sábado, 28 de janeiro de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Parque de Diversão) - I


Uma das coisas que mais divertiram as crianças de minha geração foram os parques que esporadicamente baixavam em nossa cidade.

Os cavalinhos, os barcos, os automóveis em constantes trombadas, a roda gigante... tudo fazia parte de um mundo feliz e encantado de folia e recreação.

Havia também as barraquinhas onde o pessoal se exercitava no tiro ao alvo, ou tentava abiscoitar uma prenda nos sorteios de bilhetes numerados.

O “Parque Mila” foi o que mais marcou a minha lembrança.. Mila era provavelmente filha dos donos, já que o parque levava o seu nome. Era uma garota linda, de uns quatorze anos e de cabelos loiros em cachos compridos. Vestia-se com roupas vistosas e brilhantes, bordadas de pedrarias que lhe ressaltavam a beleza delicada. Eu, simples garotinha de oito anos, admirava-a intensamente.

Uma noite em que fui ao parque com mamãe e Linéa, vi Mila bem de perto, distribuindo prêmios aos sorteados. Arrisquei quinhentos réis num bilhetinho, e qual não foi a minha surpresa quando a ouvi cantar o meu número no sorteio! Que emoção receber o prêmio das mãos daquela menina que me parecia saída de um conto de fadas!

Mas... confesso que fiquei um tanto embaraçada quando ela me entregou a prenda: uma imagem de Santa Terezinha, muito linda, com o famoso ramalhete de rosas nas mãos.

Não sendo católica, eu estava ali sem saber o que fazer com a santinha. Mamãe percebeu o meu constrangimento e fez-me uma sugestão que aceitei imediatamente. Pedi a Mila (lindíssima nessa noite, trajando um vestido de cetim preto, todo enfeitado de missangas reluzentes) que me trocasse a imagem por outra   prenda. Ela sorriu para mim e fez um, gesto largo, pondo à minha disposição as fileiras em que os objetos estavam expostos.

Escolhi uma estatueta bonitinha: um pequeno pescador, garotinho de calças curtas, chapéu, e pés descalços, com uma vara na mão e um peixinho enroscado no anzol Adorei o prêmio e já em casa, na maior euforia, fui mostrá-lo a papai.

Coloquei a estatueta ao lado da entrada do quarto dele e de mamãe, sobre uma coluna dórica, de madeira, que possuo até hoje. O lugar era de destaque, e o pequeno pescador ali ficou por muito tempo, até que um dia, para grande tristeza minha, papai escorregou no tapete, e ao bater na coluna, provocou involuntariamente o acidente: a estatueta caiu e espatifou-se no chão. Catei os cacos, mas não consegui colá-los  estavam muito estilhaçados. O jeito era me conformar.

Um dia, anos depois, mamãe chamou-me a atenção para uma manchete no jornal que estava lendo. Olhei o título: “O triste fim do Parque Mila.” A notícia dizia que, em uma das cidades que percorria,   o parque se incendiara devido a um defeito no sistema de iluminação. Ficara inteiramente destruído.

Eu não queria acreditar. O parque mais lindo de minha infância gravara em minha memória uma imagem indelével que não poderia mudar: os carrosséis e a roda gigante girando, as barraquinhas movimentadas, o mar de luzes deslumbrantes, e a linda e graciosa Mila sorrindo para as pessoas e entregando-lhes prendas com as próprias mãos, como se fosse uma fada distribuindo privilégios a seus favorecidos, num reino venturoso de perene alegria, encantamento e diversão.

Fonte:
Espaço Literário Sorocult (www.sorocult.com)

Carolina Ramos (Poesias Esparsas) 8


ROSA DE SANGUE


Dom sublime, a Poesia furta ao solo
as almas simples que Deus prestigia.
E transforma um pigmeu num louro Apolo,
glorificado à luz que não pedia!

Poesia é mãe que o filho abraça e ao colo
recolhe a dor que o peito lhe crucia.
Terno traço de união de polo a polo,
é sol na treva... é luar, em pleno dia!

Poesia é amar a própria angústia! É erguer
a taça da amargura e, sem morrer,
sorve-la, gota a gota, em noite incalma!

É estigma? É carisma? Glória ou cruz?
Poesia é estranha rosa, que seduz:
- Rosa de Sangue... com perfume de Alma!
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NAUFRÁGIO

Neste oceano da vida, tumultuoso,
lancei, cheio de sonhos, um barquinho.
E ele flutuou e deslizou airoso,
vencendo os empecilhos do caminho!

Nos momentos difíceis, sem repouso,
depressa ia ampara-lo o meu carinho
e ansiosa eu via, com secreto gozo,
meus sonhos desafiando o torvelinho!

E chegaste! E de pedra era tua alma!
De papel, o barquinho... e tenso e mudo,
ficaste, quando o mar perdeu a calma!

Contra o recife, o barco soçobrou!
E os sonhos, sem guarida, ao fim de tudo,
um a um, impiedoso, o mar levou!
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ADVERTÊNCIA
Aliança trincada...

Entre dois corações que, um dia, a vida
uniu e a Lei de Deus abençoou,
numa aliança eterna, irrefletida,
mágoa e desilusão é o que restou!

Junto à primeira lágrima sentida,
muito cedo, a ilusão se dissipou,
a lamentar a dor de ser colhida,
qual flor de sombra, à luz do sol, murchou!

Descrevo o nosso amor. E que amargura
relembrado na mágoa de um momento!
Se acaso uma esperança ainda perdura,

salvemo-la da insídia e dos espinhos,
ou ficarão dois seres, num tormento,
unidos por dever... porém sozinhos!
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PROFECIA
Elo partido...

Muitas vezes te disse - tens lembrança?:
– Muda! por nossos filhos! - E, também,
que a renúncia constante anula, cansa,
quando improfícua... e só de um lado vem.

Lembrei-te (quantas vezes!] é a confiança
base que o templo conjugal sustém.
E estremecia a última esperança
de envelhecermos juntos... mal ou bem!

Cumpriu-se a profecia! O eco ressoa!
Cai o arruinado templo! Embora doa,
nossos elos partiram-se! Defuntos,

os sonhos se perderam no caminho!
Tanta mentira e ausência de carinho,
que ao fim da estrada, não chegamos juntos!
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VERDADE

Todos pensavam que a felicidade
era a bandeira azul que eu conduzia...
Todos pensavam, sim, mas a Verdade,
além mim, somente Deus sabia,

Ninguém sonhava a triste realidade
que em meio à multidão me perseguia;
nem que o sorriso meigo de humildade
era regado em pranto, noite e dia!

Quem poderia crer que a tais extremos
eu chegasse, partindo os frágeis remos
de um destino cruel! Ninguém supunha

que um oceano de lama, tormentoso,
eu banisse de mim... e, em céu calmoso,
fosse viver os sonhos que eu compunha!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.
Livro enviado pela poetisa.

Geraldo Pereira (Tragam as Vasilhas)


Sou do tempo dos encantadores pregões, de antigos vendedores que ofereciam seus produtos com a musicalidade da voz, grave ou aguda, a depender de cada um. De poetas do dia-a-dia das coisas, cantores das ruas, com rima ou sem rima, contanto que mostrassem a variedade ou a qualidade e obtivessem o desejado retorno das moradias de classe média. De meninos ou de meninas, das senhoras bem trajadas ou daquelas de roupas cosidas e até cozidas com a crueza da chita, que nas casas serviam como domésticas, tangidas dos canaviais distantes.

Como esquecer do que me falou Sílvio Costa, que pras bandas de Pau Amarelo corteja saudades: “Espanador/Vasculhador/Colher de pau/Esteira d’Angola/Rapa Coco/E grelha/Eu tenho quartinha”. Foram coisas assim, mais do que puras, que preencheram tardes mornas de sábado. Ou foram os acordes tirados da gaita do amolador de tesouras, que a tudo amolava ou as notas do homem do pirulito que embalaram sonhos e devaneios da meninada de outros anos ou de outras eras.

Detesto essa modernidade do hoje, do microfone instalado em velhas e carcomidas "Kombis" anunciando ovos e verduras, uvas e bananas, laranjas aos borbotões e abacaxis em quantidade. Até o sorvete de fato artesanal no meu antes vem sendo comercializado assim: "Olha o sorveteiro barateiro! Dez bolas por um Real! Tragam as vasilhas! Tragam as Vasilhas!". Ninguém aguenta mais a repetição, que lembra um certo apresentador de televisão dizendo: "Abram as cortinas! Abram as cortinas!". E se vou mudar de casa, deixando de assistir neste canto para morar num recanto, o Rosarinho, lugar de onde emergem muitas das reflexões de Fátima Quintas - o Quintas da Jaqueira -, não me livrarei do sorveteiro barateiro.

Dia desses por lá ouvi a indiscreta loa e mais do que perplexo confidenciei aos meus botões: "Eu não acredito numa coisa dessas!". Mas, é verdade, responderam! Lamento o desaparecimento de toadas como esta: "Eu tenho lã de barriguda/ Para travesseiro/...". Ou : “Olha a bolinha de cambará/Dois pacotes é um vintém/...”

O cavaquinho de agora vende-se aos pacotes, enrolados no plástico translúcido, sem a sonoridade do velho triângulo, equilátero, sobretudo, que pendia do indicador esquerdo, tocado, na mais sincrônica das formas, com vareta bem temperada de aço acalmado à mão direita, a percorrer cada um dos lados, tirando as notas dos desejos infantis. E o cuscuz matinal, despertando as famílias com o silvo forte do vendedor, em tudo, madrugador? Desapareceu, quase, deste Recife contemporâneo, desses dias que correm mais que aqueles, de criança!

Um ou outro remanescente percorre as ruelas das periferias urbanas, sustentando tradições! O sino do vendedor de bolos, de broas e de outros acepipes, que carregava na cabeça a produção doméstica, em móvel envidraçado, com quatro longas pernas de cor azul, silenciou na distância dos muitos anos contados pra trás! O homem que gritava a macaxeira e que ouvia de nós outros a indagação cavilosa – “Como se chama a sua mãe?” -, calou-se, vive a mudez das lembranças, apenas, na surdez das impiedosas mudanças!

Mudou tudo, afinal, mudaram as pessoas da rua e os parentes, há filhos jovens e sobrinhos novos contados em maioria! Morreram os velhos! E morreram, do mesmo jeito, os autores e os atores dos antigos pregões, dos matinais e dos vespertinos, anônimos cantadores das ruas, de cujas transformações nasceram muitas das dores d'alma e das saudades. Sequer existem babás a cantarolarem a própria desdita:

"Quem faz o bem/Recebe sempre o mal/...". E nem meninas brincando: "Eu sou rica/Rica/Rica/...". Tampouco adolescentes em flor entoando: "...Serei eu rico/Ou muito pobre?/ Que será/Será/Aquilo que for/Será/O futuro não se vê/Que será/Será....". Morreram as tias velhas, viúvas e mal-amadas, que versejavam: "Nos cigarros que eu fumo/Te vejo nas espirais/Nos livros que eu tento ler/Em cada página tu estás/Me deixa ao menos/Por favor/Pensar em Deus...".

"Tragam as vasilhas/Tragam as vasilhas...", na verdade, é o refrão das manhãs ou das tardes dos sábados e dos domingos e "Abram as cortinas! Abram as cortinas!" encerra, afinal, o domingo, antecipando inquietudes.

Fonte:
Geraldo Pereira. A medida das saudades. Recife/PE, 2006. Disponível no Portal de Domínio Público

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 21

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 74


Sábado engalanado.  Ventares azuizinhos. O azul é uma das três cores chamadas verdadeiras,  juntamente com o vermelho e o amarelo. Estas são ditas também cores primárias - não é possível fazê-las a partir da mistura de outras cores.  Mas com elas podemos formar mais cores, as secundárias.

O colorido do ambiente é matizado de muitas cores e esse corolário é que dá aos olhos a a visão do belo, do encanto, do refrigério. Como somos unidades, mas não unanimidades, cada um reage de uma forma quando recebe o espectro colorido.

O grego Aristóteles é um dos pioneiros estudiosos das cores, mas foi Isaac Newton que apresentou experimentos que revolucionaram os conceitos sobre elas. E assim chegamos à cromoterapia, que é o tratamento para o corpo e a mente.

As cores geram bem-estar, ajudam na autoestima, reduzem o estresse, eliminando ansiedade e angústia.  As cores mexem com as emoções, inspiram, dão vida à vida dos seres e do mundo. Razões imensas para o cultivo das flores do jardim e as árvores e frutos ali do bosquinho.

Fonte:
Texto enviado pelo autor 

Beatriz Moraes (Cafeteria)


- Um chocolate quente, por favor.

- Com ou sem chantilly, senhor?

O chantilly faria o chocolate ficar mais doce. Mais apresentável. Ia criar uma camada leve e açucarada em cima do meu pedido. Um pedaço de neve desfeita feito bruma passeando por cima da penumbra. Uma irritavelmente perfeita variação do leite, aquele líquido tão simples e abominável, que minutos antes teria se transformado em chocolate. Minutos antes. Numa mistura peculiar, onde ambos se ajudariam, dentro dos trancos do liquidificador, a crescer e transformar-se num só, aquela encorpada bebida marrom e quente. Daí viria a parte mais prazerosa. Era só pegar o dito cujo do leite, desprezar a parceria com o pó de cacau, sacudir e sacudir o sem-graça, aguado, inútil e insípido, dar-lhe uns bons sopapos, sem esquecer de acrescentar, claro, a serenidade do açúcar. Pronto. O inocente líquido branco teria sido atirado ao crescimento pelo pior meio possível, para tornar-se o superficial chantilly.   A máscara de todo conteúdo. A parte bonita e carismática que aparece sempre encobrindo a parte densa e realmente consistente. A parte que todos admiram. Que todos anseiam. A parte que esperam que nunca termine. O doce sabor da superficialidade. A maravilhosa experiência de não ter de preocupar-se com o que vem depois. Mal sabem que o verdadeiro sabor ainda está por vir. Mas chocolate já é doce. E é tão sem-graça. Tão sem emoção. O chantilly vem todo dengoso... todo superior... todo cheio de sonhos embutidos, criando milhares de expectativas, para conquistar à primeira vista. Para derreter e encantar ainda mais. A mim, e a um bom raio que o assista à minha volta. Quem sabe às crianças o efeito seja mais perceptível, ah, essas são alvo fácil. Muitas vezes certeiro. Mas elas deixam-se envolver pelo encantamento. Pelo sabor. Pela novidade. Já os que calculadamente optam por um chocolate com chantilly, não. Esses querem é ver o circo pegar fogo. Querem botar o dedo na ferida, dramatizar a vida, escancarar seu anseio por um mundo melhor. Um mundo melhor para si, obviamente. Se quisesse um mundo melhor para todos iria logo a uma doceria comprar um enorme bolo com muita cobertura de chantilly e daria uma bela festa, regada à infames sorrisos amarelos, partilhando a peculiaridade da salvação com incontáveis convidados. Pelo menos a salvação momentânea. Ia ser divertido ver de perto o rosto das pessoas celebrando a parte leve e rasa da vida. No geral já podem ser vistos em cada esquina, em cada gesto, em cada momento. Mas acredito que nunca alguém observou o ser humano celebrar a superficialidade hipnotizante do chantilly.

- Senhor?

– Pensando bem. Traga-me um café amargo.

Fonte:
Espaço Literário Sorocult
http://www.sorocult.com/el/view.php-cod=185.htm
Acesso em 09.01.2016

Caldeirão Poético LIX (Madrigais)


Madrigal, é uma composição delicada e graciosa que celebra principalmente a formosura e as graças femininas. Pode ser também um galanteio dirigido a damas e também está associado à composição musical que consistia em um canto vocal sem acompanhamento, em moda no século XVI.

Oriundo da música, o madrigal expressa as principais ideias e sentimentos das chamadas cantigas de pastor. Sua forma é diferente dos poemas convencionais e seu conteúdo pode estar relacionado com a expressão de sentimentos líricos e ideias de forte conteúdo emocional, com vocabulário seleto, ou a temas de inspiração prazerosa.

Em nossa literatura brasileira, nomes como José Paulo Paes, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade escreveram belíssimos madrigais.

De origem italiana, o madrigal era, no século XVI, uma espécie de composição musical e poética, consistindo em canto vocal sem acompanhamento.

A palavra perdeu essa significação. O que chamamos atualmente madrigal é uma pequena composição destinada a exprimir, num resumido número de versos, um pensamento espirituoso e elegante, um galanteio, um elogio discreto ou uma discreta confissão de amor. Concisão, graça, e delicadeza, são essenciais ao poema.

Isabel Furini
Curitiba/PR

SUA VOZ

De dia
sua voz de veludo
alegrava os beija-flores
De noite
a sua aveludada voz
acendia os vaga-lumes
Na hora do crepúsculo
sua voz alimentava
a fogueira do amor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

Toni Barbar
Maringá/PR

CÉU E MAR


Menina do sorriso lindo, puro,
vem beijar meu coração,
olhar de ternura, minha musa,
teus encantos me deixam ébrio;
Teu olhar me extasia;
Teu quadril me tira da inércia.
Retorne a passar,
dê-me uma chance,
de olhar e te amar,
com meus olhos nos teus, a divaga
por entre sonhos e realidade,
entre céu e mar,
Terra e profundidade.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

Maria Antonieta Gonzaga Teixeira
Castro/PR

CLAMOR


Quero estar
no sol que brilha
em teu olhar!
Nas madrugadas
frias
ao luar
Chamo
pelo teu nome.
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Lira Agibert
Colombo/PR

A DIVA


Mar...
Ela sorri
Alegria sem par
A diva seminua
Quase que flutua
Êxtase a bailar
Nas águas tépidas
Que vão e que vem
Entre as espumas
A deusa morna
Brinca seminua
Na forma mulher
Silencia natureza
Pois toda a beleza
Ante seu farfalhar
Se curva, devaneia
Até o amanhecer
Vendo-a borboletear!
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Manuel Bandeira
Recife/PE, 1886 – 1968, Rio de Janeiro/RJ

MADRIGAL MELANCÓLICO


O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
– Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi,
Não é a irmã que já perdi,
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti – lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

José Paulo Paes
Taquaritinga/SP, 1926 – 1998, São Paulo/SP
 
MADRIGAL
 
Meu amor é simples, Dora,
como água e o pão.
Como o céu refletido
Nas pupilas de um cão.

Fonte:
Sobre o Madrigal e madrigais paranaenses obtidos no facebook de George Roberto Washington Abrão (Maringá/PR).

Amadeu de Carvalho Júnior (O Urubu)


  Era uma vez...
                       O Seu Urubu.
                       Era uma vez...
                       A Dona Coruja.
                       Era uma vez...
                       O jovem gavião.
                       Era uma vez...

Uma passarada sem fim, aves e mais aves.

Você já deve estar cansado de tanto "era uma vez...", bem, vamos deixar os personagens para depois e ir direto ao ponto (ao assunto = a história).

No recanto das aves, no céu mais azul que já se viu, havia muitos pássaros, dentre eles, o qual a história contará: morava o urubu conhecido como “Seu Urubu” ou Senhor Urubu. Ele era fedido, nojento, parecia uma espécie de cruzamento da mistura entre porco e gambá. Quase ninguém conversava com ele, ninguém queria chegar perto dele, era muito discriminado por sua sociedade preconceituosa, racista e narcisista, que só cultivava as aparências, a beleza exterior, do corpo, a que passa. Ele era muito educado e simpático com todos, mas sua aparência disforme, sua feiúra, seu mau cheiro, seu fedor, sua porquice e seu hábito de fuçar lixo, restos e ter animais decompostos em sua dieta não agradavam em nada aos seus conterrâneos que tinham nojo dele e esse nojo impedia que aqueles cabeças-duras se aproximassem dele.

Eventos sociais, festas, para nada era convidado. Ninguém fingia ou escondia o incômodo que tinham em relação a ele. Era alvo das fofoqueiras e fofoqueiros de plantão. E não parava mais...

Até que um dia muito triste veio, e o Sr. Urubu já estava com a auto-estima muito baixa e se sentindo totalmente caluniado, desrespeitado, chateado, magoado e esgotado com essa situação (não era pra menos!) :   -   Por que tem que ser assim? Por que não me aceitam como sou?

Nesse momento, aconteceu o ápice, o apogeu de sua vida, ele teve um "clique" e decidiu que mudaria: - Não vou esperar a opinião e a mente deles mudarem. Eu faço a diferença. Eu consigo, vou tentar e posso mudar. Eu vou mudar. Farei a minha parte para ninguém mais me acusar e chamar de apelidos como "Lixão ambulante" e "Toxina mal-cheirosa".

Ele tinha ouvido falar de um gato cabeleireiro especialista em beleza muito famosa na região, chamado Aj. Nele foi. O gato, é claro, aceitou o serviço, mas não acreditou que adiantaria muito. Porém, mais que um serviço, aquilo se tornou um desafio e mais, ao ver o urubu tão pra baixo e infeliz, quis ajudá-lo.

Para começar deu um banho no urubu de sabonete, bucha, escovão e água, cortou algumas penas sujas e feias, cortou alguns fios de cabelo, limpou, lavou, escovou, penteou, deu um corte moderno. E quem diria: que aparência saudável! O urubu se espantou e decidiu se perfumar, sempre estar limpo e de roupa nova. Quis reconstruir sua vida. Nunca voltar ao lixo e à carniça de antes. Agradeceu muito ao gato. Estava feliz. Pela primeira vez olhou no espelho e encontrou-se consigo mesmo. Agora sim. Estava bom e tudo bem.

Como todos ficariam surpresos ao voltar!

E assim o foi...

O urubu decidiu voltar para o Recanto das Aves para participar do desfile de moda que elegeria a ave mais bela de todas.

Todos participaram. Inclusive o Seu Urubu, ou melhor, o novo e renovado Urubu de hoje e de agora. Todos ficaram maravilhados e ao mesmo tempo espantados com a mudança radical e com a "ousadia" do Urubu, na cabeça deles ele não tinha esse direito de participar.

Jovem e elegante como o gavião  ágil e habilidoso como a águia  calmo, sossegado e pacífico como a pomba  sábio, culto, educado, inteligente, discernido e até impondo respeito e sendo importante como a coruja  alegre e feliz como um canário ou sabiá  "gracinha" como um pinguim ou um pintinho  belo como uma garça, um tucano, um pelicano, um papagaio ou uma arara  igualado a todos os pássaros desde a angola, o pica-pau, o periquito, a siri ema, a ema, o marreco, o pato, o ganso, o galo, tendo a fofura do bem-te-vi, a altura de um avestruz... E até tendo a elegância e o deslumbramento de um pavão!

O resultado estava prestes a sair. Na opinião geral dos pássaros participantes: Os passarinhos e cantores pequeninos cantarolando, ficaram e são mesmo bonitinhos e fofinhos, mas havia melhores. A coruja e o papagaio até que eram concorrentes fortes e ela era respeitada. Mas o pombo, a águia, o tucano, e o avestruz estavam acima. O urubu, apesar de tudo, ainda causava desconfiança (será que aquele atrapalhado e desastrado havia mudado mesmo? É uma miragem ou um milagre? É justo ele se arrumar e ficar bonito apenas hoje, só par participar do desfile? Deve ser desclassificado e punido, vamos humilhá-lo ainda mais!). As apostas mesmo estavam ao redor do gavião, do pavão, da garça e da arara azul e vermelha.

O corpo de jurados era formado por um animal de cada espécie, entre eles, os principais: a ave mais antiga e experiente  um gato decorador, maquiador, pintor, estilista e artista  e o leão rei da selva.

Chegou a hora da decisão: quem será que ganhou?

O resultado: Quem ganhou foi... A espera é tanta!

O vencedor é... O coração está pulando, e as mãos suando.

O grande ganhador do troféu de ouro e da viagem à Atmosfera Distante é... O URUBU!

Queixo caído (de todos, inclusive dele próprio)! Urubu não se conteve de emoção, foi viajar e permanecia cada dia mais belo, limpo e bem cuidado.

Já as outras aves, infelizmente, eram perdedoras mesmo! Não sabiam competir, caíram em profunda angústia e depressão, pararam de se cuidar, tornaram-se feias, ridículas, fedidas, sujas e não se aguentavam a si mesmas e umas as outras.

Moral: O que importa é a beleza interior (a beleza do coração) = quem é belo por dentro torna-se intensamente lindo e para sempre, permanece, não passa. Agora quem só se liga em aparências, no culto ao corpo (narcisismo) o qual o mundo de hoje leva, só são belos exteriormente e podem ser até horríveis internamente! O exterior é passageiro, um dia a beleza por fora (externa) pode se acabar. A alegria vem do coração puro e verdadeiro. A humildade preserva o ser. "Quem com ferro fere, com ferro será ferido".

Corramos atrás do que queremos sem pisar e humilhar os outros, o nosso próximo. O preconceito não leva a nada. Lutemos pelos nossos sonhos, para assim os alcançarmos. Não desperdicemos chances e não fiquemos parados: agarremos oportunidades!

Fonte:
Espaço Literário Sorocult
http://www.sorocult.com/el/view.php-cod=153.htm
Acesso em 09.01.2016 

Jaqueline Machado (Otelo, um homem morto pelo ciúme)


Nossos corpos são nossos jardins, cujos jardineiros são nossas vontades, de modo que se quisermos plantar urtiga e semear alface, deixar hissopo ou arrancar tomilho, provê-los apenas de determinada espécie de erva ou enchê-los de muitas variedades, esterilizá-los pela preguiça ou cultivá-los pelo trabalho, podemos.

Com essa frase de Otelo, eu dou início a uma breve narrativa sobre essa grande obra Shakespeariana. Otelo, o mouro, general de Veneza, que por não pertencer a uma casta privilegiada, casou-se às escondidas com Desdêmona, contra a vontade do pai. Ele recebeu dos céus a oportunidade de ser feliz, no entanto, se deixou enganar e pagou um alto preço por isso.

Cássio é o nome do seu melhor amigo. Rodrigo é um rival apaixonado por sua amada. E Iago é o seu servo de confiança.

Esses famosos e intrigantes personagens, são pegos por uma terrível armadilha da vida ou melhor dizendo, da deusa dos venenos, mais conhecida por INVEJA. Iago que parecia ser o seu homem de confiança, na verdade possuía dupla face e desejava ocupar o lugar do seu general. Porém, sabendo que para saciar a desmedida ambição, que era retirar o general do seu caminho, poderia levar tempo, almeja ao menos ser promovido. Mas, em seu lugar, quem recebe uma promoção como tenente é Cássio.

Possuído por sintomas de inveja, decide se vingar. Arquitetando junto de sua esposa e cúmplice, semeando a discórdia entre o casal. A principal investida foi quando Emília, sorrateiramente, pegou um lenço de Desdêmona. Este lenço pertencia aos antepassados de Otelo e ele dera à amada como prova do seu amor. Quando este lenço chegou nas mãos do falso amigo, ele fez questão de colocá-lo no quarto de Cássio. Isto fez o mouro desconfiar da fidelidade de sua mulher e do amigo.

Tomado de ciúmes, Otelo resolveu acertar as contas e matou sua mulher asfixiada. Emília, consciente do horror o qual ajudou realizar, arrependida, contou para o mouro toda a verdade. Iago tentou fugir, mas foi capturado por Ludovico, um primo do general. Otelo se aproximou do corpo de Desdêmona que estava estirado ao chão e sem que ninguém percebesse, tirou um punhal debaixo da farda e se matou beijando o cadáver da mulher que amava.

Moral da história: cuidado com quem andas...Até mesmo os mais fiéis podem não ser tão fiéis quanto aparentam ser.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Vanice Zimmerman (Tela de Versos) 12

 

Coelho Neto (A árvore)


Ninguém sabia explicar como, em tão árido deserto, conseguira medrar a árvore propícia. Fora da sombra ameníssima da sua copa tudo era esterilidade adusta — areias amarelas,- sem erva, sem sulco de riacho, esbraseando ao sol.

Os viajantes respiravam aliviados quando, de longe, avistavam o vulto frondoso da árvore ; os animais amiudavam os passos e, sob a densa e derramada folhagem, impenetrável aos raios caniculares, juntavam-se as caravanas e, como havia uma cisterna no diversório virente (diversão verdejante), todos bebiam à farta e renovavam a provisão dos odres.

A providência daquela árvore não era apreciada, mal lhe prestavam atenção os viajantes e muitos, por passatempo, escorchavam-lhe o tronco com as facas, arrancavam-lhe os ramos ou acendiam fogueiras sobre as suas robustas raízes.

Certo ancião, abrigando-se á sombra da árvore, descobriu que um mal roaz (devastador) a consumia e logo, piedosamente, pôs-se a tratá-la com o desvelo carinhoso com que se dedicaria a um ser humano.

Mofaram da sua paciência os homens da caravana e o velho, sem agastar-se, assim lhes falou:

— Tendes de mim porque pratico o bem; talvez venhais a arrepender-vos da vossa descuidosa ingratidão quando, de regresso, não achardes sombra que vos acolha. A árvore sucumbe, nada há mais a fazer-lhe.

Foram-se os caminheiros. Certa tarde, a um rijo golpe de vento, a árvore, cuja folhagem amarelecera, rolou, com fragor, no solo.

Vinha de volta a caravana e os homens antegozavam a delícia de um lento repouso á sombra, quando pasmaram do encontro: folhas secas, ramos quebrados e o tronco desconforme meio coberto pelas areias.

A cisterna ficara entulhada e a alfombra verde morrera ressequida. Foi então que os homens compreenderam o valor da árvore e a fortuna que haviam perdido.

Pobre árvore! Enquanto viveu foi sempre desprezada, sofrendo toda a sorte de maus tratos; morta, porém, deixando o vazio, eis todos lamentando à sombra agasalhadora que ela, sempre generosa, oferecia, as flores de perfume suave que se abriam nos seus ramos, os pássaros que neles se juntavam, alegrando a região com os seus cantos concertados, a água que parecia brotar das suas fundas raízes.

Ainda hoje, os que trilham o deserto inóspito, mostrando uma tora que aparece acima das areias, param e, tristemente, murmuram :

— Era aqui que a grande árvore, coberta de flores e de passarinhos, abria às caravanas a sua sombra hospitaleira.

Fonte:
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão
Ltda, 1924. Disponível no Portal de Domínio Público.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXXVIII


A dor definha e consome
qualquer doente a sofrer,
tão voraz, fica e não some,
levando um corpo a morrer.
= = = = = = = = =

A dor se iguala a uma flecha
que na alma fica alojada,
dói, quanto maior a brecha,
sem cicatriz, da flechada.
= = = = = = = = =

A lei, na sua vigência,
deverá ser respeitada,
mais que seguida, na essência,
se necessário, aplicada.
= = = = = = = = =

A luz da sabedoria
como um facho alinhe a vida,
nunca falte ao fim do dia
a conquista merecida.
= = = = = = = = =

Ampla, geral e irrestrita,
deve ser a liberdade
e a palavra, uma vez dita,
seja a expressão da verdade.
= = = = = = = = =

Aonde reina a tempestade
volte o bem-estar, sereno!
E quando falta a amizade
sopre o vento do amor pleno.
= = = = = = = = =

De uma sincera amizade
resistem alguns sinais,
de dor ou felicidade
gravados nos seus anais.
= = = = = = = = =

Em levas, no anonimato,
o imigrante em forte ação,
implantou novo formato
ao Brasil da "imigração".
= = = = = = = = =

Jamais posso imaginar
um mergulho no porvir,
sem num ontem mergulhar
e hoje, poder prosseguir.
= = = = = = = = =

Não lastimes companheiro,
frente à vastidão do mar!
Porque no mesmo cargueiro
estamos a navegar...
= = = = = = = = =

Nenhuma pedra interrompa
a estrada de um sonhador
e a ilusão jamais corrompa
o aroma da ingênua flor.
= = = = = = = = =

No alto da torre, cantante,
tilinta o sino em ação,
clama a fazer num instante
um momento de oração...
= = = = = = = = =

No antro de excessos na vida,
o ódio sobra à sociedade,
mais que um prato de comida:
carece o pão da humildade.
= = = = = = = = =

No cosmos, se remoendo,
aonde a densa sombra atua,
tem multa estrela querendo
ser maior que o sol e a lua.
= = = = = = = = =

No universo das estrelas
surge o sol para apagá-las,
pode a nuvem escondê-las,
mas nunca á noite furtá-las.
= = = = = = = = =

Nunca erija um argumento
calcado na falsidade,
para que em nenhum momento
desabe frente à verdade.
= = = = = = = = =

O homem, tal um forte raio,
vê no amigo um concorrente,
passa à frente e de soslaio
busca o sonho tão somente.
= = = = = = = = =

O imigrante era guerreiro
frente à dor não declinava,
buscava no chá caseiro
a solução que faltava.
= = = = = = = = =

O lusco-fusco do ocaso
acende um novo cenário,
paulatino e sem atraso
no palco interplanetário.
= = = = = = = = =

Pelos campos da esperança
planta a paz, que hás de colher,
mais que frutos de bonança,
luzes para o teu viver.
= = = = = = = = =

Pode envolver-te no abraço,
porém, este também passa.
Que dizer se nem teu traço,
fica, em um sinal, de graça?
= = = = = = = = =

Que bom ver o sol brilhando,
não menos que a lua cheia,
ambos, sempre iluminando
quem pela estrada vagueia.
= = = = = = = = =

Ronda da noite, a coruja,
transparece estar pensando,
disfarçada, antes que fuja,
captura a presa, voando.
= = = = = = = = =

Se as águas da juventude
regam vontades e anseios,
fazem transbordar o açude
da ansiedade e devaneios.
= = = = = = = = =

Sobre os trilhos do presente
segue espalhando a saudade,
rangendo em cada dormente,
o trem da modernidade.
= = = = = = = = =

Todo o brilho do Natal
leva a esquecê-lo, jamais,
não maior, nem mesmo igual,
que o primeiro dos Natais.
= = = = = = = = =
Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Lima Barreto (Bailes e divertimentos suburbanos)


Há dias, na minha vizinhança, quase em frente à minha casa, houve um baile. Como tinha passado um mês enfurnado na minha modesta residência, que para enfezar Copacabana denominei "Vila Quilombo", pude perceber todos os preparativos da festa doméstica: a matança de leitões, as entradas das caixas de doces, a ida dos assados para a padaria, etc.

Na noite do baile, fui deitar-me cedo, como sempre faço quando me resolvo a descansar a sério. Às 9 horas, por aí assim, estava dormindo a sono solto. O baile já havia começado e ainda com algumas polcas repinicadas ao piano. Às 2 e meia, interrompi o sono e estive acordado até às 4 da madrugada, quando acabou o sarau. A não ser umas barcarolas cantadas em italiano, não ouvi outra espécie de música, a não ser polcas adoidadas e violentamente sincopadas, durante todo esse tempo.

O dia veio se fazer inteiramente. Levantei-me da cama e, dentro em breve, tomava o café matinal em companhia de meus irmãos. Perguntei a minha irmã, provocado pela monótona musicaria do baile da vizinhança, se nos dias presentes não se dançavam mais valsas, mazurcas, quadrilhas ou quadras, etc. Justifiquei-lhe o motivo da pergunta.

- Qual! - disse-me ela. - Não se gosta mais disso... O que apreciam os dançarmos de hoje, são músicas apolcadas, tocadas "a la diable", que servem para dançar o tango, fox-trot, rang-time, e...

- "Cake-walk"? - perguntei.

- Ainda não se dança, ou já se dançou; mas agora, está aparecendo um tal de "shimmy".

Nunca vi dançar tal coisa, nem me tenta vê-lo; mas a informação me fez lembrar do que era um baile familiar há vinte anos passados. O baile, não sei se é, era ou foi, uma instituição nacional, mas tenho certeza de que era profundamente carioca, especialmente suburbano.

Na escolha da casa, presidia sempre a capacidade da sala de visitas para a comemoração coreográfica das datas festivas da família. Os construtores das casas já sabiam disso e sacrificavam o resto da habitação à sala nobre. Houve quem dissesse que nós fazíamos casa, ou as tínhamos para os outros, porque a melhor peça dela era destinada a estranhos. Hoje, porém, as casas minguam em geral, e especialmente, na capacidade dos seus aposentos e cômodos. Nas salas de visitas das atuais mal cabem o piano e uma meia mobília, adquirida a prestações. Meia dúzia de pessoas, numa delas, estão ameaçadas de morrer asfixiadas com as janelas abertas. Como é que elas podem comportar um baile à moda antiga, em que dançavam dúzias de pares? Evidentemente, não. Isto acontece com as famílias remediadas; com as verdadeiramente pobres, a coisa piora. Ou moram em cômodos ou em casitas de avenidas, que são um pouco mais amplas do que a gaiola dos passarinhos.

Por isso entre a gente média os bailes estão quase desaparecendo dos seus hábitos; e, na gente pobre, eles ficaram reduzidos ao mínimo de um concerto de violão ou a um recibo de sócio de um clube dançante na vizinhança, onde as moças vigiadas pelas mães possam pirutear em salão vasto.

O meu amigo Sussekind de Mendonça, no seu interessante livro - O Esporte está deseducando a mocidade brasileira - refere-se à licenciosidade das danças modernas. Hei de falar mais detidamente sobre esse vigoroso livro: agora, porém, cabe só uma observação. Mendonça alude ao que se passa no "set" carioca; mas pelo que me informam, o subúrbio não lhe fica atrás. Nos tempos idos, essa gente verde das nossas elegâncias - verde é sempre uma espécie de argot - sempre mutável e variável de ano para ano, - desdenhava o subúrbio e acusava-o falsamente de dançar maxixe; hoje, não há diferença: todo o Rio de Janeiro, de alto a baixo, incluídos os Democráticos e o Music-Club das Laranjeiras, o dança.

Há uma coisa a notar: é que esse maxixe familiar não foi dos "Escorregas" de Cascadura para o Acchilleon do Flamengo; ao contrário, veio deste para aquela. O meu estimado Mendonça atribui o "andaço" dessas danças desavergonhadas ao futebol. O Sr. Antônio Leão Veloso achou isso exagerado. Pode haver exagero - não ponho em dúvida tal coisa - mas o tal de futebol pos tanta grosseria no ambiente, tanto desdém pelas coisas de gosto, e reveladoras de cultura, tanta brutalidade de maneiras, de frases e de gestos, que é bem possível não ser ele isento de culpa no recrudescimento geral, no Rio de Janeiro, dessas danças luxuriosas que os estadunidenses foram buscar entre os negros e os apaches. Convém notar que semelhantes danças não têm a significação luxuriosa e lasciva que se julga. Fazem parte dos rituais dos seus Deuses, e com elas invocam a sua proteção nas vésperas de guerras e em outras ocasiões solenes.

Passando para os pés dos ditos civilizados, elas são deturpadas, acentuadas na direção de um apelo claro à atividade sexual, perdem o que significavam primitivamente e se tornam intencionalmente lascivas, provocantes e imorais. Isto, porém, não nos interessa, porque não interessa tanto ao subúrbio como ao "set" carioca, que dançam "one-step" e o tango argentino, e nessas bárbaras danças se nivelam. O subúrbio civiliza-se, diria o saudoso Figueiredo Pimentel, que era também suburbano; mas de que forma, santo Deus?

Quando fui morar naquelas paragens não havia noite em que voltando tarde para casa, não topasse no caminho com um baile, com um choro, como se dizia na gíria do tempo. Havia famílias que davam um por mês, fora os extraordinários, e havia também cavalheiros e damas que não faltavam a eles, além de irem a outros de famílias diferentes. Eram célebres nos subúrbios, certos rapazes e moças, como tipos de dançarinos domésticos. Conheci alguns, e ouvi muitos falar neles. Lembro-me bem, dentre eles, de uma moça que, às vezes, atualmente ainda encontro, gordinha, com dois ou três filhos que lhe dão um imenso trabalho para acomodar nos bondes. Chamavam-na Santinha, e tinha uma notoriedade digna de um poeta de "Amor" ou de um gatimanhas de cinematógrafo. Não era bonita na rua, longe disso. A sua aparência era de uma moça como muitas outras, de feições miúdas, sem grande relevo, cabelos abundantes e sedosos. Tinha, porém, um traço próprio, pouco vulgar nas moças. A sua testa era alta e reta, testa de deusa a pedir um diadema. Era estimada como discípula de Terpsícore burguesa. A sua especialidade estava na valsa americana que dançava como ninguém. Não desdenhava as outras contradanças, mas a valsa era a sua especialidade. Dos trezentos e sessenta e cinco dias do ano, só nos dias de luto da semana santa e no de finados, não dançava. Em todos os mais, Santinha valsava até de madrugada. Dizia a todos que, por tanto dançar não tinha tempo de namorar. De fato, sempre requestada para esta e aquela contradança, via tantos e tantos cavalheiros, que acabava não vendo nenhum ou não firmando a fisionomia de nenhum.

Se não era bela na rua, em atitude comum de passeio, valsando ficava outra, tomava um ar de sílfide, de divindade aérea, vaporosa e adquiria um ar esvoaçante de visão extra-real. Fugia ao solo e como que pairava no espaço...

Os que a viram dançar e me falam dela, até hoje não escondem a profunda impressão que a moça, ao valsar, lhes causou; e quando hoje, por acaso, a encontro atrapalhada com os filhos, penso de mim para mim: para que essa moça se cansou tanto? Chegou afinal ao ponto em que tantas outras chegam com muito menos esforço...

O "pendant" masculino de Santinha era o seu Gastão. Baile em que não aparecia seu Gastão, não merecia consideração. Só dançava de "smoking", e o resto do vestuário de acordo. Era um rapaz de boa altura, simpático, grandes e bastos bigodes, de uma delicadeza exagerada; A sua especialidade não era a valsa; era o "pas-de-quatre", que dançava com ademanes de dança antiga, de minueto ou de coisa parecida. Fazia cumprimentos hieráticos e dava os passos com a dignidade e convicção artística de um Vestris. Seu Gastão ainda existe, e prosperou na vida. Quando rei suburbano do "pas-de-quatre" era empregado de um banco ou de um grande escritório comercial. Hoje é diretor-gerente de uma casa bancária, está casado, tem filhos, mora em Conde de Bonfim, numa vasta casa, mas raramente dá bailes. Dançou para a vida inteira e também pelos filhos e filhas.

Nesses bailes suburbanos, o mártir era o dono da casa: Seu Nepomuceno começava por não conhecer mais da metade da gente que, transitoriamente, abrigava, porque Cacilda trazia Nenê e esta o irmão que era namorado daquela - a única cuja família tinha relações com a do Seu Nepomuceno; e, assim, a casa se enchia de desconhecidos. Além destes subconvidados, ainda existiam os penetras. Chamava-se assim certos rapazes que, sem nenhuma espécie de convite, usavam deste ou daquele truque, para entrar nos bailes – penetrar.

Em geral, apesar da multidão dos convidados, essas festas domésticas tinham um grande cunho de honestidade e respeito. Eram raros os excessos e as danças, com o intervalo de um hora, para uma ceia modesta, se prolongavam até o clarear do dia sem que o mais arguto do sereno pudesse notar uma discrepância nas atitudes dos pares, dançando ou não.

Sereno, era chamado o agrupamento de curiosos que ficavam na rua a espiar o baile. Quase sempre era formado de pessoas das vizinhanças e outras que não haviam sido convidadas e lá se postavam para ter assunto em que baseassem a sua despeitada crítica. Esses bailes burgueses não eram condenados pela religião. Se algumas nada diziam, calavam-se. Outras até elogiavam. O puritanismo era francamente favorável a eles. Afirmava ele, pela boca de adeptos autorizados, que essas reuniões facilitavam a aproximação dos moços de dois sexos, cuja vida particular a cada um deles se fazia isoladamente, sem terem ocasião de trocar impressões, sem comunicarem mutuamente quais os seus anelos, quais os seus desgostos, favorecendo tudo isso os saraus familiares.

Estou certo de que os positivistas, hoje, julgariam que os atuais bailes aproximam por demais os sexos, e... "anathema sit". O pequeno povo porém ainda não sabe o "fox-trot", nem o "shimmy". Nos seus clubes, ao som do piano ou de estridulantes charangas, dança ainda à antiga; e, no recesso do lar com um terno de flauta, um cavaquinho e violão ou sob o compasso de um prestativo gramofone, ainda volteia a sua valsa ou requebra uma polca, extraordinariamente honesta em comparação com os tais "steps" da moda.

Sem receio de errar, entretanto, pode-se dizer que o baile familiar e burguês, democrático e efusivo, está fora da moda, nos subúrbios. A carestia da vida, a exiguidade das casas atuais e a imitação da alta burguesia desfiguraram-no muito e tendem a extingui-lo. O violão e a modinha que Catulo, com sua tenacidade, com o seu talento e a sua obediência cega a um grande ideal, dignificou e tornou capaz da atenção dos intelectuais, vão sendo mais prezados e já se fazem encantos dos saraus burgueses em que, pelas causas apontadas, as danças mínguam. É pena que para um Catulo, artista honesto, sob todos os pontos de vista, haja uma dezena de Casanovas disponíveis, que, maus de natureza e sem talento algum, se servem da arte reabilitada pelo autor de Sertanejo, a fim de, por intermédio de horríveis cantarolas, levarem a desgraça a lares pobres e perder moças ingênuas e inexperientes. Há por lá monstros desses que contam tais proezas às dezenas. É o caso de imitar o outro e escrever: O Código Penal e a inutilidade das leis.

Uma outra diversão que, antigamente, os suburbanos apreciavam muito e hoje está quase morta, era a do teatrinho de amadores. Quase todas as estações tinham mantido um Clube. O do Riachuelo, teve a sua meia hora de celebridade; possuía um edifício de razoáveis proporções; mas desapareceu, e, atualmente, foi transformado em escola municipal. O que havia de característico na vida suburbana, em matéria de diversão, pouco ou quase nada existe mais. O cinema absorveu todas elas e, pondo de parte o Mafuá semi-eclesiástico, é o maior divertimento popular da gente suburbana.

Até o pianista, o célebre pianista de bailes, ele arrebatou e monopolizou. Nada tem, porém, de próprio ao lugar, é tal e qual outro e qualquer cinema do centro ou qualquer parte da cidade em que haja pessoas cujo gosto de se divertir no escuro arrasta a ver-lhes as fitas durante hora e tanto.

O futebol flagela também aquelas paragens como faz ao Rio de Janeiro inteiro. Os clubes pululam e os há em cada terreno baldio de certa extensão. Nunca lhes vi uma partida, mas sei que as suas regras de bom-tom em nada ficam a dever às dos congêneres dos bairros elegantes. A única novidade que notei, e essa mesma não me parece ser grave, foi a de festejarem a vitória sobre um rival, cantando os vencedores pelas ruas, com gambitos nus, a sua proeza homérica com letra e música da escola dos cordões carnavalescos. Vi isto só uma  vez e não garanto que essa hibridação do samba, mais ou menos africano com o futebol anglo-saxônio, se haja hoje generalizado nos subúrbios. Pode ser, mas não tenho documentos para tanto afiançar.

Resta-nos o Carnaval; é ele, porém, tão igual por toda a parte, que foi impossível, segundo tudo faz crer, ao subúrbio dar-lhe alguma coisa de original. Lá, como na Avenida, como em Niterói, como em Maxambomba, como em todo este Brasil inteiro, são os mesmos cordões, blocos, grupos, os mesmos versos indignos de manicômio, as mesmas músicas indigestas e, enfim, o Carnaval em que como lá diz Gamaliel de Mendonça, no seu último livro - Revelação: - Os homens são jograis; as mulheres, bacantes. – O subúrbio não se diverte mais. A vida é cara e as apreensões muitas, não permitindo prazeres simples e suaves, doces diversões familiares, equilibradas e plácidas. Precisa-se de ruído, de zabumba, de cansaço, para esquecer, para espantar as trevas que em torno da nossa vida, mais densas se fazem, dia para dia, acompanhando "pari-passu" as suntuosidades republicanas.

Ele não mais se diverte inocentemente; o subúrbio se atordoa e se embriaga não só com o álcool, com a lascívia das danças novas que o esnobismo foi buscar no arsenal da hipocrisia norte-americana. Para as dificuldades materiais de sua precária existência, criou esse seu paraíso artificial, em cujas delícias transitórias mergulha, inebria-se minutos, para esperar, durante horas, dias e meses, um aumentozinho de vencimentos...

Fonte:
Lima Barreto. Marginália. Publicado na Gazeta de Notícias, 7-2-1922. Disponível no Portal de Domínio Público.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Varal de Trovas n. 576


Leandro Bertoldo Silva (Quem são os seus heróis?)


Ponte entre tempos...
Mundos que se completam...
Quem sou eu agora?


É comum termos personagens que marcam ou marcaram nossas vidas. Quem nunca se imaginou sobrevoar os arranha-céus das cidades como o Super-Homem, ou subir pelas paredes como o Homem-Aranha e até combater o crime ao usar um laço mágico como a Mulher-Maravilha? Eu também tenho os meus personagens, mas nenhum, por mais poderes existentes, me falou tão profundamente quanto um específico, e olha só: nem poder ele possui, a não ser sua inteligência… Engana-se quem pensou em Batman! O meu herói, sim, pois acabou por se transformar em um herói para mim, não era bravo, valente, nunca salvou ninguém de perigos, a não ser a mim, salvo do não saber das coisas, do não gostar de ler, de não conhecer histórias e mitologias, filosofias e inventores. O meu personagem é, e sempre foi um sábio sabugo de milho feito pelas mãos talentosas e generosas de Tia Nastácia, colhido em um milharal no Sítio do Picapau Amarelo: Visconde de Sabugosa.

Desde criança, Visconde povoa meu coração de sonhos e viagens inesquecíveis. Quantas vezes fui à lua em um foguete, ajudei Teseu a vencer o Minotauro e quase morri de susto ao ficar a poucos centímetros da boca do Boitatá! Sim, vivia as aventuras do Sítio como se fossem minhas e, embora admirado com a coragem de Pedrinho e sua música que me fazia chorar, como faz até hoje — ela, inclusive, foi o toque do meu celular por muito tempo —, diferente da maioria dos meninos da minha idade, era o Visconde que eu queria ser. Na minha imaginação, passava horas na biblioteca e os meus poucos livros reais se transformavam nas enciclopédias e compêndios lidos e estudados pelo sábio sabugo. Os pregadores de roupa da minha mãe se transformavam em máquinas e equipamentos moderníssimos capazes de nos transportar pelo tempo. Tampinhas de garrafa, alfinetes, papéis laminados de bombom, potes de vidro, tudo eu levava para o meu quarto, ou melhor, para o meu laboratório, e ficava lá inventando coisas. Afinal, eu era o Visconde!

Esse personagem vai além de um gosto de criança, de uma simpatia infantil que depois que a gente cresce desaparece. Visconde permanece em mim como uma entidade real, lúcida. Em todos os momentos da minha vida ele esteve presente, e sempre da melhor forma, silencioso, introspectivo, cúmplice… Poucas pessoas sabem disso (até agora). Até na minha história do pé de ameixa contada aos quatro cantos, Visconde estava lá. Era nele que eu me transformava ao subir na árvore e fazer de seus galhos as estantes dos meus livros. Hoje tenho uma filha já moça, e é uma das poucas a saber da minha “identidade secreta”… Ela faz os meus sonhos permanecerem acordados. Sou muito grato, pois, apesar dos tempos modernos, ela permitiu que eu a apresentasse ao meu mundo, às minhas aventuras e, além de conhecê-las, entrou nelas, compactuou com meus personagens, estendeu-lhes a mão e acolheu-os em seu coração. Não tenho dúvidas! Yasmin é uma daquelas princesas contadas pela Dona Benta e fazia com que eu, Visconde, pesquisasse a respeito nos livros de história. Mas me faltava uma coisa: faltava, além de ser o Visconde por dentro, ser também o Visconde por fora, deixá-lo se mostrar em mim assim como eu sempre me mostrei nele. E mais uma vez, foi ela, minha filha, a responsável por isso. Em seu aniversário de 11 anos onde todos podiam se fantasiar de alguma coisa, resolvi fazer o contrário; quando todos colocaram suas máscaras, resolvi tirar a minha…

O difícil foi, depois da festa, voltar à fantasia da vida. Mas qualquer dia eu volto à realidade. Obrigado, Visconde, por termos sido um só. Vamos às nossas aventuras. Elas ainda não acabaram.

Fonte:
Texto e imagem enviados pelo autor, disponível em http://arvoredasletras.com.br 

Mara Garin (A figueira do Pomar)


Dia destes, num mormacento fim de tarde, postei nas redes sociais, fotos da figueira do meu pomar, um amigo viu e me indagou, porque eu deixava os figos amadurecerem na figueira, porque não fazia doces, geleias, figadas ou chimias...?

Respondi:

– Mas eu fiz!

Fiz o suficiente para os filhos e os netos, fiz o quanto seria necessário para que todos provassem,  e ficasse a deliciosa vontade de comer mais, na próxima estação dos figos.

Agora eles amadurecem, eu como me delicio com um ou outro ali no pomar, enquanto estendo roupas para secar ao sol, mas o que mais me encanta são os pássaros, eles chegam aos bandos, vem de todos os lugares, todas as cores e todos os tamanhos, fazem uma maravilhosa sinfonia de cantos e revoadas, comem e brincam na figueira, me presenteiam com sua beleza. Se eu tivesse enchido vidros e mais vidros com doces, hoje eu estaria com a dispensa cheia de doces, mas meu coração estaria vazio desta alegria.... Prefiro assim, a Deusa da Natureza abençoa quem cuida dos seus.

E o amigo está convidado a vir comer um figo junto de meus passarinhos livres e felizes.

Fonte:
Texto enviado por Jaqueline Machado.

Casimiro de Abreu (Poemas Avulsos) 1


CENA ÍNTIMA


Como estás hoje zangada
E como olhas despeitada
Só p'ra mim!
- Ora diz-me: esses queixumes,
Esses injustos ciúmes
Não têm fim?

Que pequei eu bem conheço,
Mas castigo não mereço
Por pecar;
Pois tu queres chamar crime
Render-me à chama sublime
Dum olhar!

Por ventura te esqueceste
Quando de amor me perdeste
Num sorrir?
Agora em cólera imensa
Já queres dar a sentença
Sem me ouvir!

E depois, se eu te repito
Que nesse instante maldito
- Sem querer -
Arrastado por magia
Mil torrentes de poesia
Fui beber!

Eram uns olhos escuros
Muito belos, muito puros,
Como os teus!
Uns olhos assim tão lindos
Mostrando gozos infindos,
Só dos céus!

Quando os vi fulgindo tanto
Senti no peito um encanto
Que não sei!
Juro falar-te a verdade...
Foi decerto - sem vontade -
Que eu pequei!

Mas hoje, minha querida,
Eu dera até esta vida
P'ra poupar
Essas lágrimas queixosas,
Que as tuas faces mimosas
Vêm molhar!

Sabe ainda ser clemente,
Perdoa um erro inocente
Minha flor!
Seja grande embora o crime
O perdão sempre é sublime
Meu amor!

Mas se queres com maldade
Castigar quem - sem vontade -
Só pecou;
Olha, linda, eu não me queixo,
A teus pés cair me deixo...
Aqui estou!

Mas se me deste, formosa,
De amor na taça mimosa
Doce mel;
Ai! deixa que peça agora
Esses extremos d'outrora
O infiel:

Prende-me... nesses teus braços
Em doces, longos abraços
Com paixão;
Ordena com gesto altivo...
Que te beije este cativo
Essa mão!

Mata-me sim... de ventura,
Com mil beijos de ternura
Sem ter dó,
Que eu prometo, anjo querido,
Não desprender um gemido,
Nem um só!
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

ILUSÃO

Quando o astro do dia desmaia
Só brilhando com pálido lume,
E que a onda que brinca na praia
No murmúrio soletra um queixume;

Quando a brisa da tarde respira
O perfume das rosas do prado,
E que a fonte do vale suspira
Como o nauta da pátria afastado;

Quando o bronze da torre da aldeia
Seus gemidos aos ecos envia,
E que o peito que em mágoas anseia
Bebe louco essa grave harmonia;

Quando a terra, da vida cansada,
Adormece num leito de flores
Qual donzela formosa embalada
Pelos cantos dos seus trovadores;

Eu de pé sobre as rochas erguidas
Sinto o pranto que manso desliza
E repito essas queixas sentidas
Que murmuram as ondas co'a brisa.

É então que a minha alma dormente
Duma vaga tristeza se inunda,
E que um rosto formoso, inocente,
Me desperta saudade profunda.

Julgo ver sobre o mar sossegado
Um navio nas sombras fugindo,
E na popa esse rosto adorado
Entre prantos p'ra mim se sorrindo!

Compreendo esse amargo sorriso,
Sobre as ondas correr eu quisera...
E de pé sobre a rocha, indeciso,
Eu lhe brado: - não fujas, - espera!

Mas o vento já leva ligeiro
Esse sonho querido dum dia,
Essa virgem de rosto fagueiro,
Esse rosto de tanta poesia!...

E depois... quando a lua ilumina
O horizonte com luz prateada,
Julgo ver essa fronte divina
Sobre as vagas cismando, inclinada!

E depois... vejo uns olhos ardentes
Em delírio nos meus se fitando,
E uma voz em acentos plangentes
Vem de longe um - adeus - soluçando!
........................

Ilusão!... que a minha alma, coitada,
De ilusões hoje em dia é que vive;
É chorando uma gloria passada,
É carpindo uns amores que eu tive!
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

JURAMENTO

Tu dizes oh Mariquinhas
Que não crês nas juras minhas,
Que nunca cumpridas são!
Mas se eu não te jurei nada,
Como hás de tu, estouvada,
Saber se eu as cumpro ou não?!

Tu dizes que eu sempre minto,
Que protesto o que não sinto,
Que todo o poeta é vário,
Que é borboleta inconstante;
Mas agora, neste instante,
Eu vou provar-te o contrário.

Vem cá, sentada a meu lado
Com esse rosto adorado
Brilhante de sentimento,
Ao colo o braço cingido,
Olhar no meu embebido,
Escuta o meu juramento.

Espera: - inclina essa fronte...
Assim!... - Pareces no monte
Alvo lírio debruçado!
- Agora, se em mim te fias,
Fica séria, não te rias,
O juramento é sagrado.

"- Eu juro sobre estas tranças,
"E pelas chamas que lanças
"Desses teus olhos divinos;
"Eu juro, minha inocente,
"Embalar-te docemente
"Ao som dos mais ternos hinos!

"Pelas ondas, pelas flores,
"Que se estremecem de amores
"Da brisa ao sopro lascivo;
"Eu juro, por minha vida,
"Deitar-me a teus pés, querida,
"Humilde como um cativo!

"Pelos lírios, pelas rosas,
"Pelas estrelas formosas,
"Pelo sol que brilha agora,
"- Eu juro dar-te, Maria,
"Quarenta beijos por dia
"E dez abraços por hora!"

O juramento está feito,
Foi dito co'a mão no peito
Apontando ao coração;
E agora - por vida minha,
Tu verás oh! moreninha,
Tu verás se o cumpro ou não!…

Fonte:
Poemas obtidos no Portal Domínio Público (http://www.dominiopublico.gov.br/)

Lima Barreto (O anel dos musicistas)


As meninas do Instituto de Música escreveram aos jornais, lembrando a criação de um anel que as marcasse ao fim do curso ou dos cursos daquela casa sonora. A exemplo dos médicos, dos advogados, dos engenheiros, dos dentistas, dos bacharéis do Pedro II, dos cônegos, das raparigas da Escola Normal, elas querem também um distintivo que as extreme do vulgo. É muito justo, pois se o destino da mulher é o casamento, tudo o que possa concorrer para que elas o cumpram, deve merecer o nosso apoio entusiástico. Quando uma moça, doutora do Instituto, for de anel no dedo pelos bondes a fora, ao fim da viagem não esperará muito que um namoro se transforme em noivado... Ela garantirá a "zona" e o marido futuro ficará sossegado quanto às despesas da casa. O anel à mostra, isto é, o que ele rende, ficará sendo assim, às claras, uma espécie de dote, porque de todas as profissões femininas, a que tem maiores possibilidades entre nós é a de professora de música, quando garantidas pelo Instituto do largo da Lapa. Os motivos disto estão entrando nos olhos de todos os que residem no Rio de Janeiro e vivem sitiados por pianos ou violinos, na frente, nos fundos, nos lados, seja a casa em bairro rico ou pobre.

De tal modo é rendoso o ofício de professora de música e de seus instrumentos, no Rio, que as brigas vergonhosas que há de vez em quando no Conservatório, só podem ser atribuídas à ganância dos professores e acólitos na caça e disputa de discípulos. Cherchez l'argent (procure o dinheiro).

A música, entre nós, é a única arte em que raramente aparece uma tentativa de criação. Entregue, como está, a moças, melhor, a mulheres, que em geral nunca em arte foram criadoras - estudam unicamente para o professorado - a arte musical, na nossa cidade, não dá nenhuma demonstração superior da nossa emoção, dos anseios e sonhos peculiares a nós. Limita-se a repetir, trilhando os caminhos batidos. Não há invento nem novidade. As suas sacerdotisas agora querem um anel, talqualmente as senhorinhas da Escola Normal, quando acabam o seu curso secundário.

Se a medida não trouxer progressos à arte de Euterpe*, entra, entretanto, na lógica da nossa sociedade. Não é possível que num pais democrático, uma moça que andou aos cuidados do Sr. Richard, do Sr. Arnaud Gouveia, do Sr. Alberto Nepomuceno, que escreve óperas para exportação, possa ser confundida com qualquer rapariga aí.

Para todos os que têm um curso qualquer, não há distintivo? Como não cabe o mesmo direito às talentosas executoras do Instituto de Música?

Certamente, que elas tem toda a razão, e, se dependesse do meu voto, desde já estariam usando o berloque simbólico. Seria mais um.

As pedras, querem elas que sejam de safira, porque - justificam - a música tem muita coisa com a matemática; e a safira é a pedra dos anéis de engenheiros. A moça que projetou o anel tem certamente um namorado aos cuidados dos Srs. Ortiz ou Villiot, na Escola Politécnica, imagino eu. Contudo, animo-me a lembrar a ambos, que tanto a engenharia dele como a música da sua deidade, no fim quando ambos forem se servir de uma coisa e da outra, a matemática que entrar nelas pouco além irá daquela que se aprende nas escolas primárias.

Seria melhor que a menina que ideou o anel, desde já estudasse as divisões da nossa moeda, a conta de juros da Caixa Econômica, para bem poupar e fazer render o que ganhar nas suas lições. E, para isto, basta o Viana, Aritmética; e pode deixar de lado o nome pomposo da matemática. Quanto ao seu futuro marido, se algum dia passar além do trânsito ou do nível, tem os "handbooks" que lhe suprirão as falhas na sabedoria.

A matemática, minha senhora, para a maioria dos engenheiros, é assim como o latim para um grande número de padres: eles sabem só pronunciá-lo. Não amesquinho seu noivo ou namorado, pois nunca foi do meu temperamento amesquinhar um doutor ou futuro doutor. Faço uma observação, unicamente. De passagem seja-me permitido lembrar à futurosa Cellini** acadêmica, que a safira, na escala da dureza, ocupa um dos primeiros lugares; e uma pedra tão dura não fica bem para emblema de uma arte tão doce e tão pouco rígida. Pense em outras, minha senhora.

Se o fito é distinguir-se, extremar-se do vulgo feminino, há um processo seguro: É a tatuagem, que os doutores também poderiam usar, e, em certas partes dos corpos femininos, no colo, por exemplo, iria magnificamente. Além de tudo, é indelével. Ficaria a senhora Dra. em música, até que, como nós todos, fosse a gentil senhorinha formada, muito comumente, "moisir parmi les ossementes, sous l'herbe et les fioraisons grassées"***, como diz Baudelaire  (Procure isso na Une Charogne).

(Publicado em A Lanterna, 25-1-1918)
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* Euterpe = Entre as nove musas, filhas de Zeus e Mnemósina, Euterpe era conhecida como a Aprazível, que espalha alegria, e tinha como principal atributo iconográfico o aulo, um instrumento de sopro. Na Antiguidade tardia, ela foi apontada como a Musa ora da música, ora da poesia lírica.
** Cellini = (1500-1571) foi um ourives e escultor italiano. Entrou para a história como o maior ourives do Renascimento.
*** moisir parmi les ossementes, sous l'herbe et les fioraisons grassées = para moldar entre os ossos, sob a grama e os floreios oleosos.


Fonte:
Lima Barreto. Marginália. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>. Disponível no Portal de Domínio Público.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Nélio Bessant (Caderno de Trovas) 10

 

Contos e Lendas do Paraná - 15 (Cerro Azul – Ivaté – São José dos Pinhais)


Município de Cerro Azul
Manoel Trindade

Era uma pessoa simples, trabalhava como diarista em serviços da lavoura. Morava na Raia. Depois, mudou-se para o Quarteirão dos Órfãos, sempre cultivando a terra no plantio de cereais. Nas horas de folga dedicava-se ao estudo das ciências do ocultismo. Tinha relações com a gente de São Paulo, de onde recebia os livros. Através desses estudos aprendeu a ser “curador”.

Manoel Trindade fazia muitos benefícios: curava as pessoas através da força mental, aconselhava-as em todas as situações problemáticas da vida, tais como brigas de família e brigas com vizinhos, sempre mostrando o melhor caminho. Fazia também simpatias para mordedura de cobra. Salvou muitas pessoas desenganadas de médicos.

Inúmeras pessoas que receberam seus benefícios ainda vivem hoje. O senhor Artur Bichels é um deles. Conta ele que estava muito bem disposto, andando lá pelos lados da Capelinha do Ninico. Para fugir de uma forte chuva que se iniciava pulou de um barranco alto; porém, ao invés de a queda ser amortecida pelo joelho, caiu seco e este se deslocou por dentro. Sentiu uma “ruindade”, segundo conta, e foi lavar o rosto à beira do rio. Mas aí escureceu o mundo de vez: teve que ser carregado para dentro de casa e ficou três meses de cama.

A dona Tuca Von Der Osten lembrou-se do Manoel Trindade e foi até a sua casa contar o caso e pedir um remédio. Ele preparou a “água benzida” para Artur Bichels e recomendou que banhasse com ela a coroa da cabeça e o peito. Conta o senhor Artur que levantava uma fumaça como se jogasse água na chapa fervendo. E quase que o pobre foi-se mesmo. Mas o Manoel Trindade havia dito que se até meia-noite a morte não se decidisse a usar a foice, ele estaria salvo. Felizmente, bem antes, o doente como que despertou e disse:

– Por que você me acordou? Justo agora que eu consegui um sono tão bom.

Manoel Trindade tinha também o poder de prever fatos. Conta-se que um homem foi pedir-lhe um remédio para sua mulher que estava acamada. Após fazer o remédio e entregar-lhe, comentou, à parte, com pessoas presentes:

– Que pena! Ela vai sarar, mas ele vai morrer.

De fato, logo que a mulher melhorou, o homem morreu inexplicavelmente.
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Município de Ivaté
A bola de fogo

Acontecia na estrada indo para Ivaí, contada por muitos moradores. Dizem que uma bola de fogo, ou de luz, não se sabe o que é, acompanha as pessoas a pé, de carro ou carroça. Quando se passa próximo à mata esta bola os acompanha. E é tão forte que as pessoas perdem até a direção do carro, se estiverem dirigindo.

Isto acontece, sempre, de meia-noite às três horas da madrugada. Algumas vezes, ao invés de acompanhar as pessoas ela fica em cima de uma árvore parada. Mais interessante ainda é que ela é veloz e chega à velocidade de um carro. Outro fator importante é que ela só aparece próxima a esta mata; só acompanha as pessoas nesta travessia, depois desaparece.

Conta-se que a luz aparece porque há algum tempo atrás um policial foi assassinado no fundo da mata. Outra versão é que a bola seja a “mãe do ouro”, ou seja, antigamente as pessoas tinham o hábito de enterrar ouro e as almas daquelas que morreram sem contar a ninguém ficaram penando pelo mundo.
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Município de São José dos Pinhais
O velório da virgem noiva

São José dos Pinhais, aí pelos anos de 1928, tinha ainda poucas casas, sem luz e sem água, nem esgoto, e havia muito mato e árvores com troncos enormes. Nessa época, não havia capela para velar os mortos e as pessoas velavam seus entes queridos em suas próprias casas. Havia dois compadres muito engraçados, que compareciam em todos os velórios para distrair do sono, os parentes e amigos do finado. Sabemos, quanto é difícil noites de inverno ter que passar em claro.

Certo dia, faleceu uma moça já de idade, mas muito séria e moralista. Vestiram-na toda de branco. Véu, grinalda, uma noiva completa. Estavam todos reunidos, velando a moça. Quando aí chegaram os compadres, por volta das 21 horas, pararam na porta um tanto assustados, olhando um para outro, disseram:

– Santo Deus do céu, será que era virgem mesmo? Cochichando nos ouvidos com olhar de malícia.

Lá pela meia-noite, deu uma dor de barriga em um dos compadres, ele foi até um bosque próximo do velório, fez suas necessidades; quando voltava, no pátio da casa, em noite de luar, viu a noiva que vinha toda de branco, passo a passo, pé por pé, aproximando-se cada vez mais. Chegando bem perto, ela disse:

– Ainda duvida de mim?

O compadre deu um salto para dentro da casa do velório, todo assustado, branco como a neve e disse ao seu companheiro:

– Não devemos brincar com quem já morreu.

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná.
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

Thalma Tavares (Poemas Avulsos) 5


A BOLHA

Rumando para o ocaso, onde a tarde se esfuma,
cai no horizonte o sol sobre a minha jornada;
tão vadia e fugaz como as bolhas de espuma
que têm certa a partida e não certa a chegada.

Quando um dia eu vivi essa bolha encantada
entreguei-me à ilusão e, sem prudência alguma,
não me fiz detentor de riqueza nenhuma,
mas cobri de lirismo a senda desolada.

E por isso eis-me aqui sob as vaias de Midas,
que jamais aprovou minhas taças erguidas;
efêmeros lauréis a enflorar-me a cerviz.

E o fulgor dos metais de que nunca fiz caso,
barganhei pelo verso e agora, em meu ocaso,
descubro que sou rei na paz que sempre quis.
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HOMO NON SAPIENS

Vive em cavernas, bronco e deletério
e tem por arma a pedra contundente.
Ele, que já foi larva e foi minério,
milhões de anos depois torna-se gente.

Contempla-se mais tarde interiormente
e erguendo o véu da sombra e do mistério
descobre-se animal inteligente
a impor sobre os demais o seu império.

Domina a terra, o ar, o céu, as águas,
mas guarda ainda frustrações e mágoas
apesar das batalhas que venceu.

Sempre a oscilar entre a ciência e o mito,
vive a buscar respostas no Infinito
para a eterna pergunta: - quem sou eu?
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NUNCA É TARDE

Como é difícil caminhar sofrendo!..
As pernas fracas, suplicando amparo,
vendo outras pernas, céleres, correndo,
criando em mim um sentimento amaro.

Parece que eu não tive um bom preparo
para aceitar a vida envelhecendo.
Mas lembro que em algum momento raro,
vencendo a idade eu me senti vivendo.

Assim é a vida!... E eu reconheço agora
que já não tenho esse vigor de outrora...
Mas mesmo assim prossigo e, sem tropeço,

sem cogitar de trilhos enfadonhos,
sigo a jornada resgatando sonhos,
colhendo as alegrias que mereço.
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PECADOS

Eu tenho pecados, e muitos, não nego.
Só Deus é quem sabe das culpas que expio,
dos erros, das faltas que eu triste carrego,
que o sono me roubam, por noites a fio.

Porque aos teus braços me atiro, me entrego,
minha alma anda triste qual planta no estio.
Mas Deus é culpado, se não me fez cego
à rara beleza do teu corpo esguio.

Não sei de pecados, mais doces, mais quentes
que a luz de teus olhos, teus lábios ardentes,
que enchem minha alma de sol e calor.

Mas tenho certeza que os nossos pecados,
por muitos que sejam, já estão perdoados,
pois não é pecado pecar por amor.
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SALMODIANDO

Eu trago em mim um cântico proscrito,
diverso dos que o público aplaudia.
E, como o querem cântico maldito,
novo verso lhe empresto a cada dia.

E, enquanto eu canto, noto o olhar aflito
dos que me aplaudem por hipocrisia.
Mas quando elevo a voz ao infinito,
minha lira não plange, salmodia.

E o meu canto se faz mas eloquente
clamando para que todo vivente
tenha pão, tenha vida em abundância.

Espero então, meu Deus, que o mundo entenda
este meu canto de amor e tire a venda
dos olhos desumanos da ganância.
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ZELOS

Eu tenho ciúmes desse ar que respiras,
dos olhos que são minha luz, meu alento,
que mudam-se às vezes em sóis de tormento
brilhando em teu rosto qual duas safiras.

Se ao fim não me contas por quem tu suspiras,
que finjas ao menos algum sentimento,
que apago os receios em meu pensamento
e aceito feliz umas doces mentiras...

Se já não me abraças com a mesma constância,
se eu sinto em teus beijos sabor de distância,
o amor entre nós mais encantos não tem...

E a causa maior de meu triste queixume,
está na razão deste ingente ciúme
que não te imagina querendo outro alguém.

Fonte:
Facebook do poeta