CONVERSA ENTRE DOIS HOMENS de profissões distintas. O primeiro é um taxista. O segundo, professor de medicina veterinária, com a diferença que não exerce mais a profissão, é aposentado. E, como tal, todo começo de mês se desloca com o mesmo táxi de um ponto perto de sua residência até o banco para receber seu pagamento. O profissional do volante o transporta há mais de três anos, o que gerou uma amizade entre ambos. Entretanto, nunca trocaram nomes, endereços ou telefones. Apenas um bate papo informal que dura entre a ida e a volta, coisa de uma hora e meia, às vezes um pouco mais, outras, menos, dependendo do trânsito. Neste início de mês, o taxista, assim que o professor se acomodou no banco de trás, entabulou conversa:
TAXISTA: — Meu amigo, posso lhe fazer uma pergunta um tanto indiscreta? Não é de hoje, tenho vontade chegar para o senhor e questionar, mas na hora agá, me bate uma vergonha danada e a gente acaba falando de tudo e eu não entro na questão que, no fundo, me intriga...
PROFESSOR: — Qual o quê! Fique à vontade. Embora não saiba seu nome, e nunca passamos do bom dia, seguido de um papo sobre coisas triviais, tipo futebol, mulheres, situação do país, em quem votaremos ou deixaremos de votar, culminando no tradicional ‘quanto lhe devo’, eu o considero da família. Afinal, embarco em seu táxi, acredito que há mais de três anos, quase beirando quatro, visto que todo começo de mês uso seus serviços para me dirigir ao banco receber meu pagamento. Fique a vontade. Não vou me ofender, de forma alguma.
TAXISTA: — Agradeço duplamente ao amigo. Primeiro por me dar a preferência no meu taxi durante todos esses anos e, segundo, por me deixar matar, finalmente, uma curiosidade que me acompanha desde a primeira vez que me solicitou lá no ponto. O senhor foi professor de medicina veterinária por mais de quarenta anos —, me disse outro dia, um vizinho seu —, ou seja, o senhor além de ensinar e capacitar novos médicos para esta área, cuidava de animais doentes e abandonados. Mas não é isto o que me incomoda. O que me tira o sono é o seguinte: o senhor tem um carro, não é mesmo? Já o vi várias vezes no posto lá perto da avenida onde o senhor mora e onde, aliás, eu e meus colegas da praça abastecemos.
PROFESSOR: — Sim, é verdade. Tenho um Aircross da Citroën. Quero dizer, tenho ‘mais ou menos...’.
TAXISTA: — ‘Mais ou menos...?’ — Como assim? — O senhor tem ou não?
PROFESSOR: — Deixa tentar explicar. Na minha casa, somos eu, a minha mulher, oito filhos, quatro noras, dois genros e cinco netos.
TAXISTA: — Que é isso! Família grande e de peso. Mais de vinte cabeças!
PROFESSOR: — Para ser exato, vinte e uma. Por isto possuir uma mansão monstruosa que o senhor mesmo sabe onde fica.
TAXISTA: — Tudo bem. E onde entra esta história de ter um carro na modalidade ‘mais ou menos?’.
PROFESSOR: — Seguinte: o carro é da minha mulher, quando ela vai ao supermercado fazer às compras do mês.
TAXISTA: — Hummmmmm!...
PROFESSOR: — É do meu filho Paulo e da esposa Flavia, quando eles vão à academia. Do Luiz, quando precisa levar a esposa Beth ao dentista. É do Juarez e da Bárbara, quando saem com os amigos para farrear. Do Adalberto, que é oficial de justiça junto com a minha nora Catarina, que pegam emprestado para cumprirem seus mandatos. Da Lídia, mais meu genro Eustáquio que precisam correr constantemente para o hospital...
TAXISTA: — Essa sua filha ou esse seu genro têm alguma doença?
PROFESSOR: — Não, meu amigo. Ambos são médicos. Minha filha é pediatra e meu genro cardiologista.
TAXISTA: — Entendi. Desculpe a interrupção. Prossiga.
PROFESSOR: — Nada a desculpar. Continuando, meu carro é da Silvia e de seu esposo, quando vão para a clínica veterinária que abriram para eles. Ela, Silvia e Gustavo, meu genro, possuem um espaço veterinário nos fundos, tipo um SPA e, na frente, uma loja bastante sortida de iguarias para gatos, cachorros, papagaios e etc... Igualmente da Ana Lúcia que vende roupas e utiliza o automóvel para fazer as suas entregas...
TAXISTA: — Entregas?
PROFESSOR: — Sim, foi o que eu disse. Ela é representante de uma grife famosa. É viúva, a coitadinha! O marido morreu, mas me deu de presente dois netos maravilhosos. E é do Moacir e da Larissa, quando eles cismam de ir ao shopping dar um rolê com as meninas e levam, além das três crianças deles, os meus dois outros netos, filhos da Ana Lúcia, de contrapeso.
TAXISTA: — Que loucura, meu amado, que loucura! Estou pasmo!
PROFESSOR: — Este balaio de gatos e cachorros não acaba aqui. Tem mais. O carro é da Flávia (minha nora, esposa do meu filho Paulo), quando eles precisam visitar os pais dela, em finais de semana alternados. Da Catarina, a oficial de justiça, lembra que falei dela ainda há pouco, a cara metade de meu filho Adalberto, quando ela parte distribuindo os meus cinco netinhos, cada um em seus respectivos colégios. Da Beth, igualmente nora, companheira de meu filho Luiz (eles não são casados no papel). Beth é feirante e meu filho Luiz acorda cedo e aproveita para deixá-la no local de trabalho.
TAXISTA: — Que engraçado a sua vida, ou melhor, a vida do seu carro. Aliás, eu diria uma história bem familiar. Por isso o prezado fez referência ao ‘mais ou menos’. Agora entendi o espírito da coisa. Um dia o automóvel é da sua esposa, outro dia cada um dos oito filhos disputam a charanga... Sem falar nas noras, genros e netinhos. Confesso, até hoje, não havia tomado consciência, ou ouvido alguém falar num caso assim, tão engraçadamente extravagante e atípico. Não seria mais cômodo cada um ter o seu próprio meio de transporte?
PROFESSOR: — Pois é a mais pura verdade, meu amigo. Sem tirar nem aumentar. Com relação a cada um ter seu próprio meio de transporte... A galera prefere ficar nas coisas aqui do velho pai. Família é coisa séria!
TAXISTA: — Concordo plenamente. Família é de tirar a gente do sério. Apesar de tudo o que acabou de me contar, ainda paira uma dúvida na cabeça. Toda a sua família faz uso de seu carro. E o senhor anda de táxi. No meu táxi. Para mim, em particular, acredite, isto é bom. Cá entre nós: nesta confusão toda, nesta torre de Babel, quando o seu quatro rodas é realmente seu, de verdade? Vou perguntar de forma mais clara: em que momento o senhor consegue sentar no seu AirCross e desfrutar, literalmente, do seu Citroën?
O Professor de medicina veterinária se abre num sorriso alegre, antes de descer em frente ao banco:
— Quando acaba a gasolina, meu prezado. Aí eles se lembram que eu sou o proprietário, perdão, o médico veterinário aposentado, dono do animal e me liberam a caça preciosa para que eu cuide, dê água e remédio no posto de saúde mais próximo. Desculpe, entenda as minhas palavras de forma literalmente objetiva: me entregam, o bicho quase morto e faminto, nas últimas, para ser alimentado o rombo deixado na sua barriguinha e ele, coitado, não venha a morrer de fome jogado no meio da uma avenida qualquer.
Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020. No prelo.
Texto enviado pelo autor.
TAXISTA: — Meu amigo, posso lhe fazer uma pergunta um tanto indiscreta? Não é de hoje, tenho vontade chegar para o senhor e questionar, mas na hora agá, me bate uma vergonha danada e a gente acaba falando de tudo e eu não entro na questão que, no fundo, me intriga...
PROFESSOR: — Qual o quê! Fique à vontade. Embora não saiba seu nome, e nunca passamos do bom dia, seguido de um papo sobre coisas triviais, tipo futebol, mulheres, situação do país, em quem votaremos ou deixaremos de votar, culminando no tradicional ‘quanto lhe devo’, eu o considero da família. Afinal, embarco em seu táxi, acredito que há mais de três anos, quase beirando quatro, visto que todo começo de mês uso seus serviços para me dirigir ao banco receber meu pagamento. Fique a vontade. Não vou me ofender, de forma alguma.
TAXISTA: — Agradeço duplamente ao amigo. Primeiro por me dar a preferência no meu taxi durante todos esses anos e, segundo, por me deixar matar, finalmente, uma curiosidade que me acompanha desde a primeira vez que me solicitou lá no ponto. O senhor foi professor de medicina veterinária por mais de quarenta anos —, me disse outro dia, um vizinho seu —, ou seja, o senhor além de ensinar e capacitar novos médicos para esta área, cuidava de animais doentes e abandonados. Mas não é isto o que me incomoda. O que me tira o sono é o seguinte: o senhor tem um carro, não é mesmo? Já o vi várias vezes no posto lá perto da avenida onde o senhor mora e onde, aliás, eu e meus colegas da praça abastecemos.
PROFESSOR: — Sim, é verdade. Tenho um Aircross da Citroën. Quero dizer, tenho ‘mais ou menos...’.
TAXISTA: — ‘Mais ou menos...?’ — Como assim? — O senhor tem ou não?
PROFESSOR: — Deixa tentar explicar. Na minha casa, somos eu, a minha mulher, oito filhos, quatro noras, dois genros e cinco netos.
TAXISTA: — Que é isso! Família grande e de peso. Mais de vinte cabeças!
PROFESSOR: — Para ser exato, vinte e uma. Por isto possuir uma mansão monstruosa que o senhor mesmo sabe onde fica.
TAXISTA: — Tudo bem. E onde entra esta história de ter um carro na modalidade ‘mais ou menos?’.
PROFESSOR: — Seguinte: o carro é da minha mulher, quando ela vai ao supermercado fazer às compras do mês.
TAXISTA: — Hummmmmm!...
PROFESSOR: — É do meu filho Paulo e da esposa Flavia, quando eles vão à academia. Do Luiz, quando precisa levar a esposa Beth ao dentista. É do Juarez e da Bárbara, quando saem com os amigos para farrear. Do Adalberto, que é oficial de justiça junto com a minha nora Catarina, que pegam emprestado para cumprirem seus mandatos. Da Lídia, mais meu genro Eustáquio que precisam correr constantemente para o hospital...
TAXISTA: — Essa sua filha ou esse seu genro têm alguma doença?
PROFESSOR: — Não, meu amigo. Ambos são médicos. Minha filha é pediatra e meu genro cardiologista.
TAXISTA: — Entendi. Desculpe a interrupção. Prossiga.
PROFESSOR: — Nada a desculpar. Continuando, meu carro é da Silvia e de seu esposo, quando vão para a clínica veterinária que abriram para eles. Ela, Silvia e Gustavo, meu genro, possuem um espaço veterinário nos fundos, tipo um SPA e, na frente, uma loja bastante sortida de iguarias para gatos, cachorros, papagaios e etc... Igualmente da Ana Lúcia que vende roupas e utiliza o automóvel para fazer as suas entregas...
TAXISTA: — Entregas?
PROFESSOR: — Sim, foi o que eu disse. Ela é representante de uma grife famosa. É viúva, a coitadinha! O marido morreu, mas me deu de presente dois netos maravilhosos. E é do Moacir e da Larissa, quando eles cismam de ir ao shopping dar um rolê com as meninas e levam, além das três crianças deles, os meus dois outros netos, filhos da Ana Lúcia, de contrapeso.
TAXISTA: — Que loucura, meu amado, que loucura! Estou pasmo!
PROFESSOR: — Este balaio de gatos e cachorros não acaba aqui. Tem mais. O carro é da Flávia (minha nora, esposa do meu filho Paulo), quando eles precisam visitar os pais dela, em finais de semana alternados. Da Catarina, a oficial de justiça, lembra que falei dela ainda há pouco, a cara metade de meu filho Adalberto, quando ela parte distribuindo os meus cinco netinhos, cada um em seus respectivos colégios. Da Beth, igualmente nora, companheira de meu filho Luiz (eles não são casados no papel). Beth é feirante e meu filho Luiz acorda cedo e aproveita para deixá-la no local de trabalho.
TAXISTA: — Que engraçado a sua vida, ou melhor, a vida do seu carro. Aliás, eu diria uma história bem familiar. Por isso o prezado fez referência ao ‘mais ou menos’. Agora entendi o espírito da coisa. Um dia o automóvel é da sua esposa, outro dia cada um dos oito filhos disputam a charanga... Sem falar nas noras, genros e netinhos. Confesso, até hoje, não havia tomado consciência, ou ouvido alguém falar num caso assim, tão engraçadamente extravagante e atípico. Não seria mais cômodo cada um ter o seu próprio meio de transporte?
PROFESSOR: — Pois é a mais pura verdade, meu amigo. Sem tirar nem aumentar. Com relação a cada um ter seu próprio meio de transporte... A galera prefere ficar nas coisas aqui do velho pai. Família é coisa séria!
TAXISTA: — Concordo plenamente. Família é de tirar a gente do sério. Apesar de tudo o que acabou de me contar, ainda paira uma dúvida na cabeça. Toda a sua família faz uso de seu carro. E o senhor anda de táxi. No meu táxi. Para mim, em particular, acredite, isto é bom. Cá entre nós: nesta confusão toda, nesta torre de Babel, quando o seu quatro rodas é realmente seu, de verdade? Vou perguntar de forma mais clara: em que momento o senhor consegue sentar no seu AirCross e desfrutar, literalmente, do seu Citroën?
O Professor de medicina veterinária se abre num sorriso alegre, antes de descer em frente ao banco:
— Quando acaba a gasolina, meu prezado. Aí eles se lembram que eu sou o proprietário, perdão, o médico veterinário aposentado, dono do animal e me liberam a caça preciosa para que eu cuide, dê água e remédio no posto de saúde mais próximo. Desculpe, entenda as minhas palavras de forma literalmente objetiva: me entregam, o bicho quase morto e faminto, nas últimas, para ser alimentado o rombo deixado na sua barriguinha e ele, coitado, não venha a morrer de fome jogado no meio da uma avenida qualquer.
Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020. No prelo.
Texto enviado pelo autor.
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