sábado, 3 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 396

 


Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXXII

 


Carolina Ramos (Estático)


Assinou o contrato com mão trêmula, desenhando mal e mal as letras. Em momentos iguais àquele é que mais lhe pesava a falta de estudo.

Tivesse esquentado por mais tempo os bancos escolares, com certeza, não estaria ali, assinando um contrato que o deixava praticamente condenado a renunciar à vida durante oito dias! Como?! Simples:

Fora contratado para, durante a semana anterior ao Natal, encarnar Papai Noel, ou melhor, transformar-se numa espécie de robô rígido, impedido de qualquer movimento! Imóvel e inexpressivo, com cara e corpo do Bom Velhinho!

Para tanto, durante o expediente, comprometia-se a privar-se de falar, de sorrir, de mexer os olhos, ou um músculo sequer! Precisava lembrar-se de que era" um simples boneco, embora de carne e osso, com pausas mínimas para o absolutamente indispensável. Exigências exorbitantes, mas... por ser de carne e osso, precisava do trabalho, justamente para poder comer, mais osso do que propriamente carne, se fosse o caso!

Chegava a ser cruel negarem-lhe até o direito sagrado de respirar mais fundo, porque, respirar pressupunha movimento e movimento, no caso, seria a mais punível das heresias!

Trabalhar para viver é o certo... mas, poderia isto ser considerado um meio de vida?!

Oito dias de imobilidade total, tinha pela frente! Oito dias roubados ao calendário de um ser vivente, para serem computados ao de um morto-vivo! Ou vivo-morto, como preferissem.

Todas as ponderações foram esquecidas.

No dia imediato à cruel assinatura, lá estava ele travestido de Papai Noel estático, plantado à porta do Shopping, suando em bicas, no cumprimento fiel do compromisso assumido!

A intervalos regulares, era-lhe permitido mudar de posição, com trejeitos mecânicos, robóticos, como qualquer boneco que se prezasse. Pausas abençoadas pelos membros dormentes, apossados por legiões de formiguinhas hipotéticas, que, apesar das periódicas mudanças, não paravam de formigar. Suportava, a duras penas, cócegas e coceirinhas importunas e dava graças a Deus por livrá-lo de um acesso de tosse, ou de um espirro impossível de ser abortado.

Aguentava com galhardia a curiosidade das crianças e dos adultos postados à sua frente, a duvidar se era boneco que parecia gente, ou, gente que parecia boneco. E havia ainda os gaiatos que não poupavam esforços para fazê-lo capitular, empenhados em conseguir um sorriso ou, pelo menos, um ligeiro piscar de olhos, como troféu de vitória.

Estática e estóica, a "estátua" de Papai Noel resistia, noite após noite... dia após dia... envolta num manto de silêncio!

Véspera de Natal! Lá estava ele, fiel ao posto, tendo aos pés a caixa de correspondência transbordante de cartas infantis. Cartas cheias de pedidos inocentes e sonhos mais inocentes ainda.

O relógio da matriz, em carinhoso consolo, anunciava para breve o fim da penosa função. Faltava pouco!

Contava intimamente os segundos. Os últimos, sempre os mais difíceis de passar... mais duros de serem suportados!

O garoto aproximou-se ressabiado. Estacou ante a estátua humana — não de gesso, não de mármore, não de bronze ou outro qualquer metal, mas, de carne e osso. Material mais nobre que outro qualquer material!

Sujo, descalço, roto, protótipo do abandono, o menino examinou de alto a baixo, a figura do Pai Noel estático. Olhou em volta a constatar que ninguém o observava. Achegou-se mais e arriscou, num sussurro:— "Papai Noel, eu me chamo Landinho. Não escrevi carta nenhuma porque... porque não sei escrever direito." Olhou novamente ao redor, mais ressabiado ainda, sem querer ser ouvido. Sem ver ninguém por perto, encorajou-se: — "Sabe, Pai Noel, eu nunca tive brinquedo nenhum... nunca! E nunca pedi nada pra mim... nunca mesmo! Mas... sabe, eu não queria que o meu irmão pequeno, passasse o Natal triste... Me arranja um brinquedo. Pai Noel, por favor... qualquer coisinha serve! E eu sei que ele vai ficar contente! O senhor nunca chegou até minha casa, lá no morro, porque era muito difícil chegar lá! Eu sei! Num tô me queixando, não! Mas, agora é mais fácil. Nós moramos ali... ali debaixo daquela ponte grande. Vai, lá Pai Noel... vai lá... por favor!!!"

Duas lágrimas brincavam de turvar as pupilas daquele Pai Noel que, estático, apenas ouvia... Saltando barreiras, elas desceram, mansamente, a iluminar as bochechas do Bom Velhinho, até se aninharem nas barbas brancas e macias.

E... aquele homem impedido de mover-se... Aquele homem que não podia sorrir e sequer piscar os olhos,deixou que o pranto rolasse livre, afinal, sem mover um músculo sequer!...

— É que nenhum contrato, por mais cruel que fosse... lhe proibira de chorar!...

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Cecim Calixto (Cajado de Sonetos) V


BODAS DE OURO

Nenhuma crise em nosso amor casado,
Nem a tendência de paixão lasciva.
Amo-a bastante e sei que sou amado
Na plenitude da intenção passiva.

Na convivência não se tem enfado
E nem a frase de sabor nociva;
Temos de cor o lema e todo o agitado
Do sacramento que no céu se arquiva.

Vivemos juntos, atingiu cinquenta,
E a registrar a minha mente tenta
Na concepção de interminável vida.

Amor tão grande assim não tem idade,
Para a alegria não existe grade
E para o amor nunca existiu saída.

(16 de fevereiro de 2006)
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MINHA BASSET "AYUNl”*

(*querida, em árabe)

Adoro a minha cadelinha esperta
Que me desperta quando estou na cama.
Embora dócil, uma queixa é certa
Se algum estranho, sem prever, me chama.

Por isso a porta fica sempre aberta...
Assim agindo evito um certo drama.
Na inteligente forma em dar alerta
Tem-se a impressão que seu latir proclama.

Herdou do pai a primorosa cor,
De sua mãe o singular dulçor
E um raro afeto de desvelo ardente.

Ao animal eu dei o amor mais puro
E a proteção que igual não há, eu juro,
Pelo carinho que dispensa à gente.
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PELA IGUALDADE

Alguém desperte a mente crua e rica,
Que desconhece o sofrimento pobre.
Toda porção, que da fartura fica,
Dai ao irmão antes que a sede dobre.

Gesto tão simples que a bondade indica
E dá diploma de cristão ao nobre.
Vale a grandeza desta ação pudica
Que ao dar de si o coração descobre.

Busca plantar e da melhor semente;
Seja bondoso e nunca mais se ausente
Deste labor que da virtude emana.

Pois quero ouvir da multidão na rua;
A flor carente não está mais nua
Graça à humildade e à conversão humana,
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SUA MÃE

Toda discórdia que no lar assola
Traz no seu bojo uma global falência.
Na convivência, onde a humildade rola,
Só nasce amor, na excepcional essência.

Habita o lar a redentora mola,
A que ameniza a dor da atroz carência.
Ensina o bem e a todo mal consola
E tranca espaço à perniciosa amência.

Rega carinho no embalar do berço;
Dedica tempo na emoção do terço
E faz amor ao coração do filho,

Que necessita do essencial carinho
Para encontrar o seu real caminho:
- a estrela mãe o venturoso trilho.
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TRIBUTO AO GUIA

Venha comigo conhecer a tenda
Onde penduro meu tesouro antigo.
E num colchão de palha guardo a renda
De um sonho de ouro que no livro abrigo.

Esta relíquia nunca esteve à venda
E o conteúdo tem a ver contigo.
Destes meus versos será feita a lenda
Do amor ternura sem nenhum castigo.

O meu convite não terá desfeita,
Tenho certeza que você o aceita
E não se inibe em descobrir meu sonho.

O sol se esconde... venha para ver
Na minha tenda a luz de um novo ser
Sobre os sonetos que a rezar componho.

Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. Curitiba: Juruá, 2015.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 395

 


Daniel Maurício (Poética) 4

 


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) A Bênção, Maestro Matti


A Cantina do Zitão, como vocês sabem, era um animado lugar onde os solteiros da recém-nascida Maringá se encontravam para saborear a comidinha gostosa de Dona Maria José. Desde janeiro de 1955, quando aqui cheguei, e por mais alguns anos, fui um dos clientes da casa. Ali, por afinidades várias, meus mais frequentes companheiros de mesa eram dois dos nossos mais ilustres pioneiros do ensino: José Hiran Sallé e Aniceto Matti. Do bom Hiran já lhes falei; hoje vou falar do bom Aniceto, o querido maestro Matti, do qual sentimos todos uma saudade enorme.

Italiano de Piacenza, nasceu no dia 9 de janeiro de 1920. Artista de alma e coração, frequentou desde criança um renomado conservatório, de onde saiu com os diplomas de Música e Literatura Poética e Dramática. Um dia alguém lhe disse: “Você tem talento, bambino. Vai longe na vida”.

Aniceto ficou com aquela ideia na cabeça. Mas se era para “ir longe na vida”, então teria de vir longe mesmo. Trabalhou durante alguns anos em escolas de música na Itália, juntou umas economias, atravessou os mares, desembarcou em Buenos Aires. Nos primeiros tempos, para sobreviver enquanto aguardava melhores oportunidades, tocava piano em restaurantes e casas de tango. Até que numa certa manhã de janeiro de 1953 recebeu carta de um amigo e conterrâneo convidando-o para vir ao Brasil conhecer uma cidade novinha chamada Maringá.

Veio, gostou, acreditou, ficou. Começou fazendo um acordo com a Rádio Cultura, onde havia um piano utilizado para animar programas de auditório. Ele tocaria nos programas; em troca a rádio lhe emprestaria o instrumento para ele dar aulas. Centenas de crianças e jovens aprenderam a tocar piano ali.

Com o seu valioso currículo, mais um grande talento e aquela sua simpatia contagiante, em pouco tempo Aniceto passou a trabalhar como professor de educação artística em vários colégios, ao mesmo tempo em que formava e regia diversos grupos corais e ainda conseguia tempo para tocar piano e acordeón nas orquestras do Marchini e do Penha em bailes, cerimônias de casamentos e em outras solenidades. Um homem de coração puro e belo, que jamais teve inimigos. Um gênio a serviço da comunidade. Ponto de partida da história da arte dentro da história desta cidade. Sua obra-prima: a música do Hino a Maringá, com letra de Ary de Lima.

Será eternamente lembrado pelo muitíssimo que fez – como professor, instrumentista, compositor, maestro; como rotariano responsável pela coordenação da Olimpíada de Matemática Giampero Monacci; como uma das pessoas mais gentis e simpáticas que esta cidade já conheceu. Mas sobretudo como um homem bom e do bem.

Aniceto Matti formou família aqui. Fez de cada maringaense um amigo e irmão. Foi para o céu aos 80 de idade, no dia 14 de dezembro do ano 2000. A bênção, Maestro!
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 20-8-2020

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa -2 -


ANTÔNIO FERREIRA
Lisboa, 1528 – 1569

Se erra minh'alma...


Se erra minh’alma, em contemplar-vos tanto,
e estes meus olhos tristes, em vos ver,
se erra meu amor grande, em não querer
crer que outra coisa há aí de mor espanto;

se erra meu espírito, em levantar seu canto
em vós, e em vosso nome só escrever,
se erra minha vida, em assi viver
por vós continuamente em dor, e pranto;

se erra minha esperança, em se enganar
já tantas vezes, e assi enganada
tornar-se a seus enganos conhecidos;

se erra meu bom desejo, em confiar
que algu’hora serão meus males cridos,
vós em meus erros só sereis culpada.
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ESTÊVÃO RODRIGUES DE CASTRO
Lisboa, 1559 – 1638, Florença/Itália

Ausente, pensativo, solitário


Ausente, pensativo, solitário,
como se vos tivera ali presente,
dou e tomo as razões ousadamente
firme em amor, em pensamentos vário.

Quando venho ante vós com temerário
fervor renovo n’alma juntamente
quantos cuidados tive estando ausente,
que tudo em tal aperto é necessário.

Uns aos outros se impedem na saída
e querem cometer e não se abalam,
e vou para falar e fico mudo.

Porém, meus olhos, minha cor perdida,
meu pasmo, meu silêncio, por mim falam,
e não dizendo nada, digo tudo.
****************************************

FERNÃO ÁLVARES DO ORIENTE
Goa, 1540 – 1600?, ?????

Armada de aspereza minha estrela


Armada de aspereza minha estrela
a nova dor me leva e me encaminha;
mas se uma glória vi perder-se asinha,
foi por quem a perdi, glória perdê-la.

Sucede nova dor, nova querela
à liberdade que gozado tinha:
não sei remédio dar à mágoa minha;
e quem lho pode dar não sabe dela.

Que alívio logo em meu tormento espero,
se a que mo censura na alma, não o sente?
Senão se o vê nos olhos com que o vejo.

Porém, ah, doce amor, eu antes quero
passar convosco a vida descontente,
que contente viver sem meu desejo.
****************************************

LUÍS DE CAMÕES
Lisboa, 1524 – 1580

Alma minha gentil que te partiste


Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no céu eternamente
e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
alguma coisa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,

roga a Deus que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.
****************************************

SÁ DE MIRANDA
Coimbra, 1481 – 1558, Amaraes

Quando eu, senhora...


Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho,
e vejo o que não vi nunca, nem cri
que houvesse cá, recolhe-se a alma em si
e vou tresvariando, como em sonho.

Isto passado, quando me disponho,
e me quero afirmar se foi assi,
pasmado e duvidoso do que vi,
m’espanto às vezes, outras m’avergonho.

Que, tornando ante vós, senhora, tal,
quando me era mister tant’outr’ajuda
de que me valerei se alma não val?

Esperando por ela que me acuda,
e não me acode, e está cuidando em al,
afronta o coração, a língua é muda.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 394

 


Arquivo Spina 13 (Ana Luzia Moura)

 


Stanislaw Ponte Preta (A beira-mar)

Por que será que tem gente que vive se metendo com o que os outros estão fazendo? Pode haver coisa mais ingênua do que um menininho brincando com areia, na beira da praia? Não pode, né? Pois estávamos nós deitados a dourar a pele para endoidar mulher, sob o sol de Copacabana, em decúbito ventral (não o sol, mas nós) a ler Maravilhas da Biologia, do coleguinha cientista Benedict Knox Ston, quando um camarada se meteu com uma criança que brincava com a areia.

Interrompemos a leitura para ouvir a conversa. O menininho já estava com um balde desses de matéria plástica cheio de areia, quando o sujeito intrometido chegou e perguntou o que é que o menininho ia fazer com aquela areia.

O menininho fungou, o que é muito natural, pois todo menininho que vai na praia funga, e explicou pro cara que ia jogar a areia num casal que estava numa barraca lá adiante. E apontou para a barraca.

Nós olhamos, assim como olhou o cara que perguntava ao menininho. Lá, na barraca distante, a gente só conseguia ver dois pares de pernas ao sol. O resto estava escondido pela sombra, por trás da barraca. Eram dois pares, dizíamos, um de pernas femininas, o que se notava pela graça da linha, e outro masculino, o que se notava pela abundante vegetação capilar, se nos permitem o termo.

— Eu vou jogar a areia naquele casal por causa de que eles estão se abraçando e se beijando muito — explicou o menininho, dando outra fungada.

O intrometido sorriu complacente e veio com lição de moral.

— Não faça isso, meu filho — disse ele (e depois viemos à saber que o menino era seu vizinho de apartamento). Passou a mão pela cabeça do garotinho e prosseguiu: — Deixe o casal em paz. Você ainda é pequeno e não entende dessas coisas, mas é muito feio ir jogar areia em cima dos outros.

O menininho olhou pro cara muito espantado e ainda insistiu:

— Deixa eu jogar neles.

O camarada fez menção de lhe tirar o balde da mão e foi mais incisivo:

— Não, senhor. Deixe o casal namorar em paz. Não vai jogar areia não.

O menininho então deixou que ele esvaziasse o balde e disse: — Tá certo. Eu só ia jogar areia neles por causa do senhor.

— Por minha causa? — estranhou o chato. — Mas que casal é aquele?

— O homem eu não sei — respondeu o menininho. — Mas a mulher é a sua.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Baú de Trovas XVII (para descontrair)


Perante a linda criatura,
cujo fascínio me inquieta,
a minha temperatura
sobe de forma indiscreta...
ALMEIDA CORRÊA
- - - - - -
Se as mulheres falam tanto,
o motivo é elementar:
quer no riso, quer no pranto,
têm preguiça de pensar!
ANTÔNIO TORTATO
- - - - - -
Esse leiteiro, coitado,
sendo gago — que ironia! —
diz seu nome gaguejado:
Anto-tônio Ma-Maria...
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - -

Tão grande amor se notou
entre o Sinfrônio e a Raquel,
que a cegonha os visitou
em plena lua-de-mel...
BENEDITO MACHADO HOMEM
- - - - - –
Disseste, altivo e casmurro:
— "Não sou burro!" Não duvido.
Como tu podes ser burro,
se há tanto burro sabido?
COLBERT RANGEL COELHO
- - - - - –
Tornou-se enfim deputado
o bom maestro de outrora,
E faz, com muito cuidado,
outros arranjos agora...
ILDEFONSO DE PAULA
- - - - - -
Se o decote tanto desce
e se a saia ganha altura,
qualquer dia, me parece,
vão se encontrar na cintura!
JORGE ROCHA
- - - - - -
Menina, toma cuidado
nesse namoro escondido,
pois talvez teu namorado
não pretenda ser marido!...
JADIR VILELA JÚNIOR
- - - - - -
A saia    curta,    menina,
não lhe fica muito bem,..
Assim como eu vejo tudo,
todos enxergam também!
JAIME RIBEIRO DA SILVA
- - - - - -
Cabeludos! Sinto, ao vê-los,
na patusca saliência,
que mostram muitos cabelos,
porém pouca inteligência...
JANE PIRES PALUMA
- - - - - -
Nas tuas tranças mimadas
de moça namoradeira,
como estavam humilhadas
as flores de laranjeira!
JOÃO RODRIGUES
- - - - - -
O cão que ladra — por isso
não morde, diz o rifão...
Todo mundo sabe disso,
disso, acaso, sabe o cão?
JOAQUIM CARVALHO
- - - - - -
Negas a mim tuas culpas,
mas uma coisa te aviso:
— não vais chegar com desculpas
à porta do Paraíso.
JOSÉ AMARAL
- - - - - -
Muita gente sempre houve
com sina de couve-flor:
pouco vale por ser couve,
vale menos por ser flor...
JOSÉ AUGUSTO RITTES
- - - - - -
No ciúme só se enleia
quem gostar de mulher bela;
quem casar com mulher feia
não terá ciúmes dela!
JOSÉ COELHO DE BABO
- - - - - -
Menina, é bom você note
como o sol está vermelho
por causa do seu decote
que desce até no joelho.
JOSÉ COUTINHO DE OLIVEIRA
- - - - - -
O Chico, simplório, asnático,
vai lendo as trovas de alguém.
E ao final exclama, estático:
— Como ele troveja bem!
LAURO SILVA
- - - - - -
Quando o amor é só desejo
e doida alucinação,
nesse caso, nem um beijo
resolve a situação!...
LÉA PINTO CORDEIRO
- - - - - -
Homem casado não logra
harmonia conjugal,
se tiver em casa a sogra
dando lições de moral...
MANOEL ABRANTES
- - - - - -
A janela de teu quarto
fica bem defronte à minha.
Tua sombra na vidraça
nunca vi passar sozinha...
MANOEL ROSA BARENCO
- - - - - -
Há coisas que não aguento,
difíceis de se entender:
tanta cabeça de vento,
com letreiro de saber!
MARIA DA COSTA LAGE
- - - - - -
Quem se gaba de valente,
neste verso bem repare:
— Nunca vi homem sem capa
que da chuva não dispare.
NEMAR GIL LIMEIRA
- - - - - -
Para esquecer-te, menina,
junto a ti eu me condeno.
É como na medicina:
— veneno mata veneno.
NEMÉCIO CALAZANS
- - - - - -
Isto acontece amiúde
na vida de muita gente:
bebendo muito "à saúde",
ficar em breve doente.,.
NENÊ CARVALHO
- - - - - -
Minha vizinha — que coisa! -
anda sempre prevenida:
tem língua, olhos, ouvidos
cuidando da minha vida.
OSMAR SILVA
- - - - - -
Perdão, senhora, se falo
das mulheres com ironia.
— Quem já caiu de cavalo,
cavalo algum elogia...
PAULO EMÍLIO PINTO
- - - - - -
Estando o pobre em jejum,
ante o despacho, sem mofa,
após dizer: "Salve Ogum!"
leva a galinha e a farofa...
WILSON MONTEMÓR

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Vinte) Invasão de privacidade


O QUE LEVA UMA PESSOA em sã consciência a gravar, na agenda de seu telefone celular, nomes estrambóticos do tipo:

Ala, Ala,
Catulé Doidão,
Sanfonado,
Antão, Antinho,
Boca desdentada,
Assanhadinha do vovô,,
Xaparral e
Bigode de cafuné?

Ou, pior:
Barata miúda,
Otorrino,
Chifrudo conformado,
Filé Fiado,
Godóia,
Cano amassado,
Ontário,
Phimbinha e
até um asqueroso Gogó irritante?

Quem colocaria uma gaiatice tipo:
Picadinho,
Pirlimpimpim,
Saca Rolha,
Baroneto,
Tetefa,
Zangão, etc, etc...?

Seria um disfarce artificioso, ou um código para manter em segredo a identidade de determinadas pessoas? Por que meu sobrinho Gabriel, um garoto de apenas quinze anos usava deste expediente?

Estaria ele metido em alguma coisa errada? Más companhias? Ladrões? Aqueles nomes estranhos no rol de seu celular, seriam de fornecedores de drogas? Meu Deus! Que fazer? Que atitude tomar? Será que meu irmão e minha cunhada tinham conhecimento? Antes de conversar sério com os três, resolvi tirar a limpo aquela patacoada. Quem sabe, os nomes grafados não fossem além de pura doidice dele ou, no pior dos mundos, piração da minha cabeça? Talvez um punhado de amiguinhos de escola, namoradinhas, sei lá. Alguma razão, certamente, haveria de fazer frente a tal disparate. Adolescentes, nessa fase da vida, costumam nutrir quedas platônicas por amores secretos, namoradinhas ocultas, amigos de condutas estranhas e incomuns. Eu mesmo, no grupo escolar, me apaixonei pela minha professora de português e o apelido dela, no meu caderno (naquele tempo não havia celular), era ‘Vírgula Intrusa’.

Pois bem! Ainda que tudo não passasse de coisas da imaginação dele, um simples guri, na glória da aborrescência, ou da minha mania de ver e de sentir perigo em qualquer detalhezinho fora do comum, eu, como tio, precisava ir a fundo na tal ‘parada’. Pelo amor de Deus: Cavalo Loiro, Hilário Hilariante, Lombriga mal nutrida, Kotó, Laminado, Bíceps e outros ‘vulgos’ assobrerjéticos, deixaria qualquer cristão menos desavisado com a pulga atrás da orelha. Espiei em volta. Gabriel entrara no banho. E quando ele se metia no chuveiro... Podia esquecer. Aproveitei e, como o telefone estava disponível, resolvi dar uma de detetive. Escolhi um epíteto ao acaso e completei a ligação. Atendeu uma moça de voz adocicada:

—  Oi, bom dia?

—  Bom dia.

—  Com quem falo?

—  O senhor ligou para qual número?

—  Esse ai, o seu.

—  Tá, mas deseja falar exatamente com quem?

—  Com o senhor Xumbrego Assanhado.

A jovem soltou uma gargalhada gostosa que estrondou dentro de meus ouvidos, como uma bomba:

— Não é senhor. É senhorita. Senhorita Xumbrega Assanhada. Você é o seu Alípio, pai do Gabriel?

“Menos ruim” —,  pensei com meus botões. — Deveria ser uma gatinha que meu sobrinho andava à cata:

—  Tudo bem, desculpe. Ela está?

—  Acabou de sair... Com quem falo?

—  Demora voltar?

—  Primeiro responda a minha pergunta: quem gostaria?

Mandei o primeiro nome que me veio à cabeça:

—  Catatau.

—  Estranho! Este número é do Gabriel. O senhor é o que do Gabi? Deixa de onda, seu Alípio. Perdeu, entrega o jogo.

—  Não tem jogo nenhum. O Gabriel me emprestou o telefone dele, mocinha.

— Ah, ta, legal, então, seu Catatau... A Xumbrega Assanhada chega por volta das cinco da tarde. É só com ela?

—  Sim. Não me disse com quem tenho o prazer de conversar.

— Com a Capetinha da Freguesia do Ó. — A Xumbrega Assanhada foi se encontrar com o Pato Malocado. Ei, por acaso o senhor não é o tal do Pato Malocado e está mentindo pra mim e se passando pelo Catatau? Continuo achando que o senhor é o seu Alípio, pai do Gabriel.

— Escuta, senhorita... Como é mesmo? — Ah, Capetinha da Freguesia do Ó. Eu sou, de fato, o Catatau.

—  ‘Podis crer, mano’. Seguinte —, a Xumbrega Assanhada me pediu para lhe passar um recado —, caso ligasse.

—  Pra mim? Catatau? Não era para o Pato Malocado?

—  Agora fiquei na dúvida.

—  Não importa. Qual o recado?

—  Para o senhor se encontrar com ela no mesmo lugar de sempre. Sabe onde fica o mesmo lugar de sempre?

Desliguei imediatamente. Continuava desconfiado, fiquei mais ainda, com o pé nas costas, apesar daquele pequeno diálogo insólito. Imaginava algo mais sério. Ponderei que, talvez, houvesse uma coincidência. Parti para um segundo nome da lista, ao acaso. Se tudo corresse como esperava, largava mão, de vez. Desta feita, atendeu um rapaz:

— Boa tarde, amigo. Gostaria de falar com o Jumento desengonçado. Ele se encontra?

Ao ouvir minha voz o sujeito partiu pra cima, com tudo:

—  Pô, cara, pensei que não fosse ligar. Por que não veio ao encontro? Resolveu me tirar?

Fiquei de sobreaviso. Melhor entrar no papo da criatura:

—  Houve um problema, Jumento Desengonçado...

—  Não me venha com desculpas esfarrapadas. Deveria ter me avisado.

Na mosca. Eu sabia. Tinha certeza. Agora, iria até o fim:

— Boca de Pernilongo e Pepino Grosso ficaram pê da vida contigo, mano. Deixaram de atender um cliente dos bons por sua causa. Que falta de ‘responsa’, meu!

— Olha, vamos esclarecer uma coisa. Você sabe com quem está falando?

—  Claro que sei. Sua voz é inconfundível.

—  E quem sou eu?

—  Deixa de onda, Broxado. Não estou pra brincadeira. Pensa que me engana? Conta outra!

Entrei de sola, com tudo, na pilha do desconhecido. Queria ver até onde a loucura do meu sobrinho Gabriel daria pé. Se eu fora identificado como Broxado, que mal havia?

— Deixa de brincadeira, Broxado —, continuou a figura —, Vamos com as ‘palhaçada’ pra outra hora. E pode tratar de mandar a grana dos meninos. Não me faça sair daqui para ir até sua casa, ou fazer a galera esperar por você na porta da escola, para cobrar a ‘bufunfa’ pessoalmente. Sua namoradinha não iria gostar. Está me ouvindo, Broxado? Broxado, fale comigo. Perdeu a voz? Bro...

Desliguei na cara do sujeito. As minhas dúvidas não se constituíam infundadas. Realmente alguma coisa de muito errada, de muito grave, existia por trás daqueles nomes maquiados na lista do celular do meu sobrinho. Então eu era o Broxado. Por que Broxado? O que eu, ou melhor, o que meu sobrinho marcara com Boca de Pernilongo e Pepino Grosso? Que grana eu (suposto Broxado) teria que arranjar? Que galera estaria à espera, na porta da escola de Gabriel? Um quebra cabeças que começava a ficar perigosamente interessante. Saí em campo, para a terceira ligação:

—  Quem é?

— Como quem é? Até que enfim, Broxado, seu filho da mãe. Por que demorou a ligar? Onde está? Por que não veio ao encontro?

Precisava fazer o jogo. Juntar mais peças:

—  Que encontro?

—  Broxado, vou te comer no tapa. Que encontro? Esqueceu que eu, Onça ranzinza, tive que vir para cá, às pressas, tapar seu buraco? Jucundo está uma arara. Vai te comer o fígado, meu chapa, quando você pintar na reta.

—  Que buraco, meu. Quem é Jucundo?

Justo nesta hora, meu sobrinho saiu do banheiro enrolado numa toalha e entrou na sala como um furacão. Mal tive tempo de dispensar’ o aparelho atirando no sofá, onde o achara. Despistei, como pude, e passei por ele em direção à cozinha.

—  Me acompanha num café?

—  Não tio, 'brigadu'. Valeu!


Fonte:

Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.  Texto enviado pelo autor.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 393

 


Alberto Figueiredo Pimentel (O Príncipe Enforcado)

 

País grande, importante, populoso e rico, era o que governava Edmundo XXII, rei poderosíssimo. Na capital do reino existia uma velha, tão velha, que já contava mais de duzentos anos.

Essa velha, a tia Joana, como todos a chamavam, vivia na floresta numa casa arruinada, tendo por única companhia um gato. Dizia-se que ela era adivinha ou bruxa, e era de acreditar porque tudo quanto dizia saía certo. Nunca vinha à cidade, salvo sendo chamada por alguém que quisesse saber do seu futuro.

O rei Edmundo tinha um filho, único, Roberto, herdeiro e sucessor no governo do país. Quando sua alteza completou quinze anos, a rainha, sua mãe, preocupada com o seu futuro, querendo a todo o custo saber o que lhe reservava o destino, mandou convidar a velha feiticeira para vir ao palácio e aí ler a buena dicha* do príncipe.

A velha, a princípio não quis dizer o futuro que estava reservado ao príncipe, mas a rainha tanto lhe pediu que ela profetizou haver o príncipe Roberto de morrer enforcado.

A rainha desde esse dia, viveu imersa em profundíssima tristeza.

Roberto, notando que sua querida mãe vivia sempre no quarto, chorando inconsolável, perguntou-lhe o motivo porque andava tão desesperado. A rainha nada lhe quis dizer pretextando moléstia. Mas o jovem príncipe tanto insistiu, que a pobre mãe não teve remédio senão revelar a causa de sua tristeza.

O moço não ficou com receio do destino que lhe estava reservado. Disse que não se incomodava com o gênero de morte que teria, porquanto tinha de morrer um dia e, que, nesse caso, tanto se lhe dava ser desta ou daquela maneira.

Pediu então, já que lhe estava destinada aquela sorte, que os pais lhe dessem licença para ir correr mundo, a fim de morrer em país estranho, longe dos seus, e não afligir os pais com o espetáculo de sua morte horrorosa.

O rei, só a muito custo lhe concedeu a licença pedida.

Roberto aprontou-se para a viagem. À despedida a rainha deu-lhe dinheiro que bastasse para se sustentar durante o resto de sua vida.
***

Começou o príncipe a correr mundo; e depois de haver percorrido muitas cidades e reinos foi ter a um pequeno povoado onde existia uma capelinha erguida no alto de um morro, dedicada a S. Miguel.

O povo desse lugarejo era muito pobre, de modo que não só a igrejinha como S. Miguel e a figura do diabo e as demais alfaias do templo, tudo, já se achava em péssimo estado.

O príncipe Roberto, apiedando-se da miséria em que estavam a capela e as imagens, mandou consertar tudo à sua custa.

Resolveu, então, demorar-se aí por algum tempo à frente dos operários, administrando as obras.

Concluídas que foram, o pintor, disse que ficara um resto de tinta, pois não pintara o Anjo Mau, por lhe parecer que não merecia a pena, com que o príncipe não concordou, ordenando que pintasse também a figura do diabo.

Quando tudo ficou pronto e nada mais faltou, retirou-se da povoação, levando consigo a bênção do povo, que só assim vira a sua capelinha restaurada.

Roberto continuou a viagem, a correr mundo, indo ter à casa de uma velhinha, na beira de uma estrada solitária, a quem pediu pousada por uma noite. A velha, que era uma bruxa muito má, cedeu-lhe a pousada pedida e mostrou-lhe o quarto onde ele devia passar a noite.

O moço, entrando no quarto que lhe fora destinado, começou a contar o dinheiro que tinha no bolso. A feiticeira, que estava à espreita, pelo buraco da fechadura, ficou admirada de ver tanto dinheiro e correu para a cidade, dizendo que em sua casa estava um estrangeiro a lhe roubar toda fortuna.

A polícia acompanhada de soldados bem armados, dirigiu-se para lá e deu voz de prisão ao príncipe, conduzindo-o para a cadeia amarrado pelos pulsos, com duas cordas grossas.

Ficou Roberto na cadeia à espera do resultado do processo, quando um dia soube que fora condenado à forca por gatuno. Quis se defender, mas nada conseguiu.

Como era aquela a sua sina, depressa se resignou.
***

Chegando o dia de ser executada a sentença, seguiu o príncipe Roberto para a praça em direção à forca, no meio de uma escolta de soldados de armas embaladas. São Miguel que estava na capelinha que o príncipe mandara consertar, virou-se para o diabo e disse:

– Então, agora não estás mais bonito?

– Estou sim. - respondeu ele.

– Sabes quem te mandou consertar?

– Sei. Foi aquele honrado príncipe que há tempos passou por aqui.

– Pois fica sabendo que este bom príncipe a esta hora está a caminho da forca, a que foi condenado injustamente. Está todo amarrado, no meio de uma escolta e daqui a pouco estará morto. Vai defendê-lo.

Quando o diabo ouviu o que S. Miguel lhe contou, montou num cavalo preto de crinas de fogo, veloz como um raio e voou a toda a brida para a casa da velha que dera queixa contra Roberto.

Chegando aí conduziu a bruxa, que confessou o seu crime, dizendo que o príncipe era inocente, e que ela tinha feito tudo aquilo com o fim de se apoderar da riqueza do estrangeiro que tinha pedido pousada.

O rei, sabendo do ocorrido, por intermédio do diabo, imediatamente lavrou ordem de soltura para o príncipe.

Entregou-a ao diabo, que, rápido, como o pensamento, foi à praça onde estava levantada forca, e entregou a absolvição do príncipe ao carrasco.

Já não era sem tempo. Mais dois segundos demorasse, estaria o príncipe morto. Roberto foi levado à presença do rei que perguntou quem era e de onde vinha.

O moço contou-lhe que era filho do rei de um país muito distante dali; que saíra do reino porque sabia que a sua sina era morrer enforcado, e não queria que a sua morte fosse no domínio de seu pai.

O rei ficou penalizado com a história do jovem. Obrigou a velha a restituir o dinheiro que roubara ao moço e mandou prendê-la.

Assim que se viu livre e embolsado de seu dinheiro, Roberto continuou a viagem.

No meio do caminho encontrou-se com um fidalgo, montado num cavalo muito bonito e ricamente arreado.

O cavaleiro perguntou-lhe para onde ia, ao que respondeu o príncipe que estava correndo terras e não sabia qual o seu destino, nem podia dizer onde ia pernoitar. E pelo caminho foram andando em direção à capelinha que o príncipe havia anos mandara consertar.

Durante a viagem o príncipe contou ao cavaleiro a sua história, como tinha se tinha livrado da forca, mas que tinha a certeza de morrer enforcado porque era aquela a sua sina.

O fidalgo, então lhe disse:

– E não sabeis quem vos salvou quase na hora da morte?

– Não! - disse o príncipe.

– Pois sabei que fui eu. Eu sou a figura daquele diabo que o pintor não quis pintar por não valer a pena, e que ordenaste consertar e pintar. Sabendo do embaraço em que vos acháveis, vim ao vosso encontro. Podeis voltar para vossa terra. A vossa sina está desmanchada, em vosso lugar foi enforcada aquela bruxa que era feiticeira. O encanto está quebrado.

Dizendo isso o cavaleiro sumiu-se e foi para sua morada na capelinha.

O príncipe ao passar pela capelinha, entrou e começou a rezar. Depois voltou para a sua cidade, onde encontrou seus pais que o receberam com grande contentamento.

Já o rei Edmundo sabia que a sina do seu filho estava desmanchada, porque Joana fora ao palácio contar a história do príncipe Roberto.
_________________________________
* Buena Dicha: Sorte ou azar através da leitura das cartas

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

Thalma Tavares (Poemas Avulsos) 4


BUSCANDO OS CÉUS

Minha alma anseia pelos versos puros
que convidam à paz e à oração,
que deitam sol nos paramos escuros
mudando em luz a própria escuridão...

Versos que sobem dos prosaicos muros
para colher estrelas na amplidão,
que comparados aos meus versos duros
são vozes de anjo em celestial canção.

Minha alma busca o Céu, mas presa à Terra,
faz rimas dos contrastes que ela encerra
e olhar para o infinito já não ousa.

Mas sempre que a envolve a nostalgia,
ela percorre os céus na companhia
dos versos siderais de Cruz e Souza...
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CONSTATAÇÃO

Cobra-me o tempo os juros do descaso
ao qual eu submeti minha estrutura.
Não cogitei da idade nem do prazo
que a resistência óssea perdura.

Pulei, dancei, corri sem fazer caso
de que não sou de ferro, mas criatura
sensível ao desgaste da ossatura
que não deve deixar-se ao mero acaso.

Meu espírito é moço e ainda me pede
tarefas que hoje o corpo mal concede,
e que nem sempre são realizadas.

Ainda tenho, bem sei talento e garra,
mas esse meu orgulho agora esbarra
na velhice das pernas entrevadas.
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ROGATIVA

Senhor, que olhas os antros, as vielas,
os homens sem trabalho, o lar sem pão,
que a minha fé não morra como as velas
que ao mais leve soprar se apagarão.

Ante a ganância atroz, cujas mazelas
põe-nos em sobressalto o coração,
eu venho Te pedir pelas favelas
que ora clamam por paz e proteção.

O pobre, da miséria anda cansado
e pensa, em sofrimentos mergulhado,
que Tu, ó meu Senhor, lhe deste as costas.

E é tanta, neste mundo, a violência
que não querendo crer na Tua ausência
eu ando pela vida de mãos postas.
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SINE CERA

Conseguiste, afinal, a liberdade.
Serás agora um pássaro liberto.
Já podes esbanjar sinceridade
e povoar de sonhos teu deserto.

Sem mascarar da vida a realidade,
sem o pudor de palmilhar o incerto,
sem dar satisfações à sociedade
podes andar sem véus, a céu aberto.

Dirás hoje o que pensas, tão somente,
e assombrarás a tua pobre gente,
cativa da ilusão, do conformismo.

És livre, meu irmão, mas te prepara
que a escrava multidão, de mente avara,
jamais perdoará teu heroísmo.

Fonte:
Thalma Tavares. Alguns sonetos e sonetilhos. São Simão/SP, 2014.
Apostila enviada pelo autor.

Carla Rejane Silva (Dói?… E como dói!...)


Hoje, olhando para dentro de mim, numa introspecção  silenciosa e repentina,  escavada e profunda, percebi o meu ‘eu’ interior sangrando alquebrado. Desventurosamente triste e feiamente sórdido e sobretudo, enfraquecido, me senti ao rés do chão. Diante deste quadro desolador, parei, pensei, analisei e, por fim, não me restou outra alternativa, senão chorar... Me debulhei, então, em gotas amargas de uma plangência sentida. Muitos queixumes botei para fora de uma só vez. Não porque meu todo estava partido, estilhaçado, mas por me sentir uma tola, uma idiota, uma Maria Ninguém. Cada vez que me lembro de como me entreguei a um sentimento sincero e puro, generoso e sem as contradições da malícia, mais e mais me sinto totalmente culpada de ter sido, além de desinteligente e ingênua, tão necessariamente ignorante e fraca, e para variar, com um enorme desejo... De arranjar frustrações mais complexas para aperrear a minha existência...  


Meu Deus, como fui tola em pensar que havia reciprocidade de sua parte. Não havia nada, agora sei. Como uma pessoa como eu poderia querer alguém como você, ou disputar, com um cara de concepção mais jovem -, se em verdade não tenho mais ao alcance das mãos essa mocidade elegante que finjo possuir? Como, meu Pai, me questiono, perplexa -, como, se meu corpo  já não é mais o mesmo -, tampouco a minha beleza externa não brilha com a intensidade de alguns anos atrás?  Apenas a formosura meio desgastada do meu céu interior restou intacta, o que, para muitos, tal item não tem nenhum valor legal.  Se as rugas e as dobras insistem, em cada dia, me mostrarem de forma  contundente que o tempo não para nunca, que ele segue sempre... Sempre... Qual a porta da realidade careço abrir?

No mesmo interregno, quantas mentiras ditas, quantas decepções se formaram... E eu que só queria amar e ser amada. Ser correspondida, reconhecida, identificada, proclamada, acolhida.  Você apenas me usou, e não só isto, se sentiu no direito de brincar comigo. Penso, com meus botões, como deve ter dado boas e sonoras gargalhadas desse meu amor que nutro, como uma doença incurável por você! Ah... Como dói, no fundo do mais profundo do ‘dentro de mim’, como dói sentir na carne, na pele, a dor do amor que foi pisoteado, esmagado e triturado sem piedade. Hoje, sei, para você, fui apenas mais um troféu, uma relíquia que você ganhou e da qual se cansou e jogou em um canto qualquer.

Dói e como dói, todavia, essa dor vai passar. Tem que passar. E vai passar. Sei que vai demorar um pouco, talvez anos, porém, nada melhor que o tempo inexorável para curar um mal de amor. Que a minha desgraça seja a sua felicidade. Que você nunca venha a sofrer dessa fraqueza que me causou. Sempre fui sincera e fiel, e nem todo o mal que me fez, acredite, apesar dos pesares, mudará meu jeito de ser. Serei sempre a mesma, como muitas  foram por ai, que ainda acreditam no amor, na sinceridade, na confiança e na verdade, sobretudo, na verdade.

Porque eu sei que, em algum lugar, tem alguém escondido, oculto em algum cantinho que  quem sabe, hoje, amanhã, ou depois, quererá juntar todos os pedaços do meu coração ferido. E  esse alguém  fará minha vida sorrir novamente. A beleza de uma pessoa, o corpo, e as rugas, os contratempos do cotidiano, são coisas naturais da vida. Um dia tudo passa, tudo acaba, tudo finda, mas o coração, o coração... Esse, meu caro, esse  nunca envelhece.

Fonte:
Texto enviado por Aparecido Raimundo de Souza

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 392

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) 9

Nas noitinhas frias de outono, estrelas cintilando, corujas piando, um novo ingrediente chega para aquecer os ambientes. As chaminés dos fogões a lenha mandam para os ares a fumacinha em tempos de geadas nas plagas do sul.

O outono, como as outras estações, tem suas características. Nesta época a culinária regional tem o pinhão como iguaria sazonal. Semente de várias espécies de pinaceas e araucárias, o pinhão é apreciado em todo sul do país, sendo alimento rico em carboidratos e calorias. Nas casas da cidade ou nos ranchos com fogo de chão no interior, os odores caseiros destes tempos parecem ter pinhão - grimpas de pinheiro, achas para a sapecada, brasas estalando, a fumacinha, o pinhão... Ingredientes das calendas de então. VERDELÍCIAS DO OUTONO !

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Fábulas (A Raposa Renard)


O gato Tibert foi enviado pelo Rei Leão para avisar a raposa Renard que ela deveria comparecer ao tribunal dos animais para ser julgada.

De início, o gato ficou meio indeciso, pois não sabia qual seria a reação da raposa, mas foi cumprir a ordem enviada pelo Leão. Chegou ao castelo dela e disse-lhe:

- Você deve me acompanhar.

- Claro, o acompanharei, mas esta noite você fica em minha casa e amanhã, logo cedo, partiremos.

A raposa logo preparou a mesa para comer, mas só tinha mel para oferecer ao gato.

- Não gosto muito de mel - disse o gato - você não teria um rato?

- É verdade - disse a raposa - vamos até o celeiro e lá você encontrará quantos ratos quiser.

Saíram e foram ao celeiro.

- Entre, senhor gato, e divirta-se.

O dono do celeiro havia colocado uma armadilha e assim que o gato entrou, caiu na armadilha, que era uma ratoeira.

O dono do celeiro era um padre e imaginando que fosse a raposa começou a bater-lhe com um pau. O gato, então, cravou-lhe as unhas nas pernas, conseguiu destruir a corda e fugir. A raposa começou a rir.

Renard finalmente foi conduzida ao julgamento. Apareceram contra ela tantos crimes e várias testemunhas que acabou sendo condenada à morte.

Quando estava para ser executada, pediu licença para fazer uma confissão de todas as suas culpas, das quais estava arrependida, e, no discurso, suas palavras comoveram o rei Leão.

- Senhor rei - disse a raposa - em Flandres há um bosque enorme e lá, bem próximo a um rio, eu tenho um grande tesouro escondido com dinheiro e joias. Sinto-me como se fosse obrigada a doa-lo a Vossa Majestade, pois dessa maneira, com certeza, o senhor sempre há de se lembrar desta fiel súdita.

Os animais começaram a ficar preocupados, pois além de o rei Leão perdoar a raposa, deu-lhe um título de nobreza.

- A partir de hoje a raposa Renard é uma das minhas funcionárias oficiais e deverá ser respeitada - anunciou o rei.

A raposa agradeceu ao Leão e pediu licença para fazer uma peregrinação a Roma. Seguiu viagem e levou, embora contrariados, a lebre e o carneiro como seus servos.

A comitiva não tardou a chegar à casa de Renard que, em seguida, pediu que o carneiro Bellin esperasse ao lado de fora e a lebre entrasse para assistir ao encontro dela com a família. Assim que a lebre entrou, foi morta e devorada; a raposa saiu e deu um saco ao carneiro para que ele levasse ao rei.

- Onde está a lebre? - perguntou Bellin.

- Ah! Ela ficou conversando com a minha tia, mas pediu para você que fosse andando, pois não tardará em alcançá-lo.

O carneiro seguiu viagem e entregou o saco ao rei e disse-lhe:

- Senhor aqui está um presente da raposa Renard.

- Abra o embrulho! - o rei ordenou ao carneiro.

E qual foi a surpresa do rei ao ver no pacote a cabeça da lebre.

No dia seguinte, o coelho Laprel chegou chorando e dando gritos de dor:

- Oh! Meu rei, livre-nos dos ataques da raposa! Passei horas diante do seu castelo, depois ela veio falar comigo e eu a cumprimentei amavelmente, em vez de sair correndo; mas, assim que ela conseguiu se aproximar, de minha pessoa, me arranhou e quase me matou.

Em seguida entrou a gralha macho chamada Corbant, muito agitada, contando sua história:

- Oh! Senhor, ouça-me. Estava esta manhã no campo, quando vi Renard escondida de costas, aparentemente estava morta. Minha mulher foi até ela e meteu a cabeça dentro da boca da raposa para ver se ela respirava, quando a malvada deu-lhe uma dentada e cortou-lhe a cabeça. tentou investir contra minha pessoa, mas eu consegui voar, porém presenciei a morte de minha companheira - lamentou Corbant.

O rei enfureceu-se e mandou novamente chamar a raposa para um novo julgamento e de novo ela foi condenada à morte, mas conseguiu escapar, contando à sua majestade, o Leão, novamente sobre o tesouro que gostaria de doar-lhe, antes de morrer.

Depois de o rei ter perdoado Renard pela segunda vez, apareceu o lobo Insegrim, acusando-a de todas as espécies de crimes, e o rei decidiu que os dois tivessem um duelo para decidir qual deles tinha razão.

A raposa logo percebeu que para vencer aquele inimigo era necessário astúcia e lembrou-se de sua amiga a esposa do macaco, que lhe deu a sugestão de raspar o corpo todo e untá-lo com azeite. E Renard assim o fez.

A luta começou com a presença do rei e cada vez que o lobo queria agarrá-la, não conseguia, pois esta escapava-lhe das garras. Então, a raposa, com a cauda, batia fortemente no inimigo o mais que podia e atirava-lhe poeira nos olhos. O pobre lobo quase ficou cego. Renard tentou o quanto pôde, por fim deu-lhe uma patada que foi fatal e o lobo caiu. A raposa deu uma volta triunfante na arena.

Então, o rei perdoou a raposa e nomeou-a Ministra do Reino, ordenando que todos os seus súditos lhe prestassem as maiores homenagens.

Moral da Estória:
Ah! Infeliz rei que acreditou na astúcia da raposa.

Fonte:
Universo das Fábulas

Rubens Luiz Sartori (2 Inquéritos em Versos)



TUBAÍNA E QUENTÃO

Autos de Inquérito nº 285/94 - 1ª Vara Criminal

Meritíssima Julgadora:

Contém neste relatório,
a notícia furtadora
de garrafas de bebida,
cujo valor é irrisório
e não merece guarida.

O pouco valor constatado
nem de longe o incriminou,
vez que o indiciado é enteado
da pessoa que o denunciou.

Fala-se num botijão de gás
que também fora furtado,
mas nada tinha o rapaz
e nada com ele encontrado.

Dois quentões, duas tubaínas,
não permitem acusar,
pois são bebidas baratas
de consumo popular.

Não há como denunciar
e movimentar esse poder,
por míseros cinco reais
não vale a pena escrever.

O fato de ter sido preso,
num flagrante desrespeito,
demonstrou muito desprezo
e já humilhou o sujeito.

A polícia, infelizmente,
tomou tudo por escrito,
fez subir aqui pra gente
esse dossiê esquisito.

O certo pra esses casos,
num juizado arbitrário,
seria uma advertência na hora,
num julgamento sumário.

O que nos reserva a vida:
vinte anos de função,
ver um sujeito indiciado,
por tubaína e quentão.

Por isso eu peço à senhora,
me entende e evite a demora,
processar sem fundamento.
Compreenda que foi desforra,
do padrasto com tormento,
e como não há justa causa,
remeta ao arquivamento.
****************************************

TIRAIADA

Autos de Inquérito nº 225/96 - 1ª Vara Criminal

Os fatos:
O indiciado dirigiu-se na tarde de 18 de outubro do corrente ano (1995) até a propriedade do deputado Nelson Turéck, às margens da Usina Mourão (local de acesso público - área de lazer e habitada), nesta comarca, em visível estado de embriaguez, disparando para o alto dois tiros de espingarda e proferindo palavras de baixo calão contra o deputado, de quem é desafeto por razões políticas.


MM. Juiz:

O fato foi dia dezoito
de outubro, mês de eleição;
numa tarde bem brejeira,
descansar era a intenção.

Pescava o nobre deputado,
em seu barco, com os amigos,
no lago da Usina Mourão,
tranquilos e sem alaridos.

Eis que chega o desafeto,
seu amigo companheiro,
já bem alto do boteco,
gritando e arruaceiro.

Parando sua caminhonete,
o denunciado bradou:
"... venha aqui seu desgraçado...",
e dois tiros disparou.

Como disse Nelson Turéck,
foi pra cima a tiraiada,
e ele feito moleque
ficou torcendo por mais nada.

Tão logo que disparou,
o denunciado fugiu;
bem borracho ele voltou
pro lugar onde saiu.

Tomadas as providências,
o inquérito se iniciou,
mas o acusado, prudente,
a tentativa negou.

Aliás, há de se registrar
um inquérito bem montado,
com fotos e bom relatório,
pois a vítima é deputado.

Na tentativa de morte,
não posso aqui acusar,
pois atirar para o alto
não pode ninguém matar.

Portanto, a coisa é ladina,
mas nada de comoção;
o procedimento de rotina
é o tipo: contravenção.

Contravenção de disparo,
em habitado lugar,
no art. 28, equiparo
o ato de detonar.

Então o que se há de fazer,
com os tiros do vagal?
Se não este remeter
ao Juizado Especial!

A Lei é a 9.099,
que surgiu para abreviar
os casos de pouca monta
pra rapidinho julgar.

Assim descrito, Excelência,
só vejo um itinerário,
seguir este à ciência
ao Juizado sumário.

Fonte:
Blog de Roberta Carrilho

Lima Barreto (Clô)

 


A Alexandre Valentim Magalhães

Devia ser já a terceira pessoa que lhe sentava à mesa. Não lhe era agradável aquela sociedade com desconhecidos; mas que fazer naquela segunda-feira de Carnaval, quando as confeitarias têm todas as mesas ocupadas e as cerimônias dos outros dias desfazem-se, dissolvem-se?

Se as duas primeiras pessoas eram desajeitados sujeitos sem atrativos, o terceiro conviva resgatava todo o desgosto causado pelos outros. Uma mulher formosa e bem tratada é sempre bom ter-se à vista, embora sendo desconhecida, ou, talvez, por isso mesmo...

Estava ali o velho Maximiliano esquecido, só moendo cismas, bebendo cerveja, obediente ao seu velho hábito. Se fosse um dia comum, estaria cercado de amigos; mas, os homens populares, como ele, nunca o são nas festas populares. São populares a seu jeito, para os frequentadores das ruas célebres, cafés e confeitarias, nos dias comuns; mas nunca para a multidão que desce dos arrabaldes, dos subúrbios, das províncias vizinhas, abafa aqueles e como que os afugenta. Contudo não se sentia deslocado...

A quinta garrafa já se esvaziara e a sala continuava a encher-se e a esvaziar-se, a esvaziar-se e a encher-se. Lá fora, o falsete dos mascarados em trote, as longas cantilenas dos cordões, os risos e as músicas lascivas enchiam a rua de sons e ruídos desencontrados e, dela, vinha à sala uma satisfação de viver, um frêmito de vida e de luxúria que convidava o velho professor a ficar durante mais tempo bebendo, afastando o momento de entrar em casa. E esse frêmito de vida e luxúria que faz estremecer a cidade nos três dias de sua festa clássica, naquele momento, diminuía-lhe muito as grandes mágoas de sempre e, sobretudo, aquela teimosia e pequenina de hoje. Ela o pusera assim macambúzio e isolado, embora mergulhado no turbilhão de riso, de alegria, de rumor, de embriaguez e luxúria dos outros, em segunda-feira gorda.

O "jacaré" não dera e muito menos a centena. Esse capricho da sorte tirava-lhe a esperança de um conto e pouco — doce esperança que se esvaía amarguradaamente naquele crepúsculo de galhofa e prazer. E que trabalho não tivera ele, doutor Maximiliano, para fazê-la brotar no seu peito, logo nas primeiras horas do dia! Que chusmas de interpretações, de palpites, de exames cabalísticos! Ele bem parecia um áugure romano que vem dizer ao cônsul se deve ou não oferecer batalha...

Logo que ela lhe assomou aos olhos, como não lhe pareceu certo aquele navegar precavido dentro do nevoento mar do Mistério, marcando rumo para aquele ponto — o "jacaré" — onde encontraria sossego, abrigo, durante alguns dias!

E agora, passado o nevoeiro, onde estava?... Estava ainda em mar alto, já sem provisões quase, e com débeis energias para levar o barco a salvamento... Como havia de comprar bisnagas, confetes, serpentinas, alugar automóvel? E — o que era mais grave — como havia de pagar o vestido de que a filha andava precisada, para se mostrar sábado próximo, na rua do Ouvidor, em toda a plenitude de sua beleza, feita (e ele não sabia como) da rija camadura de Itália e de uma forte e exótica exalação sexual... Como havia de dar-lhe o vestido?

Com aquele seu olhar calmo em que não havia mais nem espanto, nem reprovação, nem esperança, o velho professor olhou ainda a sala tão cheia, por aquelas horas, tão povoada e animada de mocidade, de talento e de beleza. Ele viu alguns poetas conhecidos, quis chamá-los, mas, pensando melhor, resolveu continuar só.

O velho doutor Maximiliano não cansou de observar, um por um, aqueles homens e aquelas mulheres, homens e mulheres cheios de vícios e aleijões morais; e ficou um instante a pensar se a nossa vida total, geral, seria possível sem os vícios que a estimulavam, embora a degradem também.

Por esse tempo, então, notou ele a curiosidade e a inveja com que um grupo, de modestas meninas dos arrabaldes, examinava a toilette e os ademanes das mundanas presentes. Na sua mesa, atraindo-lhes os olhares, lá estava aquela formosa e famosa Eponina, a mais linda mulher pública da cidade, produto combinado das imigrações italiana e espanhola, extraordinariamente estúpida, mas com um olhar de abismo, cheio de atrações, de promessas e de volúpia.

E o velho lente olhava tudo aquilo pausadamente, com a sua indulgência de infeliz, quando lhe veio o pensar na casa, naquele seu lar, onde o luxo era uma agrura, uma dor, amaciada pela música, pelo canto, pelo riso e pelo álcool.

Pensou, então, em sua filha, Clôdia — a Clô, em família — em cujo temperamento e feitio de espírito havia estofo de uma grande hetaira. Lembrou-se com casta admiração de sua carne veludosa e palpitante, do seu amor às danças lúbricas, do seu culto á toilette e ao perfume, do seu fraco senso moral, do seu gosto pelos licores fortes; e, de repente e por instantes, ele a viu coroada de hera, cobrindo mal a sua magnifica nudez, com uma pele mosqueada, o ramo de tirso erguido, dançando, religiosamente bêbeda, cheia de fúria sagrada de hacante: "Evoé! Baco!"

E essa visão antiga lhe passou pelos olhos, quando a Eponina ergueu-se da mesa, tilintando as pulseiras e berloques caros, chamando muito a atenção de Mme. Rego da Silva que, em companhia do marido e da sua extremosa amiga Dulce, amante de ambos, no dizer da cidade, tomavam sorvetes, numa mesa ao longe. O doutor Maximiliano, ao ver aquelas jóias e aquele vestido, voltou a lembrar-se de que o "jacaré" não dera; e refletiu, talvez com profundeza, mas certo com muita amargura, sobre a má organização da nossa sociedade. Mas não foi adiante e procurou decifrar o problema da sua multiplicação em Clô, tão maravilhosa e tão rara. Como é que ele tinha posto no mundo um exemplar de mulher assaz vicioso e delicado como era a filha? De que misteriosa célula sua saíra aquela floração exuberante de fêmea humana? Vinha dele ou da mulher? De ambos? Ou de sua mulher só, daquela sua carne apaixonada e sedenta que trepidava quando lhe recebia as lições de piano, na casa dos pais?

Não pôde, porém, resolver o caso. Aproximava-se o doutor André, com o seu rosto de ídolo peruano, duro, sem mobilidade alguma na fisionomia, acobreada, onde o ouro do aro do pince-nez reluzia fortemente e iluminava a barba cerdosa. Era um homem forte, de largos ombros, musculoso, tórax saliente, saltando; e, se bem tivesse as pernas arqueadas, era assim mesmo um belo exemplar da raça humana.

Lamentava-se que ele fosse um bacharel vulgar e um deputado obscuro. A sua falta de agilidade intelectual, de maleabilidade, de ductílidade, a sua fraca capacidade de abstração e débil poder de associar ideias não impediam fosse ele deputado e bacharel. Ele seria rei, estaria no seu quadro natural, não na câmara, mas remando em ubás ou igaras nos nossos grandes rios ou distendendo aqueles fortes arcos de iris que despejam flechas ervadas com curare.

Era o seu último amigo, entretanto o mais constante comensal de sua mesa luculesca. Deputado, como já ficou dito, e rico, representava, com muita galhardia e liberalidade, uma feitoria mansa do Norte, nas salas burguesas; e, apesar de casado, a filha do antigo professor, a lasciva Clô, esperava casar-se com ele, pela religião do Sol, um novo culto recentemente fundado por um agrimensor ilustrado e sem emprego.

O velho Maximiliano nada de definitivo pensava sobre tais projetos; não os aprovava, nem os reprovava. Limitava-se a pequenas reprimendas sem convicção, para que o casamento não fosse efetuado sem a bênção do sacerdote do Sol ou de outro qualquer. E se isto fazia, era para não precipitar as coisas; ele gostava dos desdobramentos naturais e encadeados, das passagens suaves, das inflexões doces, e detestava os saltos bruscos de um estado para o outro.

— Então, doutor, ainda por aqui? fez o rico parlamentar sentando-se.

— É verdade, respondeu-lhe o velho. Estou fazendo o meu sacrifício, rezando a minha missa... É a quinta... Que toma, doutor?

— Um "madeira"... Que tal o Carnaval?

— Como sempre.

E, depois, voltando-se para o caixeiro:

— Outra cerveja e um "madeira", aqui, para o doutor. Olha: leva a garrafa.

O caixeiro afastou-se, levando a garrafa vazia e o doutor André perguntou:

— Dona Isabel não veio?

— Não. Minha mulher não gosta das segundas-feiras de Carnaval. Acha-as desenxabidas... Ficaram, ela e a Clô, em casa a se prepararem para o baile á fantasia na casa dos Silvas... Quer ir?

— O senhor vai?

— Não, meu caro senhor; do Carnaval, eu só gosto dessa barulhada da rua, dessa música selvagem e sincopada de recos-recos, de pandeiros, de bombos, desse estridulo de fanhosos instrumentos de metais... Até do bombo gosto, mais nada! Essa barulhada faz-me bem à alma. Não irei... Agora, se o doutor quer ir... Clô vai de preta mina.

— Deve-lhe ficar muito bem... Não posso ir; entretanto, irei á sua casa para ver a sua senhora e a sua filha fantasiadas. O senhor devia também ir...

— Fantasiado?

— Que tinha?

— Ora, doutor! eu ando sempre com a máscara no rosto.

E sorriu leve com amargura; o deputado pareceu não compreender e observou:

— Mas, a sua fisionomia não é tão decrépita assim...

Maximiliano ia objetar qualquer coisa quando o caixeiro chegou com as bebidas, ao tempo em que Mme. Rego da Silva e o marido levantaram-se com a pequena Dulce, amante de ambos, no dizer da cidade em peso.

O parlamentar olhou-os bastante com o seu seguro ar de quem tudo pode. Ouviu que ao lado diziam — à passagem dos três: ménage à trois. A sua simplicidade provinciana não compreendeu a maldade e logo dirigiu-se ao velho professor:

—Jantam em casa?

—Jantamos; e o doutor não quer jantar conosco?

— Obrigado. Não me é possível ir hoje... Tenho um compromisso sério... Mas fique certo que, antes de saírem, lá irei tomar um uisquezinho... Se me permite?

— Oh! doutor! O senhor é nosso melhor amigo. Não imagina como todos lá falam no senhor. Isabel levanta-se a pensar no doutor André; Clô, essa, nem se fala! Até o Caçula quando o vê, não late; faz-lhe festas, não é?

— Como isso me cumula de...

— Ainda há dias, Isabel me disse: Maximiliano, eu nunca bebi um Chambertin como esse que o doutor André nos mandou... O meu filho, o Fred, sabe até um dos seus discursos de cor; e, de tanto repeti-lo, creio que sei de memória vários trechos dele.

A face rígida do ídolo, com grande esforço, abriu-se um pouco; e ele disse, ao jeito de quem quer o contrário:

— Não vá agora recitá-lo.

— Certo que não. Seria inconveniente; mas não estou impedido de dizer, aqui, que o senhor tem muita imaginação, belas imagens e uma forma magnífica.

— Sou principiante ainda, por isso não me fica mal aceitar o elogio e agradecer a animação.

Fez uma pausa, tomou um pouco de vinho e continuou em tom conveniente:

— O senhor sabe perfeitamente que espécie de força me prende aos seus... Um sentimento acima de mim, uma solicitação, alguma coisa a mais que os senhores puseram na minha vida...

— Pois então, interrompeu cheio de comoção o doutor Maximiliano: à nossa!

Ergueu o copo e ambos tocaram os seus, reatando o parlamentar a conversa desta maneira:

— Deu aula hoje?

— Não. Desci para espairecer e "cavar". É dura esta vida... "cavar"! Como é triste dizer-se isto! Mas que se há de fazer? Ganha-se uma miséria... Um professor com oitocentos mil-réis o que é? Tem-se a família, representação... uma miséria! Ainda agora, com tantas dificuldades, é que Clô deu em tomar banhos de leite...

— Que ideia! Onde aprendeu isso?

— Sei lá! Ela diz que tem não sei que propriedades, certas virtudes... O diabo é que tenho de pagar uma conta estupenda no leiteiro... São banhos de ouro, é que são! Jogo nos bichos... Hoje tinha tanta fé no "jacaré"...

O caixeiro passava e ele recomendou:

— Baldomero, outra cerveja. O doutor não toma mais um "madeira"?

— Vá lá. Ganhou, doutor?

— Qual! E não imagina que falta me fez!

— Se quer?...

— Por quem é, meu caro; deixe-se disso! Então há de ser assim todo o dia?

— Que tem!... Ora!... Nada de cerimônias; é como se recebesse de um filho...

— Nada disso... Nada disso...

Fingindo que não entendia a recusa, o doutor André foi retirando da carteira uma bela nota, cujo valor nas algibeiras do doutor Maximiliano fez-lhe esquecer em muito a sua desdita no "jacaré".

O deputado ainda esteve um pouco; em breve, porém, se despediu, reiterando a promessa de que iria até à casa do professor, para ver as duas senhoras fantasiadas.

O doutor Maximiliano bebeu ainda uma cerveja e, acabada que foi a cerveja, saiu vagarosamente um tanto trôpego.

A noite já tinha caído de há muito. Era já noite fechada. Os cordões e os bandos carnavalescos continuavam a passar, rufando, batendo, gritando desesperadamente. Homens e mulheres de todas as cores — os alicerces do país — vestidos de meia, canitares e enduapes de penas multicores, fingindo índios, dançavam na frente ao som de uma zabumbada africana, tangida com fúria em instrumentos selvagens, roufenhos, uns, estridentes, outros. As danças tinham luxuriosos requebros de quadris, uns caprichosos trocar de pernas, umas quedas imprevistas.

Aqueles fantasiados tinham guardado na memória muscular velhos gestos dos avoengos, mas não mais sabiam coordená-los nem a explicação deles. Eram restos de danças guerreiras ou religiosas dos selvagens de onde a maioria deles provinha, que o tempo e outras influências tinham transformado em palhaçadas carnavalescas...

Certamente, durante os séculos de escravidão, nas cidades, os seus antepassados só se podiam lembrar daquelas cerimônias de suas aringas ou tabas, pelo carnaval. A tradição passou aos filhos, aos netos, e estes estavam ali a observá-la com as inevitáveis deturpações.

Ele, o doutor Maximiliano, apaixonado amador de música, antigo professor de piano, para poder viver e formar-se, deteve-se um pouco, para ouvir aquelas bizarras e bárbaras cantorias, pensando na pobreza de invenção melódica daquela gente. A frase, mal desenhada, era curta, logo cortada, interrompida, sacudida pelos rufos, pelo ranger, pelos guinchos de instrumentos selvagens e ingênuos. Um instante, ele pensou em continuar uma daquelas cantigas, em completá-la; e a ária veio-lhe inteira, ao ouvido, provocando o antigo professor de música a fazer parar o 'Chuveiro de Ouro", a fim de ensinar-lhes, aos cantores, o que a imaginação lhe havia trazido à cabeça naquele momento.

Arrependeu-se que tivesse fito gostar daquela barulhada; porém, o amador de música vencia o homem desgostoso. Ele queria que aquela gente entoasse um hino, uma cantiga, um canto com qualquer nome, mas que tivesse regra e beleza. Mas — logo imaginou — para quê? Corresponderia a música mais ou menos artística aos pensamentos íntimos deles? Seria mesmo a expansão dos seus sonhos, fantasias e dores?

E, devagar, se foi indo pela rua em fora, cobrindo de simpatia toda a puerilidade aparente daqueles esgares e berros, que bem sentia profundos e próprios daquelas criaturas grosseiras e de raças tão várias, mas que encontravam naquele vozerio bárbaro e ensurdecedor meio de fazer porejar os seus sofrimentos de raça e de indivíduo e exprimir também as suas ânsias de felicidade. Encaminhou-se direto para a casa. Estava fechada; mas havia luzes na sala principal, onde tocavam e dançavam.

Atravessou o pequeno jardim, ouvindo o piano. Era sua mulher quem tocava; ele o adivinhava pelo seu velouté, pela maneira de ferir as notas, muito docemente, sem deixar quase perceber a impulsão que os dedos levavam. Como ela tocava aquele tango! Que paixão punha naquela música inferior!

Lembrou-se então dos "cordões", dos "ranchos", das suas cantilenas ingênuas e bárbaras, daquele ritmo especial a elas que também perturbava sua mulher e abrasava sua filha. Por que caminho lhes tinha chegado ao sangue e à carne aquele gosto, aquele pendor por tais músicas? Como havia correlação entre elas e as almas daquelas duas mulheres?

Não sabia ao certo; mas viu em toda a sociedade complicados movimentos de trocas e influências — trocas de idéias e sentimentos, de influências e paixões, de gostos e inclinações.

Quando entrou, o piano cessava e a filha descansava, no sofá, a fadiga da dança lúbrica que estivera ensaiando com o irmão. O velho ainda ouviu indulgentemente o filho dizer:

— É assim que se dança nos Democráticos.

Clô, logo que o viu, correu a abraçá-lo e, abraçada ao pai, perguntou:

— André não vem?

—Virá.

Mas, logo, em tom severo, acrescentou:

— Que tem você com André?

— Nada, papai; mas ele é tão bom...

Quis Maximiliano ser severo; quis apossar-se da sua respeitável autoridade de pai de família; quis exercer o velho sacerdócio de sacrificador aos deuses penates; mas era céptico demais, duvidava, não acreditava mais nem no seu sacerdócio nem no fundamento da sua autoridade. Ralhou, entretanto, frouxamente:

— Você precisa ter mais compostura, Clô. Veja que o doutor André é casado e isto não fica bem.

A isto, todos entraram em explicações. O respeitável professor foi vencido e convencido de que a afeição da filha pelo deputado era a coisa mais inocente e natural deste mundo. Foram jantar. A refeição foi tomada rapidamente. Fred, contudo, pôde dar algumas informações sobre os préstitos carnavalescos do dia seguinte. Os Fenianos perderiam na certa. Os Democráticos tinham gasto mais de sessenta contos e iriam pôr na rua uma cousa nunca vista. O carro do estandarte, que era um templo japonês, havia de  fazer um "bruto sucesso”. Demais, as mulheres eram as mais lindas, as mais bonitas... Estariam a Alice, a Charlotte, a Lolita, a Carmen...

— Ainda toma muito cloral? perguntou Clô.

— Ainda, retrucou o irmão; e emendou: vai ser uma lindeza, um triunfo, à noite, com luz elétrica, nas ruas largas...

E Clô, por instantes, mordeu os lábios, suspendeu um pouco o corpo e viu-se também, no alto de um daqueles carros, iluminada pelos fogos-de-bengala, recebida com palmas, pelos meninos, pelos rapazes, pelas moças, pelas burguesas e burgueses da cidade.

Era o seu triunfo a meta de sua vida; era a proliferação imponderável de sua beleza em sonhos, em anseios, em idéias, em violentos desejos naquelas almas pequenas, sujeitas ao império da convenção, da regra e da moral. Tomou a cerveja, todo o copo de um hausto, limpou a espuma dos lábios e o seu ligeiro buço surgiu lindo sobre os breves lábios vermelhos. Em seguida, perguntou ao irmão:

— E essas mulheres ganham?

— Qual! Você não vê que é uma honra? respondeu-lhe o irmão.

E o jantar acabou sério e familiar, embora a cerveja e o vinho não tivessem faltado aos devotos de cada uma das duas bebidas. Logo que a refeição acabou, talvez uns vinte minutos após, o doutor André se fazia anunciar. Desculpou-se com as senhoras; não pudera vir jantar, questões políticas, uma conferência...

Pedia licença para oferecer aquelas pequenas lembranças de Carnaval.

Deu uma pequena caixa a dona Isabel e uma maior à Clô. As joias saíram dos escrínios e faiscaram orgulhosamente para todos os presentes deslumbrados. Para a mãe, um anel; para a filha, um bracelete.

— Oh, doutor! fez dona Isabel. O senhora está a sacrificar-se e nós não podemos consentir nisto...

— Qual, dona Isabel! São falsas, nada valem... Sabia que dona Clôdia ia de "preta mina" e lembrei-me trazer-lhe este enfeite...

Clô agradeceu sorridente a lembrança e a suave boca quis fixar demoradamente o longo sorriso de alegria e agradecimento. E voltaram a tocar. Dona Isabel pôs-se ao piano e, como tocasse depois da sobremesa, hora da melancolia e das discussões transcendentes, como já foi observado, executou alguma coisa triste.

Chegava a ocasião de se prepararem para o baile à fantasia que os Silvas davam. As senhoras retiraram-se e só ficaram, na sala, os homens, bebendo uísque. André, impaciente e desatento; o velho lente, indiferente e compassivo, contando histórias brejeiras, com vagar e cuidado; o filho, sempre a procurar caminho para exibir o seu saber em coisas carnavalescas. A conversa ia caindo, quando o velho disse para o deputado:

— Já ouviu a Bamboula, de Gottschalk, doutor?

— Não... Não conheço.

— Vou tocá-la.

Sentou-se ao piano, abriu o álbum onde estava a peça e começou a executar aqueles compassos de uma música negra de Nova Orleans, que o famoso pianista tinha filtrado e civilizado.

A filha entrou, linda, fresca, veludosa, de pano da Costa ao ombro, trunfa, com o colo inteiramente nu, muito cheio e marmóreo, separado do pescoço modelado, por um colar de falsas turquesas.

Os braceletes e as miçangas tilintavam no peito e nos braços, a bem dizer totalmente despidos; e os bicos de crivo da camisa de linho rendavam as raízes dos seios duros que mal suportavam a alvíssima prisão onde estavam retidos. Ainda pôde requebrar, aos últimos compassos da Bamboula, sobre as chinelas que ocupavam a metade dos pés; e toda risonha sentou-se por fim, esperando que aquele Salomão de pince-nez de ouro lhe dissesse ao ouvido:

"Os teus lábios são como uma fita de escarlate; e o teu falar é doce. Assim como é o vermelho da romã partida, assim é o nácar das tuas faces; sem falar no que está escondido dentro".

O doutor Maximiliano deixou o tamborete do piano e o deputado, bem perto de Clôdia, se não falava como o rei Salomão à rainha de Sabá dilatava as narinas para sorver toda a exalação acre daquela moça, que mais capitosa se fazia dentro daquele vestuário de escrava desprezada.

A sala encheu-se de outros convidados e a sessão de música veio a cair na canção e na modinha. Fred cantou e Clô, instada pelo doutor André, cantou também. O automóvel não tinha chegado; ela tinha tempo...

Dona Isabel acompanhou; e a moça, pondo tudo o que havia de sedução na sua voz, nos seus olhos pequenos e castanhos, cantou a "Canção da Preta Mina":

Pimenta de cheiro, jiló, quibombô;
Eu vendo barato, mi compra ioiô!

Ao acabar, era com prazer especial, cheia de dengues nos olhos e na voz, com um longo gozo intimo que ela, sacudindo as ancas e pondo as mãos dobradas pelas costas na cintura, curvava-se para o doutor André e dizia vagamente:

Mi compra ioiô!

E repetia com mais volúpia, ainda uma vez:

Mi compra ioiô!

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. 1920.