sábado, 19 de março de 2011

José Geraldo Martinez (No Imaginário... )


Pai e mãe, o algodão floriu,
abriram-se as flores do cafezal...
Em meu imaginário, meus queridos,
vejo a ponte sobre o rio,
a névoa fresca do madrigal...

Nem parece que partiram e tanto tempo já passou...
Enxergo na parede ainda o seu chapéu,
quando chegando da lavoura, o pendurou...

Será que aí na eternidade o milharal emboneca?
Em meu imaginário mostra as espigas em cacho...
Será que aí corre do mesmo jeitinho,
serpenteando em meu pensamento, o riacho?

Perdê-los, foi perder um pedaço de mim!
E, essa parte rebelde, ainda caminha por lá...
Ah! Meu Deus, já gritei tantas vezes para
que volte o menino à sombra do jacarandá...

Não me escuta, nem me olha ...
Ainda que eu chore de solidão!
Ah, mãe...cuide dele por aí,
nos campos da minha imaginação...

Se não encontrá-lo,
deve estar correndo pelo cafezal!
Já espiou no pomar?
Não estaria brincando com Feroz, no quintal?

Ele gostava do cãozinho...
Do cavalo velho, bretão!
Sei, lá, mãe...
Não estaria procurando
vagalumes pela escuridão?

Talvez em sua cama?
Gostava do seu travesseiro...
Era mal acostumado, não se lembra?
Dormia fácil sentindo o seu cheiro...

Desde que partiram, rebelou-se!
Tornou-se triste e sem graça...
Mostra no azul dos olhos um rio profundo,
de água que nunca passa...

Não está com papai no curral?
Gostava de andar por lá...
Não dava sossego ao velho,
enquanto não lhe desse uma vaquinha para ordenhar!

Sei lá, mãe,
cansei de procurar, cansei de gritar!
No meu imaginário está sentado
nos ombros de papai que o leva
numa estrada de areia branca...
Não dá para saber se ele é o menino
ou se papai é a criança...

Será que aí na eternidade o vento é fresco?
Igual àquele que fazia dançar os alecrins...
Levantando os rodamoninhos
que seriam fantasmas
pelas estradas de terra sem fim...

Dizia o papai,
nas suas longas histórias contadas...
Imagino hoje, uma forma de evitar
que o menino se aventure por qualquer estrada!

O que acontece, pai e mãe?
Dá um nó na garganta, uma dor aqui no peito!
As suas receitas caseiras eu não encontro,
os remédios de hoje não dão jeito!

Então, o jeito é chorar!
O pior, depois de crescido!
Aquele que ficou lá, achava que pai e mãe
não morriam...
Não voltam os dias, idos!

Deixa ele quieto!
Amanhã estará tudo bem e talvez retorne, quem sabe?
São pensamentos que não se aquietam,
no imaginário de um homem que sente saudade!

" Saudade, é a lágrima escorrida de um tempo velhinho, no alpendre de uma época"
( Martinez)

Fonte:
Colaboração de Ialmar Pio Schneider

José Geraldo Martinez (Lendas da Infância)

Ilustração de
Antonio Elielson Souza da Rocha (PA)
Um dia me contaram uma lenda .

Existem nas matas, a Caipora, meio gente e meio bicho, com os pés ao contrário. Adora fumar. Só permite que alguém entre mata à dentro se, antes, colocar fumo ou cigarro no pé de qualquer árvore .

Aquilo de certa forma me causou expectativa, mesmo porque, papai havia me convidado para pescar e justamente num córrego margeado por pequena mata.

Chegado o dia , preparei toda tralha de pesca: anzóis, iscas , varinhas, picuá , lanches e guloseimas...

Não podia me esquecer do cigarro da Caipora .

Fui correndo comprar .

Para me garantir, comprei logo cinco maços de cigarros e um pedaço de fumo .

Seguimos pela manhã que se abria quente , ensolarada e de poucas nuvens .

Conosco levamos um amigo , "Girico", este apelido lhe foi dado por seu tamanho . Era franzino , miúdo , a ponto de mostrar as costelas todas . "Girico" é o nome dado ao jegue tão usado e querido pelos nortistas !

Ele era pequeno porém, forte .Garoto astuto e destemido, criado a vida toda no mato, nas fazendas da região, até que seu pai acometido de séria doença teve que abandonar a vida no campo e voltar para cidade.

Chegamos finalmente . Logo de cara, Girico fisgou um piau, peixe típico da região e com ele fazia festa, como se desafiando a mim e meu pai. Engraçado que seguidamente , Girico fisgava algum peixe , enquanto a gente já desanimava de molhar as minhocas . E a cada fisgada, a mesma festa. Lembrei-me finalmente da Caipora , depois de escutar um assobio vindo da mata .

Nem perguntei ao meu pai o que seria. Fui logo correndo ao pé de uma velha figueira e lá colocando todos os maços de cigarro, inclusive o pedaço de fumo .Vai se a tal Caipora era do tempo do meu avô ?

Passamos o dia alí pescando, brincando e nos banhando nas águas do rio Baguaçu , no oeste paulista .

A noite chegava e já nos preparávamos para dormir, depois de um farto lanche servido pelo meu pai.

Girico comia feito louco ! O que tinha de magrinho, tinha de guloso. Comeu quatro pães com presunto e queijo tomou uma guaraná de dois litros inteiras, três bananas nanicas ! Arrumamos as camas improvisadas com velhos cobertores, dormimos .

A noite foi de certa forma longa, não parava de pensar na tal Caipora. Tremia de medo à qualquer barulho na mata. Girico, aparentemente, dormia que chegava a roncar. O dia amanheceu, voltamos à pescaria. Curiosamente fui olhar os cigarros colocados para Caipora . Para minha surpresa, estava só o pedaço de fumo! Os cigarros em maço desapareceram. Voltei correndo contar para meu pai me que deu pouca atenção, ironicamente brincou dizendo que aquela Caipora deveria ser urbana, acostumada à cidade .

Criança, ainda, perguntei :

- E na cidade pai, onde a Caipora moraria ?
- Nos jardins das casas, em meio às folhagens .

Fiquei pensando, preocupado. Será que no jardim da minha casa existe alguma Caipora ?

Quis continuar o assunto, mas papai logo me interrompeu com os dedos nos lábios .
- Psiuu ! Tem peixe mordendo a isca !

O dia passou, voltamos para casa felizes. Com alguns pequenos peixes, menos Girico que estava com um farto bornal de piaus grandes. Não dormi pensando no jardim da minha casa. Lembrei-me de algumas vezes que escutara assobiar e achava que podia ser alguma pessoa passando pela rua.

No dia seguinte, fui correndo comprar cigarros. Claro! dos mais baratos, afinal minha mesada era pequena e não podia consumí-la em cigarros para Caipora. Gostava de sorvetes , cinemas , enfim... guloseimas muitas. Aprendi a lição e coloquei apenas um maço de cigarros no meio dos antúrios da mamãe .

Nosso jardim era farto de plantas e arbustos e muito verde, com samambaias, pinheiros e uma enorme laranjeira. Era do tipo lima, que papai não deixou cortar dado a doçura da fruta e os anos que estava ali. No outro dia bem cedo, mal tomei o café, fui olhar se o cigarro estava entre os antúrios . Viva ! Não estava ! Havia mesmo no jardim ,uma Caipora . Sai correndo contar aos amigos , feliz da vida.

Os dias se passaram . A cada amanhecer era um maço de cigarros, depois doces , frutas , assim por diante ...

Até que um dia, contando para mamãe, ela indignada, resolveu comigo ficar escondida para vermos a tal Caipora .

Ficamos no quarto, com a janela levemente aberta, que mal cabiam meus olhos, metade da minha face. Pouco respirava e o coração acelerado à medida que as horas iam passando. De repente ,um barulho... Parei de respirar, mas a minha curiosidade era maior. Permaneci de olhos na fresta da janela. Qual foi minha surpresa ! Girico comia tranquilamente as frutas e doces todos , guardava os cigarros e saia.

Assim deve ter sido à beira do rio . Ele seria a Caipora urbana que meu pai falava .

Muita decepção! O engraçado era que quando chegava em nosso jardim, pressentindo alguma coisa, assobiava como a Caipora colocando-me rapidamente embaixo das cobertas .

Passados os dias, na casa de uma tia, ela me contava sobre a lenda de um tal "boto cor de rosa", que encantava as mulheres com seu canto!

Dias depois, minha prima desapareceu e voltou grávida .

Saí correndo pela rua esparramando a notícia, gritando :

-Tem um boto no jardim da minha tia, minha prima está grávida !
Quem será ? quem será ?

Esta foi a última surra que tomei naquele ano. Afinal, chegavam as festas natalinas e me preparava para receber papai-noel.

Fonte:
http://www.josegeraldomartinez.hpg.ig.com.br/

José Geraldo Martinez (1958)



Músico, arranjador, produtor fonográfico, escritor, poeta, cronista, compositor com mais de cento e cinquenta obras gravadas e editadas

Ninguém melhor que a nossa mãe para fazer a nossa biografia !

Então lá vai :

Chegava a primavera . Os flamboyans floridos enfeitavam as praças de nossa cidade . Araçatuba: "Terra dos Araçás , "Capital do Boi Gordo ". 14/09/58. Nascia ele , José Geraldo, das mãos habilidosas de Dr. Creso Machado Pinto.
Alegria só no lar, pais professores : José Martins Rodrigues e Mercilia Rodrigues .
Louro , olhos azuis, a alegria de ser gente manifestava-se no choro forte da criança nascida.
Cresceu conhecendo cada pedacinho da terra.
Cada pedacinho de chão .
Trocava gatos por pombos .
Pescava no "Machadinho".
Nadava no ribeirão .
Ouvia as histórias contadas , cantadas ,
Se deixassem as madrugadas.
Artes ? quantas !
Mas cresceu ...
Homem feito .
Faculdade fez .
Filhos dele e de outros,
porque também adotou.
Casado e descasado .
Amar, isto ele amou !
Teve muito a receber .
Mas também muito doou .
Se canta a melodia
De seu grande coração
É porque lá , algum dia
Alguém lhe estendeu a mão
Bem feito ,
Sem jeito ,
Alegre ,
Bonachão
Traça riscos ,
Arabescos
Com toda ternura .
É filho da terra .
É cheiro do chão .
Amor e candura
Tamanha leveza
Do seu coração
Mercilia Rodrigues
--
Fonte:

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 155 a 157)


Mensagens Poeticas n. 155

Uma Trova Nacional
Velho – carrego esperanças,
adubando a vida em flor:
quem não cultiva as lembranças
mata as raízes do amor.
(GABRIEL BICALHO/MG)

Uma Trova Potiguar
Não é só da meninice
que belos sonhos nos vêm;
a paisagem da velhice
tem seus encantos também.
(JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN)

Uma Trova Premiada

2008 > Niterói/RJ
Tema > VARANDA > Menção Especial

A lua pede licença,
mas é disfarce: ela manda;
e estendendo a esteira imensa.
prateia a minha varanda.
(DOROTHY JANSSON MORETTI/SP)

Uma Trova de Ademar
Destinos são soberanos.
Homens, mulheres, meninos...
quem somos nós, os humanos,
para fabricar destinos?...
(ADEMAR MACEDO)

...E Suas Trovas Ficaram
Saudade!... Raio de lua,
suprindo o Sol que brilhou...
Tábua solta, que flutua,
depois que o amor naufragou!
(WALDIR NEVES/RJ)

Simplesmente Poesia

– Suely Nobre Felipe/RN –
FORA DE TOM.

Por vezes,
Encontro minha vida espalhada
Entre dunas de papéis rabiscados.
Ao avesso de outros momentos
Vejo velhos e novos amigos
Embaralhados entre traços e lamentos.
Novos amores engavetados
Sutilmente despercebidos
Esperando o tempo de serem vividos.
Vejo o mesmo amor exposto à mesa
Enfeitando a sala
Levemente adormecido
Ligeiramente arrefecido
Esmagado pela hora
Que por vezes tarda
Por vezes falha.
Essa hora que impede os sonhos
Que atormenta o descanso
Afugenta os desejos
Confundindo dias e noites.

Estrofe do Dia
O homem mata e desmata,
com armas e moto serras.
Vai enfraquecendo as terras,
com o fogo que mata a mata.
Riacho, rio e cascata,
poluído até a foz.
Meu Deus! Que será de nós?
Com toda essa malvadeza.
É assim que a natureza
dá o troco ao seu algoz!
(DAMIÃO METAMORFOSE/RN)

Soneto do Dia

– Rachel Rabelo/PE –
FLOR DO VIVER.
(à minha Tia Socorro Rabelo)

No sorriso a beleza de uma flor,
é pureza exalando bem querer
fonte doce minando paz, amor,
e a verdade que brota do teu ser!

Tem perfume da vida, sedutor!
lindas pétalas com cor do saber,
no olhar, brilho profundo afasta a dor,
é jardim reflorindo luz, viver!

Cada dia nos dá mais alegrias,
é um conjunto repleto de poesias
que ritima momentos,é emoção!

Tem nos atos leveza, caridade;
nas palavras conselhos, humildade,
e a justiça consola o coração!


Mensagens Poeticas n. 156


Uma Trova Nacional
Amigo é aquele artesão
que, sem receios, lapida
com o cinzel do perdão
as pedras brutas... da vida!
(SÉRGIO FERREIRA DA SILVA/SP)

Uma Trova Potiguar
Infância, planta florida,
juventude, flor da idade,
velhice, folha caída
da árvore da mocidade.
(ORILO DANTAS/RN)

Uma Trova Premiada

1987 > Porto Alegre/RS
Tema > REGRESSO > Venc.

Meus dias, antes tristonhos,
mudaram, hoje, confesso,
pois com pedaços de sonhos,
arquitetei teu regresso!
(DELCY CANALLES/RS)

Uma Trova de Ademar
Perdido, pois, nas rotinas
dos ecos do meu clamor,
eu ouvi entre as ruínas
os gritos da minha dor...
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram
Em nossas quatro paredes
conflitos não tem valia:
nós compramos duas redes
e uma está sempre vazia.
(MARISOL/RJ)

Simplesmente Poesia

– José Alberto Costa/AL –
POEMA.

Um elefante branquinho,
feito das armas de outro,
vive indefeso, quieto,
sobre a mesa do meu quarto
onde costumo escrever.

Em sua sólida mudez
conhece todo meu drama:
- chora comigo nas noites
de vigílias forçadas
quando rostos ressuscitam
pelas campas da memória
trazendo horror ao vazio
que há no quarto e em mim...

Estrofe do Dia
Meus versos não são profundos,
são bem rasos... Na medida
de cada gota que emana
da minha alma escondida...
Mas te conto o meu segredo:
falo de mim, sem ter medo...
Assim, sou feliz na vida!
(MARA MELINNI/RN)

Soneto do Dia

– Rosa Maria Silva/PORTUGAL –
INSPIRAÇÃO

Quadras soltas, sementes de grafismo,
canção do mar, maré de sensações,
porta da fé, regaço de orações
que voam num infinito lirismo.

Quadras em par, viveiro de heroísmo,
doce fulgor, cantinho de ilusões,
vozes da alma, glória de Camões,
hinos solenes de patriotismo.

Os versos são um fado de carinho
somente a dor é tão traiçoeira
nas horas medonhas do pergaminho.

Há quem ame, por gosto, a poesia
e quem seu fado canta a vida inteira
guarda no coração doce magia.

Mensagens Poeticas n. 157


Uma Trova Nacional
ELE que tudo conduz
na sábia e eterna medida
à estrela do céu dá luz
e à estrela-do-mar dá vida!
(JOÃO B. XAVIER OLIVEIRA/SP)

Uma Trova Potiguar
Não há maior bem no mundo
que o homem possa almejar:
- manter-se ativo e fecundo,
ter saúde e trabalhar.
(GONZAGA DA SILVA/RN)

Uma Trova Premiada
O meu reino é uma casinha
do jeito que eu sempre quis:
dentro dela sou rainha,
e muito mais: - sou feliz!
(ERCY Mª MARQUES DE FARIA/SP)

Uma Trova de Ademar
Pondo minha mente à prova
quando a inspiração me furta,
encontro alento na trova
que é a poesia mais curta.
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

2009 > ATRN-Natal/RN
Tema > VIOLÊNCIA > 7º Lugar

Deus! Na sua onipotência,
faça o homem ser capaz
de abominar a violência
e plantar o amor e a paz!
(VANDA FAGUNDES QUEIROZ/PR)

Simplesmente Poesia

– Maria Emilia Xavier/RJ –
RESGATE...

Inquilina que sou
desse mundo cruel,
não tenho o que desejo
e o que tenho nem sempre
é aquilo que almejo.
Sempre arrebanhada
pelos apelos do corpo,
sem sentimento algum,
sacio vontades,
nunca meus desejos.
Sonho com a liberdade,
que pague o meu resgate
e acabe de vez com isso...
de após saciada, só viver solidão.

Estrofe do Dia
Patativa quando bota
a caneta no papel,
pinta as cores do vergel
pinta os peixinhos na grota,
pinta as pernas da gaivota,
pinta as asas do condor,
e o ninho do beija-flor
nas três juntas da maniva;
os versos de patativa
são obras do criador.
(MANOEL XUDU/PB)

Soneto do Dia

– Carmo Vasconcelos/PORTUGAL –
HOJE.

Por hoje decidi ficar comigo,
a mente nua, isenta de sensores,
tal um amplo celeiro, ausente o trigo,
ou coração liberto, sem temores.

Por hoje só pretendo a liberdade,
dispersa a luz total do pensamento,
ao ponto de expulsar qualquer saudade
e sombra de paixão ou desalento.

Por hoje vou dar rédea solta à estúrdia,
unir-me à multidão alucinada,
misturar minha voz co’as da balbúrdia!

Beber, amar, cegando a culpa e o juiz.
da fascinante noite, irmã, e aluada,
ser astro sem memória… Ser feliz!

Fonte:
Ademar Macedo
15, 16 e 17 de Março

Caldeirão de Poesias


Daladier Carlos
SUPER LUA-CHEIA

Ó iluminada e atrevida Lua,
Quando nos arrepia os pelos e
Balança terna ou ferozmente
Corações sofridos ou valentes!
És o corifeu do amor, eterno amor,
Força que corre entre apogeu e perigeu.

Tens, decerto, o brilho feminino,
O olhar sereno da amada que espera,
À semelhança dos amantes nas sacadas,
Quando os sonhos se perpetram sem amarras
E o enlevo tépido de corações encantados
São a valsa na pista em louco rodopio.

Jamais terias relação com a morte,
Se te invocam, corações e mentes,
À desejada e necessária sorte.
És um astro em torno da terra,
Satélite bendito, beleza e recato
Do muito que juraram aos teus pés.

Em algum lugar do passado,
Damas e cavalheiros suspiraram,
Nas madrugadas vadias de beijos e abraços,
Antes que a manhã, sorrateira, despontasse
Para despertar os deveres dos ofícios,
Até que novamente ela surgisse!

Neusa Maria Travi Madsen
POESIA I

Desenho as palavras,
na intimidade de meu canto.
Que encanto !
Bordo as letras em telas coloridas,
confecciono flores com meus sonhos,
enfeito com minha saudade,
arremato tudo com minha esperança.
Ornamento cada verso
com minha ternura,
e com enorme carinho.
Igual a folhas caídas,
solto-as ao vento,
no infinito...
Algumas maiores,
outras menores,
algumas coloridas,
outras desbotadas...
As verdes, cheias de esperança;
as amarelas, repletas de saudade;
as cor de rosa, cheias de sonhos;
as azuis, repletas de amor;
as vermelhas, com muita paixão;
as incolores, com dor, revolta,
silêncio e desilusão...
Todas contém um pouco de mim...
Todas ficarão como marcas.
Marcas do que fui,
marcas do que sou.E do que serei ?
O amanhã será quando a primavera chegar...
É na beleza do colorido das letras
e no perfume das flores,
que acalento meus sonhos,
para continuar a desenhar palavras,
e compor versos,
que se transformam em poesia...

Neusa Maria Travi Madsen
POESIA II

P alavra que sai da alma,
O rnamentada com encanto e ternura.
E xpressa amor, saudade, paixão e amargura,
S ilêncios, emoções, calma e sonhos especais...
I nspira beleza em forma de versos.
A rte de tornar os sentimentos imortais !

Adozinda Aguiar
A ALMA DO POETA

Livre pássaro é a alma do poeta
que viaja incansável pelo tempo
e nos templos da vida se completa.
Pelas várzeas,prados,montes
e enseadas
regenera seu traço
vai à solta
pelas manhãs de sol,
rubro porvir
cálidas tardes
frias madrugadas.
Nada a contém:
a vida . a morte
a mão que fere
a que é ferida,
tem importância igual
em seus tratados.
Alma indomável
em sacrossanta fúria
Tormento doce,com que escraviza
o sonho de quem trouxe a esta vida
o dom apaixonante da POESIA !

Adilson Cordeiro
P O E T A

Você Poeta,
Renova a nova
Nos versos e prosa
Cantando dor e amor!
Poeta é um carinhoso
Vigia, é guia dadivoso
Para o solo dos amantes
Com seus gritos incessantes!
Mas Poeta também não tem paz
É coisa de outro mundo, capaz
Noite vira dia, claro, penumbra
Muda o rio, o mar, o cais, refaz!
Poeta ainda é gozador:
Folha seca vira flor
Profissional, amador
Dólar fica sem valor!
Poeta, um infeliz
É inquieto na raiz
Quer mudar o matiz
´Inda pergunta o que eu fiz?
Poetinha, seu safado
Fale sério, pegue o arado
Vá trabalhar ligeiro, oriundo
Deixa de ser vagabundo!
Este poeta está só caçoando
Eu vivo sorrindo e cantando
Na chuva, no vento e no céu
Faço banquete de pastel!
Mas, Poeta, cachorrinho
De mansinho, se você um dia morrer
O mundo vai desacontecer
Porque ele não é mundo sem você!!!

Lustato Tenterrara
"COMO FAZER UM POEMA DE AMOR VERDADEIRO"

Para fazer um poema de amor
é necessário que o cristão, ateu ou judeu
mostre o que tem dentro do seu coração.

É necessário que dentro desse peito, dilacerado
haja uma dor de amor.

Uma dor que de lá, nunca sairá. Nunca!

Mas para fazer um Poema de Amor Verdadeiro
há que esta dor, no peito dilacerado,
a cada dia, dilacere o peito um pouco mais.

Não assim um pouco, como um ou dois anos, não!
Um Poema de Amor Verdadeiro nasce quando
do peito dilacerado, sangre, e nunca estanque.

Há de ser uma dor vivida a cada hora, de cada dia,
por um tempo sem fim.

É necessário que o Eu-Lírico do poeta
arranque poemas de cada flor, beija-flor,
de um taturana ou de uma pedra ou marca no chão.

Que faça poemas para canetas perdidas;
um cachorro que alguém -- de perto -- pra longe o levou;
Até algum poema para um alguém -- de perto -- que
pra longe levou um Note-Book repleto de poemas,
apenas para quebrá-lo ao chão, ou jogá-lo no rio.

É necessário que uma criança chorando
desperte no poeta uma dor de amor;

É necessário que do peito do poeta,
a cada minuto, sinta a falta daquele amor jurado verdadeiro;

É necessário que o tempo do poeta pare
no versejar de um canário, ou no borbulhar
da água de uma cachoeira, onde, um dia, fez amor;

E para que o poema seja - de fato - um
Poema de Amor Verdadeiro
é primordial que o poeta sofra a maior das dores de amor
que é aquela dor que apenas ele percebe.
A dor de saber estar perdendo a outra sua metade;
e perdendo-a para sempre; para o nunca mais;
e que essa perda seja sentida por todos os minutos e segundos;
por todas as horas do dia;
e por todos os dias do ano;
e por todos os anos, daquele dia em diante.

Depois, para que saia o poema do verdadeiro amor
há que esses anos sejam muitos,
quem sabe uma ou duas décadas,
que muitos poemas tenha feito para flores, fadas, musas,
até que um dia, sem que perceba,
encontre -- numa nuvem por sobre o luar, e no nascer do dia, --
aquele poema de amor que se encontrava perdido:
aquele Poema de Amor Verdadeiro.

Depois de o ter escrito, o seu Poema de Amor Verdadeiro,
para o poeta não haverá mais dúvidas:
A cada segundo do dia
descobre -- para qualquer lugar que olhe, -- uma poesia.

Rozelia Scheifler Rasia
PALAVRAS DE POETA PARA POETA

Para o poeta, todos os sons são rimas de amor,
todas as palavras são pontes que interligam emoções!
A poesia é o universo do poeta.
A palavra do poeta nasce do sentimento, da emoção,
da ânsia de viver, de amar e de ser amado!
O amor do poeta é ilimitado, incondicional.
O poeta não se prende à convenções,
à expectativas, ao tempo ou ao espaço!
O poeta ama a espera, o encontro, o reencontro, a despedida,
ama a estrela, a lua, o sol, o mar, o céu.
ama a lembrança da infância, o presente, o futuro!
O poeta ama o amor!
Para o poeta, cada olhar, cada beijo,
cada toque são sinfonias da vida!
O poeta leva o infinito no olhar.
O coração, a alma, o corpo, o ser do poeta
O poeta inventa e traduz símbolos e códigos da sensibilidade e da paixão.
O dizer do poeta nasce da palavra do outro,
do olhar do outro, do desejo do outro.
O poeta é um mundo de "eus' e "tus".
A palavra do poeta é o espelho da sentimentalidade.
O poeta sabe ir e voltar de labirintos que outros jamais sonham existir.
Para o poeta, o simples e o complexo são peças do mesmo quebra-cabeça.
O dicionário do poeta tem mais palavras,
A palavra do poeta tem mais significado.
A saudade do poeta é mais intensa.
A noite do poeta é mais escura ou mais estrelada.
A solidão do poeta é maior.
A paixão do poeta é mais vibrante.
Para o poeta, inferno e paraíso são olhos-amantes.
O poeta vê além do horizonte.
O poeta sente o pulso do mundo,
beija a boca da ilusão.
O poeta escreve no invisível e
lê a mão do destino.
O poeta desenha a silhueta do amor nas linhas do tempo.
Para o poeta, o efêmero e o eterno, a vida e a morte,
são mais que antíteses.
O poeta diz, desdiz, contradiz.
Análise e síntese são fragmentos da alma do poeta.
Poeta e poesia são faces da mesma paixão.
Sou poeta, vejo o mundo com os olhos da poesia!
Deus fez a natureza em poesia.

Carlos Lúcio GontiJo
ALDEIA CAPITAL

Meço infinitos entre concreto
Num secreto desejo de abolição
Como rio que sonha cachoeira
Meus olhos voam na poeira das ruas
Senzalas nuas da injustiça social
Crucificando braços, erguendo escuridão
Paisagens e laços da construção capital

Roldão Aires
CABELOS LOIROS

Olhos azuis, claros.
Cabelos de um loiro,
brilhante.
Eras a luz que brilhava
pelos salões, radiante.
Beleza de raro encanto
a todos a atenção prendes.
Tens um jeito tão doce,
és um sonho constante
de todos que a ti,
se rendem.
Lembra que existe alguém,
que sei, não pensares muito,
alguém, que só a ti quer,
e nunca nada te disse, porém,
jamais te esqueceu.
Quando por acaso puderes,
procura poder lembrar
desse alguém, que sou eu.

Daladier da Silva Carlos
FALA, POESIA!

Poesia! Traga para fora
A voz que me sufoca
Ou antes, me impele
A correr o mundo,
Ampliando os sonhos,
Recortando as letras,
Esmiuçando o espírito,
O subterrâneo da palavra,
Pensando, talvez, encontrá-la
No fim do túnel, se não for
Algures, a estrada conhecida,
Aquela onde pisei as dores,
Finquei rancores atrevidos
Nas tormentosas horas de escárnio,
Quando os desejos travaram, juntos,
A encarniçada luta para fazer a mim
Viver o que pudesse, quem sabe aquilo
Que, enfim, sobrasse da batalha,
A louca campanha de conhecer além,
Rasgar, se possível, o teto do mundo,
Na desesperada tentativa de ver adiante
O que se esconde, ou se guarda para sempre
Como um cruel segredo da frágil existência!

Rogério Miranda
O AMOR DO POETA PELA PAZ

Poeta sua realidade é uma fantasia
e sua imaginação é real e vive
no mundo encantado dos versos,
suas lagrimas brilham
quando sua poesia encanta
o reino do amor...

Poetas têm os pensamentos
alem de onde ele pode chegar
e quando a presença do poeta
se encontra perdido
nascem poemas de paz...

O poeta escuta a canção das vozes dos anjos
e dança com a lenda das flores
que foi eleita a musa do poeta apaixonado
por sonetos perdidos no horizonte
da inspiração...

O poeta é discípulo da liberdade
de expressão, seu compromisso
é com a verdade da igualdade,
sua crença á fé, suas orações
são universal de onde nasce
o amor pela paz...

Fonte:
Poetas del Mundo

Epopéias da Índia Antiga (O Râmâyana) Parte II – O Argumento


II
O Argumento

Na província de Oudh, hoje unida administrativamente à de Agra, subsiste ainda, embora ruínas, a antiquíssima cidade de Ayodhya, outrora um dos mais poderosos centros religiosos da índia e lugar de peregrinação.

Há muitos séculos, reinava em Ayodhya um rei chamado Dasaratha que, de nenhuma de suas três esposas, havia obtido sucessão; por isso, como bons hinduistas, foram em peregrinação a vários santuários e jejuaram em fervorosa súplica para que Deus lhes concedesse sucessão.

Finalmente seus rogos foram ouvidos e obtiveram resposta em quatro filhos, dos quais o maior foi Rama.

Como convinha à sua estirpe, os quatro irmãos receberam completa educação em todos os ramos do saber. Para evitar futuras contendas, era costume na antiga índia associar o rei o seu filho maior ao governo do país, sob o título de Yuvaraja, que significa: "o rei jovem"

Em outra cidade havia um rei chamado Janaka, o qual tinha unia afilhada maravilhosamente formosa, cujo nome era Sita e que fora encontrada recém-nascida em um campo, como se tivesse surgido do seio da terra.

Em sânscrito antigo, a palavra "Sita" significa "sulco feito pelo arado", e na mitologia Índiana vemos personagens que só têm pai ou mãe ou nascem sem pai nem mãe, do fogo do sacrifício, de um campo, como se caíssem das nuvens etc.

Todas essas classes de nascimentos são freqüentes na mitologia Índiana.

Sita, como filha da Terra, era pura e imaculada. O rei Janaka criou-a e desejou encontrar-lhe digno esposo, quando a mesma atingiu a idade núbil. Na antiga índia costumavam as princesas reais escolherem marido. A esse costume deva-se o nome de Swayamvara; segundo esse costume, o pai da princesa convidava a todos os príncipes das redondezas para se apresentarem à corte, onde a princesa, ricamente vestida, grinalda nas mãos e precedida por um arauto que ia enumerando as prendas, passava diante deles e colocava a grinalda no pescoço daquele que a donzela havia escolhido para esposo.

Muitos eram os príncipes que suspiravam pela mão de Sita, a qual havia exigido, como prova de merecimento, que o candidato quebrasse com suas mãos um enorme arco chamado Haradhana.

Todos os príncipes fracassaram na tentativa, apesar dos seus esforços, menos Rama, que com elegância e facilidade apanhou o forte arco e com suas mãos quebrou-o pelo meio.

Por isso Sita elegeu a Rama por marido e as bodas foram celebradas com grande esplendor.

Rama levou sua esposa à corte de seu pai Dasaratha, o qual julgou oportuno o momento para nomear juvaraja o seu filho maior e confiar-lhe o governo do país.

Para esse fim Dasaratha preparou as cerimonias da proclamação e o povo acolheu entusiasticamente a notícia, quando uma donzela de Kalkeyi, a mais jovem das três esposas de Dasaratha, lembrou à sua senhora que, havia muito tempo, o rei seu esposo havia prometido duas coisas, em reconhecimento ao muito que a ele Ihe fizera, dizendo-lhe:

- Pede duas coisas que eu possa dar-te e eu lhas darei.

A rainha Kaikeyi, na ocasião, nada pediu a seu marido e até já havia esquecido a promessa; porém a maliciosa donzela começou a aguilhoar a alma da rainha, fazendo-lhe ver a injustiça de colocar a Rama no trono, quando fazendo ao rei cumprir sua promessa, seu próprio filho poderia ocupar o trono; foi assim que a rainha Kaikeyi ficou louca de ciúmes.

A astuta donzela incitou então sua ama para que exigisse logo do rei a concessão das duas coisas prometidas, sendo uma delas a ocupação do trono pelo seu filho Bharata e a outra que fosse a condenação de Rama a catorze anos de desterro nos bosques.

Embora Rama fosse a alma e a vida para o rei Dasaratha, este, como rei, viu-se obrigado a não faltar à sua palavra, quando a rainha Kaikeyi exigiu dele o cumprimento de sua promessa; por isso não sabia o que fazer.

Rama, porém, dissipou a dúvida, oferecendo-se voluntariamente a renunciar ao trono e sair desterrado, a fim de que ninguém pudesse acusar sua mãe de falsidade.

Por isso, seguiu para o desterro, acompanhado de sua amorosa esposa Sita e de seu irmão predileto Lakshmana, que, de modo algum, quis separar-se dele. Os árias não sabiam quem eram os habitantes dos bosques e, por isso, naquele tempo os chamavam "monos" e aos mais robustos e corpulentos chamavam "demônios".

Rama, Sita e Lakshmana foram cumprir seu desterro em um daqueles bosques, habitados por monos e demônios, como talvez denominavam os árias as tribos selvagens.

Quando Sita manifestou o desejo de acompanhar seu marido no desterro, Rama lhe disse:

-Como podes tu, unia princesa, enfrentar as torturas que me aguardam em um bosque cheio de perigos traiçoeiros?

Sita, porém, respondeu:

- Onde Rama for, Sita irá também. Como podes falar-me de origens reais ou de altas linhagens? Irei contigo!

Rama foi acompanhado de Sita e do jovem Lakshmana, irmão menor de Rama. Internaram-se no bosque, até que alcançaram as margens do rio Godavari, onde construíram uma choças e passaram a sustentar-se de frutos silvestres.

Havia já passado algum tempo que ali estavam, quando, um belo dia, surgiu uma gigantesca demonia, irmã do gigante rei Lanka (Ceilão).

Vagando pelos bosques, encontrou-se com Rama e, ao vê-lo tão varonilmente formoso, apaixonou-se loucamente por ele. Rama, porém, além de casado, era um varão castíssimo e não quis corresponder ao amor da intrusa. Esta, para vingar-se, procurou seu irmão, a quem descreveu com ênfase a dominadora beleza de Sita, esposa de Rama, dizendo-lhe que dela se apoderasse.

Rama superava em poder todos os mortais e não havia gigante nem demônio, nem mortal algum que fosse capaz de vencê-lo. Por isso o rei gigante de Lanka buscou na astucia aquilo que considerou impossível conseguir pela força.

Dês-se modo, às artes de outro gigante, que era mago, o qual transformou-o em formoso cervo de Pêlo dourado. Assim metamorfoseado, este foi ao bosque onde Rama vivia e começou a saltar ao redor da cabana, até que, fascinada pela extraordinária beleza do animal, Sita pediu a Rama que o capturasse para ela. Indo à caça do animal, Rama deixou Sita sob os cuidados do seu irmão – Lakhsmana; este, porém, acendeu um círculo de fogo ao redor da cabana e disse à irmã:

- Pressinto que te vai acontecer algo de mau; Portanto, peço-te que não transponhas o círculo mágico, do contrário, cairás no infortúnio.

Entretanto, Rama havia ferido o cervo com uma flecha, tendo o animal morrido e se transformado em figura de homem. No mesmo instante, ouviu-se na cabana a voz de Rama que gritava:

- Ó Lakhsmana, vem socorrer-me.

Sita exclamou:

- Corre a ajudá-lo, ó Lakhsmana.

Lakhsmana replicou.

- Esta voz não é de Rama!

Entretanto, Sita de tal modo insistiu que Lakhsmana saiu a procurar Rama. Assim que ele se distanciou, apresentou-se junto ao círculo mágico, em frente à porta da cabana o rei gigante, disfarçado em monge mendicante, pedindo esmola.

Sita respondeu-lhe:

- Aguarda um pouco, pois logo meu marido voltará e te dará muita esmola.

O falso mendigo replicou:

- Não posso esperar, bondosa senhora, pois estou esfomeado. Dá-me o que tiveres.

Sita lançou mão de algumas frutas para atirá-las ao mendigo, mas este persuadiu-a a entregá-las pessoalmente, pois nada havia a temer de um santo varão.

Logo que Sita transpôs o círculo mágico para dar as frutas ao mendigo, este assumiu imediatamente sua fôrma gigantesca e arrebatou-a, colocando-a num carro encantado, que partiu velozmente com sua cobiçada presa.

A infeliz, desfeita em pranto, não teve quem a protegesse naquela solidão; lembrou-se porém, de assinalar o caminho percorrido com os adornos que trazia nos braços.

O rei gigante, raptor de Sita, chamava-se Râvana e levou-a a Lanka, seu reino, hoje denominado Ilha de Ceilão.

Chegado à corte, Râvana propôs a Sita que consentisse em ser sua esposa e rainha do país, ela, porém, que era a castidade personificada, não quis nem sequer ouvir as palavras de Râvana, que, para castigá-la, obrigou-a a permanecer dia e noite sob uma árvore, até que mudasse de atitude.

Quando Rama e Lakhsmana voltaram à cabana, não teve limites o desconsolo de ambos, quando notaram o desaparecimento de Sita, pois não podiam imaginar o que havia acontecido a ela. Saíram, pois, em busca da moça e explorando o bosque inteiro dela não acharam vestígios.

Já estavam cansados, quando encontraram um grupo de monos, chefiados por Hanumân, o "mono divino", o melhor dos monos o qual, solicitamente, pôs-se a serviço de Rama. Inteirado do caso, disse-lhe que haviam visto atravessar os ares um carro em que ia sentado um demônio, ao lado de uma formosíssima mulher, toda em prantos, a qual ao voar o carro sobre eles, havia atirado um bracelete para chamar-lhes a atenção.

Quando lhe apresentaram o bracelete, Lakshmana não o reconheceu, porque na antiga Índia, a esposa do irmão mais velho era tão reverenciada pelos seus cunhados, que Lakhsmana nunca se havia atrevido a pousar o olhar nos braços de Sita, Rama, porém, reconheceu imediatamente o bracelete de sua esposa. Os monos então, disseram a Rama quem era e onde vivia aquele rei gigante. Isto feito, todos partiram para persegui-Io.

O rei dos monos chamava-se Bâli, porém, o trono lhe havia sido usurpado por seu irmão menor Sugriva. Houve luta, e Rama ajudou Bâli a recobrar a coroa. Este, agradecido, prometeu auxiliar Rama a libertar Sita. Entretanto, percorreram todo país sem encontrá-la.

Finalmente, o mono divino saltou das costas da Índia às do Ceilão, procurando Sita pela ilha inteira, sem lograr encontrá-la. Râvana havia vencido os deuses, os homens, o mundo inteiro e raptara todas as mulheres formosas. Por isso Hanumân refletiu e disse:

- Sita não pode estar com as concubinas no palácio. Teria preferido a morte à desonra.
Por essa razão, prosseguiu em suas pesquisas, encontrando, finalmente, Sita sob a árvore onde Râvana a aprisionara.

Estava pálida e delgada como a lua nova ao horizonte. Hanumân assumiu então a transpor o figura de um pequeno mono e, escondido na ramagem da árvore viu como a irmã gigante de Ravana vinha atemorizar Sita para forçá-la a submeter-se; a casta esposa, porém, nem queria ouvir falar do rei gigante.

Quando a irmão de Râvana partiu, Hanumân aproximou-se de Sita mostrando-lhe o bracelete que Rama lhe havia dado para atestar sua identidade, relatando-lhe como seu marido o havia incumbido de procurá-la; que seu marido, logo que soubesse onde ela estava, viria com um poderoso exército para vencer o gigante e libertá-la. Acrescentou, entretanto, que, se ela quisesse, poderia tomá-la nos braços e com um salto atravessar o oceano e devolvê-la a Rama; porém, como Sita era a castidade em pessoa, recusou aquela insinuação, porque deliberadamente não admitia ao seu lado outro homem senão seu marido. Assim, permaneceu onde estava e deu a Hanumân uma jóia desprendida de seus cabelos, para que a entregasse a Rama. O mono divino despediu-se dela e voltou para seu país.

Inteirado do que havia sucedido a Sita, segundo o relato de Hanumân, Rama reuniu um exército de monos, chegando ao ponto mais meridional da ilha, onde construíram uma ponte chamada Setu-Bandha, entre a índia e o Ceilão. Atualmente, com a maré baixa é possível passar a pé enxuto de um ponto a outro. Para construir a ponte, os monos arrancaram radicalmente várias colinas, assentaram-nas no mar e cobriram-nas com pedras e troncos de árvores. Um esquilo revolvia-se na areia para encher com ela o corpo e depois, ao passar no trecho da ponte em construção, sacudia-se todo para espalhar a areia, contribuindo assim com muitos grãos para o levantamento da obra colossal, dirigida e projetada por Rama.

Os monos riam e zombavam do esquilo ao vê-lo espadanar-se na areia e sacudi-la depois na ponte, pois seu trabalho era insignificante, comparado ao deles que carregavam colinas inteiras, enormes bosques e grandes cargas de areia.

Rama, porém, disse-lhes:

- Bem-aventurado é este esquilo, porque faz seu trabalho com toda a habilidade de que é capaz e, portanto, é tão grande como o maior de vós.

Em seguida, acariciou suavemente as costas do esquilo e é por isso que se vê até hoje nas costas desse animal a marca longitudinal dos dedos de Rama.

Terminada a ponte, o exército de monos, sob o comando de Rama e Lakshmana, invadiu a ilha do Ceilão. Durante alguns meses guerrearam encarniçadamente contra as hostes de Râvana que, finalmente, foi vencido e morto. Os vencedores se apoderam de todos os seus palácios, que eram de ouro maciço. Rama cedeu-os a Vibhishana, irmão menor de Râvana e levou-o ao trono, como recompensa dos valiosos serviços que havia prestado durante a guerra.

Rama e Sita resolveram sair de Ceilão com seu séquito e regressar à índia; o povo porém, quis que Sita demonstrasse haver permanecido pura, enquanto esteve em poder de Râvana.

Rama, respondeu-lhes:

- Que prova ou testemunho quereis, se minha esposa é a castidade personificada?
- Não importa! Queremos a prova.

Assim, acenderam uma fogueira sacrificial, cujas chamas não queimariam a Sita, se houvesse permanecido pura e ali a arrojaram.

Rama ficou angustiado, temendo pela vida de Sita, porém, no mesmo instante, surgiu o deus do fogo, trazendo em sua cabeça um trono, no qual a jovem estava assentada.

Todos ficaram satisfeitos pelo feliz resultado da prova.

Regressando ao bosque, Rama recebeu a visita de seu irmão Bharata, que o notificou da morte do velho rei Dasaratha, dizendo-lhe que não se atrevera a ocupar um trono ao qual não tinha direito e, portanto, como sinal de respeito, nele havia colocado os sapatos de Rama.

Este, então, voltou à capital e com o beneplácito do povo foi aclamado rei de Ayodhya, tendo prestado os juramentos de estilo que, nos tempos antigos faziam os reis em benefício do seu povo, pois o rei era escravo do povo e devia inclinar-se ante a opinião pública.

Depois que Rama passou alguns anos na feliz companhia de Sita, alguns começaram a espalhar a notícia de que a rainha havia sido outrora raptada por um demônio, que a levou além do oceano. O povo não se conformou com a prova do fogo e exigiu outra mais convincente, sob pena de ser a rainha desterrada.

Para satisfazer os pedidos do povo, Rama desterrou sua esposa, que foi viver no mesmo bosque em que estava a ermida do sábio e poeta Valmiki. Este encontrando a infeliz Sita chorosa e abatida, ficou sabendo o que havia ocorrido e abrigou-a em sua ermida, onde a rainha, pouco tempo depois, deu à luz dois gêmeos.

Com o passar do tempo, o rei Rama teve de celebrar um solene sacrifício, segundo os costumes reais; porém, como na Índia não permitem os Shastras que um homem casado celebre uma cerimonia religiosa, sem a companhia da esposa, de sua sahadharmini ou correligionária e Sita estava no desterro, o povo pediu a Rama que se casasse novamente. Ele, porém, pela primeira vez em sua vida, opôs-se à vontade do povo e disse: Isto não pode ser. Sita é minha vida!

Em vista disso, para que a cerimonia fosse realizada, o rei mandou construir uma áurea estátua de Sita e ordenou que se ornamentasse um palco no lugar do sacrifício, para intensificar o sentimento religioso, por meio de uma representação dramática.

Por esse tempo, os gêmeos de Sita, chamados Lava e Kusha, eram dois garbosos mancebos que Valmiki havia educado na vida de bramacharin (Noviço que faz voto de castidade, pobreza e obediência nos mosteiros hindus), sem revelar-lhes sua origem.

Durante aquele longo período, Valmiki havia composto a epopéia da vida de Rama, acompanhada de música apropriada para ser cantada em rapsódias. Sabedor do festival que ia realizar-se em Ayodhya, dirigiu-se à cidade com os desconhecidos filhos de Rama e Sita, os quais, sob a discrição de seu mestre, cantaram no palco a vida de Rama, com tão surpreendente habilidade que fascinaram os espectadores, presididos pelo rei, seus irmãos e os magnatas da corte.

Quando os cantores chegaram à passagem em que o poema descreveu o desterro de Sita, Rama ficou profundamente comovido. Valmiki, porém, disse-lhe:

Não te aflijas porque verás tua esposa.

Sita, então, surgiu no cenário, enchendo de alegria o coração de seu fiel e amoroso Rama.

O povo, porém, exigiu em altas vozes:

A prova! A prova!

Tão profundamente abalada ficou Sita por aquele reiterado receio do povo, a respeito de sua reputação, que implorou aos deuses um incontestável testemunho de sua inocência.

Naquele momento, a terra abriu-se e Sita desapareceu em sem seio, exclamando:

Eis a prova!

Ante tão trágico desfecho, o povo arrependeu-se. Rama estava inconsolável, curtindo imensa dor, quando, poucos dias depois, chegou um mensageiro dos deuses para dizer-lhes que estava terminada sua missão na terra e deveria voltar ao céu.

Aquela mensagem levou Rama ao reconhecimento do seu verdadeiro ser. Então, atirando-se às águas do rio Savayu (atualmente Gogra) que banhava a Capital, reuniu-se com sua amada Sita no outro mundo.

Fonte:
Vivekananda, Swami. Epopéias da Índia Antiga.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Silviah Carvalho (O Poeta)


É aquele que ama um pouco mais,
E nunca ama por amar
E sonha um pouco mais, voa um pouco mais alto
E um pouco mais longe...
Chega onde poucos conseguem chegar

Entra nos labirintos da mente
Conhece o passado e presente
Deduz o futuro com tanta exatidão
Que parece viver um passo a frente

Nele existe um pouco mais de emoção
Um pouco mais de atenção
Um pouco mais de alegria
E um pouco mais de solidão

Um pouco mais de sinceridade
Coisa pouca dentro de muita gente
Um pouco mais da louca igualdade
Que o faz assim, tão diferente

Ele tem um pouco mais de quase tudo
Guardado dentro da mente
De tudo faz um poema, revela tudo que sente

Assim é o poeta
Ama sem ser amado; espera sem ser esperado
E muitas vezes, morre abandonado

Por vezes, só depois da morte
Tem seus poemas lembrados...

Fonte:
http://umcoracaoqueama.blogspot.com/

Machado de Assis (A Vida Eterna)


É opinião unânime que não há estado comparável àquele que nem é sono nem vigília, quando, desafogado o espírito de aflições, procura algum repouso às lides da existência. Eu de mim digo que ainda não achei hora de mais prazer, sobretudo quando tenho o estômago satisfeito e aspiro a fumaça de um bom charuto de Havana.

Depois de uma ceia copiosa e delicada, em companhia de meu excelente amigo o dr. Vaz, que me apareceu em casa depois de dois anos de ausência, fomos eu e ele para a minha alcova, e aí entramos a falar de coisas passadas, como dois velhos para quem já não tem futuro a gramática da vida.

Vaz estava assentado numa cadeira de espaldar, toda forrada de couro, igual às que ainda hoje se encontram nas sacristias; e eu estendi-me em um sofá também de couro. Ambos fumávamos dois excelentes charutos que me haviam mandado de presente alguns dias antes.

A conversa, pouco animada ao princípio, foi esmorecendo cada vez mais, até que eu e ele, sem deixarmos o charuto da boca, cerramos os olhos e entramos no estado a que aludi acima, ouvindo os ratos que passeavam no forro da casa, mas inteiramente esquecidos um do outro.

Era natural passarmos dali ao sono completo, e eu lá chegaria, se não ouvisse bater à porta três fortíssimas pancadas. Levantei-me sobressaltado; Vaz continuava na mesma posição, o que me fez supor que estivesse dormindo, porque as pancadas deviam ter-lhe produzido a mesma impressão se ele se achasse meio acordado como eu.

Fui ver quem me batia à porta. Era um sujeito alto e magro embuçado em um capote. Apenas lhe abri a porta, o homem entrou sem me pedir licença, e nem dizer coisa nenhuma. Esperei que me expusesse o motivo da sua visita, e esperei debalde, porque o desconhecido sentou-se comodamente em uma cadeira, cruzou as pernas, tirou o chapéu e começou a tocar com os dedos na copa do dito chapéu uma coisa que eu não pude saber o que era, mas que devia ser alguma sinfonia de doidos, porque o homem parecia vir direitinho da Praia Vermelha.



Relanceei os olhos para o meu amigo, que dormia a sono solto na cadeira de espaldar. Os ratos continuavam a sua saturnal no forro.

Conservei-me de pé durante poucos instantes a ver se o desconhecido se resolvia a dizer alguma coisa, e durante esse tempo, apesar da impressão desagradável que o homem produzia em mim, examinei-lhe as feições e o vestuário.

Já disse que vinha embrulhado em um capote; ao sentar-se, abriu-se-lhe o capote, e vi que o homem calçava umas botas de couro branco, vestia calça de pano amarelo e um colete verde, cores estas que, se estão bem numa bandeira, não se pode com justiça dizer que adornem e aformoseiem o corpo humano.

As feições eram mais estranhas que o vestuário; tinha os olhos vesgos, um grande bigode, um nariz à moda de César, boca rasgada, queixo saliente e beiços roxos. As sobrancelhas eram fartas, as pestanas longas, a testa estreita, coroando tudo uns cabelos grisalhos e em desordem.

O desconhecido, depois de tocar a sua música na copa do chapéu, levantou os olhos para mim, e disse-me:

— Sente-se, meu rico senhor!

Era atrevimento receber eu ordens em minha própria casa. O meu primeiro dever era mandar o sujeito embora; contudo, o tom em que ele falou era tão intimativo que eu insensivelmente obedeci e fui sentar-me no sofá. Daí pude ver melhor a cara do homem, à luz do lampião que pendia do teto, e achei-a pior do que antes.

— Chamo-me Tobias e sou formado em matemáticas. Inclinei-me levemente.

O desconhecido continuou:

— Desconfio que hei de morrer amanhã; não se espante; tenho certeza de que amanhã vou para o outro mundo. Isso é o menos; morrer é dormir, to die, to sleep; entretanto, não quero ir deste mundo sem cumprir um dever imperioso e indispensável. Veja isto.

O desconhecido tirou do bolso um quadrinho e entregou-me. Era uma miniatura; representava uma moça formosíssima de feições. Restituí o quadro ao meu interlocutor esperando a explicação.

— Esse retrato, continuou ele olhando para a miniatura, é de minha filha Eusébia, moça de vinte e dois anos, senhora de uma riqueza igual à de um Creso, porque é a minha única herdeira.

Eu me espantaria do contraste que havia entre a riqueza e a aparência do desconhecido se não tivesse já a convicção de que tratava com um doido. O que eu estava a ver era o meio de pôr o homem pela porta fora; mas confesso que receava algum conflito, e por isso esperei o resultado daquilo tudo.

Entretanto perguntava a mim mesmo como é que os meus escravos deixaram entrar um desconhecido até a porta do meu quarto, apesar das ordens especiais que eu havia dado em contrário. Já eu calculava mentalmente a natureza do castigo que lhes daria por causa de tamanha incúria ou cumplicidade, quando o desconhecido atirou-me estas palavras à cara:

— Antes de morrer quero que o senhor se case com Eusébia; é esta a proposta que venho fazer-lhe; sendo que, no caso de aceitar o casamento, já aqui lhe deixo este maço de notas do banco para alfinetes, e no caso de recusar mando-lhe simplesmente uma bala a cabeça com este revólver que aqui trago.

E pôs à mesa o maço de bilhetes do banco e o revólver engatilhado.

A cena tomava um aspecto dramático. O meu primeiro ímpeto foi acordar o dr. Vaz, a ver se ajudado por ele punha o homem pela porta fora; mas receei, e com razão, que vendo um gesto meu nesse sentido, o desconhecido executasse a segunda parte do seu discurso.

Só havia um meio: ladear.

— Meu rico sr. Tobias, e inútil dizer-lhe que eu sinto imensa satisfação com a proposta que me faz, e está longe de mim a idéia de recusar a mão de tão formosa criatura, e mais os seus contos de réis. Entretanto, peço-lhe que repare na minha idade; tenho setenta anos; a sra. D. Eusébia apenas conta vinte e dois. Não lhe parece um sacrifício isto que vamos impor à sua filha?

Tobias sorriu, olhou para o revólver, e entrou a tocar com os dedos na copa do chapéu.

— Longe de mim, continuei eu, a idéia de ofendê-lo; pelo contrário, se eu consultasse unicamente a minha ambição não diria palavra; mas é no interesse mesmo dessa gentilíssima dama, que eu já vou amando apesar dos meus setenta, e no interesse dela que eu lhe observo a disparidade que entre nós existe.

Estas palavras disse-as eu em voz alta a ver se o dr. Vaz acordava; mas o meu amigo continuava mergulhado na cadeira e no sono.

— Não quero saber de sua idade, disse Tobias pondo o chapéu na cabeça e segurando no revólver; o que eu quero é que se case com Eusébia, e hoje mesmo. Se recusa, mato-o.

Tobias apontou-me o revólver. Que faria eu naquela alternativa, senão aceitar a moça e a riqueza, apesar de todos os meus escrúpulos?

— Caso! exclamei.

Tobias guardou o revólver na algibeira, e disse:

— Pois bem, vista-se.
— Já?
— Sem demora. Vista-se enquanto eu leio. Levantou-se, foi à minha estante, tirou um volume do D. Quixote, e foi sentar-se outra vez; e enquanto eu, mais morto que vivo, ia buscar ao guarda-roupa a minha casaca, o desconhecido tomou uns óculos e preparou-se para ler.
— Quem é este sujeito que está dormindo tão tranqüilo? perguntou ele enquanto limpava os óculos.
— É o dr. Vaz, meu amigo; quer que lhe apresente?
— Não, senhor, não é preciso, respondeu Tobias sorrindo maliciosamente.

Vesti -me com vagar para dar tempo a que algum incidente viesse interromper aquela cena desagradável para mim. Além disso estava trêmulo, não atinava com a roupa, nem com a maneira de vestir.

De quando em quando deitava um olhar para o desconhecido, que lia tranqüilamente a obra do imortal Cervantes.

O meu relógio bateu onze horas.

Subitamente lembrou-me que, uma vez na rua, podia eu ter o recurso de encontrar um policial a quem comunicaria a minha situação, conseguindo ver-me livre do meu importuno sogro.

Outro recurso havia, e melhor que esse; vinha a ser acordar o dr. Vaz na ocasião da partida (coisa natural) e ajudado por ele desfazer-me do incógnito.

Efetivamente, vesti-me o mais depressa que pude, e declarei-me às ordens do sr. Tobias, que fechou o livro, foi pô-lo na estante, rebuçou-se no capote, e disse:

— Vamos!
— Peço-lhe entretanto para acordar o dr. Vaz, que não pode ficar aqui, visto que tem de voltar para casa, disse-lhe eu dando um passo para a cadeira onde dormia o Vaz.
— Não é preciso, atalhou Tobias; voltamos dentro de pouco tempo.

Não insisti; restava-me o recurso do policial, ou de algum escravo se pudesse falar-lhe a tempo; o escravo era impossível. Quando saímos do quarto o desconhecido deu-me o braço e desceu comigo rapidamente as escadas até a rua.

À porta de casa havia um carro.

Tobias convidou-me a entrar nele.

Não tendo previsto este incidente, senti fraquear-me as pernas e perdi de todo a esperança de escapar do meu algoz. Resistir era impossível e arriscado; o homem estava armado com um argumento poderoso; e além disso, pensava eu, não se discute com um doido.

Entramos no carro.

Não sei quanto tempo andamos, nem por que caminho fomos; calculo que não ficou no Rio de Janeiro canto por onde não passássemos. No fim de longos e aflitivos séculos de angústia, parou o carro diante de uma casa toda iluminada por dentro.

— É aqui, disse o meu companheiro, desçamos.

A casa era um verdadeiro palácio; a entrada era ornada de colunas de ordem dórica, o vestíbulo calçado de mármore branco e preto, e iluminado por um magnífico candelabro de bronze de forma antiga.

Subimos, eu e ele, por uma magnífica escada de mármore, até o topo, onde se achavam duas pequenas estátuas representando Mercúrio e Minerva. Quando chegamos ali o meu companheiro disse-me apontando para as estátuas:

— São emblemas, meu caro genro: Minerva quer dizer Eusébia, porque é a sabedoria; Mercúrio, sou eu, porque representa o comércio.
— Então o senhor é comerciante? perguntei eu ingenuamente ao desconhecido.
— Fui negociante na Índia.

Atravessamos duas salas, e ao chegarmos à terceira encontramos um sujeito velho, a quem Tobias me apresentou dizendo:

Aqui está o dr. Camilo da Anunciação; leve-o para a sala dos convidados, enquanto eu vou mudar de roupa. Até já, meu caro genro.

E deu-me as costas.

O sujeito velho, que eu soube depois ser o mordomo da casa, tomou-me pela mão e levou-me a uma grande sala, que era onde se achavam os convidados.

Apesar da profunda impressão que me causava aquela aventura, confesso que a riqueza da casa me assombrava cada vez mais, e não só a riqueza, senão também o gosto e a arte com que estava preparada.

A sala dos convidados estava fechada quando lá chegamos; o mordomo bateu três pancadas, e veio abrir a porta um lacaio, também velho, que me segurou pela mão, ficando o mordomo do lado de fora.

Nunca me há de esquecer a vista da sala apenas se me abriram as portas. Tudo ali era estranho e magnífico. No fundo, em frente da porta de entrada, havia uma grande águia de madeira fingindo bronze, encostada à parede, com as asas abertas, e preparando-se como para voar. Do bico da águia pendia um espelho, cuja parte inferior estava presa às garras, conservando assim a posição inclinada que costuma ter um espelho de parede.



A sala não era forrada de papel, mas de seda branca, o teto artisticamente trabalhado; grandes candelabros, magnífica mobília, flores em profusão, tapetes, tudo enfim quanto o luxo e o gosto sugerem ao espírito de um homem rico.

Os convidados eram poucos e, não sei por que coincidência, eram todos velhos, como o mordomo e o lacaio, e o meu próprio sogro; finalmente velhos como eu também. Introduzido pelo criado, fui logo cumprimentado pelas pessoas presentes com uma atenção que me dispôs logo o ânimo a querer-lhes bem.

Sentei-me numa cadeira, e vieram reunir-se em roda de mim, todos risonhos e satisfeitos por ver o genro do incomparável Tobias. Era assim que chamavam ao homem do revólver.

Acudi como pude às perguntas que me faziam, e parece que todas as minhas respostas contentavam aos convidados, porquanto de minuto a minuto choviam sobre mim louvores e cumprimentos.

Um dos convidados, homem de setenta anos, condecorado e calvo, disse com aplausos gerais:

— O Tobias não podia encontrar melhor genro, nem que andasse com uma lanterna por toda a cidade, que digo? por todo o império; vê-se que o dr. Camilo da Anunciação é um perfeito cavalheiro, notável por seus talentos, pela gravidade da sua pessoa, e enfim pelos admiráveis cabelos brancos que lhe adornam a cabeça, mais feliz do que eu que os perdi há muito.

Suspirou o homem com tamanha força que parecia estar nos arrancos da morte. A assembléia cobriu de aplausos as últimas palavras do orador.

Articulei um agradecimento, e preparei imediatamente os ouvidos para responder a outro discurso que me foi dirigido por um coronel reformado, e outro finalmente por uma senhora que, desde a minha entrada, não tirava os olhos de mim.

— Sra. condessa, disse o coronel quando a senhora acabou de falar, confesse V. Excia. que os rapazes de hoje não valem este respeitável ancião, futuro genro do incomparável Tobias.

— Valem nada, coronel! Em matéria de noivos só o século passado os fornece capazes e bons. Casamentos de hoje! Abrenúncio! Uns peraltas todos pregadinhos e esticados, sem gravidade, sem dignidade, sem honestidade!

A conversa assentou toda neste assunto. O século dezenove sofreu ali um vasto processo; e (talvez preconceito de velho) falavam tão bem naquele assunto, com tanta discrição e acerto, que eu acabei por admirá-los.

No meio de tudo, estava ansioso por conhecer a minha noiva. Era a última curiosidade; e se ela fosse, como eu imaginava, uma beleza, e além do mais riquíssima, que poderia exigir da sorte?

Aventurei uma pergunta nesse sentido a uma senhora que se achava ao pé de mim e em frente à condessa. Disse-me ela que a noiva estava no toucador, e não tardava muito que eu a visse. Acrescentou que era linda como o sol.

Entretanto decorrera uma hora, e nem a noiva, nem o pai, o incomparável Tobias, aparecia na sala. Qual seria a causa da demora do meu futuro sogro? Para vestir-se não era preciso tanto tempo. Eu confesso que, apesar da cena do quarto e das disposições em que vi o homem, estaria mais tranqüilo se ele estivesse presente. É que ao velho já eu tinha visto em minha casa; habituara-me aos seus gestos e discursos.

No fim de hora e meia abriu-se a porta para dar entrada a uma nova visita. Imaginem o meu pasmo quando dei com os olhos no meu amigo dr. Vaz! Não pude abafar um grito de surpresa, e corri para ele.

— Tu aqui!
— Ingrato! respondeu sorrindo o Vaz, casas e não convidas ao teu primeiro amigo. Se não fosse esta carta ainda eu lá estaria no teu quarto à espera.
— Que carta? perguntei eu.

O Vaz abriu a carta que trazia na mão e deu-me para ler, enquanto os convidados de longe contemplavam a cena inesperada, tanto por eles, como por mim.

A carta era de Tobias, e participava ao Vaz que, tendo eu de casar-me naquela noite, tomava ele a liberdade de convidá-lo, na qualidade de sogro, para assistir a cerimônia.

— Como vieste?
— Teu sogro mandou-me um carro.

Aqui fui obrigado a confessar mentalmente que o Tobias merecia o título de incomparável, como Enéas o de pio. Compreendi a razão por que não quis que eu o acordasse; era para causar-lhe a surpresa de vê-lo depois.

Como era natural, quis o meu amigo que eu lhe explicasse a história do casamento, tão súbito, e eu já me dispunha a isso, quando a porta se abriu e entrou o dono da casa. Era outro.

Já não tinha as roupas esquisitas e o ar singular com que o vira no meu quarto; agora trajava com aquela elegância grave que cabe a um velho, e pairava-lhe nos lábios o mais amável sorriso.

— Então, meu caro genro, disse-me ele depois dos cumprimentos gerais, que me diz à vinda do seu amigo?
— Digo, meu caro sogro, que o senhor é uma pérola. Não imaginará talvez o prazer que me deu com esta surpresa, porque o Vaz foi e é o meu primeiro amigo.

Aproveitei a ocasião para o apresentar a todas os convidados, que foram de geral acordo em que o dr. Vaz era um digno amigo do dr. Camilo da Anunciação. O incomparável Tobias manifestou o desejo e a esperança de que dentro de pouco tempo ficaria a sua pessoa ligada à de nós ambos, por modo que fôssemos todos designados: os três amigos do peito.

Bateu meia-noite não sei em que igreja da vizinhança. Ergueu-se o incomparável Tobias, e disse-me:

— Meu caro genro, vamos cumprimentar a sua noiva; aproxima-se a hora do casamento. Levantaram-se todos e dirigiram-se para a porta da entrada, indo na frente eu, o Tobias e o Vaz. Confesso que, de todos os incidentes daquela noite, este foi o que mais me impressionou. A idéia de ir ver uma formosa donzela, na flor da idade, que devia ser minha esposa — esposa de um velho filósofo já desenganado das ilusões da vida —, essa idéia, confesso que me aterrou.

Atravessamos uma sala e chegamos diante de uma porta, meia aberta, dando para outra sala ricamente iluminada. Abriram a porta dois lacaios, e todos nós entramos.

Ao fundo, sentada num riquíssimo divã azul, estava já pronta e deslumbrante de beleza a sra. D. Eusébia. Tinha eu até então visto muitas mulheres de fascinar; nenhuma chegava aos pés daquela. Era uma criação de poeta oriental. Comparando a minha velhice à mocidade de Eusébia, senti-me envergonhado, e tive ímpetos de renunciar ao casamento. Fui apresentado à noiva pelo pai, e recebido por ela com uma afabilidade, uma ternura, que acabaram por vencer-me completamente. No fim de dois minutos estava eu cegamente apaixonado.

— Meu pai não podia escolher melhor marido para mim, disse-me ela fitando-me uns olhos claros e transparentes; espero que tenha a felicidade de corresponder aos seus méritos.

Balbuciei uma resposta; não sei o que disse; tinha os olhos embebidos nos dela. Eusébia levantou-se e disse ao pai:

— Estou pronta.

Pedi que Vaz fosse uma das testemunhas do casamento, o que foi aceito; a outra testemunha foi o coronel. A condessa serviu de madrinha.

Saímos dali para a capela, que era na mesma casa, e pouco retirada; já lá se achavam o padre e o sacristão. Eram ambos velhos como toda a gente que havia em casa, exceto Eusébia.

Minha noiva deu o sim com uma voz forte, e eu com voz fraquíssima; pareciam invertidos os papéis.

Concluído o casamento, ouvimos um pequeno discurso do padre acerca dos deveres que o casamento impõe e da santidade daquela cerimônia. O padre era um poço de ciência e um milagre de concisão; disse muito em pouquíssimas palavras. Soube depois que nunca tinha ido ao parlamento.

À cerimônia do casamento seguiu-se um ligeiro chá e alguma música. A condessa dançou nm minueto com o velho condecorado, e assim terminou a festa.

Conduzido aos meus aposentos por todos os convidados, soube em caminho que o Vaz dormiria lá, por convite expresso do incomparável Tobias, que fez a mesma fineza aos circunstantes.

Quando me achei só com a minha noiva, caí de joelhos e disse-lhe com a maior ternura:

— Tanto vivi para encontrar agora, já quase no túmulo, a maior ventura que pode caber ao homem, porque o amor de uma mulher como tu é um verdadeiro presente do céu! Falo em amor e não sei se tenho direito de o fazer... porque eu sou velho, e tu...
— Cale-se! cale-se! disse-me Eusébia assustada.

E foi cair num sofá com as mãos no rosto.

Espantou-me aquele movimento, e durante alguns minutos fiquei na posição em que estava, sem saber o que havia de dizer.

Eusébia parecia estar chorando.

Levantei-me afinal, e acercando-me do sofá, perguntei-lhe que motivo tinha para aquelas lágrimas.

Não me respondeu.

Tive uma suspeita; imaginei que Eusébia amava alguém, e que, para castigá-la do crime desse amor, obrigavam-na a casar com um velho desconhecido a quem ela não podia amar.

Despertou-se-me uma fibra de D. Quixote. Era uma vítima; cumpria salvá-la. Aproximei-me de Eusébia, confiei-lhe a minha suspeita, e declarei-lhe a minha resolução.

Quando eu esperava vê-la agradecer-me de joelhos o nobre impulso das minhas palavras, vi com surpresa que a moça olhava para mim com ar de compaixão, e dizia-me abanando a cabeça:

— Desgraçado! é o senhor quem está perdido!
— Perdido! exclamei eu dando um salto.
— Sim, perdido!

Cobriu-se-me a testa de um suor frio; as pernas entraram a tremer-me, e eu para não cair assentei-me ao pé dela no sofá. Pedi-lhe que me explicasse as suas palavras.

Por que não? disse ela; se lhe ocultasse seria cúmplice perante Deus, e Deus sabe que eu sou apenas um instrumento passivo nas mãos de todos esses homens. Escute. O senhor é o meu quinto marido; todos os anos, no mesmo dia e à mesma hora, dá-se nesta casa a cerimônia que o senhor presenciou. Depois, todos me trazem para aqui com o meu noivo, o qual...

— O qual? perguntei eu suando.
— Leia, disse Eusébia indo tirar de uma cômoda um rolo de pergaminho; há um mês que eu pude descobrir isto, e só ha um mês tive a explicação dos meus casamentos todos os anos.

Abri trêmulo o rolo que ela me apresentava, e li fulminado as seguintes linhas:

Elixir da eternidade, encontrado numa ruína do Egito, no ano de 402. Em nome da águia preta e dos sete meninos do Setentrião, salve. Quando se juntarem vinte pessoas e quiserem gozar do inapreciável privilégio de uma vida eterna, devem organizar uma associação secreta, e cear todos os anos no dia de S. Bartolomeu, um velho maior de sessenta anos de idade, assado no forno, e beber vinho puro por cima.

Compreende alguém a minha situação? Era a morte que eu tinha diante de mim, a morte infalível, a morte dolorosa. Ao mesmo tempo era tão singular tudo quanto eu acabava de saber, parecia -me tão absurdo o meio de comprar a eternidade com um festim de antropófagos, que o meu espírito pairava entre a dúvida e o receio, acreditava e não acreditava, tinha medo e perguntava por quê?

— Essa é a sorte que o espera, senhor!
— Mas isto é uma loucura! exclamei; comprar a eternidade com a morte de um homem! Demais, como sabe que este pergaminho tem relação?...
— Sei, senhor, respondeu Eusébia; não lhe disse eu que este casamento era o quinto? Onde estão os outros quatro maridos? Todos eles penetraram neste aposento para saírem meia hora depois. Alguém os vinha chamar, sob qualquer pretexto, e eu nunca mais os via. Desconfiei de alguma grande catástrofe; só agora sei o que é.

Entrei a passear agitado; era verdade que eu ia morrer? era aquela a minha última hora de vida? Eusébia, assentada no sofá, olhava para mim e para a porta.

— Mas aquele padre, senhora, perguntei eu parando em frente dela, aquele padre também é cúmplice?
— É o chefe da associação.
— E a senhora! também é cúmplice, pois que as suas palavras foram um verdadeiro laço; se não fossem elas eu não aceitaria o casamento...
— Ai! senhor! respondeu Eusébia lavada em lágrimas; sou fraca, isso sim; mas cúmplice, jamais. Aquilo que lhe disse foi-me ensinado.

Nisto ouvi um passo compassado no corredor; eram eles naturalmente.

Eusébia levantou-se assustada e ajoelhou-se-me aos pés, dizendo com voz surda:

— Não tenho culpa de nada do que vai acontecer, mas perdoe-me a causa involuntária! Olhei para ela e disse-lhe que a perdoava.

Os passos aproximavam-se.

Dispus-me a vender caro a minha vida; mas não me lembrava que, além de não ter armas, faltavam-me completamente as forças.

Quem quer que vinha andando chegou à porta e bateu. Não respondi logo; mas insistindo de fora nas pancadas, perguntei:

— Quem está aí?
— Sou eu, respondeu-me Tobias com voz doce; queira abrir-me a porta. —
– Para quê?
— Tenho de comunicar-lhe um segredo.
— A esta hora!
— É urgente.

Consultei Eusébia com os olhos; ela abanou tristemente a cabeça.

— Meu sogro, adiemos o segredo para amanhã.
— É urgentíssimo, respondeu Tobias, e para não lhe dar trabalho eu mesmo abro com outra chave que possuo.

Corri à porta, mas era tarde; Tobias estava na soleira, risonho como se fosse entrar num baile.

— Meu caro genro, disse ele, peço-lhe que venha comigo à sala da biblioteca; tenho de comunicar-lhe um importante segredo relativo à nossa família.
— Amanhã, não acha melhor? disse eu.
— Não, há de ser já! respondeu Tobias franzindo a testa.
— Não quero!
— Não quer! pois há de ir.

— Bem sei que sou o seu quinto genro, meu caro sr. Tobias.
— Ah! sabe! Eusébia contou-lhe os outros casamentos; tanto melhor! E, voltando-se para a filha, disse com frieza de matar:
— Indiscreta! vou dar-te o prêmio.
— Sr. Tobias, ela não tem culpa.
— Não foi ela quem lhe deu esse pergaminho? perguntou o Tobias apontando para o pergaminho que eu ainda tinha na mão.

Ficamos aterrados!

Tobias tirou do bolso um pequeno apito e deu um assobio, ao qual responderam outros; e daí a alguns minutos estava a alcova invadida por todos os velhos da casa.

— Vamos à festa! disse o Tobias.

Lancei mão de uma cadeira e ia atirar contra o sogro, quando Eusébia segurou-me no braço, dizendo:
— É meu pai!
— Não ganhas nada com isso, disse Tobias sorrindo diabolicamente; hás de morrer, Eusébia.

E segurando-a pelo pescoço entregou-a a dois lacaios dizendo:

— Matem-na.

A pobre moça gritava, mas em vão; os dois lacaios levaram-na para fora, enquanto os outros velhos seguraram-me pelos braços e pernas, e levaram-me em procissão para uma sala toda forrada de preto. Cheguei ali mais morto que vivo. Já lá achei o padre vestido de batina.

Quis ver antes de morrer o meu pobre amigo Vaz, mas soube pelo coronel que ele estava dormindo, e não sairia mais daquela casa; era o prato destinado ao ano futuro.

O padre declarou-me que era o meu confessor; mas eu recusei receber a absolvição do próprio que me ia matar. Queria morrer impenitente.

Deitaram-me em cima de uma mesa atado de pés e mãos, e puseram-se todos à roda de mim, ficando à minha cabeceira um lacaio armado com um punhal.

Depois entrou toda a companhia a entoar um coro em que eu só distinguia as palavras: Em nome da águia preta e dos sete meninos do Setentrião.

Corria -me o suor em bagas; eu quase nada via; a idéia de morrer era horrível, apesar dos meus setenta anos, em que já o mundo não deixa saudades.

Parou o coro e o padre disse com voz forte e pausada:

— Atenção! Faça o punhal a sua obra!

Luziu-me pelos olhos a lâmina do punhal, que se cravou todo no coração; o sangue jorrou-me do peito e inundou a mesa; eu entre convulsões mortais dei o último suspiro. Estava morto, completamente morto, e entretanto ouvia tudo à roda de mim; restava-me uma certa consciência deste mundo a que já não pertencia.

— Morreu? perguntou o coronel.
— Completamente, respondeu Tobias; vão chamar agora as senhoras. As senhoras chegaram dali a pouco, curiosas e alegres.
— Então? perguntou a condessa; temos homem?
— Ei-lo.

As mulheres aproximaram-se de mim, e ouvi então um elogio unânime dos canibais; todos concordaram em que eu estava gordo e havia de ser excelente prato.

— Não podemos assá-lo inteiro; é muito alto e gordo; não cabe no forno; vamos esquartejá-lo; venham facas.

Estas palavras foram ditas pelo Tobias, que imediatamente distribuiu os papéis: o coronel cortar-me-ia a perna esquerda, o condecorado a direita, o padre um braço, ele outro e a condessa, amiga de nariz de gente, cortaria o meu para comer de cabidela.
Vieram as facas, e começou a operação; confesso que eu não sentia nada; só sabia que me haviam cortado uma perna quando ela era atirada ao chão com estrépito.

— Bem, agora ao forno, disse Tobias.

De repente ouvi a voz do Vaz.

— Que é isso, ó Camilo, que é isso? dizia ele.

Abri os olhos e achei-me deitado no sofá em minha casa; Vaz estava ao pé de mim.

— Que diabo tens tu?

Olhei espantado para ele, e perguntei:

— Onde estão eles?
— Eles quem?
— Os canibais!
— Estás doido, homem!

Examinei-me: tinha as pernas, os braços e o nariz. O quarto era o meu. Vaz era o mesmo Vaz.

— Que pesadelo tiveste! disse ele. Estava eu a dormir guando acordei com os teus gritos.
— Ainda bem, disse eu.

Levantei-me, bebi água, e contei o sonho ao meu amigo, que riu muito, e resolveu passar a noite comigo. No dia seguinte, acordamos tarde e almoçamos alegremente. Ao sair, disse-me o Vaz:

— Por que não escreves o teu sonho para o Jornal das Famílias?
— Homem, talvez.
— Pois escreve, que eu o mando ao Garnier.

Fontes:
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
http://www2.uol.com.br/machadodeassis Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1870
Imagem = http://www.contosdeterror.com.br (Elixir da Juventude)

Epopéias da Índia Antiga (O Râmâyana) Parte I


I
O Poeta

Entre os inúmeros poemas épicos ou epopéias que enriquecem a literatura sânscrita, sobressaem por seus méritos o Râmâyana e o Mahâbhârata, anteriores e superiores, em originalidade e beleza, à Ilíada e à Odisséia.

A língua sânscrita, com sua literatura, continua interessando aos orientalistas do Ocidente e aos eruditos do Oriente, embora há mais de dois mil anos não seja o sânscrito língua viva e não tenha perdido o seu caráter de sagrada.

O Râmâyana e o Mahâbhârata descrevem subalternamente os usos, costumes, crenças e cultura dos antigos monumentos da poesia sânscrita, embora anteriormente tenham sido escritos os Vedas, cuja maior parte está em forma métrica; todavia, na Índia o Râmâyana é considerado como a primeira e mais antiga produção poética.

O autor do Râmâyana foi Valmiki, sobre cuja vida teceram-se muitas conjeturas, do mesmo modo que a respeito de Homero e Shaskespeare no Ocidente, conquanto não caiba dúvida referente à autenticidade de sua existência. Se bem que muitos versos do poema não sejam seus, "mas interpolações, realçam entretanto a poética magnificência dessa obra sem par na literatura mundial.

Havia na Índia um jovem casado que, apesar de possuir compleição robusta, não encontrava trabalho para manter sua família, e que se tomara salteador de estradas, levado por aquele extremo desespero.

Atacava os viajantes, roubando-lhes tudo que levavam e com o fruto dos roubos mantinha seus velhos pais, sua mulher e filhos, sem que nenhum deles suspeitasse a sinistra procedência do dinheiro.

Assim levava a vida, quando certo dia passou pelo caminho em que estava um grande santo chamado Nârada, a quem o salteador deteve para roubar.

Porém Nârada perguntou-lhe:

- Por que queres roubar-me? Gravíssimo pecado é roubar e assassinar o próximo. Por que cometes tão grande pecado?

O salteador respondeu:

- Peco porque preciso manter minha família com o dinheiro que roubo.

O santo replicou:
- Crês que tua família participa do teu pecado?
- Sim certamente.
- Pois bem; prenda-me, ata-me os pés e as mãos e deixa-me aqui, enquanto vais à tua casa e perguntas a todos se querem participar do teu pecado, como participam do teu dinheiro.

O salteador concordou com a proposta, atou o santo foi à casa e perguntou a seu pai:
– Sabes como te sustento?
– Não sei.
– Sou um salteador de estradas, que roubo os viandantes e os mato se não se deixam roubar.
- Como fazes isto, meu filho? Afasta-te de mim! És um pária!

O salteador perguntou depois à sua mãe:
- Sabes como te sustento?
- Não sei.
- É com o produto dos meus roubos e assassinatos.
- Que coisa triste!
- Queres compartilhar de meu pecado?
- Por que haveria de fazê-lo? Nunca roubei a ninguém.

O salteador perguntou depois à sua esposa:
- Sabes como te mantenho?
- Não sei.
- Pois sou um salteador, de estradas e quero saber se estás disposta a compartilhar do meu pecado.
- Absolutamente. És meu marido e tens o dever de manter-me honradamente.

Então o salteador percebeu a maldade de sua conduta, ao ver que seus mais íntimos parentes negavam-se resolutamente a compartilhar a responsabilidade de suas más ações e volvendo ao sitio em que havia deixado o santo Nârada, desamarrou-o, relatou-lhe tudo quanto até então havia feito e caindo de joelhos a seus pés, exclamou compungido:

– Salva-me! Que devo fazer?

O santo respondeu-lhe:

- Abandona para sempre este gênero de vida, pois já viste que nenhum dos teus aprova o que fazes e te desprezam ao saber quem és. Participam de tua prosperidade, porém, quando nada tiveres para dar-lhes, hão de abandonar-te. Não querem compartilhar do teu mal, mas aproveitar-se dos teus bens. Portanto, adora Aquele que sempre está ao nosso lado, no mal e no bem; que nunca nos abandona porque o amor não conhece nem o engano, nem o egoísmo.

Depois Nârada ensinou-lhe a adorar a Deus; e aquele homem, renunciando por completo ao mundo, retirou-se para as selvas e entregou-se à meditação, esquecendo-se inteiramente de sua personalidade, de sorte que nem percebeu os formigueiros que surgiam em torno dele.

No fim de alguns anos ouviu uma voz que lhe dizia:

- Levanta-te, ó sábio!

Ele, porém, respondeu:
Sábio? Sou um ladrão ...

A voz replicou:
- Já não és salteador de estradas. És um sábio purificado. Esquece teu antigo nome. Agora, já que tua meditação foi tão profunda que nem notaste os formigueiros que se formavam ao teu redor, chamar-te-ás Valmiki, que significa: "O que nasceu entre os formigueiros."

Aquele que outrora era salteador de estradas converteu-se em um sábio. Um dia, quando foi banhar-se no sagrado rio Ganges, viu um casal de pombos que cirandavam, beijando-se com carinho; Valmiki contemplava enternecido tão formoso espetáculo, quando de súbito silvou uma flecha ao seu ouvido, indo matar o pombo.

A pomba, ao ver seu companheiro caído sem vida, deu voltas ao redor do cadáver, com mostra de profundo pesar.

Valmiki revoltou-se e ao alongar a vista descobriu o caçador, a quem, possuído de nobre indignação apostrofou:

– És um miserável sem noção de piedade. Nem o amor pôde deter tua mão assassina?

Porém, Valmiki refletiu:

– Que é isto? Que estou dizendo? Nunca falei assim até agora!

Então ouviu uma voz que disse:

– Não temas, porque de teus lábios brota a poesia. Escreve a vida de Rama em linguagem poética, para benefício do mundo.

Assim começou a epopéia. O primeiro verso é uma torrente de piedade brotando do coração de Valmiki.

Fonte:
Vivekananda, Swami. Epopéias da Índia Antiga.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 152 a 154)


Mensagens Poéticas n. 152

Uma Trova Nacional

Um velho muito assanhado,
mas já de carne bem magra,
quis recordar o passado,
e se entupiu de Viagra ...
(AGNELO CAMPOS/SP)

Uma Trova Potiguar

Pijama de seda lisa
neste teu corpo delgado
em si, já caracteriza
o quanto és "delicado".
(ROSA REGIS/RN)

Uma Trova Premiada

2009 > Bandeirantes/PR
Tema > ARRUAÇA > Menção Honrosa

De arruaça em arruaça,
de pinga a cabeça cheia,
surrou a mulher na praça
e foi mulher na cadeia.
(OLGA AGULHON/PR)

Uma Trova de Ademar

Um matuto, por sandice,
ao ver a Praia fez festa...
Olhou para o Mar e disse:
– ô açudão da molesta!!!
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Fantasiei-me de rato
e vejam só no que deu:
meu marido foi de gato,
por pouco não me comeu...
(VERA MARIA DE LIMA BRAZ/MG)

Simplesmente Poesia

MOTE.
Cabra safado não morre;
Só se matar de cacete.

GLOSA:
Não há veneno nem porre
pra levar o traste ruim.
Quem é bom logo tem fim,
cabra safado não morre;
o diabo sempre o socorre
por debaixo do colete;
toma coice de ginete,
de cobra leva mordida,
mas não desgruda da vida,
só se matar de cacete.
(JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN)

Estrofe do Dia

Eu vivo assim nesse frevo,
as minhas dívidas pagando,
todo mundo me cobrando,
quanto mais pago mais devo;
já estou que não me atrevo
pagar o que não comprei,
só se chegou essa lei
depois da democracia!
Paguei mais do que devia,
devo mais do que paguei.
(ZEZO PATRIOTA/PB)

Soneto do Dia

– Marcos Satoru Kawanami/SP –
MINHA NORA VIDENTE.

Achei, de minha parte, coisa boa
os zelos e cuidados que agora
ao meu filho dispensa minha nora,
a qual varre, cozinha, e ensaboa.

Pois, antes, nem sequer mesquinha broa
degustava meu filho ao vir da aurora,
moído a sustentar a tal senhora
que ao banho não se dava, tão à toa...

Hoje em dia, meu filho passa bem:
a mulher tomou viço e se perfuma
cuida do lar com ânimo também!

Mas a transformação se deu, em suma,
depois que um anjo lá chegou, de trem,
por benzer as mulheres, uma a uma!


Mensagens Poéticas n. 153

Uma Trova Nacional

Pense bem nas atitudes
antes de emitir conceitos;
quem não conhece as virtudes
não deve apontar defeitos!
(ARLINDO TADEU HAGEN/MG)

Uma Trova Potiguar

Quando a família é rompida
por atos cegos, tiranos;
deixa destroços de vida,
restos de seres humanos.
(MANOEL CAVALCANTE/RN)

Uma Trova Premiada

1999 > Acad. Mineira de Trovas/MG
Tema > “LIVRE” > Venc.

Ao homem Deus deu a Terra
e veja o que o homem faz:
– Cria as hienas da guerra
e mata as pombas da paz.
(OLYMPIO COUTINHO/MG)

Uma Trova de Ademar

Envolta em seu lindo manto,
com seus raios derradeiros,
a lua clareia o pranto
nos olhos dos seresteiros.
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Magia... Posso entendê-la
na inspiração que me embala:
é desejar uma estrela
e conseguir alcançá-la!
(MARIA DOLORES PAIXÃO/MG)

Simplesmente Poesia

– Henrique Marques Samyn/RJ –
NA FINAL DE 50.

Barbosa, cabisbaixo, se levanta
e segue, a passos lentos, rumo à meta.

Caminha. Numa solidão de asceta,
não vê o mundo em volta. Só a bola

que, morta, jaz na rede, entorpecida.
Barbosa se levanta. Não vê nada,

mas ouve a multidão emudecida.

Estrofe do Dia

Os carinhos de mãe estremecida,
os brinquedos dos tempos de criança,
o sorriso fugaz de uma esperança
e a primeira ilusão da nossa vida,
o adeus que se dá por despedida,
o desprezo que a gente não merece,
o delírio da lágrima quando desce
nos momentos de angustia e de desgraça;
passa tudo na vida, tudo passa
mas nem tudo que passa a gente esquece.
(DIMAS BATISTA/PE)

Soneto do Dia

– Carmen Ottaiano/SP –
ANDORINHAS.

Um dia ele chegou, tal primavera,
fazendo um ninho doce em minha mão,
juntando as folhas de uma longa espera
de andorinha que sonha com verão.

Um dia ele gerou tanta quimera,
tantos frutos já fora da estação,
que me despi das penas que eu tivera,
vendo explodir no peito uma canção!

Um dia ele partiu gerando infernos,
e os meus olhos em lágrimas serenas
cristalizaram temporais eternos...

Juntando versos de um verão apenas,
nua ao sabor de todos os invernos,
eu fiquei só, coberta de outras penas!

Mensagens Poéticas n. 154

Uma Trova Nacional

Vivo a vida, sem rancores;
e as mágoas que tive, um dia,
hoje, são mares de Amores
onde navega a Poesia!
(MARISA VIEIRA OLIVAES/RS)

Uma Trova Potiguar

Busquei no universo um dia,
uma resposta eficaz;
que transformasse a poesia
num hino de amor e paz!!!
(PROF. GARCIA/RN)

Uma Trova Premiada

1994 > Belém/PA
Tema > JANELA > Venc.

Ao sentir que foge a calma
e até viver me angustia,
eu abro as janelas da alma
e deixo entrar a Poesia!
(CAROLINA RAMOS/SP)

Uma Trova de Ademar

O Deus que fez lago e monte,
que fez céu, mar, noite e dia,
fez do poeta uma fonte
por onde jorra poesia...
(ADEMAR MACEDO/RN)

...E Suas Trovas Ficaram

Faço versos se estou triste,
faço versos de alegria,
a minha alma não resiste
aos apelos da poesia.
(CORA LAYDNER/RS)

Simplesmente Poesia

GLOSA:
Por qualquer outra riqueza,
não troca a minha poesia.

MOTE:
É da minha natureza,
achar que tudo está bom
e eu não troco esse meu dom
Por qualquer outra riqueza.
Sei navegar na beleza
de qualquer filosofia,
se o sofrer me deprecia
o amor vem me soerguer;
nem por dinheiro e poder
não troca a minha poesia
(FRANCISCO MACEDO/RN)

Estrofe do Dia

Eu encontro poesia,
quando vem a madrugada
e quando surge a alvorada
trazendo a barra do dia;
a passarada em folia
da dormida despertando,
de dois em dois debandando
a procura de comer,
em tudo isto se vê
a poesia jorrando.
(ZÉ DE CAZUZA/PB)

Soneto do Dia

– Pedro Ornellas/SP –
REFÚGIO.

Todo poeta tem, por ser poeta,
um mundo à parte, pleno de magia!
Só ele sabe a porta, que é secreta,
fronteira entre o real e a fantasia.

Ali depõe a mágoa que o alfineta,
se o mundo o fere, ali se refugia...
É ali que encontra a paz e se completa
quando conversa, a sós, com a poesia.

Nesse lugar que a mente humana cria
o Amor é a lei, o bem a ordem-do-dia,
o idioma é a Paz e quem governa é a Arte!

Não é um lugar nas dimensões terrenas,
mas um estágio ao qual se eleva apenas
quem da Poesia faz seu mundo à parte!

Fonte:
Ademar Macedo
12, 13 e 14 de março