento;
uma pena que acaba em alvoroço.

O sufocante nó de um soluço
perene na garganta; o sentimento
de uma dor que se acerca; o pensamento
cheio de luz, de júbilo, de gozo.

Uma contradição funda e escura
que me enche a vida de amargura,
que mata toda luz e toda ideia,

que turva toda paz e toda alegria;
porém... senhor, que sabes minha agonia:
se tudo isso é amor, bendito seja!

A ÚLTIMA GAIVOTA

Como uma franja agitada, rasgada
do manto da tarde, em rápido voo
se esfuma o bando pelo céu
buscando, acaso, uma ribeira desconhecida.

Atrás, muito longe, segue uma gaivota
que com crescente e persistente desejo
vai da solidão rasgando o véu
por alcançar o bando, já remoto.

Da tarde surgiu a casta estrela
e achou sempre voando a esquecida,
da rápida patrulha atrás a hulha.

História de minha vida compreendida,
porque eu sou, qual gaivota aquela,
ave deixada atrás pelo bando!

PÁTRIA
(tradução do espanhol por José Feldman)   

Oh, Pátria tão pequena, estendida sobre um istmo 
onde é mais claro o céu e mais brilhante o sol,
Em mim ressoa toda a tua música, o mesmo 
que o mar na pequena concha do caracol!

Revolvo o olhar e, às vezes, sinto espanto
quando não vejo o caminho que a ti me faz regressar.
Nunca saberia que te quero tanto
se o Fado não mandasse que eu atravessasse o mar.

A Pátria é a lembrança... pedaços da vida
envoltos em farrapos de amor ou de dor;
a folha da palmeira rumorosa, a música sabida,
o horto já sem flores, sem folhas, sem verdor

A Pátria são os velhos atalhos retorcidos
que o pé desde a infância sem trégua recorreu
aonde são as árvores, antigos conhecidos
cujos vestígios nos conversam de um tempo que passou.

Em vez dessas soberbas torres com áurea flecha,
aonde um sol cansado vem desmaiar,
deixa-me o velho tronco, onde escrevi uma data
aonde havia roubado um beijo, aonde aprendi a sonhar.

Oh, minhas vetustas torres, queridas e distantes
eu sinto a nostalgia de vosso repicar!
Eu vira muitas torres, ouvi muitas campainhas,
mas nenhuma imagino. Torres minhas distantes
cantar como vós, cantar e soluçar.

A Pátria é a lembrança... pedaços da vida
envoltos em farrapos de amor ou de dor;
a folha da palmeira rumorosa, a música sabida,
o horto já sem flores, sem folhas, sem verdor.

Oh, Pátria, tão pequena que cabes toda inteira
debaixo da sombra de nosso pavilhão
talvez foste tão pequena para que eu pudesse 
levar-te inteira dentro do coração!

Ricardo Miró (1883 - 1940)


Ricardo Miró Denis nasceu em 5 de novembro de 1883, na Cidade do Panamá/Panamá. Desde tenra idade tornou-se órfão. Aos quinze anos ele viajou para Bogotá para estudar pintura, no entanto, voltou ao Panamá por causa da Guerra dos Mil Dias em 1899. Ele publicou seus primeiros poemas na revista "El Heraldo del Istmo", onde trabalhou por 10 anos.

Foi para a Espanha entre 1908 e 1911 e serviu como cônsul em Barcelona.

A lírica de Miró apresenta influencias modernistas e neorromânticas. Cantou a pátria, a sua paisagem, a herança espanhola e ao amor. Seus poemários mais representativos são Preludios, 1908; Los segundos preludios, 1916; La leyenda del Pacífico, 1925; Caminos silenciosos, 1929. Escribió cuentos y dos novelas: Las Noches de Babel y Flor de María. 

Foi também fundador e diretor de revistas literárias. A mais importante delas foi Nuevos Ritos, prolongamento do "El Heraldo del Istmo", através da qual assinalou as linhas de um processo de renovação que logo marcaria os rumos da poesia panamenha. Conheceu Rubén Darío, que passava pelo Panamá.

Ricardo Miró desempenhou cargos diplomáticos em Londres, Marselha e Barcelona, onde escreveu em 1909 seu emblemático poema "Pátria", que destaca a saudade que sente ao estar longe de sua terra.

Foi diretor dos Arquivos Nacionais (1919 - 1927) e Secretário Perpétuo da Academia Panamenha da Língua. 

Como membro da delegação panamenha foi em 1921, às festas do centenário da independência do Perú, em Lima.

Morreu na cidade de Panamá a 2 de março de 1940.

Um prêmio literário póstumo anual foi nomeado em sua honra, o Concurso Literário Nacional Ricardo Miró da República do Panamá. O prêmio foi para incentivar escritores de poesia e ficção no Panamá, e em 1952 foi estendido para incluir obras de teatro.

Fontes:
Antonio Miranda (tradução do espanhol por José Feldman)
Panamá Poesia (tradução do espanhol por José Feldman)

João Ubaldo Ribeiro (O Verbo "For")


Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário — evidentemente o condizente com a nossa condição provecta —, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).

O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.

Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.

— Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.

— "Catilina, quanta paciência tens?" — retrucava o infeliz.

Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.

— Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!

Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.

O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:

— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!

— As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.

— Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?

— Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...

— Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!

Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.

— Esse "for" aí, que verbo é esse?

Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.

— Verbo for.

— Verbo o quê?

— Verbo for.

— Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.

— Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.

Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.

Fonte:
João Ubaldo Ribeiro. O Conselheiro Come. 
RJ: Nova Fronteira, 2000.

sábado, 26 de janeiro de 2019

Magdalena Léa (Jardim de Trovas)


Ah, se eu pudesse saber
qual a mulher que ele quer...
Que não iria eu fazer
para ser essa mulher?!...

Amei. Era sede e fome
o amor que me torturou.
Quem ama assim, sempre come
o pão que o diabo amassou.

A mulher é imponderável,
instável, imprevisível,
indócil, imperscrutável...
Não se esqueça: imprescindível.

Aprendeu logo o Zezinho,
Depois que foi baleado,
Que é melhor amar sozinho
Do que bem acompanhado.

Com firmeza e tolerância
educa em justa medida.
São as feridas da infância
que nos marcam para a vida.

Convenções? Que um tolo as ouça!
pois mulher – o mundo zurra –
deve ser sempre mais moça,
mais baixa e também mais burra.

Desculpe-me quem puder,
mas a História se enganou:
depois que fez a mulher,
nunca mais Deus descansou!...

Distraída, distraída,
é a mulher do Januário;
ouve à porta uma batida,
tranca o marido no armário!

É a vida, em seu poder,
requintada em crueldade:
nasce a gente sem querer,
e morre sem ter vontade.

Embora sem alegria
vou cantando nos caminhos.
- Foi essa a filosofia
que aprendi com os passarinhos.

Em vossos olhos nublados,
velhinhos de longas vidas,
há prantos cristalizados
de todas as despedidas.

Em zigue-zague na estrada,
guia um “cara” no pileque.
- A curva multiplicada
dividiu seu calhambeque.

É nos elos que nós vemos
união e força patentes,
porque é que não aprendemos
esta lição das correntes.

Fazer plástica é bobagem.
Se o tempo nos vai minando...
 - Dar brilho na lanternagem
com este motor rateando?

Foi tão engraçada a piada
que a dentadura da zinha,
em tremenda gargalhada,
cai no chão rindo sozinha.

Hei de te amar – ele jura –
até velhinho – que lindo!
e ver nossa dentadura
no mesmo copo... sorrindo.

Inflação! Que mais eu posso
senão  rir dessa desgraça?
Pois rir é o único troço
que a gente ainda faz... de graça.

Mentes tanto, e nem presumes
que um dia ainda te firas
nestas armas de dois gumes
que são as tuas mentiras?

Mesmo em sonhos são fracassos
meus encontros fugidios:
cerro os olhos, abro os braços
e fecho os braços vazios.

Meu amor, que mais desejo?
Eu só desejo, na vida,
beijar-te e, acabado um beijo,
Começar outro em seguida.

Meu bebê vai caminhar,
estendo as mãos comovida.
Ah! se eu pudesse guiar
seus passos por toda a vida.

Minha alegria, querido,
por certo não adivinhas:
foi o teres esquecido
tuas mãos dentro das minhas.

Minhas lágrimas contive
naquele instante preciso. 
Foi então... então que tive
a bravura de um sorriso.

Minha sogra, aquela bruxa,
num fusca mandando brasa,
e eu fico pensando: – puxa!
com tanta vassoura em casa!

Na educação dos pequenos,
belos frutos colherás,
censurando muito menos,
elogiando muito mais.

O amor que teimo ocultar,
sem dizer nada a ninguém,
pudesse te confessar
e apenas diria – vem!

Ó realidade, não fira
quem sonha e vive contente.
Se uma ilusão é mentida,
enfeita a vida da gente.

Para cumprir seu destino
parte meu filho, homem feito.
- E eu guardarei, meu menino,
tua infância no meu peito.

Perdoa. Eu também sofri
se briguei contigo assim...
Eu gosto muito de ti,
mas... gosto também de mim!

Porque teme envelhecer?
Envelheça, a fronte erguida.
Um ano mais quer dizer
que a vida lhe dá mais vida!

Preso tu sempre hás de ser,
nem creias na liberdade.
Quando nada te prender
estarás preso à saudade.

Quando o sol é brasa ardendo
nas terras secas crestadas,
pingo no zinco batendo
é a mais bela das toadas.

Quando vejo um assassino,
um viciado, um ladrão,
eu adivinho um menino
a quem ninguém deu a mão.

Quando volto ao meu rincão
piso a terra comovida.
 - Cada pedaço de chão
conta um pedaço de vida.

Quem dentadura precisa
cuidado com a gargalhada.
Faça que nem Monalisa
que ri de boca fechada.

Seria desoladora
a vida, se, lá na frente,
a esperança enganadora
não acenasse pra gente.

Só te peço amor sincero,
e o céu será todo nosso.
Se sou tua - que mais quero?
Se sou mulher - que mais posso?

Tendo ao seio o meu menino,
tudo em volta é luz e brilho.
Nem sei mesmo onde termino
e onde começa o meu filho.

Toda mulher que é gorducha
tem um recurso só seu:
ao vestir-se grita – “Puxa!
como este troço encolheu!!!”

Tudo sinto na alma, o enlevo
das histórias infantis.
- Lobato, quanto te devo
da minha infância feliz!

Vão-se os anos. Iludida,
nesta angústia de retê-los,
vejo que a chama da vida
se faz cinza em meus cabelos.

Vi-te em menina e, talvez,
nem me notaste, sequer...
Pois foi a primeira vez
Em que eu me senti mulher.

Magdalena Léa (Oração para Envelhecer)

Magdalena Léa
Autor inglês desconhecido. Adaptação de Magdalena Léa
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Meu Deus,

Você sabe, melhor do que eu, que já estou envelhecendo e que breve serei mesmo velho.

Livre-me, pois, do mau-hábito de querer resolver o problema dos outros.

Livre-me, também, do mau-hábito de pensar que, porque sou mais velho, sei mais que os outros.

Mantenha-me inteligente, mas não prepotente, e que saiba aconselhar sem dar ordens.

É pena, realmente, que toda a sabedoria que eu acho que tenho, não possa ser aplicada, mas você sabe, meu Deus, como eu preciso manter meus amigos até o fim.

Livre-me de explicar as coisas com excesso de detalhes e dê asas à minha mente, para que ela voe ao ponto capital das questões.

Cale a minha boca de reclamar contra as minhas dores; o gosto de ensaiá-las a cada dia, em cada ano fica mais apurado.

Meu Deus, eu não peço a graça exagerada de sentir prazer ao ouvir as lamúrias do próximo, mas, apenas, dê-me um pouco de paciência para aturá-las.

Não me deixe esquecer a lição de que eu possa estar errado com muita freqüência.

Mantenha-me mais ou menos de bom-humor, mas não quero ser santo, pois os santos são difíceis na comunicação com os humanos.

Porém um velho azedo é obra mesmo do diabo.

É, meu Deus, dê-me a graça de ver boas coisas em todas as coisas e saber apreciá-las. Amém.