segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Cecy Barbosa Campos (Cristais Poéticos) III


IMPOSSIBILIDADES

Querer voltar
e não achar o caminho.
Querer segurar
e sentir que tudo o que tenho
escapa-me por entre os dedos.
Querer falar
e não achar as palavras.
Querer esquecer
e ser perseguido pela memória
dos fatos,
da vida,
das sensações
e das lembranças
que não se apagam
e que,
com nitidez penetrante
invadem o meu ser
tornando-se indeléveis.
Não é possível apagar
o que já não existe.
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INCLUSÃO

Dos males que nos afligem
estamos bem informados.
Na leitura dos jornais
ou pela televisão
temos notícias de tudo
que acontece no mundo.
O coração oprimido
compartilha o sofrimento
daqueles mais atingidos
que sem amigo, sem nada,
permanecem na exclusão.
Quisera encontrar caminhos
que possam levar os homens
a descobrir soluções
que amenizem as dores
do irmão injustiçado,
já bastante machucado
por agruras dessa vida.
Em minha busca incessante
percebo que, com caridade,
fé e amor no coração,
superaremos barreiras
e alcançaremos as mãos
daqueles que as estendem
suplicando proteção.
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INDAGAÇÕES

O que foi feito de nós?
Um de um lado,
outro de outro,
e um mundo entre nós dois.
O que foi feito
de nossas conversas noturnas
que se transformaram
em rotineiros Bom-dia?
Onde estão as luzes,
os risos, a alegria,
a música suave,
que ecoava em nossos ouvidos?
O que sobrou de nossas esperanças,
das tristezas partilhadas,
das angústias divididas?
Um sofrer inexplicável,
um temor silencioso,
tédio da vida,
Por quê?
As montanhas permanecem,
o sol brilha atrás das nuvens
e as estrelas clareiam as noites,
O que é mais importante?
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INFÂNCIA

O menino não tem brinquedo.
Nunca teve.
Mas brinca com serrote,
tesoura,
revólver,
caco de vidro.
Ele não reza. Ninguém lhe ensinou.
Se ensinou, esqueceu.
Mas vai à Igreja quando chove.
Se não puder entrar
fica na soleira, que lhe dá abrigo -
desde que não haja matança
como na Candelária.
O menino não come. Nem tem fome.
Cheira cola e dorme, com seu corpo osso,
num degrau de escada
sem frio, sem nada,
E dorme, e sonha,
até que os donos do mundo
surgindo dos cantos,
interrompam seu sono
e arrebentem seu sonho.
Batendo, espancando,
não ouvem seus gritos
e fazem calar
a quem nunca soube
infância, o que é.
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LEMBRANÇAS

Seu olhar enevoado enxergava os vultos
dos irmãos sentados à mesa da cozinha
e ouvia com atenção, o alarido incessante
que misturava perguntas e respostas
sem permitir que alguém fosse entendido.
Às suas lembranças, do tempo de criança,
juntavam-se outras de quando era cercada
por filhos e por netos. A vida transformada
trouxe alegrias e tristezas alternadas,
a partida de alguns, de outros a chegada.
Com a família dispersa foi ficando tão sozinha
que os retratos pelos móveis se tornaram companhia.
Dos momentos felizes restou-lhe a saudade
preenchendo as esperas inúteis de seus dias.
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MARCAS DO TEMPO

Tempestades marcaram a fronte enevoada
e sulcaram caminhos indistintos
pela serena face encarquilhada.
Com mãos trementes e sorriso tímido,
com a vergonha de insistir vivendo tanto,
olha perdido contemplando o nada
e enche de vazio a vida sem sentido.
Melancolia suave, lembranças persistentes
de ausentes presentes, teimosas companhias
que com ele ficaram, embora já partidos.
Indagações contínuas, perguntas sem resposta
de um mundo irreal e que ele não entende,
aqui vivendo em vida separada.
Com seus fantasmas conversa ensimesmado,
provoca risos e olhares aos quais não corresponde.
Fechado no seu eu, sorri às vezes,
ao receber um beijo ou carinhoso afago
daqueles que percebem qual o significado
da escrita confusa e empergaminhada
que traduz uma história de lutas e de dores
no seu rosto tranquilo e abnegado.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Cenas. Juiz de Fora/MG: Editar Editora Associada, 2010.
Livro enviado pela poetisa.

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